1O propósito deste artigo é mostrar que a produção material do espaço realizada por meio da indústria da construção civil efetiva-se, predominantemente, instrumentalizando a propriedade da terra, que por consequência tem relação com as mudanças na forma espacial das cidades.
2O domínio industrial sobre a produção do espaço efetiva-se em conformidade com a urbanização, que por seu lado depende da produção em geral manifestada concretamente no lugar de investigação. Sendo assim, é preciso que se compreenda o papel da cidade no contexto da estrutura produtiva em que está inserida, porque existem condições materiais requeridas para a fixação dessa estrutura produtiva no território, pois a produção não existe no vácuo (HARVEY, 2018). As condições gerais de produção criam, nas palavras de Harvey, novas geografias no território. A materialidade física requerida à produção e a reprodução do trabalho, que são formas de urbanização, viabilizam o desenvolvimento da indústria da construção civil no seu curso de produzir espaço para o mercado.
3Lefebvre (1969) trata do mesmo assunto quando se refere ao duplo sentido da industrialização-urbanização, pois a urbanização é uma consequência da industrialização e ao mesmo tempo a industrialização é uma etapa da urbanização.
Geralmente, apresenta-se a urbanização como uma simples consequência da industrialização, fenômeno dominante; a cidade e a aglomeração (megapolis) entram, portanto, no exame do processo de industrialização e o espaço no espaço do ordenamento geral. A inversão consiste em considerar a industrialização como uma etapa da urbanização, como um momento, um intermediário, um instrumento. De modo que no processo duplo (industrialização-urbanização) o segundo termo tende a se tornar dominante após um período no qual o primeiro o arrastava (LEFEBVRE, 1969, p. 21).
4De induzida, a urbanização torna-se indutora, em razão do novo concreto criado pela industrialização. O caráter indutor da urbanização significa que ela se autonomiza e, assim, o capital além de produzir no espaço (coisas feitas pela indústria), passa à produção efetiva do espaço (construção civil). Nesse sentido, para Lefebvre (2016) o imobiliário ganha centralidade, de um ramo atrasado torna-se central, porque conquista o espaço por meio da instrumentalização da propriedade da terra.
5Dadas as condições históricas, de que maneira a indústria da construção se apropria dessas condições para se reproduzir e se transformar mudando a cidade? Isso vai depender da urbanização e da forma de produção da construção.
6Como a urbanização é historicamente determinada, cada cidade possui as suas especificidades, guardadas as particularidades regionais que a cercam, que precisam ser investigadas para que se compreenda o desenvolvimento da construção civil e a transformação da cidade.
7Para os propósitos deste artigo, o objeto de investigação é a cidade de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, que é vista no primeiro item como cidade do café, cuja urbanização relaciona-se ao caráter mercantil-comercial da cultura, que por sua vez estabelece certos limites ao desenvolvimento da construção civil, manifestados por meio do crescimento horizontal da cidade. O item segundo, a metrópole da indústria, trata das condições que permitiram que o imobiliário se transformasse, conquistando o espaço e verticalizando a cidade.
- 1 Fonte: FJSN. PDU de Vitória, 1979.
8Até os anos 1940 Vitória era uma cidade horizontal e possuía apenas 42.246 habitantes.1 Vivia das atividades do comércio de café e em torno da burocracia do Estado. Contudo, o caráter de sede do capital comercial (OLIVEIRA, s/d) de uma pequena produção de café, que escoava para o porto da capital a fim de ser exportado, impunha limites ao processo de acumulação centralizado pelo comércio na cidade.
9A produção era pequena porque somente parte do produto estadual escoava por Vitória. O café do sul do estado era exportado pelo porto do Rio de Janeiro. Essa disputa, com vista a centralizar em Vitória o comércio da produção de café estadual e de parte de Minas Gerais, era um projeto antigo, datado de fins do século XIX, mas somente efetivou-se em parte no final dos anos 1940 (CAMPOS JUNIOR, 1996).
10Até então os recursos do estado provinham principalmente do café, que chegou a representar 97% das exportações estaduais, e dos efeitos do escoamento do minério de ferro iniciado nessa mesma década. O café exportado por Vitória representava 40% da produção estadual. Apesar de importante para a receita do estado, as exportações de café do Espírito Santo nunca chegaram a mais de 5% das nacionais, enquanto a participação de São Paulo girava em torno de 56% desse montante (ROCHA; COSSETTI, 1983).
11A estrutura portuária e ferroviária que dava suporte à função comercial da cidade no contexto regional começou a ser construída no início do século XX, mas frente às diversas interrupções, os primeiros armazéns do porto foram inaugurados em meados da década de 1930 e o ramal ferroviário somente chegou a Vitória nos anos 1940. Havia ainda muita natureza e pouco ambiente construído configurando a cidade (SIQUEIRA, 1980).
12Tentativas levadas à frente pela iniciativa privada de incorporar a cidade ao mercado não deram certo, como o loteamento do Balneário Camburi em1928. Também falharam, na mesma época, as estratégias da concessionária de energia elétrica e dos bondes de elevar seus ganhos sem incorporar o mercado de terras. Tais fatos são indicações de que não se produzia espaço para o mercado em Vitória.
- 2 Histórico do jornal A Gazeta. Editorial de pesquisa. 11 de setembro de 1974.
13O Balneário Camburi foi uma empreitada do comerciante Ostílio Ximenes de fazer um loteamento na região norte do município de Vitória, próximo à praia de Camburi, de maneira a criar um bairro de veraneio para os moradores de Vitória. Para seu intento, contrata o advogado e jornalista Thiers Veloso, respeitado profissional da época, e cria um pequeno jornal para fazer propaganda do empreendimento. Resultado: o negócio imobiliário faliu e o folhetim se transformou no maior jornal de circulação do estado ainda hoje.2
- 3 Conforme publicação da Escelsa (concessionária de energia elétrica no estado) intitulada História d (...)
14Enquanto a parceria entre a Cia City e a Light (concessionária de energia) resultou na construção de vários empreendimentos imobiliários em São Paulo, cujos loteamentos permitiam obter ganhos com o comércio de lotes e o consumo de energia com a ocupação dos bairros que essas empresas construíam, a concessionária de energia de Vitória, CCBFE, subsidiária da General Eletric, não se enveredou para o ramo imobiliário. Ao contrário do que se poderia imaginar, em Vitória a CCBFE promovia bailes a fantasia e torneios esportivos na região das praias, que foi a forma encontrada para incrementar seus ganhos com o aumento do consumo de energia, incentivando deslocamentos com o uso dos bondes3.
15Tanto uma experiência quanto a outra demonstram que o mercado imobiliário não estava formado em Vitória na época e que as tentativas de promover a formação desse mercado não deram certo.
16Por outro lado, em Vitória, constata-se o protagonismo do estado contribuindo para promover o acesso à moradia. Pelo menos identificaram-se três iniciativas de construção de moradias para funcionários públicos realizadas pelo governo do estado em Vitória. No governo Jerônimo Monteiro (1908-1912), próximo ao recém-inaugurado Parque Moscoso, à rua Henrique Coutinho, foram construídas casas para venda a funcionários públicos. Da mesma maneira, o governo Florentino Avidos (1924-1928) construiu moradias à rua Gama Rosa, também no centro da capital, e no bairro Jucutuquara, um pouco mais afastado da área central da cidade (CAMPOS JUNIOR, 1996).
- 4 De acordo com o Decreto do Governo do Estado n. 43, de 10 de março de 1910, capítulo VIII, artigos (...)
17No município de Vitória, as terras de propriedade do governo do estado eram facultadas a quem as requeresse mediante o pagamento de um foro anual, desde que o requerente construísse num prazo máximo de dois anos. Os funcionários públicos tinham abatimento de 50% no pagamento desse foro, desconto em folha e o direito de utilizar gratuitamente, na construção de suas moradias4, pedras da pedreira do estado, localizada no município de Vitória.
- 5 Entrevistas realizadas com construtores que viveram nas décadas de 1940 e 1950 atuando no ramo em V (...)
18A construção de moradias era realizada por encomenda para o uso dos contratantes. Não se construía para vender, e raramente construía-se para aluguel, porque não havia mercado. Aquele que ousasse fazer o contrário estava fadado ao insucesso, afirmavam os construtores daquela época5.
19Então, de onde vinha o ganho dos construtores?
20Na produção por encomenda estavam envolvidos o contratante, o construtor, os trabalhadores e o proprietário da terra, no caso o estado, que transferia a propriedade pública a custo quase zero para o contratante usá-la em proveito próprio, encomendando a construção da sua moradia.
21Não havia ganho envolvendo o negócio com a terra. Havia terra em abundância, que era disponibilizada pelo estado aos requerentes. De acordo com a quantidade de recursos dos contratantes, construía-se uma moradia mais ou menos suntuosa.
- 6 A respeito do trabalho do imigrante na construção tem-se como referência Pereira (2004), que estuda (...)
22Em Vitória, diferentemente de São Paulo6, havia poucos construtores descendentes de imigrantes que se notabilizaram. Entre estes, os que mais se projetaram foram alguns descendentes de italianos e portugueses, como: Camilo Gianordoli, Vitorino Teixeira, Bruno e Antônio Becacici e André Carloni, este realizava principalmente obras públicas. E cada construtor tinha sua equipe treinada por anos de trabalho nos canteiros com seu mestre. Eram trabalhos de artífices porque as construções apresentavam-se ricas em ornamentos, nos telhados, beirais, pinturas de painéis no interior das casas, esquadrias, vidros, lustres, muros e portões, entre outros. Não eram os lugares que estabeleciam a distinção social, mas sim a suntuosidade da moradia.
23Como se contratava a construção, quem encomendava podia definir todos os aspectos da sua moradia, evidentemente de acordo com a sua disponibilidade financeira. O caráter absoluto da propriedade da terra possibilitava isso. Nesse sentido, pode-se admitir a existência de certa heterogeneidade na forma das moradias, definida pelos seus demandantes. Tal heterogeneidade vai expressar-se na cidade. E a busca pela suntuosidade, demandando maiores detalhes e melhores ornamentos, permitia o estabelecimento de parâmetros de remuneração mais vantajosos para os construtores e seus trabalhadores. Pereira (2004) identificou que os trabalhadores de construção em São Paulo no início do século XX eram mais bem remunerados do que os da indústria de transformação.
24O longo período de aprendizado do ofício facilitava a criação de um discurso de diferenciação desses trabalhadores, constituído, sobretudo, por imigrantes, buscando a proteção para o seu ofício, o que lhes permitia obter contratos vantajosos nas construções, que por um tempo repercutiu em melhorias para os seus trabalhadores.
25O ganho do construtor nessa forma de construção era proveniente, portanto, do lucro sobre o trabalho. E, como a moradia era para o uso do contratante, sua forma era horizontal e tendia à diferenciação, imprimindo assim sua forma à cidade.
26As transformações econômicas ocorridas no Espírito Santo no final dos anos 1940 e início da década seguinte criaram uma nova realidade, que promoveu mudanças na construção da cidade.
27O movimento migratório de descendentes de italianos da região central do estado alcançou Colatina no início do século XX. Com a passagem dos trilhos da Estrada de Ferro Vitória a Minas por esse município em 1906 e a construção da ponte Florentino Avidos sobre o rio Doce em 1928, Colatina tornou-se a porta de entrada e de saída de uma imensa região que não havia sido incorporada à produção mercantil. Primeiramente por esse município escoou a madeira e em seguida o café, para serem exportados pelo porto de Vitória. Devido a essa centralização regional, nos anos 1950 Colatina se tornou o 13º município maior produtor de café do país. Tudo isso reverberou em Vitória, por onde os produtos eram exportados (CAMPOS JUNIOR, 2004; PETRONE, 1962).
28Além da produção do norte capixaba, uma maior quantidade de café do sul do Espírito Santo passou a ser comercializada e exportada por Vitória. A criação da bolsa de café em Vitória no início dos anos 1930 e o fato de os exportadores locais passarem a praticar os mesmos valores do comércio do café do mercado do Rio Janeiro levaram à centralização de vez do mercado desse produto na capital do estado.
29A década de 1940 foi marcada ainda pela presença da sede da Cia Vale do Rio Doce, hoje Vale, em Vitória. Em 1945 foi inaugurado pela mesma companhia o cais Eumenes Guimarães, destinado a exportação de minério de ferro em Vila Velha, município vizinho.
30Os melhoramentos urbanos realizados pela administração estadual de Florentino Avidos (1924-1928) juntamente com a também marcante investida em projetos de urbanização realizados pelo governo de Jones dos Santos Neves (1951-1954) na capital criaram novas condições à produção em geral e à reprodução do trabalho. Essas mudanças também criaram condições para que a construção civil, ao se transformar, disputasse o espaço por meio da criação de novos produtos para venda no mercado.
- 7 A respeito das construções por encomenda para aluguel (CAMPOS JUNIOR, 2002).
31A disputa pelo espaço em Vitória foi inaugurada com a construção de edifícios destinados ao aluguel. Foram construídos por volta de 1950, na área central da cidade, quatro edifícios por encomenda para aluguel. Na mesma década já se podia constatar o lançamento de edifícios para venda de unidades no mercado. Entre 1954 e 1964, uma única empresa construiu dez edifícios em torno da maior área verde do centro, o Parque Moscoso. As maiores mudanças, contudo, são vistas na região das praias a partir da segunda metade dos anos 19707.
32Como compreender essas mudanças na configuração espacial da cidade?
33Verifica-se um contexto socioeconômico suscitado pelas atividades do comércio do café, pelas instalações da Vale e, por ações tanto do governo como de umas poucas empresas fabris nos municípios vizinhos. Considerando que essas atividades demandavam requisitos básicos de funcionamento, traduzidos nas chamadas condições gerais de produção, tal contexto proporcionou condições para o desenvolvimento da indústria da construção. Contudo, a construção precisou mudar para se apropriar do novo contexto.
- 8 Manifestação em aula do professor Gabriel Bolaffi registrada em meus apontamentos.
34Tal mudança se deve à transformação da moradia, produzida pela indústria da construção, num negócio expresso pelo aluguel. As primeiras construções verticalizadas para aluguel ocorreram por encomenda de contratantes que tiveram por iniciativa preservar e valorizar o seu patrimônio. Na ausência de mercado financeiro formado, que se constituísse em possibilidade para investimentos, o imóvel foi uma alternativa promissora para aqueles que possuíam algum patrimônio. « O imóvel se tornou um grande santuário capaz de abrigar poupanças. »8
35Escolhendo como alternativa dar destino ao seu fundo de caixa, alguns comerciantes de Vitória investiram em imóveis para alugar. Os terrenos não eram problema. Os quatro contratantes que construíram para aluguel já os possuíam.
36O que muda na forma de construção e no ganho dos envolvidos no processo de produção?
37O produto se modifica; em vez de destinar-se ao próprio consumo da família que contratou sua construção, o imóvel veio a ser criado para dar rendimentos. Em razão disso foram produzidas várias moradias para que se obtivessem igualmente vários rendimentos, usando-se intensivamente o solo, e desse modo, modificando o produto, que se torna verticalizado. Condição facultada pelo instrumento legal da propriedade condominial vigente no país desde os anos 1920, anulando o carácter absoluto da propriedade da terra.
38Além da forma vertical do edifício, o produto passa por simplificações e apresenta uma outra estética. Perde os ornamentos e os detalhes construtivos que antes o embelezava, porque o trabalho passa a não mais constituir a única forma de ganho da construção, mas também e fundamentalmente o rendimento proveniente da terra.
39O artífice e o mestre construtor desaparecem, porque o produto simplificado e de formas retas não demanda mais esses profissionais. O trabalhador foi desqualificado, e para os novos tipos de trabalhos não se precisava mais do profissional formado por anos de trabalho no canteiro. Razão pela qual aumenta a rotatividade do trabalho no mercado, que já se encontrava formado nessa ocasião.
40O lugar do construtor foi ocupado pelo engenheiro e sua firma. A responsabilidade técnica da obra não pode mais ser assumida pelo construtor, sendo esta atribuída ao engenheiro. Entre os trabalhadores e o engenheiro, o mestre de obras passa a fazer essa mediação.
41A remuneração do engenheiro por meio da sua firma é a chamada taxa de administração. Orçada a obra (material mais mão-de-obra), pactuava-se um percentual sobre orçamento, na ocasião ficava em torno de 15%. Os trabalhadores recebiam o salário da classe. O ganho do negócio ficava com o contratante, por meio do recebimento dos aluguéis, que têm a seguinte referência:
Aí não é possível reduzir o aluguel, que representa juro e amortização do capital empregado na construção, à renda correspondente apenas ao terreno, mesmo com a boa vontade de Carey, sobretudo quando o proprietário da terra e o especulador em construção são pessoas diferentes, como na Inglaterra (MARX, s/d, p. 888).
42O autor mostra nessa passagem que o cálculo do aluguel não se restringe ao juro e à amortização do capital empregado na construção, mas a ele se soma a renda da terra, não só de exploração do solo, mas também a proveniente do espaço. Razão pela qual menciona na passagem anterior o seguinte:
[...] concorrem para elevar necessariamente a renda fundiária relativa a construções o aumento da população, a necessidade crescente de habitações daí resultante e o desenvolvimento do capital fixo, que se incorpora à terra ou nela lança raízes ou sobre ela repousa, como todos os edifícios industriais, ferrovias, armazéns, estabelecimentos fabris, docas, etc. (MARX, s/d, p. 888).
43Com base nessas referências, pode-se afirmar que a forma do produto imobiliário é determinada pela perspectiva de obtenção de maior rendimento. Motivo que explica a verticalização das construções, intensificando o uso do solo, para que o maior número possível de unidades locáveis sejam construídas no mesmo terreno. Do mesmo propósito se compreendem as formas simples e retas dos edifícios projetados para que fossem menos custosos, porque tais formas tenderiam a aumentar a participação da renda na composição do aluguel.
44Considerando que o aluguel é definido pela capacidade de pagamento do locatário, a partir da referência de que o produto imobiliário possui preço de monopólio, estabelecido o preço da locação aceito socialmente e dado pelo contexto socioeconômico historicamente definido, quanto menor o preço de produção do produto, maior é a renda apropriada pelo contratante na forma de aluguel, situação verificada nas encomendas feitas de edifícios para aluguel em Vitória no início da década de 1950.
45A partir do final dos anos 1950 o Espírito Santo passou por importantes mudanças na sua estrutura produtiva. Os efeitos da queda dos preços internacionais do café atingiram duramente o estado, dependente quase que exclusivamente desse produto para suas receitas.
46Concomitantemente a essa situação adversa, o Estado brasileiro criou condições à expansão do capital dos grandes centros para todos os espaços do território nacional. A chamada modernização conservadora alcança o espaço rural do Espírito Santo num momento desfavorável, não beneficiando em nada o pequeno produtor agrícola, que não produzia de forma competitiva para os novos padrões que se estabeleciam de modernização e integração dos mercados.
47As políticas federais de Erradicação do Café e de criação do Sistema Nacional de Crédito Rural para viabilizar o uso de maquinários e insumos na agricultura, bem como as demais políticas implementadas nas décadas de 1960 e 1970 com o propósito de fortalecer a pecuária e estimular o reflorestamento, promoveram concentração fundiária e expulsão de trabalhadores do campo para os centros regionais e especialmente para a capital estadual e municípios vizinhos e contribuíram para a formação periférica da metrópole em desenvolvimento.
48Em meio à situação de crise econômica, as lideranças estaduais buscaram solução por meio da criação de alternativas para a industrialização do estado. Inicialmente obtendo favores do governo federal e do governo estadual como forma de reter parte da poupança criada localmente e de estimular seu investimento em atividades industriais. Posteriormente fortaleceram a atração de grandes projetos de investimentos patrocinados pelo governo federal e pelo capital estrangeiro com base nas diretrizes do II Plano Nacional de Desenvolvimento, criado no governo militar.
49Na década de 1980, a indústria já fazia parte da recomposição produtiva desencadeada no Espírito Santo após a crise econômica inicialmente manifestada na agricultura. A cidade se modifica em razão das mudanças econômicas. Além de sede do capital comercial, a metrópole capixaba se torna também sede da produção, concentrando o núcleo do processo produtivo industrial.
50A ocupação da área central configurada pela dinâmica do café se transforma e se estende para a região das praias, impulsionada pela indústria e pela produção imobiliária. Além de um novo padrão de renda para os trabalhadores, que as grandes indústrias criaram colocando em circulação uma massa salarial importante para os padrões anteriormente estabelecidos, toda política de crédito criada a partir de 1964 com o Banco Nacional de Habitação (BNH) favoreceu o desenvolvimento da indústria da construção.
51O que muda na região das praias em termos de configuração espacial, o que explica o deslocamento da produção imobiliária do centro para as praias?
52Tomando-se como referência o bairro Praia do Canto, na região das praias, é possível constatar que as casas, em pouco mais de uma década, foram quase todas substituídas por edifícios, de forma que o bairro estritamente residencial veio a abrigar importantes atividades de comércio e de serviços a partir da segunda metade da década de 1970.
53Com origem no projeto do Novo Arrabalde de Saturnino de Brito, concebido em 1896 para expansão da cidade, o bairro Praia do Canto, que compreende uma parte desse projeto, somente começou a ser ocupado na década de 1930. O extraordinário crescimento econômico do estado, que motivou a criação do projeto, minguou, a ponto de o governo do estado pedir moratória das suas dívidas em 1900 (CAMPOS JUNIOR, 1996).
- 9 Veja a cópia desse mapa em Campos Junior (1996, p. 213).
54As adversidades que se seguiram nas décadas seguintes levaram o governo estadual a transferir essas terras de sua propriedade às pessoas que as requeressem para fins de moradia, o que pode ser verificado no mapa de cadastro do Serviço do Patrimônio Estadual de 19409. Com a transferência de titularidade dos terrenos públicos para particulares, o bairro Praia do Canto foi ocupado por residências unifamiliares até a metade da década de 1970, quando as moradias foram substituídas por edifícios (CAMPOS JUNIOR, 1996).
55As transformações da moradia num negócio que proporciona rendimentos foram graduais e começaram com a criação de um produto que tem aceitação social, que no caso de Vitória foi a moradia de aluguel e em seguida a moradia para venda. O produto criado para ser abrigo é transformado para servir a valorização do capital. O crescimento urbano, o aumento do poder aquisitivo da população, a política de crédito e os mecanismos institucionais que permitiram a instrumentalização da propriedade da terra criaram as condições para a reprodução do capital por meio da produção do espaço.
56No momento que a moradia serve à reprodução do capital ela é modificada para atender a essa finalidade. A construção da moradia, assim como a criação de qualquer outra mercadoria, é produzida pelo trabalho, portanto submetida ao processo de valorização. Entretanto, no processo de construção da moradia, além dos meios de produção necessários à edificação do produto, a terra é um elemento fundamental, condição, meio e produto da produção, e seu preço se sobrepõe ao de produção. E o preço da terra não é um faux frais admitido por especuladores, conforme assinala Oliveira (1979), mas renda capitalizada. Sendo assim, como toda mercadoria vendida acima do seu preço de produção e do valor tem preço de monopólio, a moradia é vendida a preço de monopólio.
Entendemos por preço de monopólio o determinado apenas pelo desejo e pela capacidade de pagamento dos compradores, sem depender do preço geral de produção ou do valor dos produtos. Uma vinha onde se obtém vinho de qualidade excepcional e que só pode ser produzido em quantidade relativamente reduzida proporciona preço de monopólio. O excedente desse preço sobre o valor do produto é determinado unicamente pela riqueza e pela paixão dos bebedores requintados, e em virtude de tal preço o viticultor realiza importante lucro suplementar. Esse lucro suplementar que deriva do preço de monopólio converte-se em renda e sob esta forma cabe ao proprietário da terra, em virtude de seu direito sobre esse pedaço do globo terrestre dotado de qualidades especiais (MARX, s/d, p. 890).
57Que outros elementos são necessários para compreender a formação do preço e da forma da moradia?
- 10 A respeito do duplo monopólio da renda da terra verifique o capítulo XLVI do livro (...)
58Tendo como referência que ao preço de produção se soma o preço da terra para formar o preço da moradia e que o preço da terra é capitalização, capitalização de uma renda, que por sua vez é proveniente de uma atividade real de produção, admite-se que o preço da terra é uma suposição, que ora se baseia no preço da mercadoria produzida com o uso da terra, ora é estabelecido por uma renda requerida para que se utilize a terra. E, como a renda dos terrenos para construção se baseia num duplo monopólio, de exploração e do espaço10, o domínio do espaço por meio da instrumentalização da propriedade da terra por parte da construção modifica a casa e a cidade. Com base nesses argumentos, discutir a instrumentalização da propriedade da terra realizada pela construção civil em Vitória faz sentido.
59A instrumentalização da propriedade da terra deu lugar à propriedade condominial, suplantando à propriedade absoluta no desenvolvimento da construção e possibilitando que a moradia unifamiliar fosse substituída pelo edifício. A diversidade da forma da moradia criada pelo desejo expresso de cada contratante foi substituída pela forma padronizada em cada edifício e do próprio edifício, modificando a configuração da cidade. Como a distinção do produto é um recurso para elevar o preço do produto imobiliário vendido a preço de monopólio e os primeiros edifícios de Vitória expressavam uma maior padronização, a distinção verificada se dava pelo lugar transformado em espaço pela urbanização. Razão pela qual se compreende o porquê de os primeiros edifícios construídos em Vitória terem sido edificados ao redor do Parque Moscoso, o maior e mais aprazível espaço urbanizado da cidade. Com base no mesmo argumento se compreende o movimento da produção do espaço na década de 1970 em direção à região das praias, substituindo as casas pelos edifícios. Dadas as amenidades proporcionadas pelo mar e devido à sua balneabilidade em meio a um ambiente ainda com forte presença da natureza, acrescendo-se que o bairro foi projetado para ser residencial, o lugar se distinguia dos demais, possibilitando a prática de preços de monopólio elevados. Por outro lado, nos terrenos em número limitado, com o mar à frente, considerados pelos mercados e aceitos socialmente como lugares que são signos de distinção, admite-se que os preços exorbitantes das moradias neles construídas se explicam principalmente pelo preço da propriedade do terreno, que para ser pago levou à criação de produtos com outros elementos de distinção. E nessa situação a renda criou o preço de monopólio das moradias. As situações anteriores se viabilizaram pelas facilidades de crédito do BNH e pelo poder aquisitivo mais elevado dos moradores, proporcionado pelas grandes empresas que se instalaram na Região Metropolitana da Grande Vitória.