- 1 Para saber é preciso se imaginar. [Tradução nossa].
- 2 Nesse sentido, Paul Ricœur aponta que na tradição ocidental da Teoria do Conhecimento «l’imaginatio (...)
1« Pour savoir il faut s’imaginer » (DIDI-HUBER-MAN, 2003:11)1. Assim escreve Didi-Huberman na primeira linha de uma de suas obras. Estranha associação que nos propõe, pois afinal não é verdade que todo saber procura justamente distanciar-se das imprecisões e imprevistos da imaginação?2 Talvez não.
- 3 A etimologia de imaginar nos leva quase que diretamente à palavra imagem. Cf: CUNHA, Antônio Gerald (...)
2O que o autor indicia é que o pensar é também povoado de imaginação, pois pensar é também, por vezes, « imagear »3. Talvez, então, seja o caso de nos perguntarmos que tipo de saber Didi-Huberman está nos sugerindo construir. Um que possibilite às imagens assumirem a centralidade na ação do pensar, sem dúvida. Mas também um que seja capaz de diante do impensável e do inimaginável tomar para si a função de criar outros limites para o próprio pensar e para o próprio imaginar. O autor, ao parafrasear Hannah Arent, destaca que se o holocausto era algo impensável, que escapava aos limites da justiça e da política era porque a justiça e a política deveriam se repensadas (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.38). É precisamente quando algo não se deixa apreender em sentido e em significado, quando cria a desrazão, é que desponta a criação de outros devires possíveis para a existência. O pensamento imaginado re-existe na imagem.
3Ainda a partir do mesmo inquietante fragmento de Didi-Huberman há a estranha opção gramatical que ele faz uso, pois assim como em português o verbo imaginar em francês não é um verbo reflexivo. Sobre isso apenas podemos pensar, e inventar sentidos para aquilo que é estranhamento. Mas talvez, o autor nos aponte que os laços que prendem o imaginar, esta criação de devires imagéticos (ou imaginários), ao pensar estão e são nos indivíduos. E que imaginar um mundo que devém é também criar para si um outro devir como aquele que cria a portuguesa Virgínia de Terra Sonâmbula que de tanto imaginar re-existe num outro mundo e num outro tempo existente somente nas imagens que cria (COUTO, 2007). A tal personagem:
ficava na janela olhando o país que inexistia, desenhado em geografia da saudade. [...] Sobre velhas fotografias, com um lápis, a velha portuguesa desenhava outras imagens. Às vezes recortava-as com uma tesourinha e colava as figuras de umas fotos nas outras. Era como se movesse o passado dentro do presente. [...] As fotos recompostas traziam novas verdades a uma vida feita de mentiras. (COUTO, 2007: 75).
4Estas outras existências de Virgínia são de tal força que transbordam para a sua vida pois « o devir sensível é o ato pelo qual algo ou alguém não para de devir-outro (continuando a ser o que é) » (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 229). As possibilidades do pensar imageado ou do imageado pensar – a ordem dos ter-mos não instaurando nenhuma hierarquia de valor entre as partes – de Didi-Huberman, apontam, por percursos distintos, os devires, aberturas de sentidos no ser mundo do mundo potentes em cada imagem.
- 4 HAMBUGER, Feco. Ensaio fotográfico e vídeo instalação Neutrino. Col. Itaú Cultural.
5As imagens resultado das experimentações de Feco Hambuger são um devir de uma São Paulo possível, vista pela janela do trem da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), mas transvista pela experiência de ver o mundo através de uma bolha de sabão. A série neutrino4 compõe-se de dois recursos complementares um registro de vídeo que o espectador deve visualizar através de uma bolha plana de sabão, projeção esta que aparece e desaparece consoante a tensão superficial da bolha faz com que esta estoure criando uma descontinuidade no vídeo. Uma gravação do experimento feito no estúdio do artista está disponível em: http://vimeo.com/47672792. Além disso, o fotógrafo selecionou um conjunto de « instantâneos » destas imagens, nomeados por ele como « estudos », alguns dos quais selecionamos para comporem este preâmbulo.
FIGURA 01: HAMBURGER, Feco. Estudo I.
6Estas imagens são o nosso ponto de partida para pensarmos outras visualidades possíveis para uma cidade sobre a qual já existem tantas imagens. As imagens elencadas neste trabalho, são, então imagens que re-existem ao modo padrão de apresentação do real espaço urbano paulistano; são imagens que resistem desde dentro de uma língua maior, que o universo de representação das paisagens dos grandes centros urbanos. São línguas menores dentro do campo das imagens, mas são também geografias menores, pois apontam a outras configurações do conceito de espaço; criam outras geografias, pois não apenas apresentam uma outra imagem possível de uma cidade, de um lugar. Cada imagem é a própria criação de um outro espaço em devir, um espaço pensável, pois é no momento em que a imagem coloca em desvio aquilo que era habitual que o espaço devêm o inesperado: todas as possíveis espacialidades.
FIGURA 02: HAMBURGER, Feco. Estudo II.
Figura 03: HAMBURGER, Feco. Estudo III.
Figura 04: HAMBURGER, Feco. Estudo IV.
Figura 05: HAMBURGER, Feco. Estudo V.
FIGURA 06: HAMBURGER, Feco. Estudo VI.
- 5 O olho vê. / A lembrança revê. / E a imaginação transvê / É preciso transver o mundo.
7Uma obra de arte expressa além da sua visualidade, promove aberturas nos sentidos pré-estabelecidos do mundo ao constituir o real atravessado pela imaginação. Como afirma Manoel de Barros num poema a imaginação transvê5 (BARROS, 1996: 75). Transver é ver através de algo, é ver algo que está mais adiante, e no caso da imaginação criativa é ver aquilo que não está na visualidade ou na materialidade da imagem, mas que rompe e transpassa a sua estrutura de constitutiva. A obra de arte expressa, para além da sua visualidade, aberturas nos sentidos pré-estabelecidos do mundo ao constituir o real atravessado pela imaginação. Essa resistência da arte, a que Oneto nomeou de « políticas impossíveis » (ONETO, 2007: 198), tornam possíveis outras espacialidades.
- 6 No prefácio Wittgenstein afirma que «poder-se-ia apanhar todo o sentido do livro com estas palavras (...)
8No texto do catálogo da 30ª Bienal de Arte de São Paulo, o curador Luis Pérez-Oramas formulava a incomoda questão: « [se] não seria, pois, pertinente, perguntar-se, precisamente: de que é possível falar? O que é, e quando, e onde, o dizível hoje em arte? E por que não concluir, também, com Wittgenstein, afirmando que, sobre o que não podemos falar, seria melhor calar? » (PÉREZ-ORAMAS, 2012, p.30). A conclusão do curador, assim como a nossa, é de que a arte assumiu a possibilidade de falar de tudo. A referência a Wittgenstein não é, contudo, simples aparato ilustrativo ou de erudição. A delimitação de que sobre o que não podemos falar é melhor calar é, em Wittgenstein, uma determinação das condições de possibilidade do conhecimento e da composição das fronteiras do território do pensar6 (WITTGENSTEIN, 1968, p. 53). Logo, perguntar acerca dos limites da arte é também pensar as fronteiras deste território criativo.
- 7 Esta reflexão preliminar é parte da pesquisa de doutorado em andamento na Unicamp intitulada São Pa (...)
9Assumiremos, então, o desafio de uma reflexão sobre os limites do território da criação artística7. Cabe ressaltar que empreenderemos nossa trajetória através das artes visuais, e a fim de circunscrever estas proposições, que de outro modo seriam demasiado amplas, elegemos como estudo de caso a relação das artes plásticas com os conceitos de espacialidade. Deste modo, ao considerarmos as imagens na sua relação com o espaço pretendemos refletir acerca das peculiaridades das primeiras e as intervenções que estas podem provocar no entendimento da segunda. Para iniciarmos nosso percurso devemos, portanto, considerar dois limites tradicionais deste território: o da representação e o da significação. Estes dois aspectos funcionam como conceitos complementares, pois pensar que uma obra de arte representa o mundo visível é também permitir que esta cumpra um papel mediador entre o artista e o espectador.
10O fio que conduz a formulação da arte como representação pode ser retomado deste a filosofia grega, nas obras filosóficas de Platão e Aristóteles, e chegam às correntes humanistas através da releitura de tratadistas como Alberti. Deste modo configurada a arte pode ser igualmente considerada sob a ótica da significação, pois ao representar o mundo esta se coloca na posição de mediadora, como signo e, portanto, cabe ao espectador a tarefa de decodificação da significação da obra de arte. Nesse sentido a obra do historiador da arte Erwin Panofsky é emblemática. Intitulada Significado nas artes visuais nela o autor busca estabelecer um método de investigação para a compreensão das obras de arte (PANOFSKY, 1991). Dentro de um território assim configurado, a imagem geográfica assume um valor de verdade, ou seja, a representação verdadeira da realidade.
11Nesta configuração o que é dizível pela arte é apenas a verdadeira realidade. E usamos o advérbio apenas, pois, deste modo, a vida configura-se a partir de um único sentido de verdade. Quando Didi-Huberman ressalta a relação entre saber e imaginar, seu texto está se colocando no cerne do problema da ideia de que existem coisas indizíveis na realidade e que a consequência disto seja que estas mesmas coisas são inimagináveis. Para o autor, mesmo que o holocausto seja indizível, nem por isso é inimaginável. E tanto não é, segundo seus argumentos, que os « quatro pedaços de película arrancados dos infernos » (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.11) são o que permite imaginarmos o holocausto. Ainda que estas imagens não sejam a totalidade dos horrores vividos nos campos de extermínio, são a imagem do indizível, pois dão a ver aquilo que de outra forma seria apenas esquecimento. Além disso, como expressão da verdadeira realidade o dizível em arte é limitado, pois enquanto objeto de uma vontade de criação é sempre duvidosa sua relação com a realidade e muitas vezes a realidade é tida como inimaginável, ou seja, impossível de ser representada.
- 8 Assumimos aqui o cinema, as imagens videográficas e a fotografia como as imagens privilegiadas na c (...)
12Essa ideia desvela um paradoxo na essência, sobretudo, das imagens fotográficas e cinematográficas a saber: a crença de que estas são representações fidedignas da realidade8. Por serem oriundas de processos mecânicos de captura da imagem, a fotografia e, posteriormente, o cinema, fizeram parecer que havia uma ausência do humano neste tipo de registro da realidade. Ao analisar os modos de funcionamento do cinema, Milton Almeida aponta que este funciona como um processo de construção de memória artificial (ALMEIDA, 1999). A artificialidade, atribuída por Almeida à imagem cinematográfica, demonstra que as imagens produzidas por estes meios não estão isentas da tomada da posição. Segundo Almeida: « […] o cinema constrói os mitos da sociedade em que vivemos. […] A construção da memória artificial ocorre, agora, como um processo « natural » e intrínseco à produção das imagens em movimento para o grande público » (ALMEIDA, 1999, p. 54, grifo nosso). A máxima potência do paradoxo reside no ambíguo parâmetro através do qual consideramos as imagens. Por um lado, elas estão diretamente associadas a verdadeira imagem da realidade, enquanto a mais fidedigna apresentação desta. Por outro lado, são elementos dúbios e enganosos, que ou distorcem a realidade (sobretudo, devido aos artifícios da criação) ou não são suficientes para apresentar a totalidade da verdade.
13Nesse sentido, a análise que faz Almeida do lugar do cinema como fabricante de memória toca no aspecto mais central do problema. Por fim, não há paradoxo ou ambiguidade alguma, pois em ambos as situações (sendo as imagens a verdadeira realidade ou o objeto de desconfiança) é como as imagens são tomadas que transforma a relação que temos com elas. Não existem imagens fidedignas à realidade, existem imagens que constroem o nosso modo de VER a realidade. Se retornarmos ao texto de Almeida fica claro que uma parte fundamental de seu argumento é que a partir de um aspecto de realidade o cinema determina a educação visual dos indivíduos. Ou seja, o cinema, assim como a fotografia, nos ensinaram, ao longo do último século, como devemos ver a realidade. O autor identifica a perspectiva como um dos elementos que condicionam o modo de ver e classifica estas imagens como verdadeiras representações do real. Assim afirma:
[...] hoje a maior parte das populações vê o real naturalizado, reproduzido pela fotografia, pela cinematografia, pela videografia, como a verdadeira representação visual do real. Como uma VIRTUDE artística e científica, a PERSPECTIVA, governa a educação visual contemporânea e, em estética e política, reconstrói, a sua maneira, a história de homens e sociedades (ALMEIDA, 1999, p. 141, grifos do autor).
14Além disso, o impasse que a realidade impõe a arte é oriundo do pensamento de que a arte existe em função de algo que lhe é exterior. Se seguirmos o percurso proposto por Giles Deleuze e Felix Guattari quando afirmam que « as figuras estéticas (e o estilo que as cria) não têm nada a ver com a retórica. São sensações: perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires » podemos deslocar as fronteiras da arte para outros territórios nos quais a imagem não esteja submetida ao discurso, mas sim à fabulação criadora. Tal fabulação faz da arte algo que vem a ser, puro devir de outras visualidades e outras sensibilidades ainda desconhecidas. A própria história da arte – que habitualmente seria pensada como um elemento ordenador e sincronizador das obras em uma linha espaço-temporal – para estabelecer um ponto de contato coerente precisa ser então pensada a partir do ponto de vista da montagem e remontagem, da sincronia, mas também da diacronia e mesmo da anacronia que a obra de arte nos lança. Isentar-se de procurar « o significado nas artes visuais » permite, porém, procurar desvendar como estas funcionam. Pensar as obras de arte enquanto modo de estar no mundo e de gestar outros mundos possíveis pode nos permitir ultrapassar o paradoxo da impossibilidade de abarcar com palavras aquilo que foi dado apenas a sentir à sensibilidade.
15A arte não é enquadrada, deste modo, em um campo ou território delimitado; a arte « torna-se » fugas possíveis, abandona a significação e se fixa no plano do sentido onde existe em si mesma: dentro do mundo, mas apontando outras possibilidades de ser-mundo do mundo. A afirmação de Deleuze e Guattari de que « as sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. [...] A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si » (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 213) faz com que a arte possa de tudo falar: esta enquanto puro devir está além de todo saber, pois ela é capaz de vislumbrar tantos outros mundos possíveis ainda desconhecidos. É, deste modo, que a arte resiste: criando outros saberes para além de um mundo de todo conhecido.
16O que Deleuze e Guattari apresentam é que as obras de arte são uma realidade que intervém na prática de uma sociedade. Assim, investigar uma obra é pensar como esta funciona, por qual engrenagem se relaciona com um dado contexto, desmontar seu mecanismo teórico que nos leva a sua atuação no real. Para os filósofos é nesta desmontagem que transparece o aspecto político de uma obra, pois o político não se apresenta apenas no formato de arte engajada, mas no próprio modo da obra estar no mundo, da abertura que esta é capaz de produzir. Como sintetiza Paulo Oneto: « Resistimos porque « devimos », porque queremos ultrapassar a nós mesmos. A resistência é primeiramente em (no devir), e só secundariamente a. » (ONETO, 2007, p. 202). Passamos do teórico ao prático no momento em que a obra de arte é capaz de criar pontos de fuga dentro do real. « Tout le monde, sous un aspect ou un autre, est pris dans un devenir minoritaire qui l’entraînerait dans des voies inconnues s’il se décidait à le suivre. » (DELEUZE; GUATTARI, 1975 p. 30).
17Assim, o recurso de Feco Hamburger (figuras 1, 2, 3, 4, 5 e 6) de projetar seu vídeo numa bolha plana de sabão faz com que a imagem-movimento, vista a partir da janela do metrô paulistano, mova-se também na forma multicor da bolha criando outras possibilidades paradoxo aquilo que entendemos habitualmente como espaço. No vídeo-experimento de Hamburger, dobras de sentidos se aplicam ao espaço habitual da cidade de São Paulo: a cidade transita pela janela, passa rapidamente interceptada pela figura que viaja a janela, ou ainda, na bolha plana de sabão vemos a mesma imagem distorcida pelas cores e movimentos da superfície. É precisamente por « transbordar a força daqueles que são atravessados » (DELEUZE; GUATTA-RI, 1992, p. 213) que a cidade é desfigurada, mas não a-figurada. Para ser a-figurada deveria nada dizer sobre a cidade, ao ser des-figurada apenas expressa a recusa de ser mera figura, de ser simples representação de algo já concebido. A imagem des-figurada é a arte que toma para si a tarefa de dizer e dar sentido a este espaço que é São Paulo.
18É também a imagem que nos move a pensar o próprio ato de ver, pois ao desfigurar o real espacial como até aqui é pensado desvela que existem outras espacialidades, bem como a persistência de vários modos de ver. Como destaca Oliveira Junior:
Educar os olhos não é somente fazê-los ver certas coisas, valorar certos temas e cores e formas, mas é, sobretudo, construir um pensamento sobre o que é ver; sobre o que são nossos olhos como instrumentos condutores do ato de conhecer, levando-nos mesmo a acreditar que ver é conhecer o real, é ter esse real diante de nós (OLIVEIRA JR, 2009b, grifo nosso).
19Assim, ver constitui-se enquanto ato, ação que configura e reconfigura nossa percepção da realidade. Em última instância ver é um ato ao mesmo tempo estético e político.
20Perceber o espaço como interação no interior das imagens, é também conceber que as imagens podem nos apontar novas formas de espacialidade, mas, ao mesmo tempo, revelar que no espaço interativo onde a cultura, a política e a estética estão imbricadas, não há apenas uma interpretação determinada. Pensar as imagens não é propor um único caminho possível, mas sim propor um conceito de educação estética no qual é o ato de ver que é pensado e não o objeto visto. Importante ressaltar, que a educação estética oriunda deste processo é em si mesma a abertura de sentidos gestada numa vontade criativa. A partir desta educação estética todo o visível passa a ser elemento do pensável, e o espaço aí constituído passível de fazer parte do real tanto quanto as imagens do espaço difundidas através das formas tradicionais de construção do conhecimento geográfico. Podemos afirmar com Didi-Huberman que « pour savoir il faut s’imaginer ».