1Este artigo discute a participação da produção da renda na formação da cidade de Guaçuí, investigada no conjunto das estratégias de investimentos de fazendeiros e comerciantes que expressaram a transferência de excedentes, gerados na produção agrícola, para a urbanização da cidade.
2A pesquisa baseou-se em revisão bibliográfica, informações de documentos oficiais (principalmente processos de inventário) e depoimentos obtidos de pessoas que eram conhecedoras da história local e dos negócios de fazendeiros e comerciantes na cidade. Todo esse conjunto de informações permitiu reconstituir historicamente a formação urbana de Guaçuí e oferecer ao processo em tela uma compreensão na perspectiva da formação do espaço urbano pelo uso capitalista conferido à propriedade da terra e à diversificação das formas de valorização do capital por meio da construção da cidade.
3Sendo assim, para compreender a formação da cidade de Guaçuí, foram analisadas as transferências de excedente do núcleo do processo produtivo, que era agrícola, para urbanização da cidade. Admite-se que a urbanização da cidade revela interesses da acumulação, na metamorfose da riqueza do campo para a cidade. O estudo baseou-se na análise do espaço produtivo em que a cidade está inserida na função polarizadora da região, que na primeira metade do século XX concentrava a produção do café da maior parte dos municípios da chamada região do Caparaó, no alto Itabapoana (Figura 1).
Figura 01: Localização do município de Guaçuí no Estado do Espírito Santo
4Na permanente perspectiva de encontrar novas alternativas de valorização do excedente que, deslocando-se da produção, localizada no campo, orientava-se para a urbanização da sede do município, foram criadas novas espacialidades, imprimindo outras feições à cidade. Nos anos 1950 a economia do município de Guaçuí baseava-se na cafeicultura e na pecuária leiteira. Ambas possibilitavam o desenvolvimento de outras atividades: a pecuária leiteira, a indústria de laticínios na cidade, e a cafeicultura, com o beneficiamento e o comércio de café.
5Nesse sentido, a importância da economia do município pode ser observada com o auxílio de alguns números. O beneficiamento do café e a indústria de laticínios corresponderam a um valor da produção industrial de 112 milhões de cruzeiros, a preços correntes de 1954, que representou aproximadamente 7% do valor da produção da indústria estadual. Com 3.250 milhões de litros de leite produzidos em 1954, empregados como matéria-prima da indústria municipal de laticínios, no ano de 1955 o valor do rebanho era calculado em 60 milhões de cruzeiros, contando em torno de 24.200 animais (IBGE, 1957).
6Esse quantitativo representava, aproximadamente, comparado ao do ano de 1950 – segundo dados apresentados por Sinésio Ferreira (1987) –, 8,9% da produção leiteira estadual (36.286 milhões de litros de leite) e 5% do efetivo de bovinos no Estado (464.463 cabeças). Os dados oferecem uma visão da participação da economia de Guaçuí no cenário estadual durante a década de 1950, dando a dimensão da importância do município nesse período.
7Como centro de comércio da produção cafeeira da região próxima, como a seguir discutiremos, e como polo de significativa produção leiteira, Guaçuí viu sua influência comercial estender-se para além dos limites municipais. Os efeitos econômicos se verificaram na urbanização da cidade de tal forma que entre os anos 1930 e 1950 um fazendeiro e comerciante de café chegou a possuir em torno de 200 moradias de aluguel na cidade. Existiram também outras iniciativas menores voltadas à edificação de imóveis de aluguel, à construção de infraestrutura e à exploração de serviços urbanos, quase todas promovidas por capitalistas locais.
8Sendo Guaçuí, na época, um município rural, como compreender os investimentos realizados em moradias de aluguel, construção e exploração de serviços urbanos?
9Dadas as condições de urbanização, que se fizeram presentes com o crescimento econômico, os investimentos imobiliários verificados, a princípio, sugerem que a terra urbana estava servindo como reserva de valor, na expectativa de que, com o crescimento urbano, os proprietários de imóveis obteriam rendas imobiliárias crescentes.
- 1 No presente artigo não compete uma revisão exaustiva da formação da renda imobiliária. Neste texto (...)
10A renda imobiliária1 consiste numa espécie de alíquota despendida pelo direito de uso da propriedade privada da terra, que permite ao proprietário imobiliário apropriar-se individualmente de parte do valor produzido socialmente, fazendo a terra funcionar como um fundo de acumulação ou reserva de valor. Assim, o valor da propriedade imobiliária é determinado pelo desenvolvimento das condições urbanas necessárias à produção, que se expressam no valor mercantil da propriedade, seja por meio de aluguéis, seja por meio do mercado fundiário (Pereira, 1988).
11Com a centralidade de Guaçuí exercida pelo comércio de café e pela produção de laticínios, favorecida pelo crescimento econômico do município e entorno, promovendo a urbanização, tornou-se atrativa a transferência de excedentes da produção agrícola para investimentos urbanos na construção de infraestrutura e de moradias. A construção da cidade, por consequência, assumiu um caráter rentista como estratégia de diversificação do capital e como aproveitamento da oportunidade de preservar e valorizar a riqueza para além dos limites da produção agrícola e do comércio de café.
12Nesta seção buscamos apresentar aspectos da economia da região sul do Espírito Santo, destacando as particularidades históricas que permitiram situar Guaçuí no processo de expansão da economia cafeeira no Estado, considerando os efeitos da Abolição sobre a grande lavoura, especialmente nessa região. O objetivo é identificar as condições que tiveram os excedentes da produção agrícola para inversões na urbanização da cidade.
13A maior parte das terras da Província do Espírito Santo no início do século XIX ainda se encontrava coberta por matas, e sua população em 1818 era de apenas 23.399 habitantes. O processamento da cana-de-açúcar, realizado por 80 engenhos, era a principal atividade na Província. A ocupação das terras limitava-se às áreas mais próximas da costa, sem que, contudo, essa ocupação fosse contínua (Almada, 1984). Havia uma verdadeira fragmentação espacial da ocupação, que permitia identificar nessa época três regiões produtivas: a região da Capital, onde se concentravam a maior parte dos engenhos de açúcar e a maioria da população da Província; a região norte ou de São Mateus, que de todas as regiões era a que possuía a ocupação mais rarefeita; e a região sul ou de Itapemirim, que também mantinha uma ocupação próxima à faixa litorânea e onde existiam 20 engenhos. O quadro demográfico-econômico da Província começaria a mudar apenas com a expansão da economia cafeeira pelo território espírito-santense; já na década de 1850 o café assumiu a posição de principal produto da pauta de exportação da Província (Almada, 1984; Campos Jr., 1996).
14A ocupação das terras elevadas da região sul do Espírito Santo se processou com a migração de mineiros e fluminenses, que penetraram o vale do Itapemirim e o do Itabapoana. Muitos deles, grandes fazendeiros em suas regiões de origem, trouxeram consigo escravos e formaram fazendas de tipo plantation, dedicadas ao cultivo de café (Almada, 1984). Na expansão cafeeira no Estado, Cachoeiro de Itapemirim adquiriu importância como centro de concentração da produção de todo o sul do Espírito Santo, estando em comunicação ferroviária com o Rio de Janeiro desde 1903 e com Vitória a partir de 1910 (Bittencourt, 1987).
15A expansão da lavoura de café no Espírito Santo contribuiu para a interiorização da ocupação das terras da Província. Mostrando-se mais dinâmica no sul, a economia do café deslocou o polo econômico da Província para essa região, fazendo desse espaço e de Cachoeiro de Itapemirim a principal região econômica e centro de atração populacional na segunda metade do século XIX. Nessa região a estrutura produtiva se organizara por meio da grande propriedade, do trabalho escravo e da produção de café para o mercado externo (Almada, 1984).
- 2 Evidências desse processo foram indicadas, por exemplo, pela atuação da firma Duarte Beiriz nas red (...)
16Contudo, a expansão da economia cafeeira no Espírito Santo ocorreu no contexto de desagregação do sistema escravista, o que produziu efeitos sobre a estrutura fundiária regional. Ao contrário do que ocorreu no vale do Itapemirim, onde se verificou a fragmentação das grandes propriedades e a perda de participação na produção de café,2 no vale do Itabapoana houve relativa preservação da concentrada estrutura fundiária e aumento da participação da grande propriedade na produção estadual de café.
17Com as mudanças nas relações de trabalho o sistema de parcerias foi a opção adotada pelos fazendeiros do sul do Estado para manterem sua propriedade e não precisarem dispor de altas somas de dinheiro na contratação de trabalhadores numa situação de crise (Ferreira, 1987). Entretanto, a situação comumente aceita na história econômica do Espírito Santo – de fragmentação das grandes propriedades como resultado das crises do café e do trabalho – não se verificou na mesma intensidade no vale do Itabapoana (não provocando efeitos realmente sensíveis), onde a fronteira agrícola é movimentada após a Abolição (1888), principalmente a partir dos anos 1920, em conjunto com o crescimento das grandes fazendas e com o aumento de sua participação na produção cafeeira (Almada, 1993).
- 3 José Wlademiro Carvalho é bisneto de Luiz Francisco de Carvalho; este foi um dos fazendeiros a form (...)
18Na região, aparentemente, a maior parte dos fazendeiros conseguiu driblar o problema da falta de mão de obra na lavoura. Segundo relato do Sr. José Wlademiro Carvalho,3 em Guaçuí o fazendeiro Luiz Francisco de Carvalho, que ocupou terras no município por volta de 1838, um mês antes da libertação dos escravos, em abril de 1888, já havia alforriado todos os seus e os transformado em meeiros (Moulin, 1987). A atitude do fazendeiro mencionado, de se antecipar à lei que aboliu definitivamente a escravatura (em 1888), sugere que essa prática tenha se verificado em outras propriedades da região.
19Dessa forma, os fazendeiros do município tentaram salvar a produção de café na localidade, mantendo em suas propriedades a maioria dos alforriados.
20A introdução de imigrantes italianos no município, iniciada, por exemplo, na fazenda do Castelo, também reforça o argumento da capacidade desses fazendeiros de encontrar alternativas ao fim do trabalho compulsório, como nos informam familiares dos moradores da cidade. No vale do Itabapoana, tudo indica, após a extinção do trabalho escravo o imigrante e a pequena propriedade conviveram com a grande propriedade e a figura « onipotente » do fazendeiro.
21A diversidade de ritmos de ocupação das terras entre algumas áreas da região sul do território espírito-santense imprimiu diferença temporal entre o vale do Itabapoana e o do Itapemirim no tocante ao desenvolvimento da economia cafeeira. De acordo com Vilma Almada (1993), entre 1900 e 1940, enquanto o vale do Itapemirim sofria com a estagnação e retração da produção de café, o vale do Itabapoana, especialmente em municípios como Alegre e Guaçuí, beneficiava-se do crescimento da produção de café do sul do Espírito Santo.
22O resultado disso é o incremento demográfico do vale, que pode ser demonstrado mediante a comparação entre o crescimento médio anual da população dos principais municípios de cada região produtora, de forma que no período de 1890-1900 Santa Leopoldina/Santa Teresa (região central) apresentava o maior crescimento, com 18,5%, seguida de perto por Cachoeiro de Itapemirim (região sul – vale do Itapemirim), com 17,1%; situação que se alterou no período de 1900-1920, com Alegre/Guaçuí (região sul – vale do Itabapoana) despontando com o maior crescimento, 7%, superando Santa Leopoldina e Cachoeiro de Itapemirim, que passaram a responder respectivamente por 3,4% e 4,3% do crescimento desse período; mesmo perdendo posição para Colatina/Linhares (região norte) no período de 1920-1940, que cresceu 5,5%, manteve um incremento de 3,1%, equiparado à média estadual de 3,2%. No município de Guaçuí esse incremento demográfico incentivado pela migração mineira e pela fluminense é constatado através dos registros de casamentos entre 1917 e 1928, que apresentam, dentre 1.129 pessoas pesquisadas, 41% sendo naturais de Minas Gerais e do Rio de Janeiro e 57% do próprio Espírito Santo (Almada, 1993).
23Assim, a expansão do café pelo território espírito-santense a partir do início do século XX, depois de ocupar a maior parte das terras ao sul do rio Doce, configurou duas frentes pioneiras: uma no sul, antiga região de tradição escravista, que no início desse século passava a se movimentar principalmente pelo vale do Itabapoana; e outra na região norte, constituída por imigrantes, originados de núcleos coloniais formados em meados do século XIX na região central, que, a partir do final dos anos 1920, promoveu a ocupação de terras devolutas no vale do rio Doce (Id., Ibid.).
24Resistindo aos efeitos da crise do trabalho compulsório, a partir da década de 1920 o vale do Itabapoana apresenta-se como a principal região produtora de café no Espírito Santo. Posição que mantém até a década de 1950. Em 1920, 1927 e 1940 as fazendas do vale do Itabapoana foram responsáveis respectivamente por 54%, 46% e 48% do total de café produzido no Estado. « Menos expressiva no decorrer do século XX é a produção cafeeira do vale do Itapemirim, o que demonstra o deslocamento da fronteira cafeeira no Espírito Santo, já que essa região concentrava as maiores fazendas no século XIX » (Id., Ibid, p. 58).
25A expansão do café pelo vale do Itabapoana refletiu-se no montante da produção em Guaçuí na década de 1950. Entre 1950 e 1955, período em que a área cultivada é quase duplicada, o número de cafeeiros é também quase duplicado. Nesse curto período de tempo, porém, a produção mais que triplicou, indicando a idade produtiva das lavouras de café do município (Tabela 1).
Tabela 01: Área e produção cafeeira em Guaçuí no período 1950-55
Fonte: IBGE – Coleção de monografias, 1957, p. 8-9.
26No que tange à distribuição da grande propriedade no território estadual, os estabelecimentos agrícolas no vale do Itabapoana apresentavam, considerando o total estadual, a seguinte participação, conforme as estratificações estabelecidas: 60,6% dos estabelecimentos de 201 a 500 hectares e 65,5% daqueles de 501 a mais de 1.000 hectares, em conformidade com os registros do censo estadual de 1920. Para o censo de 1940, a situação pouco modifica, com as propriedades do vale do Itabapoana correspondendo, em relação ao total estadual, novamente por estrato, a 49,6% dos estabelecimentos de 201 a 500 hectares e 54,7% daquelas de 500 a mais de 1.000 hectares. No ano de 1950, as propriedades do vale do Itabapoana representava 40,5% das propriedades de 201 a 500 hectares e 41,7% daquelas de 501 a mais de 1.000 hectares (Tabela 2). O vale do Itabapoana, conforme Tabela 3, possuía ainda, dentre as regiões cafeeiras, a maior média de área das propriedades.
Tabela 02: Participação das regiões por estratos na estrutura fundiária – 1920-1950
Fonte: Almada, 1993, p. 30.
Tabela 03: Área média dos estabelecimentos rurais por região – 1920-1950
Fonte: Almada, 1993, p. 31.
- 4 O Capitão Américo Bento Machado (1853-1910) casou-se em segunda núpcias com Maria de Aguiar (1861-1 (...)
27Na região, as 40 mais importantes fazendas de quatro municípios (Muqui, São José do Calçado, Mimoso e Alegre/Guaçuí), embora representassem, em número, 1,5% de todas as propriedades, produziram 34,5% do café dos mencionados municípios no período de 1920-30. No ano de 1929 a fazenda do Castelo, localizada no município de Guaçuí, de propriedade dos herdeiros de Maria Aguiar e Américo Machado,4 possuía 280 mil cafeeiros e produziu 651 toneladas de café na safra de 1928-29 (Id., Ibid.). Através dessas informações observa-se o crescimento da produção de café por meio da grande propriedade numa estrutura fundiária concentrada.
28A disparidade, no que se refere ao crescimento e à fragmentação da grande propriedade, entre o vale do Itabapoana e o vale do Itapemirim é evidenciada na análise das escrituras da fazenda São Domingos, localizada nos municípios de Guaçuí e Natividade, de propriedade de Agenor Luís Thomé. A fazenda foi adquirida por Agenor e seu irmão Altivo Luís Thomé em 1924. Com 556 hectares de terra, ela contava na época com 10 casas de colonos e 20 mil cafeeiros. Em 40 anos (entre 1932 e 1972) Agenor Thomé, que havia, em 1928, comprado a parte do irmão e pago todos seus débitos referentes à compra da terra, anexou à fazenda São Domingos mais 22 propriedades (sendo 20 com dimensões menores que 100 hectares e duas com tamanhos de 164 e 257 hectares), tornando-se um grande proprietário de terras, com 1.527 hectares. Em 1985 a fazenda possuía 2.062 hectares, indicando o movimento de concentração da propriedade por parte desse fazendeiro, que conseguiu capitalizar-se expandindo suas terras mediante incorporação de propriedades vizinhas.
- 5 Os dados foram obtidos do inventário de José Ferraz de Oliveira, que reúne a soma das propriedades (...)
29Com o propósito de melhor mostrar esse movimento de permanência e concentração da propriedade da terra na região, que passa a coexistir com a pequena unidade produtiva, mencionamos ainda a movimentação de dois outros grandes proprietários. Simplício Avelino de Mendonça estabeleceu sociedade com seu genro José Ferraz de Oliveira para adquirir, em 1925, a fazenda do Barro Branco, de Urcecino Ourique de Aguiar. Depois, também em sociedade, esses dois compraram, em 1933, a fazenda do Galho, de Francisco Lacerda de Aguiar, respectivamente com 900 hectares e 972 hectares. No ano de 1945 os dois sócios acumulavam 3.125 hectares de terra e no ano de 1950 alcançavam 3.755 hectares. Simplício morreu em 1961, e em 1979 as propriedades de José Ferraz totalizavam 4.582 hectares. Desse total, 18 propriedades adquiridas mediam menos que 100 hectares. Trata-se de outro indício da concentração da propriedade da terra.5 Somadas, as terras dos sócios Simplício e Ferraz não só se equiparavam à propriedade de Agenor Thomé, mas a superavam. São, portanto, três proprietários possuindo cada um acima de 2 mil hectares de terra.
30Na frente pioneira na região sul (vale do Itabapoana), onde ainda existia disponibilidade de terras devolutas e maior oferta de mão de obra, seja pela vinda de mineiros e fluminenses, seja pela manutenção, na região, de antigos escravos que após o fim da escravidão não se dispersaram, a lavoura cafeeira melhor absorveu o choque representado pelo fim do trabalho escravo. O desenvolvimento da pecuária leiteira a partir dos anos 1920/30 e o fortalecimento do sistema de parceria no sul (que em 1950 correspondia, no vale do Itabapoana, a 50,4% do trabalho no campo, totalizando 34.377 parceiros e correspondendo a 40,8% do total das regiões cafeeiras do Estado) contribuíram para preservar a maior concentração da terra nessa parte do território espírito-santense, pelo menos até os anos 1950 (Almada, 1993).
31É somente com o esgotamento das condições de expansão de sua fronteira agrícola após os anos 1940 que se verificou progressivamente a perda da força de atração populacional do vale do Itabapoana. Importa observar que na região norte dá-se o movimento contrário; nos anos 1960 esta se consolida como principal região produtora, prosseguindo posteriormente seu processo de expansão e continuando a atrair forasteiros para o cultivo do café. Para a região norte desloca-se, na época, o centro dinâmico da economia cafeeira do Espírito Santo (Almada, 1993; Ferreira, 1987).
32Em virtude desse processo, o movimento de expansão e exaustão do solo das lavouras de café na região sul reconfigurou espacialmente a dinâmica produtiva da região, colocando em destaque o vale do Itabapoana na produção estadual na primeira metade do século XX, tendo Guaçuí participado como município produtor e centro de concentração da produção.
33A seguir discutiremos a constituição da centralidade comercial de Guaçuí e a formação do ambiente construído da cidade.
34Com o desenvolvimento da economia do café Guaçuí ligou-se por ferrovia a Cachoeiro de Itapemirim. A Companhia Estrada de Ferro Leopoldina, após adquirir, em 1908, o trecho da antiga E. F. Caravelas (Alegre–Cachoeiro de Itapemirim), construiu o trecho Alegre–Espera Feliz (MG) passando por Guaçuí, inaugurado em 24 de novembro de 1913 (Bittencourt, 1987; Quintão, 2008). Com o prolongamento da estrada de ferro, logo se notou a mudança na dinâmica da cidade. Aumentou, por exemplo, o fluxo de informação: o jornal, que chegava à localidade uma vez por semana (toda quarta-feira) em garupa de cavalo, passou a ser recebido três vezes por semana (segunda, quarta e sexta), transportado por trem de ferro (Moulin, 1987).
- 6 Durval Emery (1895-1986) foi construtor. Sendo o filho mais velho de Emiliana Emery, encabeçava os (...)
35A cidade teve seu início onde hoje está situada a rua Tenente Arnaldo Túlio, originalmente denominada rua da Palha. As primeiras casas foram edificadas pelos operários que trabalhavam na construção da Estrada de Ferro Leopoldina. No início do século XX « era um bairro sem dono », conta o Sr. Durval Emery6. « Trabalhadores anônimos faziam as casinhas, tiravam os pauzinhos da capoeira, do mato, varas e eram cobertas com aquela palha de taboa, essa taboa que dá paina » (Moulin, 1987, p. 11).
36No final dos anos 1920 a cidade havia crescido nas redondezas da igreja matriz de São Miguel Arcanjo e do colégio São Geraldo, nos terrenos pertencentes a Francisco Ourique de Aguiar. Ao redor do largo da Igreja Matriz, a primeira construção foi da sede da fazenda São Miguel, fundada por volta de 1820 e adquirida por Antônio O. de Aguiar em 1863, depois (em 1924) transformada no colégio São Geraldo (Moulin, 1987; Bravo, 1998).
37Nessa época a cidade compreendia o seguinte espaço: seu local de fundação na rua da Palha, de onde seguia pela rua Romualdo Lobato, subindo até o largo da igreja matriz de São Miguel, ainda com esparsas casas por volta da área que daria origem à praça da Matriz. Dali ramificava seguindo pela rua do Carneiro (hoje rua Comendador Aguiar) e rua Francisco Ourique de Aguiar (antiga rua dos Operários), sendo esta última a de maior número de construções, ocupava a rua Mons. Miguel de Sanctis e seguia pela Av. Espírito Santo, já com construções em ambos os lados, ocupando as imediações da estação ferroviária, área já razoavelmente adensada, entre a estação e a Av. Espírito Santo, envolvendo a rua Virginia Machado, conforme se constata na Figura 2.
Figura 02: Guaçuí em meados da década de 1920. Destaque para a Av. Espírito Santo, no centro da foto, para a Igreja Matriz de São Miguel Arcanjo, à esquerda no alto, e para a estação da E. F. Leopoldina com os armazéns ao redor, à direita.
Fonte: desconhecida. Acervo pessoal de Maria Glória C. Liparizi.
- 7 Há divergência quanto à data de construção da capela. Segundo Bravo (1998), a capela teria sido ina (...)
- 8 A antiga capela havia sido construída pelos senhores Luiz Francisco de Carvalho e José de Aguiar Va (...)
- 9 Emiliana Vianna Emery (1874-1957), originada das imediações do distrito de São Tiago, foi casada co (...)
38No ano de 1929 foi concluída a igreja matriz de São Miguel Arcanjo em substituição da pequena capela levantada em 1860.7 A igreja foi construída com a participação de Durval Emery e Francisco Talom.8 O erguimento da obra se mostrou complicado; na falta de material, principalmente ferro, para levantamento da torre, foram utilizados como vigas quatro trilhos da estrada de ferro. A maior parte do material veio de fora, transportado através da estrada de ferro por intermediação de Emiliana Vianna Emery9. No dizer de Durval Emery, « o padre veio da Itália, os lustres da Bélgica, o sino da Alemanha, o alvaiade da Bélgica, o óleo de linhaça da Inglaterra. Mas os bancos foram feitos na oficina de Geraldo Vianna, irmão de Emery, no Rio » (apud Moulin, 1987, p. 11).
39O emprego de novos materiais na construção esboçava o início da transformação na forma de construir a cidade. A economia cafeeira, que, como vimos, no início do século XX seguia em expansão na região, começava a oferecer as condições necessárias para o desenvolvimento de atividades de comércio na cidade e propiciava a acumulação necessária para transformar o ambiente construído da cidade. As construções que iam sendo erguidas deixavam para trás a antiga estética de palha da cidade. Assim, o processo de acumulação engendrado no núcleo da economia cafeeira gradativamente liberava as técnicas de construção do uso limitado de materiais encontrados no sítio local.
40A existência da estrada de ferro foi condição importante para o desenvolvimento do comércio de café na cidade e muito contribuiu para que o centro da produção da região próxima de Alegre se deslocasse para Guaçuí, que passou, então, a concentrar a produção de diversos municípios. A área de abrangência da ferrovia se estendia aos municípios de Carangola, Espera Feliz, Manhuaçu, Muqui, Iúna e Varre Sai (os três primeiros situados em Minas Gerais). Originou-se com a estrada de ferro a centralidade do comércio do café, perdurando até o final dos anos 1980. Além de concentrar o comércio de café de uma importante região produtora, Guaçuí foi, no ano de 1954, o município com o quarto maior valor da produção de café do Espírito Santo, com cerca de 17 milhões de pés (IBGE, 1957). No quadro abaixo podem-se verificar as principais firmas de comércio de café que atuaram em Guaçuí entre os anos 1930 e 1980.
Quadro 01: Principais firmas de comércio de café em Guaçuí – 1930-1980
Fonte: Neuza de Araújo Emery, notícia de jornal « De pequenos Guaçuís é feito nosso grande Brasil », sem nome, Vitória, março de 1997. Entrevistas realizadas pelos autores entre outubro de 2012 e julho de 2013.
Notas: *Começou tendo como sócios Osório Marques e Ataliba Filgueiras. Em pouco tempo cresceu e se desligou de sua matriz em Carangola, comandada por Antônio Marques. Em 1938 o sócio Ataliba saiu da firma, sendo substituído por dois novos colaboradores: Wilson Marques (filho de Marques) e Jugurta de Abreu Lima (cunhado de Marques).
**Teve como sócio Anselmo M. Alvarez (genro de Meirelles). A firma Meirelles Café atuou do início dos anos 1960 até meados de 1970.
*** José Ferreira de Oliveira foi sócio da Ferreira e Paixão até quando fechou, no início dos anos 1970, e depois sócio da Paula Café, que funcionou entre 1971 e 1990.
41O desenvolvimento comercial do município fica evidenciado nos números que seguem. Em 1952 o café correspondia a 85% do valor da produção dos gêneros agrícolas e comandava a dinâmica econômica da cidade. Conforme o censo comercial de 1950, o município possuía 15 estabelecimentos atacadistas e 139 varejistas, sendo o quinto maior centro de comércio atacadista do Estado, atrás apenas de Vitória, Colatina, Cachoeiro de Itapemirim e Alegre. Em 1952 o café beneficiado alcançou o valor de 56 milhões de cruzeiros, e a indústria de queijo e requeijões faturou 2.271 milhões de cruzeiros, com 100 toneladas produzidas. Assim, em 1954 a indústria de transformação, reunindo basicamente a produção de laticínios e o beneficiamento de café, colocava Guaçuí, em termos de valor produzido, na sétima posição entre os municípios do Espírito Santo (IBGE, 1957).
42Os valores acima apresentados, se confrontados com os apresentados por Sinésio Ferreira (1987) para o ano de 1949, indicam que Guaçuí concentrava em torno de 12% do valor produzido para o segmento de beneficiamento, torrefação e moagem de produtos alimentares no Estado e em torno de 15% do segmento estadual de laticínios. Comparativo que oferece um indicativo da importância do município na atividade agrícola e no beneficiamento dessa produção e no setor comercial estadual.
- 10 O Laticínio Candó Ltda. originou-se da compra das instalações da Ind. Reunidas de Lat. Braco S.A, q (...)
43No início da década de 1950 o fazendeiro Cândido Avelino Mendonça inaugurou um novo laticínio na cidade (Laticínio Candó Ltda.) como forma de diversificação de seu capital. Situava-se próximo da ponte da rua da Palha, e parte de sua produção destinava-se aos municípios de Guarapari (Espírito Santo), Cabo Frio, Campos dos Goytacazes e Niterói (Rio de Janeiro)10.
44Na segunda metade da década de 1950, a cidade já havia crescido ao longo da linha férrea, pelas avenidas Marechal Floriano e José Alexandre, e ainda pela rua Rio Grande do Norte, nos terrenos dos herdeiros do Cel. Joaquim Machado de Faria. A área nobre foi edificada na vizinhança da praça Matriz, seguindo pela rua Mons. Miguel de Sanctis e Av. Espírito Santo, e já se encontrava em projeto sua expansão através da Av. Francisco Lacerda de Aguiar. Nessa área residiam os principais comerciantes, fazendeiros e políticos da cidade (Figura 3).
Figura 03: Centro de Guaçuí – 1955-1960
Legenda:
1- Estação da E. F. Leopoldina (Estação Emery),
2- Casa Ferraz,
3- Casa Barbosa e Marques,
4- Casa Anderson e Clayton,
5- Armazém Filgueiras e Oliveira,
6- Casa Simões,
7- Casa Hugo,
8- Banco de Crédito Real de Minas Gerais,
9- Grande Hotel Minas Gerais,
10- Segundo Hotel Emery,
11- Prefeitura Municipal,
12- Res. Osório Marques,
13- Res. Francisco L. de Aguiar,
14- Res. José Ferraz de Oliveira,
15- Res. Hugo Araújo,
16- Res. Alcenor Vargas,
17- Res. José H. Cortat,
18- Colégio São Geraldo,
19- Seg. res. Cândido A. Mendonça,
20- Igreja Matriz São Miguel,
21- Laticínio Candó Ltda.
45Diante do crescimento que a cidade apresentava, verificou-se a presença, entre os imigrantes, em especial espanhóis, dos construtores responsáveis pelas modernas edificações da cidade.
- 11 Depoimento de Sérgio Augusto Marques, colhido em 26-10-2012. Ver a respeito das transformações arqu (...)
46Nessa época surgem na cidade as primeiras construções modernas, como foram exemplares a « Vila Dione », residência de Alcenor Vargas (proprietário do Armazém Capixaba), e especialmente a residência de Osório Marques (Figura 4), essa erguida no ano de 1928, ambas as residências localizadas na Av. Espírito Santo. Essas construções foram importantes, pois marcaram um novo modo de construir e de morar na cidade de Guaçuí, diferente da forma como foram edificadas e utilizadas as construções anteriores, que eram casas geminadas e com fachadas paralelas ao alinhamento da rua. As novas construções assumiram como forma típica a de imitação de um pequeno palacete, em que se nota a valorização do próprio processo de construção, como indicam os traços da fachada e ornamentação, coisa muito comum na São Paulo do início do século XX, mas que apareceu em Guaçuí talvez pela primeira vez na residência de Osório Marques, construída em 1928. Essa residência, em especial, tinha em todos os seus cômodos pinturas florais nas paredes próximas do teto11.
47A população do município no recenseamento de 1950 era contabilizada em 24.952 habitantes, dos quais 3.470 viviam na área urbana, 1.710 na suburbana e 19.772 na área rural. No ano de 1954 havia na cidade 1.099 prédios (IBGE, 1957). Uma classe de comerciantes havia se constituído na cidade. São indicadores dessa classe o Armazém Capixaba, Filgueiras e Oliveria (venda de cereais), Casa Hugo, Casa Simões, Casa Acacinho (venda de tecidos) e Bazar Norte (artigos de presente). As primeiras agências bancárias foram: Crédito Real de Minas Gerais, Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais e Banco Hipotecário e Agrícola do Estado de Minas Gerais.
48Uma obra de vulto e que indica a força econômica do município foi a construção do Cristo Redentor, com mais de 20 metros de altura, iniciada em 1955 no governo de José Henrique Cortat e realizada pelo construtor Antônio F. Moreira. Na ocasião chegou a ser a segunda maior estátua de Cristo do Brasil. O momento econômico da cidade tornou-a conhecida como « A pérola do Caparaó ».
49As firmas de comércio de café se localizavam ao redor da estação da estrada de ferro, onde hoje se localiza a atual sede da Prefeitura Municipal e a praça João Acacinho, renomeada, nos anos 1930, Interventor Bley. A Casa Barbosa, Marques e Cia. instalou-se junto da praça Interventor Bley, onde funcionava o armazém de café e o de secos e molhados, anexos ao Grande Hotel Minas Gerais. A Casa Ferraz ficava em frente do Grande Hotel Minas Gerais, onde funcionava a loja de secos e molhados (atual edifício da Autoguasa), e também ladeando a estação, onde funcionava o armazenamento de café (ao lado da atual Real Móveis). A firma Anderson e Clayton, representação da companhia norte-americana de mesmo nome, localizava-se também na fronteira da atual praça, próxima à esquina com a Av. Joaquim Machado de Faria (Figura 5).
Figura 04: Residência do Sr. Osório Marques, localizada na Av. Espírito Santo. Fonte: desconhecida
Acervo pessoal de Maria da Glória C. Liparizi.
Figura 05: Vista aérea da estação da E. F. Leopoldina, Guaçuí (1949): à esquerda da foto está a Av. Espírito Santo, com destaque para a sede da prefeitura municipal; no centro, a estação da Leopoldina com casas de comércio ao redor. Destaque para a Casa Ferraz de (a) secos e molhados e (b) comércio de café em conjunto com a (c) hospedaria, tendo ao fundo de frente para a Av. E. Santo a (d) residência do Sr. José Ferraz de Oliveira.
Fonte: desconhecida. Acervo pessoal de Maria da Glória C. Liparizi.
50A acumulação engendrada pela cafeicultura e pela pecuária leiteira, polarizadas em Guaçuí, criou certas condições de urbanização que permitiram a transferência do excedente da produção agrícola para a construção da cidade.
51Na sequência discutem-se as alternativas que o capital encontrou para se valorizar na construção da cidade.
52No rastro do crescimento econômico do município, os interesses da acumulação invadiram a cidade. Não só por meio do comércio, mas também por intermédio da produção do espaço urbano, o capital encontrou alternativa para se valorizar. A construção de infraestrutura urbana e a de moradias constituíram-se nas alternativas que o capital local encontrou para se valorizar por intermédio da construção da cidade.
53A construção de infraestrutura urbana possibilitou, no conjunto das transformações econômicas do município, a obtenção de rendimento por meio da prestação de serviços urbanos. O primeiro indicativo desse processo foi a instalação de sistema de iluminação elétrica na cidade, cujas obras foram efetuadas pela iniciativa privada que também explorou os serviços.
54No dia 7 de setembro de 1920 foram inauguradas a iluminação elétrica de Alegre e a do distrito de Guaçuí. Em contrato assinado em 17 de abril de 1920 o Governo Municipal de Alegre concedeu a exploração desse serviço à recém-criada Força e Luz Alegre-Veado, que tinha como proprietário e presidente João Celestino de Almeida. A empresa havia contratado o engenheiro mineiro de Carangola Trajano Machado da Cruz para construir as obras e supervisionar a exploração do serviço (Ferraz, 1986).
55A pouca capacidade da Força e Luz Alegre-Veado de fornecer energia indica os limites do capital empregado nessa iniciativa. A empresa, segundo Luiz Ribeiro (2003), consistia originalmente em pequena usina hidrelétrica com capacidade para produzir 300kw a partir de três grupos de geradores constituídos por turbinas Francis de 136 cv.
56Também era comum nos dias de festividade na cidade o sistema não suportar o potencial exigido, deixando, assim, a cidade às escuras. Desconsiderando que o fato indicava os limites técnicos desse investimento naquele momento, os moradores mais exaltados preferiam atribuí-lo a sabotagem dos alegrenses. Uma praxe lembrada por populares é que, sempre no dia anterior ao vencimento da conta, a luz piscava três vezes, lembrando aos consumidores o dia do pagamento.
57No ano de 1955 o Governo do Estado, com o argumento de que precisava adequar e expandir o abastecimento de energia a um maior contingente da população, comprou a maior parte das ações da empresa. Em 8 de agosto de 1967 o Governo estadual adquiriu o restante das ações de propriedade de Trajano Cruz, passando a empresa a se chamar Cia. Espírito Santo Meridional de Eletricidade – Cesmel. Posteriormente, em 1975, a empresa foi encampada pela Espírito Santo Centrais Elétricas – Escelsa (Ferraz, 1986).
58Embora o fornecimento de energia elétrica possuísse sensíveis limites de abastecimento, ele possibilitou que o capital tivesse em Guaçuí oportunidade de se realizar por intermédio do investimento em infraestrutura urbana.
59A família Emery (Figura 6), tendo à frente Emiliana Vianna Emery, vislumbrou no crescimento econômico do município uma nova forma de investimento por meio da prestação de serviços urbanos. Segundo Durval Emery, sua família desempenhou papel pioneiro na construção da cidade:
Nós tivemos aqui a primeira padaria, o primeiro hotel, a água foi instalada por mim; eu com meu irmão que fizemos tudo à nossa custa: água, esgoto e transporte de lixo. Nós é que fizemos. Cobrávamos onze mil réis por casa abastecida, seis mil réis de água, três de esgoto e dois de lixo (Emery, apud Moulin, 1987, p. 13).
- 12 Guaçuí pertenceu a Alegre até 1928, tendo sido emancipado administrativamente em 25 de dezembro de (...)
60O contrato para construção e exploração, pelo prazo de 50 anos, dos serviços de abastecimento de água, canalização de esgoto e limpeza pública do povoado foi celebrado em 28 de julho de 1924, entre o Governo Municipal de Alegre12 e Carlos Emery, também filho de D. Emiliana Emery (Ferraz, 1986).
Figura 06: Família Emery: da esquerda para direita, sentados, Durval Emery, Olivia, Zelina, D. Emiliana e Éster. Em pé, também da esquerda para direita, Carlos, Valdemar e Maria
Fonte: cortesia da família.
- 13 O movimento de emancipação de Guaçuí, aparentemente, aglutinou o conjunto de interesses da família (...)
61Durval Emery foi um dos mais importantes construtores licenciados da cidade. Nesse sentido, curioso o fato de o Sr. Durval não cobrar pela assinatura das plantas de muitas das novas casas que estavam sendo edificadas (Moulin, 1987). Admite-se que naquele momento seu interesse maior era a prestação de serviços urbanos dos quais sua família era permissionária. Naquela ocasião o envolvimento político da família se apresentava como um atributo que poderia facilitar os negócios em construção e exploração de serviços urbanos.13
- 14 Cândido A. Mendonça (1889-1961) foi proprietário de tropas muares e tornou-se fazendeiro, somando-s (...)
- 15 A iluminação de São Tiago era realizada por uma turbina e gerador tocado a água, e funcionou durant (...)
62Outra iniciativa de investimento em infraestrutura urbana foi a do fazendeiro Cândido A. Mendonça,14 que no dia 24 de janeiro de 1950 assinou contrato para fornecimento de energia elétrica à povoação de São Tiago,15 distrito de Guaçuí, conforme parecer da Câmara Municipal em sessão de 10 de dezembro de 1949, no processo protocolado sob o número 166/468, contrato firmado durante o governo municipal de Francisco Lacerda de Aguiar. Termos do contrato:
- 16 Documento em posse de José L. Mendonça, neto de Cândido A. Mendonça.
Cláusula 1 - O contratante se obriga a fornecer energia elétrica para a povoação de São Tiago, pela quantia de R$ 5,00 (cinco cruzeiros) por cada lâmpada de 25 (vinte e cinco) watts e para cada poste.
Cláusula 2 - O número de postes não poderá exceder treze e não poderá cada poste ter mais de uma lâmpada, salvo motivo justificado mediante representação fiscal com aprovação do Executivo Municipal.
Cláusula 3ª - O pagamento será efetuado mediante requerimento do interessado, trimestralmente.
Cláusula 4ª - Fica reservado o direito de rescisão do presente contrato se assim avier ao contratado, para tanto deverá ser a municipalidade avisada com a antecedência de 3 (três) meses (documento de propriedade da família).16
63Os investimentos verificados em infraestrutura urbana, apesar de pequenos, são indicativos do movimento de inversão do excedente acumulado na produção agrícola em atividades tipicamente urbanas, constituindo-se em indicador do surgimento de outras perspectivas de investimento proporcionadas pelo crescimento econômico do município, que se refletiram na transformação do espaço construído da cidade.
- 17 O construtor espanhol Angel Martinez Gonsalez, vindo do Rio para Guaçuí, também se voltou para a in (...)
64Com a previsão de continuidade do crescimento da cidade, alguns fazendeiros e comerciantes, e também construtores, tomaram a iniciativa de construir moradias para aluguel.17 Destacaram-se nesse particular os fazendeiros e comerciantes Osório Marques e José Ferraz de Oliveira. Assim se expressou um contemporâneo deles:
- 18 Depoimento de Paulo Vianna de Aguiar. O Sr. Paulo Aguiar nasceu em 1929 e é filho de Francisco Lace (...)
Entre o Sr. Osório e o Sr. Ferraz existia uma coisa muito interessante: um construía um prédio, o outro construía outro. Eles tinham uma política entre os dois de construção, uma política de desenvolvimento da cidade, e que outros elementos foram aparecendo e seguindo (Paulo Vianna de Aguiar).18
65No processo de crescimento da cidade, o Estado, no governo do presidente Nestor Gomes (1920-1924), aparentemente atuou contribuindo com o desenvolvimento da cidade. Segundo Durval Emery, o presidente Nestor Gomes (1920-1924), em visita à cidade, realizou a compra de 11 casas, das quais incluía o casarão da antiga fazenda São Miguel, por 30:000$000 (trinta contos de réis), adquiridas de um comerciante chamado José Felipe. Transação da qual Durval participou como procurador do Estado, recebendo as escrituras de compra das propriedades. Dentre as edificações dessas propriedades, o casarão da fazenda São Miguel foi transformado no colégio São Geraldo, inaugurado em 1924 (Moulin, 1987).
- 19 Presidente Nestor Gomes. Mensagens... 1921, 1922, 1923 1924. Nas mensagens não há indicação de comp (...)
66A aquisição e a reforma do casarão para funcionamento do internato da Escola Normal são relatadas nas mensagens do Governo estadual; contudo, para as demais casas não encontramos referência de compra, conforme verificamos nas mensagens governamentais.19 A existência de muitas casas na cidade como investimento de poucos proprietários, como veremos a seguir, talvez seja o primeiro indicativo da atuação na construção da cidade com perspectiva de preservação do patrimônio através da aquisição da propriedade urbana na expectativa de valorização e produção de aluguéis.
- 20 Osório Marques (1886-1970) era natural de Carangola (MG). Segundo a relação dos bens de seu inventá (...)
67Osório Marques,20 fazendeiro vindo de Carangola (MG) nos anos 1920, além de importante comprador de café na cidade, construiu moradias das quais algumas se destinavam ao aluguel.
- 21 Depoimento de Sérgio Augusto Marques, colhido em 26-10-2012. Sérgio Marques nasceu em 1944 e é neto (...)
Uma coisa que ele falava: « Um prédio se te der uma renda de 0,5 ao mês (sob o valor da obra) está ótimo ». Pois funcionava como se fosse um juro. Ele calculava assim, colocava o dinheiro para circular. O último que ele fez deu quase 0,6 e ele achou aquilo uma coisa formidável (Sérgio Augusto Marques).21
68No referido prédio, construído por volta de 1956, funciona hoje a Casas Paulo, localizada na praça João Acacinho.
69Através da atuação de Francisco Lacerda de Aguiar, Osório Marques e Emiliana Emery promoveram a expansão da área nobre da cidade, antes concentrada na Av. Espírito Santo. A nova área foi aberta nos terrenos das duas famílias, onde foram construídas a Av. Francisco Lacerda de Aguiar e a rua Osório Marques, na segunda metade dos anos 1950. Trata-se de mais um indicador de que a propriedade imobiliária estava funcionando como uma alternativa de valorização do capital.
- 22 José Ferraz de Oliveira (1895-1979) era sobrinho do Capitão Américo Machado e veio jovem de Tombos (...)
70O comerciante José Ferraz de Oliveira22 – proprietário da Casa Ferraz – possuiu na cidade diversos imóveis, contando entre eles muitas casas e prédios de moradia de aluguel, que somavam aproximadamente 200 moradias. Voltou-se principalmente para a construção de moradias populares, ocupando vários lotes contíguos que davam para uma mesma rua, facilitando a edificação de casas geminadas (Figura 7), caso mais típico de construções localizadas em becos ou de pequenos edifícios.
Figura 07: Moradias de aluguel que pertenceram a José Ferraz de Olivera: localizadas na chamada rua dos Correios.
Fonte: acervo dos autores.
- 23 Depoimento de D. Maria Ferraz Marques colhido em 16-11-2012. Maria Ferraz é filha do Sr. José Ferra (...)
71José Ferraz possuiu moradias na Av. Espírito Santo (que nos anos 1940 já havia se constituído como a área mais aprazível da cidade), na rua Osório Marques, na rua Sebastião Simões, na alameda F. Pinto (popularmente denominada rua « do Correio »), no extinto beco da rua Demerval Amaral, na rua Rio Grande do Norte, na rua Tenente Arnaldo Túlio, na Av. José Alexandre, na praça João Acacinho e na praça da Bandeira, e ainda moradias no chamado Cabeça de Porco (era um cortiço que ficava localizado na Av. Marechal Floriano, próximo à antiga delegacia, atual sede do Sindicato Rural). Chegou a manter um escritório para recebimento dos aluguéis e, à semelhança de Osório Marques, também uma fábrica de tijolos numa de suas fazendas para fornecer material para suas obras.23
72Esse padrão de moradia destinava-se à classe trabalhadora com menor renda da cidade, formada principalmente por empregados do comércio (na época, chamados de « caixeiros »), carroceiros e catadoras de café (que, além de atuarem na lavoura, trabalhavam nos fundos dos armazéns separando o café, numa época em que ainda não existia maquinário na cidade para essa tarefa).
- 24 Como esclarece Campos Júnior: «O aluguel em parte é uma renda criada pelo tipo de uso que o contrat (...)
73A maior parte dos imóveis urbanos foi adquirida ou construída entre o final dos anos 1930 e início de 1950, momento em que a cidade de Guaçuí mais se destacava no cenário estadual. Prosperava em decorrência da produção de café e do crescimento da pecuária leiteira. A aparente ausência de preocupação em receber os aluguéis24 – segundo informações de familiares, o Sr. Ferraz quase nunca reajustava os valores dos aluguéis e ainda chegava a perdoar atrasos sem cerimônia – evidencia que o mercado de aluguéis na cidade não proporcionava altos rendimentos. No entanto, esse tipo de investimento já possibilitava uma retribuição pelo direito de uso da propriedade da terra na cidade. O interesse, admite-se, era o rendimento futuro decorrente da valorização imobiliária.
74Iniciativas como essas refletem a perspectiva dos proprietários de usufruir futuramente da valorização da propriedade imobiliária decorrente do desenvolvimento da cidade, possibilitando-lhes, assim, obter rendas crescentes. Em termos de reserva de valor, a propriedade de terra na cidade funcionava como fundo de acumulação e, dada a perspectiva de continuidade de crescimento da cidade, aparecia como forma de preservar o patrimônio e como investimento com alta possibilidade de aumento da riqueza pessoal.
75Outra iniciativa que refletiu a extração de renda a partir do direito de uso da propriedade da terra foi a construção de hospedarias na cidade. Por volta dos anos 1950 José Ferraz investiu também nesse segmento, edificando-a ao lado de seu armazém de café, em frente à estação da Leopoldina. No entanto, foi Emiliana Emery quem obteve destaque no ramo.
76Emiliana Emery, sabendo que seria construída a estrada de ferro, edificou na rua Monsenhor Miguel de Sanctis o primeiro hotel da cidade, o Hotel Emery, no ano de 1909, para hospedar os engenheiros que trabalhavam na construção da ferrovia. Em 1929 construiu o segundo Hotel Emery (Figura 8), na Av. Espírito Santo. O hotel foi a primeira edificação comercial a dar para a Av. Espírito Santo.
Figura 08: Hotel Emery, na Av. Espírito Santo, inaugurado em 1929
Fonte: cortesia da família.
Figura 09: Grande Hotel Minas Gerais e Casa Barbosa, Marques e Cia. nos anos de 1930.
Fonte: desconhecida. Acervo pessoal de Maria da Glória C. Liparizi.
- 25 Depoimento de Carmem e Eunice Lengruber Emery em 24 de junho de 2013.
77O Grande Hotel Minas Gerais, inaugurado em 1930, de propriedade de Osório Marques, foi o maior empreendimento hoteleiro da cidade. Segundo familiares de Emery, ele havia sido construído para ser entregue a Emiliana em regime de concessão; contudo, um desentendimento quanto ao nome do hotel, que faz referência ao Estado de seu primeiro proprietário, impediu a concretização do acordo.25
- 26 Nestor Gomes (1920-1924), em mensagem ao Congresso Estadual, refere-se a obras de abertura, cortes (...)
78O comentário de Durval Emery sobre a ocupação da Av. Espírito Santo26 deixa entrever o pensamento de preparar a cidade para o crescimento econômico que começava a ser notado:
O Romualdo Lobato queria que a rua tivesse nove metros de largura. A mamãe disse: « Não senhor, esta rua tem que ter no mínimo vinte metros, porque se tiver aqui um carretão de madeira, como é que vai fazer uma curva numa esquina de nove metros? Não dá [...]. Não senhor, o senhor não pode fazer a sua casa aqui, tem que recuar. Recua para vinte metros » (Emery, apud Moulin, 1987, p. 12-13).
79Dessa maneira, a atuação da família Emery e de outras pessoas no mercado de terras e construção da cidade indica as formas de o capital se valorizar a partir das alternativas abertas com o crescimento econômico do município. A urbanização da cidade tomada como materialização das condições de acumulação nela criou inicialmente alternativas para o capital se valorizar a partir da venda dos serviços de energia, água e esgoto. E, por consequência dos serviços prestados, também pôde-se prever a valorização futura da propriedade imobiliária, por intermédio do mercado de terras urbanas e da construção de moradias de aluguel.
80Nesse sentido, apresentamos a seguir algumas indicações que permitem pensar os desdobramentos desse processo pós anos 1950.
- 27 Sebastião Liparizi é filho de italianos, nascido em 1926. Começou comprando café de pequenos produt (...)
81A década de 1960 marcou o período de aparecimento de uma nova geração de empresários do café na cidade, com a morte dos antigos fazendeiros e fragmentação do patrimônio destes. Essa nova geração de comerciantes de café, da qual Sebastião Liparizi27 foi o maior destaque, surgiu durante a década de 1960, ainda com a presença de Marques e Ferraz no comércio, e se enfraqueceu no final da década de 1980, com a perda da participação do município no comércio de café.
82O deslocamento do centro dinâmico da economia do café – do sul para o norte do Espírito Santo –, com o esgotamento da frente pioneira no vale do Itabapoana nos anos 1950, contribuiu, no médio prazo, para reduzir o comércio de café em Guaçuí, diminuição que se verificou durante a década de 1980. A erradicação dos cafezais em 1962 e 1966, acompanhada do êxodo rural e da constituição da malha rodoviária, com o asfaltamento do trecho estadual da BR-262 em 1968, foram outros fatores nesse sentido, dissolvendo a condição privilegiada de escoamento da produção, originada no início do século pela estrada de ferro, e enfraquecendo a economia que girava em torno do café na cidade.
83Ainda no período em que o município era o centro de convergência da produção de café da região vizinha, Sebastião Liparizi buscou na formação de loteamentos uma forma de reinvestir o excedente acumulado no comércio de café. A partir de 1978 ele criou três novas áreas de expansão da cidade (bairros Vista Alegre, Bela Vista e Santa Cecília), em terrenos adquiridos no passado.
- 28 João Meirelles (1906-1993) nasceu em Cambuci-RJ, casou-se com Olga F. M. Meirelles (filha do Cel. J (...)
- 29 Depoimento de Anselmo Martinez Alvarez, nascido em 1930, filho do construtor Angel M. Gonsalez e ge (...)
84A constituição do mercado fundiário fica novamente evidenciada na atuação de João Meirelles e seus herdeiros no mercado de terras da cidade. A primeira iniciativa de loteamento se deu nos anos 1960, quando João Meirelles28 loteou uma área adjacente ao centro da cidade. Embora nessa época fosse difícil vender um lote de 360m² por 20 mil ou 15 mil (valores em reais), como nos contou o Sr. Anselmo Martinez Alvarez,29 na década de 1990 um lote na mesma área, inicialmente loteada por João Meirelles nos anos 1960, numa nova etapa do loteamento do bairro passa a ser comercializado por aproximadamente 150 mil reais; e num outro loteamento com lotes menores (de 200m²), mais afastado do centro, que no passado recente foi comercializado por cerca de 10 mil reais, hoje, conforme Anselmo Martinez Alvarez, « [...] os mesmos 200m² valem de 50 a 60 sessenta mil, eu nunca vi uma coisa assim. E eu sabia que ia disparar, pois não havia muitos loteamentos aqui ».
85Através dessas observações é possível visualizar que, embora a centralidade comercial da cidade tenha sofrido retraimento na segunda metade do século XX, a dinâmica econômica do município dá sinais de que nele se consolidou o mercado fundiário urbano como resultado do processo histórico de desenvolvimento da cidade no seu papel polarizador da economia regional. É importante observar, ainda, que nos anos 1980 e 1990 o poder público municipal, nas duas administrações de Luiz Ferraz Moulin (1983-88 e 1993-96), interveio na oferta de terras na cidade, preparando e doando 927 lotes urbanos, com a criação dos bairros Tancredo Neves (antigo campo de aviação) e Vale do Sol, o que possivelmente pode ter contribuído para retardar a consolidação do mercado de terras na cidade.
- 30 Depoimento de Arnaldo Vaillant Trigo. Arnaldo Trigo (1931-2014) assim como os irmãos Dário e Oswald (...)
86Acrescente-se, ainda, que o desenvolvimento do ramo da construção em Guaçuí também produziu novas riquezas. A família Vaillant Trigo, por exemplo, atualmente em destaque na pecuária leiteira do município, cresceu economicamente no comércio de material de construção a partir dos anos 1950. Hoje alcança projeção no comércio de material de construção e na pecuária leiteira.30
87A compreensão da construção da cidade a partir dos interesses de acumulação na metamorfose da riqueza do campo para a cidade, em seu papel polarizador da economia regional, demonstrou, no conjunto das estratégias de capitalistas locais, o processo de diversificação dos investimentos (indústria de laticínios, criação de infraestrutura urbana, moradia de aluguéis etc.) na urbanização da cidade.
88A transformação do espaço construído da cidade expressou a materialização dessas condições urbanas necessárias à reprodução do capital, quando a centralidade exercida pela cidade passou a exigir novas estruturas urbanas e, por isso, permitiu novos tipos de investimentos. Nesse processo, como expressão do desenvolvimento das condições gerais para a realização da produção, surge também a perspectiva de – por meio do instituto privado da propriedade – serem extraídas rendas em forma de aluguel ou pelo comércio de lotes urbanos.
89Assim, a experiência da construção de Guaçuí, anteriormente apresentada, ajuda a demonstrar que existe um forte caráter rentista na formação de nossas cidades, que se constituem como um meio alternativo de valorização do capital. Em Guaçuí o capital cafeeiro e também o originário da pecuária leiteira e do comércio de café viram na prestação de serviços urbanos (água, esgoto, energia elétrica, coleta de lixo), na construção de moradias de aluguel e no comércio de lotes urbanos oportunidades para obtenção de ganhos rentistas, com todas as consequências que essa iniciativa acarreta para a vida urbana.