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Resenhas

Tempos de desencanto: uma distopia neoliberal em meio ao apocalipse urbano

Resenha de: « Somos os mortos vivos: de como The Walking Dead explica a natureza da cidade e o sentido do neoliberalismo », de Tadeu Alencar Arrais. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022, 88p
Times of disenchantment: a neoliberal dystopia in the urban apocalypse
Tiempos de desencanto: una distopía neoliberal en medio del apocalipsis urbano
Temps de désenchantement : une dystopie néolibérale au milieu de l’apocalypse urbaine
Leandro Dias de Oliveira
Referência(s):

Tadeu Alencar Arrais. Somos os mortos vivos: de como The Walking Dead explica a natureza da cidade e o sentido do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022, 88p.

Resumos

Resenha do livro Somos os mortos vivos: de como The Walking Dead explica a natureza da cidade e o sentido do neoliberalismo, de Tadeu Alencar Arrais (Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022, 88p.). Partindo da análise da famosa série norte-americana, o autor discute temas com a urbanização, o neoliberalismo e a violência. The Walking Dead é a metáfora da vida cotidiana em tempos muito difíceis.

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Notas da redacção

Resenha recebida em: 09/12/2024
Resenha aprovada em: 10/12/2024
Resenha publicada em: 11/12/2024

Texto integral

1The Walking Dead é uma famosa série de televisão produzida nos Estados Unidos, com 11 temporadas e 177 episódios. Trata-se de uma adaptação de uma série homônima de histórias em quadrinhos publicados nas duas primeiras décadas do século XXI. O escritor das histórias em quadrinhos, Robert Kirkman, também é o criador e o produtor executivo da série televisiva. O grande sucesso e as inúmeras premiações da série televisiva e das revistas em quadrinhos sobre a história do pequeno grupo de sobreviventes enfrentando as agruras mundo pós-apocalíptico em meio a mortos-vivos devem ser conjugados com número consistente de outras séries, filmes, livros, revistas e outras mídias sobre zumbis que foram lançados nos últimos anos.

2Apesar deste período de grande evidência da temática, devo confessar que sobre a série The Walking Dead não conseguirei escrever mais que este primeiro parágrafo. Além de não ter visto sequer um episódio ou desfolhado nem uma página dos quadrinhos – ao contrário do autor da obra aqui resenhada, que acompanhou cuidadosamente toda a série -, devo reportar o meu desconhecimento sobre o universo literário e fílmico de zumbis, bem como o de vampiros, lobisomens e outras figuras míticas recorrentes no cinema e na literatura jovem, ou mesmo não tão jovem. Ainda que o universo zumbi ofereça a metáfora simples e direta para os habitantes de um mundo acelerado, de realização de trabalho ad nauseam e que cujas forças parecem exauridas pelo massacre da vida cotidiana, sempre optei por argumentar, de forma direta, pelo prisma da materialidade e dos contornos violentos de classe que nos colocam como abnegados sobreviventes com parcas perspectivas concretas de mudança.

3Eis a questão que torna este livro tão expressivo, contundente, potente, direto, interessante, incômodo: Tadeu Arrais leva a metáfora zumbi às últimas consequências, nos colocando diante do espelho, mas com a capacidade de enxergar muito além do nosso reflexo. O espelho que é colocado permite ver a nossa alma num « corpo sem espírito »; não é somente a forma putrefata que assusta, mas aquilo que se revela para além da imagem; por fim, mesmo com um reflexo tão assustador, isso não disfarça o fato de que os zumbis são, em última instância, humanos, mas sem a maquiagem, as redes sociais, o sorriso forçado, os regramentos de conduta e as amarras do contrato social que nos impede de nos tornarmos monstruosos.

4O antídoto para esse exército de corpos sem vida, famintos, precarizados, desumanizados e tão descartáveis de superpopulação relativa ou exército industrial de reserva (ARRAIS, 2022, p. 21) só pode ser o uso de armas, da violência celebrada e aprovada publicamente. Sob as agruras do neoliberalismo urbano, o Estado policial atua fortemente nas periferias do mundo; e se o processo civilizatório trouxe consigo o germe do barbarismo (KEANE, 1996 apud ALVES, 2019 [2003]) e o monopólio da violência pelo Estado (WEBER, 1963[1919]), é importante ressaltar que a violência também ganha relevo cotidiano nas nefastas e constantes imagens de corpos destroçados compartilhadas de forma veloz nas redes sociais como entretenimento, bem como na aceitação tácita da defesa do uso da força contra os mais pobres, as populações negras e espacialmente periferizadas. Uma sociedade que « banaliza, ridiculariza, espezinha, condena e justifica as mortes que assiste » (ALVES, 2019 [2003], p. 58) é constituída num pacto de ódio perene que jamais deve ser menosprezado. Se não há como discordar quando Tadeu Arrais afirma que The Walking Dead é o espelho da sociedade urbana estadunidense e do seu ambiente suburbano (ARRAIS, 2022, p. 25), é possível ao menos ajuizar que outros lugares do mundo, como o Rio de Janeiro e suas periferias urbano-metropolitanas, também ofereceriam bom enredos e boas locações para a série.

5Temas como violência, etarismo, sustentabilidade, cooperação, competição, periferias urbanas, consumo, meritocracia e especialmente neoliberalismo são trabalhados pelo autor com especial erudição, sempre aproximando os zumbis da série dos sujeitos precarizados do tempo presente. A revolução agrícola, a formação das cidades, os movimentos pendulares no urbano, o papel das técnicas, a criação de condomínios quartelizados e outros assuntos tão desafiadores recebem tratamento importante por revelarem que o apocalipse urbano e a emersão das hordas de mortos-vivos não são elucubrações fantasmagóricas ao acaso, mas algo que pertence à cosmogonia de tempos muito difíceis.

6A discussão sobre o Estado Moderno e o controle dos corpos, ou como os caminhantes humanos saem sempre em busca do aparato e da burocracia estatal em meio às ruínas do mundo vivido, são questões centrais para compreender a análise de Tadeu Arrais. O autor, que é graduado, mestre e doutor em Geografia e professor titular da Universidade Federal de Goiás, é especialista na problemática urbano-regional especialmente em seu estado de atuação e tem se dedicado fortemente aos estudos sobre o Estado, coordenando o Observatório do Estado Social Brasileiro (http://obsestadosocial.com.br/​ coordenacao/) e o Canal de Divulgação Científica Porque o Estado Importa. Com o uso de metodologias diversas e trato profícuo de dados oficiais, Tadeu Arrais tem coordenado reflexões expressivas por meio da publicação de relatórios sobre matérias como assistência e previdência social, austeridade fiscal, universalização da educação básica, motoristas de aplicativos, ensino remoto e muitos outros temas incontornáveis para se entender o Brasil atual. Isso explica porque o conteúdo sobre o Estado Democrático de Direito é assunto central no livro, seja por meio da perda do controle do território com a extinção da burocracia de Estado pelos zumbis, seja pela falência estatal de uma série (pós-)apocalíptica que torna o medo o combustível dos tiranos.

7Num recente artigo, intitulado « Cosmologias contra o capitalismo, Karl Marx e Davi Kopenawa », Jean Tible (2013), também autor da obra « Marx Selvagem » (2018 [2013]), revela uma certa aproximação naquilo que podemos tratar como a « fantasmagoria do capitalismo ». O escritor Davi Kopenawa, presidente da Hutukara Associação Yanomami, fala em seus trabalhos de esquecimentos, medos e da ordem de reciprocidade simbólica na qual morte e destruição dos bens alicerçam as trocas comerciais. Já o filósofo e economista alemão Karl Marx, em diferentes momentos de sua obra, fala em produção de fantasmas, ilusões, alucinações, aparições [do Estado], na « magia do dinheiro ». Segundo Jean Tible, Kopenawa e Marx, autores tão diferentes, têm em comum a ideia de um sistema que alucina e deturpa, algo presente no trabalho de outros autores de diferentes filiações, como Philippe Pignarre e Isabelle Stengers (2011 [2005]), quando afirmam que « o capitalismo é um sistema feiticeiro que não tem feiticeiros », e Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010 [1972]), quando apontam que o « capitalismo é um mundo enfeitiçado ».

8Na geografia profunda do capital, segundo Jean Tible, há o encantamento embriagador, mágico e sedutor do mundo da mercadoria, pois o capitalismo é « mestre das ilusões ». Neste mundo zumbídico, de encontro entre neoliberalismo e urbanização (ARRAIS, 2022, p. 76), há corpos e almas em desencanto se arrastando pelas cidades do mundo, mas invisibilizadas porque não atacam por meio de mordidas violentas e disruptivas. Em The Walking Dead, o verdadeiro desafio, segundo Arrais, sempre foi lidar com os vivos! Os vivos são mais perigosos que os mortos, « pois os zumbis, em hordas, não tramam » (ARRAIS, 2022, p. 51). Mas fica a pergunta final: em meio a tantas agruras, tempos acelerados, violência espraiada e tendo o medo como norma, o que seremos capazes de tramar para melhorar a nossa situação?

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Bibliografia

ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Consequência, 2019 (2003).

ARRAIS, Tadeu Alencar. Somos os mortos vivos: de como The Walking Dead explica a natureza da cidade e o sentido do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010 (1972).

KEANE, John. Reflections on Violence. Verso: Londres/Nova York, 1996.

PIGNARRE, Philippe; STENGERS, Isabelle. Capitalist sorcery: breaking the spell. New York, USA: Palgrave Macmillan, 2011 (2005).

TIBLE, Jean. Cosmologias contra o capitalismo: Karl Marx e Davi Kopenawa. Revista de Antropologia da UFSCar, 5(2), 2013, 46–55. Disponível em: https://www.rau2.ufscar.br/index.php/rau/article/view/96. Acesso em: 08 de dezembro de 2024.

TIBLE, Jean. Marx selvagem. São Paulo, Autonomia Literária, 2018 (2013).

WEBER, Max. Le savant et le politique. Paris: Plon, 1963 [1919].

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Leandro Dias de Oliveira, «Tempos de desencanto: uma distopia neoliberal em meio ao apocalipse urbano»Geografares [Online], 39 | 2024, posto online no dia 20 dezembro 2024, consultado o 18 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/geografares/16188

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Autor

Leandro Dias de Oliveira

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: ldiasufrrj@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7257-0545
Professor Associado do Departamento de Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, campus-sede, e docente dos quadros permanentes do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGGEO) e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Humanidades Digitais (PPGIHD). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, Nível 2, e Jovem Cientista do Nosso Estado, FAPERJ. Atualmente, é Pró-Reitor Adjunto de Pesquisa e Pós-Graduação da UFRRJ. Líder do Grupo de Pesquisa Reestruturação Econômico-Espacial Contemporânea, vinculado ao LAGEP – Laboratório de Geografia Econômica, Política de Planejamento da UFRRJ.

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