1Esta entrevista teve como objetivo conhecer a trajetória pessoal e profissional da professora Aurélia Hermínia Castiglioni. Ao mesmo tempo, considerando a relevância dos momentos históricos na forma de pensar, agir e produzir conhecimento, a entrevista foi vista como uma excelente oportunidade para dialogar sobre temas relevantes do presente, buscando compreender como os mesmos se apresentavam algumas décadas atrás, no período de formação e de início de atividade da professora.
2Para tanto, foi reunida esta equipe, composta pelos autores da entrevista, para debater e elaborar perguntas que permitissem atingir os objetivos, considerando o papel relevante da sua atuação nas últimas décadas no Departamento de Geografia, no Programa de Pós-graduação em Geografia e em outras instâncias da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Foram elaboradas perguntas que tocaram, no viés da trajetória, em temas como a influência de ser mulher no processo educacional e profissional e, em relação à experiência como professora e pesquisadora, a leitura sobre os estudos quantitativos na Geografia e a influência da crítica a eles na sua trajetória, tendo em vista a abordagem metodológica predominantemente quantitativa das suas pesquisas.
3A entrevista, portanto, foi realizada a partir de um questionário semi-estruturado, enviado previamente à entrevistada. A sua condução foi realizada pelo professor Ednelson Mariano Dota, contudo, acompanhado pela equipe que complementou o diálogo em momentos oportunos.
4Nos reunimos no dia 25 de outubro de 2023, em uma tarde chuvosa em Vitória para a entrevista. Escolhemos uma sala de aula de um dos blocos da Pós-Graduação do Centro de Ciência Humanas e Naturais da Ufes, espaço familiar onde a professora se sente confortável. Junto aos seus pertences, Aurélia trouxe anotações e informações para complementar as suas respostas, previamente elaboradas por ela. A entrevista teve duas horas de duração.
5O cuidado e preparação prévia das respostas são condizentes com o que se observa da professora nas atividades cotidianas do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGG) da Ufes. Encerrando no ano de 2014 às suas atividades de magistério na Graduação de Geografia, a professora se mantém ativa no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGG), realizando pesquisas, ministrando disciplinas, orientando alunos de mestrado e doutorado, além de contribuir nas atividades administrativas.
6Aurélia, ao longo de sua trajetória profissional, deu contribuições relevantes em todas as frentes em que atuou. Fez pesquisas inovadoras no campo das migrações, com destaque para a sua dissertação (Migrações internas no Brasil, de 1984) e tese (Migração, urbanização e desenvolvimento: o caso do Espírito Santo, de 1989), realizadas na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, num período em que poucas eram as contribuições sobre essas temáticas no Brasil. Na década de 2000, deu relevante contribuição sobre as migrações internacionais históricas no Espírito Santo, sobretudo de italianos.
7Apesar do foco mais evidente nas migrações, internas e internacionais, sua produção também debate temas como envelhecimento, indicadores sociais e reflexões sobre as transições que marcaram as transformações territoriais no Brasil ao longo do século XX, sobretudo a demográfica e a urbana.
8Na análise da trajetória profissional da professora Aurélia os elementos tangíveis são facilmente identificados: até fevereiro de 2024 foram 8 teses e 14 dissertações orientadas e uma em andamento, 16 trabalhos de conclusão de curso e 10 iniciações científicas, em cursos como Economia, Estatística e Medicina, além da Geografia, departamento de vínculo. Publicou também 16 artigos em periódicos, 4 livros e 12 capítulos de livros.
9Em relação aos elementos intangíveis, mais difíceis de serem mensurados, mas não menos importantes, sua contribuição também foi ampla. Considerando a extensa formação de recursos humanos através das orientações, Aurélia assume posição de destaque no Espírito Santo, ao formar profissionais que atualmente estão na gestão pública, em universidades como professores e pesquisadores, além da sua atuação na dinâmica interna da universidade.
10Destacamos que a criação da Universidade Federal do Espírito Santo ocorreu em 5 de maio de 1954 e hoje conta com quatro campi universitários localizados em Goiabeiras e Maruípe, Vitória; nos municípios de Alegre, no sul do Estado; e São Mateus, no norte capixaba (Cf.: https://www.ufes.br).
11Mais especificamente, os cursos de Bacharelado e Licenciatura em Geografia foram implementados nos anos de 1955 e 1956, respectivamente. A Pós-Graduação teve seu início em 2008, oferecendo o Mestrado Acadêmico em Geografia, sob a coordenação da Professora Aurélia Hermínia Castiglioni e do Coordenador-Adjunto Cláudio Luiz Zanotelli durante o período de instauração, de 2008 a 2011. A modalidade de Doutorado em Geografia foi inaugurada posteriormente, em 2015 (Cf.: https://geografia.ufes.br).
12Na gestão, contribuiu para o fortalecimento da pesquisa e formação docente, atuando em cargos administrativos que visavam o incentivo à qualificação de professores e gestores da universidade, em período em que a for mação ao nível de pós-graduação era exceção. Além destes períodos, Aurélia ocupou o cargo de Pró-Reitora de Pós-Graduação da Ufes entre 1996 e 2000 e, posteriormente, foi coordenadora do Programa de Pós-graduação em Geografia entre 2007 a 2011.
13Ainda na gestão, destaca-se também o « Estudo da viabilidade da implantação de cursos noturnos no Centro de Estudos Gerais da Ufes ». Este documento foi um marco no processo de expansão do Centro de Estudos Gerais, atual Centro de Ciências Humanas e Naturais (CCHN - Borgo, 2014), o maior centro da universidade. Como ressaltado por Dota (2023a), o trabalho da professora « pavimentou » um caminho que, indiretamente, permite a existência de pesquisas sobre a geografia da população no Departamento de Geografia da Ufes, abordagem pouco empreendida nos programas de pós-graduação em geografia no Brasil por movimentos históricos da própria Geografia enquanto ciência (Dota, 2023b).
14A entrevista proporciona uma visão abrangente, desde sua infância em Itapina, no interior do Espírito Santo, até as suas perspectivas profissionais atuais. Ao longo da mesma, investigamos suas experiências e abordamos a compreensão da interação entre a Geografia da População e a Demografia, que apresentam interfaces, mas também diferenças marcantes.
15Importante destacar a importância do contexto, temporal e espacial, na conformação das trajetórias e de como são vividas as experiências no processo de geração de conhecimento e produção científica. Os apontamentos explicitados pela professora ressaltam que esses elementos, tão relevantes nos estudos populacionais, também moldam nossas trajetórias de maneiras que nem sempre são evidentes, mas merecem consideração.
16Esta entrevista, por fim, permite refletir sobre a trajetória pessoal e profissional como resultado de decisões individuais e familiares, de um lado, e por políticas e questões estruturais e conjunturais, de outro, oferecendo uma excelente oportunidade para reflexão através da história de vida de uma profissional competente e querida nos espaços da Universidade Federal do Espírito Santo e da Associação Brasileira de Estudos Populacionais.
Ednelson Mariano Dota e equipe (EMDe) – Professora Aurélia, iniciamos agradecendo a sua disponibilidade de conversar e responder essas perguntas, acerca da sua trajetória de vida enquanto professora e pesquisadora. Em um contexto geohistórico, como foi a sua infância em Colatina, no estado do Espírito Santo?
Aurélia Hermínia Castiglioni (AHC) – A história da minha família no Brasil remonta à década de 1890, quando as famílias dos meus bisavós chegaram do norte da Itália e se estabeleceram na zonal rural do estado. Meus pais, quando se casaram, foram morar em Itapina, vila que ocupava posição de destaque com relação aos meios de transporte da época, pois congregava o transporte fluvial e o ferroviário e prosperava com o comércio do café, a base da economia do estado. Meu pai trabalhou como empregado no comércio e depois abriu seu próprio negócio, uma loja de secos e molhados. Mais tarde ampliou suas atividades com uma nova loja de tecidos, calçados, presentes, daquelas lojas do interior que oferecem uma multiplicidade de artigos. As relações na comunidade ultrapassaram os limites familiares, inserindo-se em uma rede complexa que envolvia parentes, amigos e conhecidos.
Em Itapina viviam famílias de imigrantes italianos e alemães, que tinham pequenas propriedades e comerciantes sírio-libaneses. Os moradores utilizavam frequentemente as línguas de origem em suas conversas. O ambiente da época da minha infância e adolescência, era o de uma sociedade de bases fortemente rurais, com modelos familiares amplos, que marcam a etapa da transição demográfica, em que a fecundidade era elevada. Nesta época, cerca de oitenta por cento da população do Espírito Santo morava na zona rural e as famílias trabalhavam na agricultura centrada na cultura do café. Os povoados e vilas figuravam como pontos de comércio e de encontro das famílias de pequenos proprietários e de colonos que habitavam no entorno. A vila fervilhava, sobretudo aos sábados e domingos, com o forte afluxo dos habitantes rurais para as compras semanais, atividades religiosas, festas, leilões e jogos. Este ambiente me parece hoje surreal, pois essas características, então presentes em todo o interior do estado, desapareceram completamente em consequência das transformações ocorridas no Espírito Santo ao longo da segunda metade do século XX, decorrentes das mudanças da estrutura socioeconômica que marcaram a passagem do modelo da sociedade tradicional, rural, para a sociedade urbano-industrial.
As influências do modelo familiar e do contexto de origem constituem traços fundamentais na minha formação e dirigiram as minhas escolhas. Sou a segunda dos dez filhos que meus pais tiveram, nove mulheres e um homem. A educação tradicional da família de imigrantes e da comunidade era alicerçada nos pilares família, trabalho e compromisso e estes valores sempre pautaram a minha vida.
A seguir, a Figura 1, referente uma fotografia da casa e dos integrantes da família Castiglioni.
FIGURA 1 – Casa e integrantes da família Castiglioni, em Itapina
Fonte: Acervo Pessoal da entrevistada, meados da década de 1970.
Sinto-me privilegiada pela prioridade que meus pais estabeleciam com relação à instrução dos filhos. Os filhos de imigrantes fizeram um grande esforço para propiciar aos descendentes as oportunidades de estudo que não tiveram e colocaram a educação desses como a meta mais importante de suas vidas.
O ensino dos níveis ginasial e médio era oferecido em colégios particulares mantidos, em geral, por congregações religiosas, com sistemas de internatos exclusivos para meninos ou meninas. Em Itapina só havia o curso primário e muito cedo tive que sair de casa para cursar o ginásio na Escola Nossa Senhora do Carmo, uma escola tradicional de Freiras Carmelitas situada em Aimorés, em Minas Gerais. A vida no internato era muito metódica para crianças, mas lá se adquire não somente uma boa base de conhecimentos como também disciplina e organização.
Em Aimorés concluí o primeiro grau e cursei o Magistério, que na época era a oportunidade que se apresentava para prosseguimento dos estudos para as mulheres. Estava assim determinada a minha carreira. Sem escolhas, mas, ou por aprendizado, ou por vocação, eu não poderia me imaginar atuando em outro campo profissional.
EMDe – Por que escolheu cursar Geografia e depois enveredar pelos espaços da Demografia? Gostaríamos de ouvir sobre sua trajetória profissional.
- 1 Programa de Expansão e Melhoria de Ensino (PREMEN) criado em 1972.
AHC – A minha relação com a Geografia vem do início da minha carreira. Logo após o término do Curso de Magistério, iniciei minhas atividades didáticas como professora do Ensino primário e de Geografia no ginásio em Itapina. Nessa época as oportunidades para cursar Ensino Superior eram fortemente concentradas em Vitória, na Universidade Federal do Espírito Santo, que foi por muitas décadas a única universidade do estado. A partir dos meados da década de 60, Cachoeiro de Itapemirim e Colatina começaram a oferecer cursos de licenciatura. Para os que moravam e trabalhavam no interior do estado e nas áreas próximas situadas nos estados vizinhos, a abertura destes poucos cursos representou uma oportunidade preciosa para prosseguimento dos estudos. Foi assim que compatibilizei as atividades docentes que exercia em Itapina, com o Curso de Geografia realizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina. A conclusão do curso na Faculdade abriu perspectivas que me possibilitaram vislumbrar novas oportunidades profissionais. Prestei o concurso para o PREMEN1 que oferecia treinamento para professores das Escolas Polivalentes e frequentei o curso de « Reciclagem » PREMEN/Ufes. Na turma seguinte, em 1974, coordenei o curso e dei aulas de Prática de ensino. Esta experiência me valeu um posto na equipe de Currículo do Ensino de Segundo Grau da Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo que executava projetos do Ministério da Educação.
Em 1977, comecei a dar aulas na Ufes. Poucos docentes da universidade tinham pós-graduação, mas se dedicavam completamente e com muito empenho às tarefas docentes. Nesse contexto, gostaria de destacar um exemplo marcante que guardo desta época, da Prof.ª Lúcia Alves Corrêa, pela dedicação incansável e irrestrita às atividades do Departamento de Geografia, pelo profissionalismo e seriedade na condução da sua vida profissional, pelo rigor necessário, mas, sobretudo, pelo respeito e atenção aos alunos.
No fim da década de 70, iniciou-se a implantação do programa de capacitação de docentes. Naquela época, não havia ainda a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, apenas um setor de planejamento. Esse setor elaborou o primeiro plano de capacitação de docentes, e fui indicada pela professora Ilza Bittran para fazer parte desse grupo. Naquele período, havia recursos e muito apoio investidos nessa área. A partir desse contexto, houve um significativo incremento no número de mestres e doutores, criando as bases para o desenvolvimento da pesquisa e da pós-graduação.
No que diz respeito à escolha da minha própria qualificação, os estudos de população me atraíam. Isso se deve ao fato de que permitiam transitar entre vários campos, aplicar métodos estatísticos à área humana e social, e analisar os fatos integrando o qualitativo e o quantitativo.
EMDe – Seu mestrado e doutorado foram realizados na Bélgica. Por que a Bélgica? Conte para nós um pouco da sua vida e das suas pesquisas nesse período. Cogitou não retornar para o Brasil?
AHC – A qualificação de docentes era um dos principais objetivos das instituições superiores federais desde a década de setenta. Em 1978 a Ufes contava com 15,8% de docentes titulados com nível de pós-graduação stricto sensu. Era preciso formar e qualificar recursos humanos para assegurar a melhoria do ensino e ampliação da pós-graduação e da pesquisa. Incentivada pelo Departamento de Geografia, pesquisei sobre as possibilidades de cursos na área de estudos populacionais. Fui aceita no Mestrado em Demografia da Universidade Católica de Louvain (UCL), a mais antiga instituição de ensino da Bélgica, criada em 1425.
O mestrado da UCL era organizado em dois níveis. O primeiro ano, denominado Diplôme en Démographie, tinha por objetivo formar tecnicamente o Demógrafo, qualificando-o para trabalhar na produção e análise de dados populacionais. Este curso formava recursos humanos para atuarem em países em desenvolvimento, sobretudo em países da África, muitos dos quais não dispunham de sistemas de dados e sem a experiência de um recenseamento.
- 2 Doutora em Demografia. Professora Emérita da Universidade Católica de Louvain, na Bélg (...)
A aprovação no Diplôme en Démographie habilitava o candidato a se inscrever no segundo ano de Mestrado, que prosseguia com mais cursos e com a elaboração e defesa de uma « thèse de maîtrise ». Com a orientação da Professora Josianne Duchêne2 desenvolvi estudo para descrever e explicar as migrações internas no Brasil, tema que era de interesse da minha área de atuação na Ufes, e que, por outro lado, estava relacionado à realidade que o Brasil vivenciava na época, de intensa migração interna.
A seguir, a Figura 2, ilustrativa sobre o seu período de pós-graduação.
FIGURA 2 – Turma de Demografia, em Louvain
Fonte: Acervo pessoal da entrevistada, 1988.
- 3 Doutor em Demografia. Professor Emérito da Universidade Católica de Louvain, na Bélgic (...)
O doutorado representou um prosseguimento do mestrado. Na UCL o doutorando participava das atividades do departamento, tinha boas condições para desenvolver o trabalho, o que incluía um excelente suporte técnico. Sob a Orientação de Josianne Duchêne e tendo como co-orientador o Prof. Michel Poulain3, desenvolvi a tese denominada: « Migration, urbanisation et développement: le cas de l’Espírito Santo ».
Segundo os princípios teóricos, a migração é um investimento que envolve custos, mas produz benefícios, tanto mais importantes quanto maior for a distância percorrida no deslocamento. Os ganhos da minha própria migração internacional para estudo foram significativos. Além da formação e crescimento acadêmico, tive a chance de viver em outro país e ter a possibilidade de trocar ideias e experiências com pessoas de diferentes formações e culturas, muito numerosas em Louvain. Mas os custos fazem também parte da experiência. Viver em outra sociedade demanda aprendizado, integração, aceitação das diferenças. Estudar em outra língua e adaptar-se ao disciplinado sistema de ensino europeu são dificuldades superadas com a prática do dia a dia. Os custos incluíam evidentemente a falta do ambiente familiar e social da região de origem.
FIGURA 3 – Infográfico dos fluxos migratórios de Aurélia Hermínia Castiglioni
Fonte: Elaboração dos autores, 2024.
Pela segunda vez me senti privilegiada em minha vida, com a oportunidade de capacitação profissional que o país e a Ufes me proporcionaram, estudar na Universidade de Louvain representou para mim uma experiência única e inesquecível. A formação acadêmica em Demografia ocorria em um ambiente científico estimulante, que tinha como protagonistas professores eminentes no campo da Demografia, estudantes de origem e cultura diferentes. Neste ambiente, o período que passei na UCL, foi importante para minha formação profissional, mas foi também a ocasião de vivenciar uma excelente experiência cultural e humana.
A conclusão do doutorado constituiu um ponto marcante na minha trajetória acadêmica. Encerrava-se um importante período de minha formação, imprimindo novos rumos à vida profissional e aos papeis que desempenharia a seguir.
Fui convidada para trabalhar em projetos de pesquisa na UCL. Tinha grande apreço pelo curso e pelo pessoal de Louvain, mas era professora concursada na Ufes, e tinha o compromisso em dar retorno em trabalho acadêmico do tempo em que fui liberada de minhas funções para cursar pós-graduação, além dos meus estreitos vínculos familiares.
A seguir, a Figura 4, imagem do dia da defesa pública da tese da professora.
FIGURA 4 – Defesa pública da tese
Fonte: Acervo pessoal da entrevistada, 1989.
EMDe – No retorno, notou diferenças entre as pesquisas e a forma que a Demografia estava sendo feita no exterior e no Brasil?
AHC – Quando retornei, o número de demógrafos que atuavam no país era reduzido. A formação em Demografia era oferecida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e depois na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Os quadros docentes desses programas eram compostos em sua maioria por professores formados no exterior, e as pesquisas e trabalhos em geral aplicavam os conhecimentos adquiridos nessas instituições. O número de pesquisadores e professores da área e a produção científica cresceu significativamente nas décadas seguintes, com o efeito multiplicador impulsionado pela formação no país, que possibilitou a capacitação de um número crescente de pós-graduandos da área.
EMDe – Quais foram as suas maiores alegrias e arrependimentos em relação a sua carreira profissional? Qual obra e/ou ação realizada que considera a mais relevante em sua carreira?
AHC – Foi um período importante de ensino e aprendizagem. Considero as relações com meus alunos e o acompanhamento do crescimento de cada um e conquistas como sendo as gratificações mais importantes da minha carreira de professora. Isto assume dimensões particulares com os orientandos, com os quais se desenvolvem relações mais estreitas. Sinto muito orgulho do trabalho realizado por cada um deles.
A seguir, a Figura 5, uma imagem da professora Aurélia com os seus orientados.
FIGURA 5 – Prof.ª Aurélia com seus orientandos no V Seminário de Estudos da Pós-Graduação em Geografia da Ufes
Fonte: Acervo pessoal da entrevistada, 2018.
Na área profissional, foram duas as ocasiões que gostaria de ter vivenciado e não pude. A participação do projeto sobre migração e urbanização, com orientação do Professor Marc Termote do Curso de Demografia da Universidade de Montreal, pois na época, fui convidada e assumi como Pró-Reitora de Pós-Graduação. A segunda foi a de não realizar o Pós-doutorado do INED, Institut National d’Études Démographiques, da França.
- 4 CASTIGLIONI, Aurélia H.; REGINATO, Mauro. Imigração Italiana no Espírito Santo. O banc (...)
Quanto às obras, em relação ao caráter científico, minha publicação mais importante é a tese de doutorado « Migration, urbanisation et développement: le cas de l’Espírito Santo » publicada pela CIACO, Bélgica. Em relação à repercussão, destacam-se as publicações que apresentam os resultados da pesquisa sobre a imigração italiana no Espírito Santo, publicados no livro: « Imigração Italiana no Espírito Santo: o banco de dados » e apresentados no banco de dados « Italiani nel mondo. Le banche dati sugli emigrati italiani negli Stati Uniti, Argentina e Brasile »4, disponível para consulta no site da Fondazione Agnelli, Itália. Os descendentes dos imigrantes italianos que se estabeleceram no Espírito Santo encontram nessas obras informações sobre suas famílias, às quais a maioria dos descendentes não tinha acesso.
No decorrer da pesquisa por vezes o pesquisador se depara com fatos não previstos, que fornecem pistas interessantes para novos trabalhos. Informações encontradas no levantamento de dados dos imigrantes italianos, efetuado em documentos do Arquivo Público do Espírito Santo, revelaram a existência de uma corrente migratória de imigrantes oriundos de San Marino, imigração pouco conhecida, frequentemente confundida com a imigração italiana, que não aparecia nos trabalhos. Os imigrantes transferidos para o Espírito Santo em um curto período de nove meses, em 1895/1896 representavam 4,9% da população da pequena República de San Marino. No Espírito Santo esses imigrantes se dirigiram para uma área formada por Muqui, Mimoso do Sul e Cachoeiro de Itapemirim, onde vive atualmente a grande maioria dos descendentes de san-marinenses que se estabeleceram no Brasil. Ao longo do tempo os descendentes destes imigrantes, vindos de uma república situada entre regiões italianas e falando a língua italiana, perderam as referências de suas raízes, considerando-se de origem italiana.
- 5 O livro foi lançado em 2002 em San Marino em uma versão em italiano e, posteriorme (...)
- 6 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
- 7 CASTIGLIONI, Aurelia. De San Marino ao Espírito Santo, fotografia de uma emigração. V (...)
O estudo despertou grande interesse em San Marino, que publicou o livro « De San Marino a Espírito Santo, fotografia di un’emigrazione (2002)5 », com trabalhos de professores da Universidade de Torino, da Ufes, da Universidade de Pavia, do Centro Permanente de Estudos sobre a Emigração da República de San Marino, e da PUCRS6, a obra conta com uma versão em português traduzida e publicada pela EDUFES em 20047.
EMDe – A virada dos anos 70 para os 80 no Brasil foi marcada por uma transição paradigmática que impactou os estudos quantitativos e, com isso, os estudos populacionais na Geografia. Como a senhora vivenciou essa transição e enfrentou eventuais preconceitos por atuar em uma perspectiva quantitativa na Geografia brasileira? A orientação de alunos da Estatística e da História, na década de 90, em vez de Geografia, também refletiu essa realidade?
AHC – No período que se seguiu a conclusão da pós-graduação assumi disciplinas que eram oferecidas pelo Departamento de Geografia relacionadas à área de minha formação, como Metodologia da Pesquisa e Geografia da População para o curso de Geografia, Demografia Econômica para o curso de Economia e Demografia para História. Por vários anos, ministrei a disciplina Demografia, oferecida pelo Departamento de Estatística. Nesse período orientei trabalhos de iniciação científica e de monografias de estudantes dos cursos de Geografia e de Estatística.
Uma das dificuldades encontradas referia-se à produção bibliográfica de Geografia da População, que não apresentava a mesma oferta de obras observada nos outros campos da Geografia. Os conteúdos teóricos clássicos eram contemplados nos livros da área, mas a parte relativa à atualização do referencial teórico e da dinâmica da população não apresentava a constante atualização que as modificações desse campo de estudos requeriam, em uma época em que os dados e obras online ainda não estavam disponíveis.
A resistência aos métodos quantitativos foi sendo atenuada ao longo do tempo, com a introdução desses conteúdos na formação dos alunos de Geografia e com o reconhecimento da importância das abordagens quanti-qualitativas para aplicação em atividades de pesquisa em ascensão no curso, como para a elaboração das monografias que se tornaram obrigatórias.
EMDe – A senhora foi uma das colaboradoras na criação do Programa de Pós-graduação em Geografia da Ufes. Como foi esse processo e a conjuntura? Houve planos para algum núcleo de Demografia na Ufes?
AHC – Na área da Geografia, a criação da pós-graduação era, há vários anos, o sonho dos professores que haviam se titulado e que almejam a melhoria e a expansão das atividades de pesquisa e de ensino do curso. Mas por problemas que remontam à história do curso, ficamos por muito tempo à margem deste nível de ensino.
Na década de 1990, dois fatores contribuíram para retardar o crescimento e a melhoria da qualidade do curso. Um deles foi a corrida para a aposentadoria que ocorreu em todo o país, por insegurança dos docentes com relação às medidas conjunturais. O Departamento de Geografia, como toda a Ufes, perdeu recursos humanos que haviam se titulado, que não foram repostos com pessoal do mesmo nível de qualificação, devido ao insuficiente número de vagas abertas, associado à fraca atração que o curso de Geografia da Ufes exercia sobre os profissionais qualificados na área, que preferiam as instituições mais renomadas. Outro fator foi a divisão do quadro de docentes para a formação dos cursos de Geografia e de Ecologia e Recursos Naturais. O Departamento de Geografia ficou com um número mínimo de docentes, a maioria sem titulação ao nível de pós-graduação. Em 2007, conseguimos finalmente reunir as condições necessárias e criamos o programa de Pós-graduação em Geografia, que começou em março de 2008. Os professores do curso, muito motivados com o projeto, participaram ativamente das atividades para planejamento e implementação do curso, que foi rapidamente aprovado pela CAPES. Em pouco espaço de tempo, no ano de 2014 foi criado o Doutorado em Geografia, que iniciou em 2015 e conta atualmente com 46 doutores diplomados.
Quanto à criação de um núcleo ou curso de Demografia, não foi possível concretizar esse projeto, pois não contávamos com vagas para atrair pessoal qualificado na área. Conseguimos realizar parcerias e atividades por meio de acordos internacionais e com professores de outros departamentos da Ufes e de outras Instituições, dentre os quais o Programa da Rede PRESTA – Programme de Recherche et d’Enseignement en Statistique appliquée, organizado pelo Laboratoire de Méthodologie du Traitement des Données, da Universidade Livre de Bruxelas, que envolvia várias universidades europeias e sul-americanas e o Convênio de Cooperação Científica entre a Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes e a Università Degli Studi di Torino – UST para estudo da imigração italiana no Espírito Santo.
EMDe – Como entende a relação entre a Geografia e a Demografia?
AHC – A Geografia da População e a Demografia compõem os estudos da população, que agregam diferentes áreas de conhecimentos. Ambas têm por objeto comum o estudo dos níveis, composição, evolução da população, seus condicionantes e consequências. A Demografia oferece metodologia específica para mensurar e analisar os fenômenos demográficos, fornecendo subsídios para o estudo da dimensão, da estrutura, dos componentes da dinâmica populacional e para a projeção de cenários. A Geografia da População contribui em particular na aplicação da análise para a compreensão da composição, evolução e configuração dos fenômenos da população no espaço. Os aportes teóricos e empíricos das duas disciplinas fornecem contribuições específicas de seus campos de atuação e se complementam para a melhor compreensão e análise dos aspectos multidimensionais que caracterizam os estudos populacionais.
EMDe – Como professora aposentada dos cursos de graduação da Ufes, mas atuante no programa de Pós-Graduação em Geografia, o que mudou em relação à atuação profissional? O que anda pesquisando e a que se dedica?
AHC – A atuação na graduação me permitiu participar na formação de base de alunos que se encontravam no início do curso e eram muito motivados. Sinto falta desse contato, pois é nessa etapa que muitos deles se identificam com áreas de interesse no vasto espectro de áreas abordadas no curso de Geografia. A relação de orientação com muitos dos meus alunos teve origem nesta fase. Atuo na pós-graduação orientando e realizando pesquisas sobre migração, migração e urbanização, imigração italiana, processos de transição, envelhecimento populacional e indicadores de desenvolvimento.
EMDe – Quais as suas perspectivas em relação à Geografia da População e a Demografia para as próximas décadas? Quais temas merecem atenção?
AHC – Dentre os inúmeros temas, destacam-se as tendências e consequências socioeconômicas das mudanças na estrutura demográfica, relacionadas à redução da representação dos grupos jovens, e acentuação do envelhecimento, a principal mudança demográfica em curso, e seus impactos crescentes sobre os vários setores da sociedade. Na dinâmica espacial, aparecem como temáticas de grande relevância a migração internacional originária das regiões mais carentes em direção aos eixos mais desenvolvidos, e a acentuação da mobilidade nos grandes centros, suas causas, consequências espaciais e socioeconômicas, assim como os conflitos que geram.
EMDe – Quais seus planos em relação à vida e à pesquisa? Há projetos para explorar os dados do Censo de 2022? Se sim, quais temas planeja analisar?
AHC – O Censo constitui o momento privilegiado, o mais aguardado pelos que trabalham nas áreas de planejamento, ensino e pesquisa, que buscam nos dados subsídios para repensar os trabalhos realizados nesse longo intervalo de doze anos, em que ocorreram mudanças substanciais na sociedade, como para realizar novos trabalhos, explorar novas pistas que certamente irão emergir desta valiosa fonte. Em especial, gostaria de atualizar o estudo sobre o efeito indireto da fecundidade dos migrantes sobre o crescimento, um dos temas que abordei na tese de doutorado, para mensurar e analisar as mudanças ocorridas entre 1980 a 2022, período de grandes transformações nos níveis e comportamentos dos componentes do crescimento natural e migratório. Interessa-me também os estudos relativos às tendências e consequências do envelhecimento populacional.
EMDe – Quais são os desafios para a nova geração de geógrafos(as) e demógrafos(as)? Qual a mensagem deixaria para os futuros pesquisadores da Geografia da População e da Demografia?
- 8 Demógrafo, escritor e político francês. Foi o autor de vários livros sobre economia (...)
- 9 Doutor em Demografia. Ele foi diretor fundador do Escritório de Pesquisa Populacional (...)
AHC – O estudo das novas tendências demográficas em um mundo no qual as mudanças são muito rápidas e heterogêneas apresenta-se como uma questão desafiadora. Nas regiões que se encontram na fase de pós-transição e para as que se aproximam do final do processo, as perspectivas e tendências do crescimento natural não apresentam a mesma previsibilidade e clareza que as observadas nas fases descritas para a transição demográfica na primeira metade do século passado por Landry8 [1934] e Notestein9 [1945]. A fecundidade terá atingido seu nível mínimo? As sociedades que já apresentam problemas de reposição da população conseguirão mudar o comportamento reprodutivo que está reduzindo o segmento de crianças e o de adultos jovens, de 15-39 anos da população ativa, como já ocorre no país? Quanto ao envelhecimento em progressão, as conquistas de desenvolvimento tecnológico e medicamentoso, poderão alongar o limite da duração da vida a níveis mais elevados, como já tem sido evocado? A tendência à redução do crescimento demográfico é observada mesmo nos países com os maiores níveis de fecundidade. Neste cenário, o componente migratório passa a desempenhar papel preponderante nas mudanças demográficas, seja internacionalmente, onde a migração indesejada colabora para atenuar o déficit do crescimento das áreas atrativas, seja nas grandes aglomerações, com o surgimento de novos e complexos padrões de mobilidade.
A seguir, a Figura 6, referente a fotografia de finalização da entrevista.
FIGURA 6 – Professora Aurélia durante a entrevista.
Fonte: Acervo dos entrevistadores, 2023.