1Subversões, superversões, versões outras. namoro com a realidade, beijos de amante na hiperrealidade. Mergulho em uma superfície de dimensão nua, sem que se possa afirmar para que lugares se caminhará, que passeios fará o olhar que serpenteia e baila frente a uma fotografia... e é sobre fotografias que se deseja escrever neste ensaio; mais precisamente fotografias utilizadas em práticas de aula em escolas públicas do Ensino Fundamental de Campinas.
2Pelo beijo e pelo tremor da terra, criamos (e fomos re-criados) por fotografias inusuais, rasuradas, com a intenção de deixar o olhar dos alunos brincar, se o assim o desejassem, abandonando a imposição da « imagem-registro » tão comum em livros didáticos: ali as imagens estão como « confirmações » de um ou vários textos, « provas » daquilo que se está sendo dito; repetição, não a repetição que Deleuze evoca, mas um mais-do-mesmo – dispensássemos o texto ou a imagem nestes livros, qual nos faria menos falta?…
3Estas fotografias rasuradas, é preciso esclarecer logo de início, vêm irmanadas com uma série de outras práticas de aula inspiradas na pedagogia libertária (tal inspiração resultou em aulas fora de sala, abandono do currículo formal por um currículo construído junto aos alunos, negociação das liberdades, entre outras), e a estas práticas, utilizando um conceito de Deleuze e Guattari (2010), chamaremos de máquinas... máquinas ligadas a máquinas, rede maquínica: isto porque as fotografias foram sempre convidadas a entrar em nossas aulas sob/sobre/ao lado/ (d)essa rede, cujas engrenagens se espera que façam gerar a subversão das habituais maneiras com que se conjugam fotografias e educação. Nossas fotografias não eram parte de um material de aula disposto de maneira a « exemplificar » o que estava sendo discutido, mera ilustração de um assunto, ou, menos ainda, « registro do real », tal qual geralmente se utilizam fotografias em situação de aula.
4Como diz Elaine dos Santos Soares (2012: 128):
Fotografias em livros didáticos nos aparecem como evidências daquilo que nos trazem à vista. Justo por isto, o olhar que legamos a elas é de mero relance, apenas para saber o que há _ como é a aparência, o tamanho, a cor _ do/no lugar indicado na legenda ou como prova de algum assunto que está sendo apresentado no texto escrito do livro. Estas fotos, então, se colocam diante de nós como que divulgando os lugares/assuntos fotografados, mas não nos levam a divagar para além e aquém destes lugares/assuntos.
5Falamos de fotografias que são – deseja-se que sejam – mundos-em-si; aberturas, vãos, tocas abertas a golpe de máquina (é quando a máquina se torna máquina-de-guerra) na superfície da fotografia, convite a espiar pelo buraco, demorar-se um pouco mais sobre a imagem, e subvertendo-a (superventendo-a?), divagar. Mas, como?
6Em demanda desta subversão utilizamos a manipulação digital de fotografias tiradas pelos alunos durante aulas de campo de Geografia, procurando atingir estes mundos-em-si, retirando a fotografia da comodidade « didática », rasurando o real (ainda que na imagem final certamente exista indícios do real, daquilo que se chama o real indicado nas fotos) através da acentuação exagerada do contraste, da mudança de matizes, colagens, torções, distorções... brincando com o « indício do real » que a fotografia carrega consigo:
FIGURA 01
Fonte: Acervo dos autores.
7Que o olhar crianceie pela superfície da foto; por este caminho passamos em busca de pontos de erosão, mas a fotografia deste momento não é convidada a aparecer na próxima aula como « registro » do que fizemos e vimos, mas como potência, como um mundo que a remete, mas não apenas, a um mundo que semana passada conhecemos e agora rasuramos na fotografia.
8A que geografias, a que matemáticas, a que sentires inusitados se poderia convidar com o uso de fotografias manipuladas digitalmente? Imagens que remetam ao real, mas que ao mesmo tempo brinquem com ele, cause espanto, estranhamento, que desfaçam dos padrões e de ordens bem estabelecidas; imagens-criança, resistindo junto do instituído pela escola. Subversões, superversões em franca tentativa de sedução.
FIGURA 02
Fonte: Acervo dos autores.
91. [criar atalhos, tocas, descaminhos, na superfície da imagem. Isto é: deixar caminhos preparados para a aventura];
101.000. [resistir em relação ao uso que comumente se faz das imagens no ambiente escolar].
115.300. [resistir em relação às construções de poder oficiais da escola, e não-oficiais].
12∞. [redes neurais em pleno movimento, rede neural sala, rede neural rua, rede neural grêmio, rede neural afectos…].
13#[máquinas ligadas a máquinas. Que se conectam a, que se conectam a, que se conectam a…]
FIGURA 03
Fonte: Acervo dos autores.
14A aventura das experiências com as fotografias manipuladas está justamente na manipulação: manipular o que, por si, já é uma manipulação: o ato de fotografar. Empunhar a máquina, escolher um motivo, realizar o enquadramento, premir o botão de disparo, onde a imparcialidade nisto tudo? Intenciono ao fotografar, e isto já é todo um mundo de possibilidades, com todas as potências que daí podem ser gestadas.
15Uma vez que o aluno deve ser convidado a mirar tais fotografias a bel-prazer (não se esperará dele uma « resposta » fechada, que o olhar brinque!), as possibilidades e emoções (ou indiferenças) que disso brotarão dificilmente poderão ser apreendidas, mapeadas, capturadas – quê? Não se trata de não haver controle algum sobre o que acontece naquele momento de aula, mas de aceitar o múltiplo como produto da experiência com estas fotos, inconsciente como usina Deleuze e Guattari, (2010), linhas de fuga que acaso surjam do imenso, infinito mundo que é a mente de Mateus, Carlinhos ou Rebeca.
16Quando manipulamos as fotografias, criamos ficções; segundo Geofrey Batchen (1997:210):
La diferencia principal es que, mientras que la fotografia sigue reivindicando cierta clase de objetividad, la producción de imágenes digitales sigue siendo un proceso abiertamente de ficción. Como práctica que sabe que no es más que pura invención, la digitalización abandona incluso la retórica de la verdad, que ha sido un elemento de gran importancia en el éxito cultural de la fotografia. Como su propio nombre sugiere, los procesos digitales devuelven, de hecho, la producción de imágenes fotográficas al capricho de la mano humana creativa (a los dedos). Por esa razón, las imágenes digitales son, en definitiva, más cercanas en espiritual arte y la ficción que a la documentación y los hechos.
17E o que se busca com tais ficções? O chamado à criatividade, ao criancear. Brinco com a fotografia porque desejo que o olhar do aluno dance a roda também, ou se ria dela, ou a insulte; caminhos inusitados, tudo faremos para evitar a « senda reta », a estrada onde pés já cansados trilham geometrias escolares rígidas, há muito traçadas.
18Das fotografias manipuladas digitalmente às obtidas com máquinas pinhole, a demanda é em busca de olhares que viajam, desdenhando do turista e imitando o vagabundo, o olhar vagabundo que passeia curioso e matreiro, o medo e a formalidade não estão convidados quando trabalhamos com estas fotografias – queremos o risco.
19E quem dirá o que é o risco? Quando inserimos efeitos em uma fotografia também intenciono, e a busca é por elevar a enésima potência aquilo que já está presente na fotografia « comum »: todo um mundo de possibilidades, cada um verá na superfície do papel ou da tela eletrônica o que seu olho e suas emoções enxergarem. Assim, quando adiciono (ou retiro) elementos, radicalizo cor e sombra numa fotografia, transformo, o que faço é preparar mais e mais caminhos possíveis para a deriva do pensamento, e aí não cabem mais previsões, pois nunca saberemos que viandas tomará o olhar de Luís, Cecilia ou Jonathan [risco].
20Ao criar ficções com as fotografias e convidar estas imagens para as aulas, eliminamos, tanto quanto possível, a chance destas imagens ali estarem como « registros » do assunto em discussão; não há mais um caminho que se bifurca e certamente voltará a ser uma só estrada, mas um caminho-de-rizoma, mil sendas abertas – caminhamos ao lado, atrás, sobre, debaixo, de mãos dadas com o assunto da aula, que por si só, em uma aula que se pretende inspirada na pedagogia anarquista, pode ser abandonado em prol de algo que soar mais interessante.
21A fotografia rasurada baila com a fala dos alunos e do professor, com a aula expositiva, com o texto, o filme; é um mundo-em-si, não um « complemento » de algo, mas um novo par na dança, e esta desdenha da uma ordem imposta, pode ser ciranda, valsa, aqui se arrastam os pés freneticamente, ali se colam os rostos. A potência está na criação de platôs, e não no encadeamento de assuntos e imagens, os elos o mais juntos possível, pelo receio de que « o aluno se perca » durante o processo de aula: certo, não se deseja que o aluno de perca, mas que passeie o olhar pela foto, instigado por ela, por aquela superfície expoente de ficções, a tal ponto que se permita passear também pela aula, pelo texto, pela fala, pelo afeto... passear passeios de bosque, não apenas de escola [ritmo que se desejaria quase marcial!], acreditamos que o andar do vagabundo permite mirar coisas no espaço geográfico que o olhar « escolar » talvez receie aceitar, ônus do « certo e errado », da rigidez da escola que constrói um « caminho reto ».
22Das imagens produzidas nas pinholes, às ficções criadas por programas de manipulação de imagens, extravasam universos, múltiplas linhas de força emergentes [ou talvez não] daquelas superfícies bidimensionais e é nos feixes de linhas de força que está grande parte do interesse: ali o movimento serpenteia, faz circunvoluções, escapa, grita, silencia... mas haverá pelo menos um ponto de chegada? Talvez seja necessário quando das primeiras experiências, para que o aluno não se sinta, de alguma forma, desamparado: improvável que já tenha sido apresentado várias vezes à imagens rasuradas ou ao sonho de uma « imagem pinhole », e chamado a pensar sobre elas. Assim, é justo que haja um « objetivo », afinal, escapar completamente do espaço estriado de uma escola não é possível – conquanto seja possível resistir junto a ele, e isto já é todo um mundo. Que o processo de chegada ao objetivo (seja ele uma discussão sobre solos, sobre a periferia das grandes cidades, sobre a migração…) seja enamorado da multiplicidade, eis o que nos parece já bastante subversivo!
23Desterritorializar em linhas soltas, vagando pelo espaço, arrebatadas pelas sensações e prazeres domados em um ambiente escolar. Caos diante de imagens potentes de pensamentos. Caminhantes errantes buscando o desconhecido. Pássaros fugidios de janelas.
24Janelas vagando pelos céus sem intenção de se fixar. Voando alto no embate com as imagens pulsantes em suas mãos. O que dizer? Como romper com a frágil ideia do fixo, permanente e real?
25Acomodar-se. Caminhantes paralisados em práticas educativas lineares. Professores caminhantes reféns de si mesmos. Territorializados, fixados como janelas em monumentos eternos. Surge um convite. Um convite para romper este anestesiamento. Um convite a caminhar. Tornamo-nos caminhantes a deriva.
FIGURA 04: Janelas
Fonte: Acervo dos autores.
26Pequenas latas, papeis fotográficos, andar solto, procurando... Buscando o que já não se sabe mais. Desconfiança que bloqueia e promove um outro desejo. Experimentação? Buscando romper fronteiras e formas tradicionais de brincar com as imagens um pequeno grupo aceita o convite de se arriscar. Tentando evitar o conflito instaurado mal percebiam que estavam envolvidos e abraçados a singela lata. Agora arriscando um jeito de resolver o conflito. Sentados, agachados, em grupos unidos, isolados, qual seria a melhor imagem? Pensando com Massey (2008) além do espaço, tínhamos o tempo que nos levava à multiplicidade dos trajetos e a excentricidades de possibilidades. Para ela, o espaço é produto de inter-relações e esfera de possibilidades (multiplicidade).
27Conflitos e fluxos sem direção. Rizomáticos. Pulverizados pelo espaço escolar e local de possíveis interesses. Microcompreensões ou policompreensões infinitas? Nenhuma imagem produzida. Vazios. Conforme Orlandi (2009):
Sensações de pertencimento e vazios. Vazios cheios de sentidos e de silêncios, mas silêncios que têm sua materialidade definida pela relação estabelecida entre dizer e não dizer.
28Momentos em que o vazio é uma necessidade. Poder ter espaço para se calar, silenciar, falar sobre solidão ou não falar nada. Permitir com respeito e naturalidade a vontade de dizer e não dizer. Momento primoroso e raro na relação com as pessoas e que deixamos de lado na correria entre as aulas. Escrever para falar sobre esses vazios. Escrever para diminuir o caos. A educação anuncia esses desequilíbrios e inquietações. Anuncia acontecimentos. Nessa tensão e instabilidade re-inventamos. O corpo mostra sua fragilidade e resiste. Resiste quando fala, escreve e age com mais sentido. Vive com mais sentido. Vive com mais intensidade.
29Incluir a potência da linguagem fotográfica em nossa rotina é permitir uma educação pela diferença. A diferença se faz pela sensação. É inventar. É conversar sobre singularidades e devires. São com as sobras e restos que nos conhecemos. Percebemos nossa relação com o mundo.
30Falamos sobre fotografias, sobre experiências e sobre a disponibilidade de pensar. Atravessamos o lugar que vivemos, interpretando-o. Lugar de resistências.
31Aqui mantemos o desejo de continuar criando. Criar. Criar. Criar…
32Estamos sempre recomeçando.
33Mesmo inconformados esperaram pelo resultado. E qual seria este resultado? Momento de espera.
34Desprovidos de outro jeito de fotografar, conhecendo apenas o mundo digital, aguardavam. Inúmeras tentativas e pouca produção. Motivo de risadas e receios. Imaginações. Intensidades de sonhos e desejos. Um intervalo entre aulas. « Arte », disseram, retornando para suas salas, aos outros já curiosos ao verem a alegria estampada sem seus rostos.
35Arte sim, capaz de um movimento transversal que possibilita e envolve tempos para criação nos dias de hoje. Movimento envolvendo o tempo, o espaço e as pessoas. Experimentação que leva a possíveis deslocamentos e a expandir sentidos. Seria possível uma educação de verticalismos?
36Romper com linhas imaginárias de poder e arriscar-se. Observação. Admiração e reconhecimento de saberes esquecidos e que por um instante despontam plurais e entrelaçam a novas sensações e saberes novos em mundo invertido e em negativo.
37Fotografias diferentes e intensidades pulsantes. Pontos convergentes de um mundo novo, carregados de sentidos. Entre rasuras provocadas digitalmente e rasuras provocadas pela luz há um desarranjo no pensar. Discursos são quebrados. Desorganizados. Há potência na cor ou em preto e branco, nos diferentes planos e na ausência deles, nos apagamentos ou justaposição, na intensidade ou no monocromismo, na colagem e na dualidade do negativo e positivo.
FIGURA 05: Dobras
Fonte: Acervo dos autores.
38As experiências com a linguagem fotográfica criam fraturas permanentes entre os aprendizes do mundo. Dissolvem papeis e progressivamente entra em um caminho sem volta, um caminho do sensível, de uma vida sensível.
39Há um deslocamento de papeis e o embate se direciona para com o mundo. Ainda continuamos desiguais, estrangeiros, na educação. Somos nômades buscando fissuras na tão conhecida fotografia. Pensamentos aventureiros. Talvez o impossível.
40Corremos em busca de possibilidades de experiências e fugimos da aula comum. Permeamos caminhos que anteriormente desfizemos. O que nos guia nesse momento? Que fagulha nos incendiou que desejamos fugir dessa manipulação social, econômica, educacional e mediática? Difícil dizer que já não cairemos em contradição. Rompemos, cansamos de ser cúmplices da impossibilidade. Essa encenação teatral nos priva de nos conhecer e de conhecer nossos parceiros em aula. As imagens nos fortaleceram dessa asfixia. Criamos probabilidades. Multiplicamos ideias, pensamentos, singularidades e podemos dizer que somos diferentes. Quebramos a continuidade, a linearidade, o tempo. Um devir. Em novas linhas de forças continuamos nossa procura. Procuramos tornar visível essa linha. Para Deleuze (1990), « seria necessário, simultaneamente, atravessar a linha e torná-la vivível, praticável, pensável. E fazer disso, tanto quanto possível, uma arte de viver ». Afinal pensar pode ser perigoso!
41Desafiante experimentação que se manifesta pelas linguagens. Deslizantes sentidos que escapam, alimentam conversas e ativam a sensibilidade em meio ao mundo problemático que vivemos.
42Um intervalo, pausa, intermezzo. Algo que transborda a nossa prática diária e rotineira. Surge a ausência da dualidade professor – aluno. Há um encontro. Improvisamos e saímos da posição costumeira e como aprendizes combatemos nosso próprio modo de ser professor. Desejamos promover encontros intensos, pois há uma variedade infinita da criação e possibilidades em experimentar com/pelas imagens. Como se as imagens procurassem por viajantes inventores. Inventores de novos jeitos de conhecer seu espaço/lugar. Inventores sem rota precisa, mas amantes dos descaminhos e das derivas.
FIGURA 06: Imagem I
Fonte: Acervo dos autores.