1Em uma sociedade que tendencialmente caminha para a consagração do individualismo como parte de um modo de vida, parece que discutir espaços públicos na cidade contemporânea é um desafio. O ponto de partida do trabalho foi olhar e perceber na paisagem urbana a redução de espaços públicos livres para qualquer tipo de socialização, de vivência ou de apropriação pelas pessoas para diferentes usos, ao mesmo tempo, verifica-se que a marginalização e o esquecimento por parte do Poder Público dá brecha para o surgimento de experiências de lazer criativas e inesperadas, conforme salientam Santos e Vogel (1985).
2Lazer e espaço público compõem os debates principais deste texto somados às análises de um estudo de caso - a cidade de Vitória, ES -. Este estudo de caso será embasado em uma perspectiva crítica sobre a espacialização desigual dos acessos aos equipamentos de lazer na cidade contemporânea e a mercantilização dos espaços públicos, levando-se em consideração estudos de geógrafos, sociólogos, educadores físicos, urbanistas, entre outras perspectivas.
3É inútil discutirmos e aprofundarmos aqui a problemática urbana sem levar em consideração o uso que as pessoas fazem da cidade e a maneira como elas se apropriam dos espaços públicos de maneira desigual. Conforme levantado por Carlos (2001), a cidade é composta por elementos de sociabilidade, ou seja, as pessoas utilizam as ruas por algum motivo, mesmo que seja como caminho para algum lugar. A importância da presença humana é fundamental, pois, a presença de pessoas atrai pessoas. Segundo Jacobs (2009, p. 38) « os planejadores e projetistas partem do princípio de que os habitantes das cidades preferem o vazio, a ordem, o sossego palpáveis. O prazer das pessoas de ver o movimento de outras pessoas é evidente em todas as cidade ».
4O estímulo para entender o caso de Vitória foram as históricas intervenções urbanísticas a partir das primeiras décadas do Século XX voltadas para a construção de espaços, além da promoção de equipamentos públicos e infraestruturas urbanas ao longo da orla leste da cidade, voltados para o lazer, além de cumprirem papel relevante na promoção imobiliária de tais áreas, conforme ressaltado por Derenzi (1995) e Klug (2009).
5O resgate histórico acerca do surgimento e da ampliação de espaços públicos de (e para o) lazer na cidade de Vitória, embora se apresente como parte fundamental do trabalho, não menos importante nesse contexto são os elementos sobre a emergência da distribuição desigual destes espaços no mapa urbano local, abordados por Santos (1987) Gomes (2002) e Serpa (2007), característica de uma sociedade também desigual socioespacialmente. Assim, o artigo se propõe a abrir perspectivas para se reforçar os debates acerca da limitada cidadania no país, o qual até hoje não considera, de fato, o lazer e a cultura enquanto parte dos direitos básicos da população, pois comumente as cidades brasileiras concentram geograficamente as infraestruturas, os bens e os serviços.
6Nesse sentido e fazendo parte da metodologia, o embasamento teórico dos debates sobre lazer, espaço público e cidadania nesse trabalho, são fruto de revisões bibliográficas e de leituras reunindo olhares interdisciplinares. Não há um único método analítico, mas uma conjunção de entendimentos/visões/leituras sobre a realidade do mundo. A Fenomenologia, a Dialética Marxista, o Historicismo e outros contribuem e não se excluem.
7No plano empírico, como já mencionado, faz-se presente no trabalho um recorte espacial que é o estudo da orla de Vitória, especialmente a região leste da cidade. Reforçando que se trata de um trabalho qualitativo, buscou-se fontes primárias, como documentos históricos sobre a urbanização da cidade, acervos fotográficos, monografias e outros, além de visitas a locais considerados fundamentais nas análises e mapeamentos reforçando o caráter concentrador destes espaços numa região.
8Espaço público é um tema que hoje faz parte da arena de discussões na/da Geografia, particularmente atrelado a um componente espacial aos debates sobre cidadania, aqui resgatado da polis grega, que surgiu como uma forma de dar poder ao cidadão para deliberar sobre as necessidades da polis. « O poder cidadão surgiu da confrontação dos habitantes, concentrados em uma certa área, no caso a cidade de Atenas, contra o poder de uma oligarquia rural que controlava o poder político e a produção da riqueza dessa sociedade », diz Gomes (2002, p.130). Ou seja, debater na atualidade espaços públicos requer refletir a cidadania e seus conteúdos político e espacial e, no caso do Brasil, é tratar do seu recuo ou de um projeto incompleto no âmbito da democracia.
9Embora sem aprofundar o debate, em 1987, Milton Santos lança o livro O Espaço do Cidadão, acenando para a importância das discussões acerca da cidadania. Segundo Gomes (2011, p. 48) « esse pioneirismo abriu espaço para que pudéssemos nos perguntar qual o papel do espaço na constituição da cidadania ». Nessa obra, Santos (1987, pp.86; 89) escrevendo sobre os direitos do homem e da relação lugar e valor do homem dizia:
O homem-cidadão, isto é, o indivíduo como titular de deveres e direitos, não têm o mesmo peso nem o mesmo usufruto em função do lugar em que se encontra no espaço total [...] Como certas áreas não dispõem de certos bens e serviços, somente aqueles que podem se deslocar até os lugares onde tais bens e serviços se encontram têm condições de consumi-los. Desse modo, as pessoas desprovidas de mobilidade, seja em razão de sua atividade, seja em razão de seus recursos, devem resignar-se à não utilização de tais bens e serviços, cujos preços são, às vezes, inferiores aos de sua localidade.
10Em outras palavras, o acesso aos espaços melhor dotados de bens e serviços só é possível aos que possuem renda para isso, ou pela facilidade (e comodidade) em termos de localização na cidade, dimensão geográfica relevante quando se discute « o direito à cidade » no sentido da justiça social, a ponto de se defender a cidadania como um objeto de estudo da Geografia.
11No bojo desse processo, as elites foram as que mais se beneficiaram, o que podemos verificar, por exemplo, através da melhor localização das mesmas no espaço urbano. São áreas inteiras e bairros privilegiados de bens e serviços, especialmente os de cultura e lazer nas denominadas centralidades da cidade ou da Região Metropolitana. Enquanto isso, enorme parte da sociedade – as classes trabalhadoras -, são empurrados cada vez mais para áreas em processo de urbanização a 30, 40, 50 km ou mais de distância dos centros, terras estas que vão se incorporando à metrópole como solo urbano via especulação de toda ordem.
12Debater espaço público envolve, de maneira geral, os agentes públicos, os gestores das cidades, responsáveis pela construção e a própria população, responsáveis por sua apropriação, através de criatividade e dinamicidade, criando novos espaços alternativos de lazer, mesmo que estes não tenham sido constituídos para tal finalidade. Compreender a maneira como a população se apropria dos espaços públicos, pode ser uma forma de identificar por este viés, quais são as reais necessidades dos citadinos que vivem o/no espaço urbano. Por isso, além dos espaços formais idealizados e implantados pelo Estado, é preciso uma análise mais aprofundada de espaços públicos vistos como informais.
13Sem espaços públicos para o lazer ou apropriados para o lazer, o melhor aproveitamento da vida cotidiana nas cidades atuais é feito nas ruas e nas calçadas, através dos encontros entre vizinhos, amigos, etc.; através das festas e jogos que fecham as ruas; através das (ainda) presentes brincadeiras infantis. Por isso, acredita-se que os espaços públicos desempenham funções relevantes na cidade e a sua importância está mais atrelada à qualidade de sua apropriação, ou seja, das relações que esses espaços guardam, juntamente com as atividades sociais realizadas. Por isso, há que se destacar a abrangência dos espaços públicos de lazer para além da esfera dos equipamentos produzidos pelo poder público. Identifica-se no meio nas cidades, espaços urbanos denominados alternativos, tendo em vista a ausência de infraestruturas. Segundo Mendonça (2007, p. 297),
É importante salientar que as apropriações, mesmo quando intuídas e adaptadas não implicam, necessariamente, em inadequação ou indícios de marginalidade. Podem, ao contrário, indicar criatividade, capacidade de melhor aproveitamento das infraestruturas públicas e fornecer subsídios que alimentem o projeto e a construção futura de ambientes desta natureza.
14Segundo Serpa (2007) e Jacobs (2009), em bairros que abrigam classes sociais de baixo poder aquisitivo, denominados populares, a apropriação para a socialização entre os indivíduos é maior, uma vez que a pobreza, o medo e a necessidade, unem as pessoas de forma a gerar ajuda mútua e, acima de tudo, satisfazer uma necessidade individual de espaço sobre o processo de apropriação seletiva dos espaços públicos.
15Levando em conta os conflitos de classes que existem nas esferas públicas da cidade, Serpa (2007) debate a demarcação de territórios urbanos marcados pela alteridade, além do contraponto da dimensão simbólica (e abstrata) à dimensão física desses espaços. Tal relação feita pelo autor está intimamente ligada à acessibilidade que não está restrita ao ir e vir, e sim ao significado que cada um dos espaços possui atrelado ao público que o frequenta, ou seja, a título de exemplo, a frequência de um público mais elitizado em determinados espaços públicos, expulsa os mais pobres, criando o que se chama de « apropriação seletiva » do espaço.
16Democratizar o espaço público de lazer está para além de apenas construir ou urbanizar locais desprovidos de bens e serviços. É preciso incentivar a apropriação e a utilização dos espaços, seja através da divulgação ou da dessacralização (MARCELLINO et al, 2006). Esclarecendo, equipamentos de lazer prenhes de importância voltados aos interesses intelectuais, como as bibliotecas, os museus, as galerias de arte e os teatros são pouco frequentados pela população e nada democráticos, pois simbolicamente expulsam os pobres, por terem um ar de santuário, graças a forma como as suas construções são revestidas. Além disso, a sua apropriação continua sendo feita pelos indivíduos de alto poder aquisitivo, ao mesmo tempo em que a história e a herança colonialista reforçam algumas características de esnobismo tão marcante nestes ambientes.
17No centro deste debate, Gomes (2002) expõe o espaço público como uma arena de problematizações, debates e diálogos, pois na cidade contemporânea diagnostica-se um espaço público fragmentado, carreado de apropriações privadas, tribalizados, impossibilitando o encontro com o diverso.
18Entende-se que não faz muito sentido gastos públicos em grandes projetos de urbanização para usufruto do lazer pelos citadinos se a sociedade atual ainda tende a cooptar qualquer tempo livre dos indivíduos, direcionando esse tempo para o processo produtivo e de consumo. Então, trata-se de uma problemática mais ampla que merece apontar algumas reflexões.
19O debate acerca da cidade capitalista atual não abre mão de uma reflexão sobre o tempo, como já apontado na introdução, isto é, o uso do tempo, o emprego do tempo no contexto em que esse tempo é, cada vez mais cooptado para o tempo no processo de produção e de reprodução do capital. Relevante também na discussão é pensar sobre o espaço urbano que resulta desse processo. Para Lefebvre (2008, p. 49), « o espaço inteiro torna-se o lugar dessa reprodução, aí incluídos o espaço urbano, os espaços de lazeres, os espaços ditos educativos, os da cotidianidade, etc. ».
20Como já posto, na contemporaneidade, a consolidação e expansão de uma sociedade da produção e do consumo cooptam, cada vez mais, o tempo livre do trabalhador, dirigindo esse tempo para a aquisição do lazer-mercadoria. São inúmeros os produtos da denominada cultura de massas à disposição. Proliferam-se nas cidades os locais, os abrigos onde essas mercadorias são compradas como lazer; esses lugares, eles próprios, transformaram-se em lazer, a exemplo dos shopping centers, símbolo da modernidade das cidades atuais, opção e sinônimo de entretenimento.
21Civilizações antigas já desfrutavam de momentos destinados ao « lazer »: jogar, assistir espetáculos, atuar, comemorar, brincar, etc., fazia parte da vida cotidiana dos citadinos. Os romanos são exemplares no uso de tempo livre para o desfrute de outras atividades, numa época em que o trabalho não era a mola mestra das sociedades, e tão pouco existia tempos e espaços sociais fragmentados, marcas dos tempos modernos (GOMES, 2006).
22Decorreram-se séculos para que, na era moderna, no contexto do capitalismo como modo de produção hegemônico, o lazer passasse a ter outro sentido e objetivos. Ao longo do segundo momento do processo de industrialização em países do hemisfério norte, as pessoas (homens, mulheres e crianças) trabalhavam tanto que se tornavam improdutivas, o que levou os industriais a repensarem as longas jornadas de trabalho a que estavam submetidos os trabalhadores, concedendo-lhes mais tempo para o descanso
23Compreendendo a necessária recuperação da força de trabalho, com o passar do tempo o sistema produtivo viabilizou o lazer a seu serviço. Esse « tempo livre », no entanto, não deveria ser usufruído de qualquer forma, isto é, em diversões degradantes física e moralmente. « Em vez de se entregarem ao alcoolismo, aos jogos de azar, ao ócio e outros vícios, os trabalhadores deveriam fazer bom uso do tempo liberado do trabalho, ocupando-o com atividades consideradas saudáveis, educativas e socialmente úteis ». (GOMES, 2006, p. 175). Enriquecendo o debate em torno da questão do tempo e as transformações da vida cotidiana, Seabra (2008, p. 125) destaca:
Pensando o tempo, vê-se que a consequência mais imediata e direta foi a de ter que administrar o uso do tempo. A noção de perda, de diminuição ou de ganho de tempo condicionou, em termos práticos, a relativização da gratuidade do tempo em relação às estruturas da modernidade; esta é a nossa questão. A modernidade cria a entrada no mundo do trabalho, no mundo da tecnologia aplicada ao mundo do trabalho. E a modernização da cidade, relacionada à urbanização, com os conteúdos em constante transformação, está nesse fluxo. É, portanto, nos quadros da vida urbana que aquele tempo, que não era tempo produtivo, passaria por enquadramentos sucessivos. Até o ponto em que todo tempo tende a ser produtivo, tempo quantificado pelo dinheiro.
24Quando se relaciona o tema lazer e urbanização, sobressaem no âmbito dos debates nas ciências humanas e sociais, análises e discussões acerca da ampla ausência de equipamentos e infraestrutura pública nos espaços urbanizados, sobretudo em áreas mais carentes dos mesmos, os quais ajudam as práticas de lazer, tais como: praças e jardins públicos, parques, complexos esportivos, academias ao ar livre, etc. Não menos discutido, uma vez que se trata de pauta relevante, diz respeito aos estudos e pesquisas acerca da dimensão econômica do lazer nas cidades sobrepondo-se a outros valores. Krippendorf (2003, p. 37), reforça tal constatação afirmando: « as cidades não se preocupam muito com o lazer nem com as necessidades de relaxamento dos seus habitantes. A maioria são cidades de trabalho, incompatíveis com uma vida plena. »
25Essa cidade da produção funciona como uma máquina que não pode parar, obriga os indivíduos a seguirem o seu ritmo, e não se permite tempo para uma vida mais plena e humana. Nesse sentido, o lazer diz respeito ao uso que se faz do tempo disponível de obrigações de trabalho, compromissos escolares, sociais e familiares. Segundo Marcellino (2001, p. 46), « é a manifestação do ócio; é um espaço privilegiado à efervescência do prazer, que atua no campo da subjetividade e favorece modificações importantes de valores, conceitos, significados e representações da realidade vivida ».
26Tempo liberado das atividades de trabalho e usado livremente pelos indivíduos é o foco da discussão quando a intenção é relacionar o lazer e as possibilidades de um espaço urbano mais humano. Ou seja, é refletir sobre uma sociedade atual que não pode abstrair o fato de que, o tempo livre dos indivíduos não deve ser destinado tão somente às atividades produtivas e de consumo, ou ao próprio lazer-mercadoria que é parte da lógica do mercado capitalista (PADILHA, 2002).
27As cidades no Brasil, especialmente as de grande aglomeração populacional, vivem um ritmo comandado pela lógica econômica hegemônica. Esses espaços urbanizados e industrializados funcionam como engrenagens geradoras de riqueza, deteriorando a qualidade de vida dos moradores, o que resulta no quadro atual da completa desumanização desses espaços, especialmente grandes regiões urbanas e densamente povoadas pelas classes sociais de baixa renda.
28Conforme Marcellino (1996, p. 26), essa situação é agravada, sobretudo se considerarmos que, segundo as palavras do autor:
Cada vez mais as camadas menos favorecidas da população vêm sendo expulsas para a periferia, e, portanto, afastadas dos serviços, dos equipamentos específicos; justamente as pessoas que não podem contar com as mínimas condições para a prática do lazer em suas residências e para quem o transporte adicional, além de economicamente inviável, é muito desgastante.
29Não se advoga ou se defende que a prática ou desenvolvimento do lazer pelos moradores exige equipamentos/infraestrutura própria e específica, isto é, praças e parques equipados, passeios/calçadas e ciclovias dotadas de sinalização moderna, lagoas, beiras de rio e praias altamente equipadas, clubes recreativos públicos, quadras e ginásios esportivos, etc.; nem mesmo se associa o lazer ao acesso democrático a lugares onde está disposto o anti-lazer, como os passeios nos shopping centers, cada vez mais considerados como opção para o tempo livre. No entanto, questiona-se, sim, a ausência de espaços públicos livres possíveis de apropriação para as mais diversas atividades de não trabalho, espontâneas ou não, inclusive para o descanso, a contemplação da paisagem, encontro de amigos, conversas, etc. nos vários projetos de urbanização voltados para a cidade envolta a incessantes projetos de urbanização, como é o caso de Vitória (ES), objeto de estudo empírico acerca da temática em evidência nesse texto.
30Até o início do século XIX, o desenho da cidade permaneceu inalterado e os limites impostos pela topografia e pelo mar eram as barreiras naturais que impediam o avanço da urbanização na cidade. Segundo Derenzi (1995), foi entre os anos de 1812 e 1819 que Vitória recebeu as primeiras intervenções urbanas na região central, possibilitando o aterramento de áreas alagadiças nas proximidades de seu núcleo central de desenvolvimento da cidade. Foi realizado o aterro do manguezal do Campinho (atual Parque Moscoso) e o aterro do Largo da Conceição (atual Praça Costa Pereira). Os aterros tiveram os objetivos de abrir novas vias de circulação e de permitir o avanço na construção de residências próximas às áreas centrais.
31Segundo Barbosa (2004), o objetivo principal da administração de Jerônimo Monteiro (1908-1912) era transformar Vitória numa cidade moderna, através de uma profunda remodelagem urbana na cidade, seguindo princípios de saneamento básico, aterramento, embelezamento, ajardinamento de mangues e retificação de ruas. Tais ideais eram baseados nas propostas sanitaristas, as quais vinham ocorrendo na Europa e influenciando diversos países do mundo. O primeiro marco da urbanização de Vitória foi o aterro final da área alagadiça do Campinho, local do atual Parque Moscoso, projeto que teve importante papel na instalação da elite capixaba no seu entorno.
32Segundo Klug (2009), o século XIX foi um momento essencial no processo de urbanização de Vitória, pois representou o marco inicial do processo de aterramento que a cidade viria a sofrer ao longo do século seguinte. Assim, as mudanças mais expressivas começam a tomar forma em 1892, quando Muniz Freire, eleito governador, inaugura uma política diferenciada, marcada por planos de intervenção urbana em grande escala, dando início à mudança na paisagem bucólica e singela que caracterizava a cidade de Vitória. É possível fazer uma alusão aos ideais modernistas da época, que visavam um planejamento de cidade racional, higiênica e sem muitos adornos. A paisagem natural, que sobressaía aos olhos de quem chegava a Vitória, começa a ser transformada.
33O objetivo das mudanças pelas quais a cidade viria a passar era atender aos interesses da elite cafeeira e comercial emergente, vislumbrando a necessidade da criação de espaços para diversas finalidades urbanas. Para Klug (2009), as características ditas primitivas de Vitória, onde as ruas eram tortuosas e estreitas, não permitiam que o comércio fluísse de maneira rápida e eficaz. Em 1896, Muniz Freire aponta:
Diversa, porém, é a situação quando se cogita a expansão material da cidade para desafogar a população existente, e permitir a fixação de novas correntes trazidas pelo seu desenvolvimento comercial. [...] Circulada pelo mar e por montanhas, a área urbana pode se considerar esgotada [...] (ESPÍRITO SANTO apud CAMPOS JUNIOR, 1996, p. 152).
34Nesse sentido, era preciso expandir a malha urbana da cidade. Foi encomendado ao engenheiro-sanitarista carioca Saturnino de Brito o projeto Novo Arrabalde. O projeto previa uma cidade racional, com ruas paralelas e ortogonais, correspondendo a uma área equivalente a seis vezes a área de Vitória do século XIX. A área escolhida situava-se entre as planícies arenosas a nordeste da ilha e seguia por regiões alagadiças ao sul, perfazendo toda a costa leste, cortando morros, manguezais, brejos e braços de mar.
35Brito buscou em seu projeto relacionar o mar com a cidade, através de vias que margeavam toda a costa leste, na área composta pelo projeto, dando possibilidade ao citadino de ter acesso e contato visual com a paisagem marítima. No período de implementação do projeto Novo Arrabalde, o « arquétipo mar » passou a ser valorizado como área de moradia das elites emergentes, diferente daquelas passadas que optavam por morar em áreas de relevo elevado.
36Segundo Campos Júnior (1996), os dois principais projetos de urbanização vivenciados por Vitória até meados do século XX (aterro do Campinho e o Projeto Novo Arrabalde), foram promovidos pelo poder público. No entanto, apresentavam como objetivo principal movimentar o mercado imobiliário privado na capital. Os gastos elevados com os aterramentos seriam repostos com a venda dos terrenos para empreendedores interessados. Portanto, o mercado imobiliário no início do século XX era produzido pelo poder público. O capital privado só entra no mercado com a chegada dos grandes empreendimentos industriais a partir da década de 1960 que atraíram grande contingente de moradores para Vitória e para Região Metropolitana como um todo.
37Na década de 1950, importantes aterros, como o da Esplanada Capixaba e dos mangues entre o Forte São João e o bairro Bento Ferreira, foram realizados com muito sucesso. Segundo Castello (2007), esses aterros foram feitos para corrigir o sistema de águas da baía de Vitória de maneira a tornar mais acessível a entrada e saída de navios no porto de Vitória. Para Mendonça (2001), o processo de aterramento da Esplanada Capixaba foi marcado pela política de apoio ao capital imobiliário, uma vez que, até então, os empreendimentos eram produzidos pelo poder público. A área do novo aterro, destinado aos novos empreendimentos, foi elaborada para abrigar edificações exclusivamente de oito a doze pavimentos, voltadas ao processo de expansão comercial da cidade, a fim de atender também às demandas das atividades portuárias.
38A partir do Plano de Valorização Econômica de Jones dos Santos Neves, entre os anos de 1951-54, buscou-se preparar a base estrutural do estado para receber os novos projetos industriais, que tiveram seu ápice na década de 1970. Essa política foi fundamental, pois criou infraestruturas como portos, energia elétrica, sistemas viários e fomento à produção. Foi na década de 1970, quando a ocupação da cidade se intensifica, que as áreas do Projeto Novo Arrabalde, de Saturnino de Brito, são ocupadas com maior intensidade, ou seja, é quando o mercado imobiliário se fixa na cidade de Vitória. Sobre isso, aponta Castello (2007, p. 60),
É só no final da década de 50 e início da década de 60 que a construção civil se lança no mercado construindo edifícios para aluguel, e esta nova prática coincide com o período da política federal de erradicação do café. Com a queda do comércio cafeeiro a alternativa encontrada pelo estado para se reerguer economicamente foi a industrialização, direcionado pelo Plano de Valorização Econômica de Jones do Santos Neves (1951-1954).
39A queda do comércio cafeeiro e a ideologia desenvolvimentista, portanto, traz à Vitória uma nova tendência econômica voltada para o comércio, serviços e ao setor industrial. Nesse período, chegaram importantes empresas, como a Companhia Vale do Rio Doce e é construída a Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST).
40É no contexto da mudança do papel do estado na produção da riqueza do país, que surgem muitos e novos bairros ao longo de toda a orla, nas porções oeste, noroeste e norte da cidade à medida que a população cresce, o que acarretou sérios problemas, os quais se agigantaram nos anos de 1980: déficit habitacional, ausência de saneamento básico, poluição e ocupação da baía, ocupação de áreas de manguezais, violência, surgimento de lixões a céu aberto, etc. Nas décadas seguintes (1990 e 2000), as preocupações e políticas de criação de áreas de lazer crescem, embora de modo desigual sócio-espacialmente.
41As políticas públicas voltadas à promoção do lazer na cidade de Vitória têm início no final do século XIX e início do século XX através dos projetos de urbanização já expostos. De maneira geral, o processo de criação de equipamentos de lazer se deu com a necessidade de se melhorar a qualidade de vida da população sitiada em Vitória, uma vez que, as condições de vida ainda eram rudimentares. Segundo Derenzi (1995), foi durante a administração do governador Muniz Freire (1892-1896 e 1900 - 1904), que a demanda por novos ciclos de desenvolvimento propiciou uma ávida urbanização.
42Em uma desmedida tarefa, o Conselho Municipal vota o Código de Posturas (Resolução de 5 de janeiro de 1893), exigindo o licenciamento de obras, plantas com determinadas exigências, organiza o serviço de limpeza, disciplina o abastecimento de carne, vigia as construções civis, protege as matas adjacentes, etc. Data desta época o loteamento do Campinho, hoje Parque Moscoso, e o da Vila Rubim, o qual foi mal planejado, tornando-se uma favela denominada Cidade de Palha até 1910 (DERENZI, 1995).
43Sobre o lazer na capital entre o final do século XIX e o início do século XX, destacam-se a área adjacente à rua General Osório, no centro da cidade, sendo caracterizada como um « pontão », com intenso movimento marítimo, de lanchões e canoas (catraias), oriundos de Cariacica e Santa Leopoldina cheios de produtos alimentícios. Tal movimentação fez aflorar no local o comércio de botequins à beira-mar. Assim, nasceram os quiosques, concessionados pelo capital privado. Mais tarde, esses locais foram invadidos e tornaram-se ponto de encontro de canoeiros e tripulantes. Sobre isso Derenzi (1995, p. 144, grifos e notas do autor) explica:
Foi quiosque de fama o de Florêncio Coelho, português reforçado, que tinha o hábito de adormecer os fregueses maçantes com sôco lusitano: mão fechada, abarcando um pêso de quilo. Bebia-se « cariacica », « pernambucana » e « dois com goma » - cachaça com xarope. Comia-se linguiça ou manjuba frita. O último quiosque desapareceu em 1925. Situava-se no prolongamento da rua General Osório, onde hoje se ergue o Edifício dos Comerciários. Das seis da tarde até o « tiro das oito » esses lugares eram perigosos para transeuntes pacatos. A « temperatura » se elevava e aos palavrões sucediam-se lutas de corpo-a-corpo e não raro com uso de achas de lenha e canivetes de marinheiro.
44Essa forma de lazer explicitada por Derenzi (1995) era muito característica das classes mais pobres, em especial formada por trabalhadores do cais – estivadores e canoeiros – os quais transportavam principalmente café da região serrana para a capital, e mesmo os trabalhadores das casas de exportação que se localizavam ao longo do porto da cidade. Fica evidente, na citação, que as formas de lazer dos mais pobres eram improvisadas e vistas à margem da legalidade pela sociedade vigente. Outro aspecto interessante era a relação com que esses trabalhadores possuíam com o mar gerador de renda e, ao mesmo tempo, representava o espaço de lazer dos mesmos. A ligação destes trabalhadores com a orla mostra-se evidente. Reforça Castello (2007, p. 67):
« Os quiosques formavam o ambiente de lazer das classes baixas, onde bebiam e conversavam após o dia de trabalho, mas se tornava um lugar perigoso no final da tarde, com clientes embriagados e muitas brigas. Outro lugar de lazer das classes mais baixas era o Mercado, velho e sujo, que foi demolido no governo Avidos ».
45Enquanto a vida hedônica dos mais pobres estava ligada às atividades portuárias e ao intenso contato com a orla, as classes mais abastadas, por sua vez, buscavam formas de lazer ligadas ao encontro em praças higiênicas e aprazíveis. O contato da capital com o Rio de Janeiro e com Minas Gerais, criou uma elite mais sofisticada e exigente, que demandava mais do que praças, quiosques ou passeios públicos. Por isso, pode-se afirmar que os clamores pela qualidade de vida vieram junto com a subida dos preços do café, principal produto da economia local.
46Segundo Derenzi (1995), a melhor rua da cidade nessa época, era a Rua da Alfândega (hoje corresponde a Avenida Jerônimo Monteiro). Nessa rua, localizava-se a praça Santos Dumont, que passou a ser chamada de Praça Oito de Setembro a partir de 1911. Derenzi afirma que a praça era « ajardinada, e alegrava-se às quintas-feiras com a retreta da Banda da Polícia e, de vez em quando, as Filarmônicas do Rosário e São Francisco, em notórios desafios, porfiavam em superar-se cada vez mais. » (DERENZI, 1995, p.142). Era, por isso, um local requintado, voltado ao lazer da elite capixaba. Além da oferta de lazer mencionada, os cafés passaram a ser importantes pontos de encontro, tais como o Café Rio Branco e o Café O Globo, localizado nas proximidades (rua Duque de Caxias), o que evidenciava o apreço da população pelo hábito de frequentar cafeterias (figura 1).
FIGURA 1 -Café Rio Branco Fonte: Café Meridiano
Fonte: http://www.meridiano.com.br/blog/tag/praca 8/Acesso em 15/09/2014
47Além das cafeterias, importante ponto de encontro das classes média e alta da cidade, os parques e jardins eram tidos como áreas de lazer dessas camadas da população. Na atual Praça Costa Pereira, havia o importante Éden Parque, arborizado com castanheiras e com uma palmeira imperial. Esse espaço também contava com dois galpões: um com palcos para espetáculos, festas e bailes de carnaval e outro para o encontro de jogadores de bilhar, políticos e pescadores.
48A construção do Parque Moscoso, inaugurado em 1912, esteve ligada à prática sanitarista de eliminação de alagados. Havia de fato, uma nova demanda por equipamentos de lazer e por novos loteamentos. O Parque Moscoso, segundo Castello (2007), tornou-se rapidamente um novo cartão postal para a cidade, uma vez que dispunha de ilhotas artificiais, fontes, « ruínas » neoclássicas e pontes de troncos que acabavam por encantar a todos que o visitavam. Ao mesmo tempo em que os espaços se esgotavam nas áreas centrais e a região do Parque Moscoso era urbanizada, outras frentes de ocupação surgiam, como é o caso da Praia do Suá (figura 2).
49No entorno do Parque Moscoso, desenvolveram-se o Clube Vitória e o dos Boêmios, fortalecendo os momentos hedonísticos das classes abastadas moradoras do entorno do parque. Derenzi (1995) expõe que as competições de futebol amador entre os dois clubes eram frequentes. Nesse mesmo período, a vida intelectual florescia.
FIGURA 2 - Vista parcial do Parque Moscoso nos anos 1930
Fonte: gazetaonline.globo.com. Acesso em 15/09/2014.
50Na década de 1920, Vitória experimentou mudanças morfológicas importantes, que deram fim ao Éden Parque, sucedido por um aterro para a construção da atual Avenida Jerônimo Monteiro e para a construção da Praça Costa Pereira no local. Na administração de Florentino Avidos (1924-1928), mudanças importantes ocorreram:
A morfologia da cidade foi alterada radicalmente: retificação, alargamento e abertura de novas ruas. Drenagem, pavimentação, reforço do abastecimento de água, redes de esgotos. Núcleos residenciais. Edifícios públicos. Cais do porto. Ponte sobre a baía (Ponte Florentino Avidos). Iluminação em combustores custosos, passeios de ladrilhos, jardins e monumentos. Estradas suburbanas, escadarias monumentais, viaduto e um cheiro de limpo de tinta fresca e cimento fundido (DERENZI, 1995, p.180).
51O grande isolamento fazia do lazer de Vitória único. O divertimento acontecia nas calçadas, nos cafés, nos clubes, nas confeitarias, nas praças e nos parques. Os clubes da cidade, onde ocorriam os torneios de futebol eram as principais formas de diversão da população. Em especial a cidade permanecia refém/aliada ao mar e às montanhas, espremida entre os rochedos do maciço central, vivenciando um cotidiano típico de cidade do interior e ainda cheia de vida. « A cidade era simples, romântica, muito graciosa, e, embora contasse com pouquíssimos pontos de maior diversão, toda a população, mesmo assim, se sentia plenamente gratificada diante da beleza do cenário local ». (ELTON, 1984, p 16).
52Entre o início e a metade do século XX o desenvolvimento oriundo da modernidade chegou à cidade de Vitória, colocando o projeto Novo Arrabalde, de Saturnino de Brito, em prática. A área do projeto, localizada na região leste, antiga Praia Comprida (atual bairro Praia do Canto), pode ser comparada a um subúrbio edificado para os de alto poder aquisitivo que buscavam no « arquétipo mar » um ideal para a qualidade de vida.
53Pode-se pressupor que a prática de lazer ligada aos banhos de mar ganhou força nesse período da história da cidade. Em especial na região da Praia do Canto, que passou a ser um novo point para os jovens e turistas. Ainda neste bairro, é importante destacar a presença do Praia Tênis Clube, o qual promovia domingueiras e gincanas semanais, chamadas de Jogos Praianos (CASTELLO, 2007). Os clubes de futebol da época também eram tidos como importantes pontos de lazer, havendo intensas disputas, que atraíam multidões para assistir jogos de futebol entre o Rio Branco e o Vitória, além das competições de regatas e de remo disputadas entre o Clube Álvares Cabral e o Clube Saldanha da Gama, referências locais em esportes náuticos (SALLES, 1996).
54O processo de reurbanização e ampliação da mancha urbana de Vitória, até meados do século XX, tentou tirar de Vitória os aspectos coloniais, tão marcantes na « cidade presépio » até o final do século XIX. A partir daí, a cidade passou por um processo de modernização, construção de novas edificações, aterramentos, abertura de novas vias, mesmo que de maneira lenta, buscando quebrar o vínculo com o passado colonial (CASTELLO, 2007).
55A partir da década de 1960, a cidade de Vitória passou por importante crescimento econômico, incorrendo na vertiginosa ampliação demográfica nas décadas seguintes. A implementação de grandes projetos industriais, como o Porto de Tubarão (1966) e a produção industrial de minério de ferro, a partir de usinas de pelotização (1969), aliados à crise do café, instaurada no interior, trouxeram importante contingente de trabalhadores para a capital. Esse processo fez a cidade de Vitória crescer para o norte, além dos limites no Novo Arrabalde. A região continental da ilha passou ser ocupada e novos loteamentos foram criados (IPES, 2001)
56Os novos interesses políticos e econômicos advindos de uma nova fase resultaram no novo aspecto de Vitória, transformando-a, enfim, no principal centro econômico do estado. Os projetos de urbanização não pouparam o suporte biofísico da cidade, além de não planejarem a inclusão dos mais pobres. Por outro lado, a cidade experimentou, a partir desse período, intenso crescimento cultural e de equipamentos urbanos de lazer, advindos da demanda da sociedade abastada que se formava em novas frentes de ocupação nobres da cidade, em especial, ao longo da orla marítima.
57Nesse contexto, emergiam como importantes atores sociais os estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo, fundada em 1954. Esses reivindicavam mais lazer, como música, cinema e teatro. A agitação cultural da cidade tinha seu foco em livrarias, como a Ancora, no Centro, nos bares da região da Vila Rubim, também próxima ao Centro. Apesar da valorização experimentada pelas novas frentes de urbanização da cidade, até a década de 1980, o Centro continuou como importante ponto de encontro e lazer, pois ainda abrigava salas de cinema (São Luiz, Glória, Paz e Santa Cecília), teatros (Carlos Gomes e Glória), praças e bares.
58A partir da década de 1980 a vida social se transferiu para a orla norte da cidade, com o crescimento do setor terciário nessa área, mas também em função de grandes áreas públicas ajardinadas e dotadas de equipamentos de lazer. Surgiram os primeiros shoppings centers da cidade, tornando comum a prática do lazer ligado às compras em ambientes fechados. Além disso, continuou o lazer ligado ao encontro nas ruas, nos bares, os banhos de mar e a ida aos clubes, como o Álvares Cabral e o Praia Tênis Clube nessa região (CASTELLO, 2007).
59Os novos projetos de urbanização foram, portanto, geograficamente destinados a um público seleto em termos de renda, contando com saneamento básico e toda infraestrutura necessária à moradia com um estilo diferenciado. Nas palavras de Mendonça (2005, p. 3)
Na categoria de obras complementares, a urbanização da orla, repetindo o modelo carioca do calçadão, integrou a caracterização da região leste de Vitória no contexto da praia urbana. A partir da década de 1980 o parque urbano linear passou também a compor este contexto [...] Deste modo, a presença da infraestrutura urbana de toda ordem, e em especial a relacionada aos embelezamentos urbanísticos, favoreceu a valorização da praia urbana em Vitória, neutralizou o interesse imobiliário anteriormente dirigido ao Centro e realçou o contraste com a região de manguezal, característica da orla oeste do município.
60Nesse mesmo período, portanto, as características de composição das práticas de lazer começam a se transformar, tomando características próprias de grandes metrópoles. O incessante investimento privado na construção de shopping centers marca uma nova etapa em termos de opções de lazer na cidade. Ao mesmo tempo, a degradação urbana, as questões relacionadas à violência, o individualismo marcando a auto-segregação, além da construção de equipamentos específicos de lazer, afastou aos poucos os citadinos da vida cotidiana nas ruas e das práticas de banho de mar.
61Foi na administração municipal do período 1985-1989, que os investimentos em espaços públicos de lazer foram retomados, com a construção da Praça dos Namorados e da Praça dos Desejos no bairro Praia do Canto. Percebe-se que nos anos de 1990 ampliou-se em muito os espaços públicos de lazer na cidade de Vitória, conforme Tabela 1, onde estão elencados os principais lugares/equipamentos disponíveis para as mais diversas atividades.
TABELA 1 - Espaços Públicos de Lazer na Orla Leste de Vitória
Fonte: Secretaria de Esportes e Turismo da Prefeitura de Vitória, 2014
Organização: os autores
62Além disso, na zona sul da cidade, em área de aterro feito pela COMDUSA (Companhia de Melhoramentos e Desenvolvimento Urbano), foi construído o Parque Tancredo Neves (Tancredão) e o Sambão do Povo.
63O parque está localizado na orla da baía de Vitória e ele finda na alça viária próxima do terminal rodoviário. Com mais de 53 mil metros quadrados de área, o novo Tancredão, como é conhecido, tem como sua principal construção o ginásio de esportes, que acomoda mais de 1,7 mil pessoas e pode receber também apresentações musicais. O parque possui pista de skate, ciclovia, piscinas, quadras esportivas, campos de futebol de areia e society, garagem de barcos, estacionamento e refeitório que atende aos seus funcionários. Segundo os construtores, o projeto teve pequenas alterações, mantendo em sua essência as necessidades de lazer, esporte e ócio da população e ainda contribuir com o patrimônio público da cidade. Nele há duas áreas dominantes: uma delas concentra os locais de lazer e recreação (por isso mesmo com características mais comumente associadas às de um parque) e a outra agrupa as massas edificadas, onde estão posicionados equipamentos e prédios para esportes, sobretudo voltados para treinamentos de profissionais que competem nacional e internacionalmente, além de competições.
64É importante ressaltar, que a área da cidade onde foram construídos o Parque Tancredo Neves e o Sambão do Povo, fazia parte de uma região ocupada por moradores de camadas mais pobres da cidade. No período anteriormente mencionado, observa-se o crescimento da mancha urbana da cidade na porção oeste, e uma pressão maior sobre o ecossistema manguezal distribuído nessas áreas. A falta de áreas para criar espaços públicos de lazer e edificar novos equipamentos urbanos (bens e serviços públicos), demandou o aterramento desta área, servindo também, como uma maneira de melhorar os aspectos urbanos da principal via de entrada da cidade. O projeto foi abandonado por um tempo, mas suas obras foram retomadas em 2005 e concluídas em 2012.
65Outra importante área que sofreu intervenção durante o período, foi a orla do bairro Praia do Canto, resquício artificial do aterramento do Projeto Novo Arrabalde. Essa área também demandava a construção de equipamentos de lazer voltados à população de renda elevada. Para tanto, nesse espaço foram construídas as Praças dos Namorados e dos Desejos (figura 3). Esse espaço foi reurbanizado através do Projeto Orla Marítima, passando a contar com calçadão, quadras de futebol e de tênis, pista de skate, playground e lanchonetes. Além disso, a praça é conhecida por abrigar a Feira de Artesanato e Artes aos finais de semana e áreas de brinquedos infantis. Essa feira começou a ser implementada há cerca de 20 anos e conta com diversas barraquinhas de alimentação, artesanato e brinquedos à venda (PMV, 2014).
FIGURA 3- Área correspondente às praças dos Namorados e dos Desejos em 2014
66Além das duas praças, o projeto Orla Marítima criou a Praça da Ciência, localizada nas adjacências da Praça dos Desejos. Essa praça possui uma proposta de lazer de cunho educativo. Trabalha-se várias disciplinas do currículo escolar por meio de equipamentos/brinquedos específicos. Sendo assim, o Projeto Orla Marítima, da administração municipal do período de 1997-2004, teve importante papel na reurbanização da orla leste de Vitória, uma vez que dotou de novas infraestruturas de lazer os bairros Praia do Canto. Nos bairros Jardim da Penha e Jardim Camburi, quase 5 quilômetros de orla passaram por renovação (figura 5), além do bairro Enseada do Suá, marcadamente áreas consideradas nobres da capital, isto é, que abrigam moradores de médio a alto poder aquisitivo.
67Do exposto neste texto, é interessante destacar alguns pontos importantes acerca da temática lazer na cidade contemporânea. Primeiro, reforçar o pensamento que a visão do capitalismo atual tem sobre a não relevância que o lazer significa na vida dos indivíduos, sobretudo os trabalhadores submetidos às estafantes cargas horárias de trabalho. Trata-se de um pensamento retrógrado e não moderno, posto que há tempos sabe-se das potencialidades produtivas de um trabalhador que usufrui de momentos de lazer e descanso.
68Não menos significante é o fato de que os governantes das cidades brasileiras não trabalham no sentido de melhorar as condições de infraestrutura a favor da ampliação do exercício da cidadania através, por exemplo, da oferta de mais espaços públicos voltados para o lazer dos citadinos.
69Com relação ao panorama mostrado aqui tendo como objeto de estudo os vários momentos da construção de espaços públicos de lazer em Vitória-ES, tem-se a destacar que são grandes as desigualdades na oferta e distribuição desses espaços de lazer para a população, realidade comum nas cidades brasileiras. Há bairros, e até mesmo enormes porções da cidade, onde os equipamentos públicos ou privados de lazer são limitados, enquanto em outros não há limitação de área e de investimentos públicos. Como exemplo, pode-se citar as orlas nordeste, dotada dos mais diversos tipos de equipamentos e a orla noroeste, que carece de investimentos públicos na implantação de equipamentos de lazer.
70Apesar de acanhada, a relação do citadino de Vitória com o mar sempre foi presente, seja pelo contato com o comércio, com os navios, pelas marés cheias que invadiam as ruas, criando alagados. No que diz respeito às atividades de lazer, os quiosques, os banhos de mar e os esportes náuticos se fizeram fortemente presentes na ilha entre o final do século XIX e início do século XX. Observou-se também, que o ambiente da orla, na atualidade, acaba sendo subutilizado, porquanto foi relegada por muitas administrações públicas, culminando num processo de degradação ambiental e humana grave. Trazer um novo vigor para a orla significa integrá-la ao meio em que ela está inserida, humanizando-a através do estabelecimento de uma ligação entre o meio natural e o homem. Não obstante, é de bom tom frisar que a vida de muitos trabalhadores desses ambientes depende, exclusivamente, daquilo que a baía de Vitória e o mar proporcionam.
71Historicamente, a todo momento a subtração da baía de Vitória, esteve presente na vida da cidade, culminando em orlas reurbanizadas. As maiores intervenções ocorreram durante a implementação do Projeto Novo Arrabalde, constituindo uma nova paisagem à ilha, com novas frentes de ocupação e de orlas propícias para a prática do lazer, uma vez que o projeto preconizou a construção de vias de circulação ao longo de toda a orla leste. Outros projetos de infraestrutura e reurbanização surgiram para aquilatar a relação do citadino com o mar, como o Projeto Orla Marítima e o Projeto Terra.
72Vitória, por se tratar de uma ilha, tem poucas possibilidades de expansão do seu território. Nas décadas de 1970 e 1980, houve um rápido crescimento de moradias destinadas à classe média, e em boa parte aos empregados das indústrias que estavam em fase de implantação, assim como todo tipo de infraestrutura habitacional concentrada na orla leste da cidade.
73Contrário a isso, não houve qualquer preocupação referente à adoção de políticas de urbanização e de habitação nas regiões oeste e noroeste da orla do manguezal, destinadas aos trabalhadores de baixa renda, que em grande medida eram os migrantes vindos do interior e dos estados vizinhos (MG e BA), atraídos pelos novos empregos. Ou seja, outra realidade socioespacial se constituiu para as regiões oeste e noroeste de Vitória, fruto do tratamento desigual que os agentes públicos dispensam à cidade e aos citadinos. No que tange aos projetos de urbanização e as políticas de lazer, idealizados e implantados por agentes públicos voltados para as populações de baixo poder aquisitivo, coube a outro importante projeto, o Projeto Terra, a reurbanização de extensas áreas surgidas após constantes aterros sobre o manguezal, processo analisado em outro trabalho.
74Em bairros ou regiões onde o Poder Público não se fez presente, é comum observar práticas de lazer alternativas, desenvolvidas nas próprias ruas e calçadas dos bairros. É a criatividade e a espontaneidade, apontadas por Santos e Volgel (1985) que predominam nos bairros. Ademais, é preciso afirmar que os moradores desses bairros clamam pela chegada do Poder Público, através de melhorias urbanas e de equipamentos públicos de lazer. Dentre as demandas, podem-se destacar: parques, praças, calçadões para caminhadas ao ar livre, urbanização de orlas, ciclovias, playgrounds, bem como, academias populares, além de uma política de animação cultural, que leve vida para esses espaços; caso realizados sem o estabelecimento de uma conduta do Poder Público para animá-los, podem acabar esquecidos. Dessa forma, é importante reiterar a necessidade de se construir equipamentos que mantenham um vínculo com as comunidades locais, para que as crianças, adultos e idosos, desenvolvam as mais diversas práticas de lazer.
75Diante do exposto, tal desigualdade socioespacial se repete na distribuição do lazer na cidade de Vitória, posto que se percebe a concentração de espaços, de equipamentos e de serviços relacionados ao lazer nas porções geográficas cujos bairros abrigam as classes sociais com maior poder aquisitivo, como é o caso da orla nordeste da cidade. Cabe frisar que trazer um novo vigor para as orlas não apropriadas e não reurbanizadas pelo Poder Público, significa integrá-la ao meio em que ela está inserida, humanizando-a através de uma ligação entre o meio natural e o homem. Esses espaços surgem como um « campo potencial de construção de identidades, descoberta de potencialidades humanas e exercício de inserção efetiva nas relações sociais » (BRENNER; DAYRELL; CARRANO, 2005, p. 176).