Este estudo é fruto de pesquisa desenvolvida com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio da chamada CNPq/MCTI/FNDCT Nº 18/2021.
1Os centros urbanos, frutos da construção de grupos imbricados a diferentes redes geográficas, são agregados de especializações funcionais e se tornam suportes para o processo de circulação justamente pelo quadro funcional que lhes são atribuídos. Na tentativa de compreender a relação dialética entre complementaridade e competitividade no contexto da relação funcional entre diferentes centros urbanos, este artigo estrutura-se em torno de uma reflexão bibliográfica que se desdobra em três tópicos.
2No primeiro, analisa-se as inter-relações entre centros urbanos a partir de imperativos político-econômicos de mercado compostos por interesses divergentes, os quais tendem transformar, de modo constante, os espaços urbanos em ambientes atrativos para a instalação de novos agentes. Esses, por sua vez, aprofundam as especializações produtivas e, consequentemente, as desigualdades socioespaciais no âmbito da divisão territorial do trabalho, em uma eminente e consequente relação competitiva.
3No segundo tópico, « A articulação entre o local e o global », parte-se do pressuposto de que a rede urbana permite a articulação entre distintas escalas espaciais e, a partir da conexão entre as extremidades escalares, local e global, a mesma é estabelecida como uma interlocução conduzida por práticas políticas e, sobretudo, econômicas, que visam atribuir à escala local uma correlação aos imperativos da economia mundializada. Assim, considera-se a globalização como um processo de efetiva interferência à localidade, de modo que esta última estará, crescentemente, condicionada a se tornar um espaço globalizado. Essa relação, também dialética, evidencia uma premissa bastante defendida por Santos (2013): a de que a globalização só existe, de fato, porque os lugares estão imbricados em processos complexos de interconectividade – isto é, porque eles se globalizam.
4No terceiro tópico, « Sinergias em redes urbanas: competitividade e complementaridade », os nexos entre complementaridades e competitividades são tratados no âmbito da diferenciação entre centros urbanos como relações inerentes ao dinamismo e ao funcionamento da rede urbana. Sendo pautadas por imperativos do mercado, as relações competitivas tendem a promover alterações importantes no interior da rede, enquanto que as relações complementares (sob o mesmo comando de sistemas de mercado), embora indiquem arranjos de trocas, respondem por comandos e decisões centralizadas e verticalizadas. Por outro lado, as relações complementares, estando pautadas por sistemas de cooperação, tendem ser alimentadas por trocas e sinergias mais horizontalizadas.
5Resultado de pesquisas, leituras e revisões teóricas, além de debates no âmbito do Grupo de Estudos sobre Redes e Produção do Território, vinculado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (LABOTER), do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA), da Universidade Federal de Goiás (UFG), este texto, de cunho exploratório bibliográfico, concebe a combinação entre as relações sinérgicas em redes urbanas a partir da questão escalar e como resultado de uma síntese dialética entre complementaridade e competitividade.
6Em um modo de produção com tendência global e hegemonia informacional, os centros urbanos são, constantemente, incorporados de atividades de redes interligadas a diversos setores da economia, ocasionando, de um lado, a especialização dos serviços urbanos e, de outro, a complexificação da rede urbana. No que tange à rede urbana brasileira, conforme destaca Brandão (2012, p. 183), essa diversificação e ampliação da economia em diversos setores junto « a presença crescente de atividades e agentes ligados a uma ordem global têm sido fatores cruciais para a reconfiguração da trama que articula as cidades brasileiras ».
7Os serviços urbanos, no que lhes concernem, podem se expandir e se descentralizar para as áreas mais periféricas do planeta. Todavia, o que chama à atenção para tais processos de expansão desses serviços são as inter-relações que os centros urbanos de menores portes, locais ou regionais, por exemplo, mantêm entre si no intuito de se agregarem à cadeia mundial de centros. Isso ocasiona uma extrema diferenciação entre esses centros, os quais se refuncionalizam e, assim, ampliam as possibilidades de interações espaciais, conforme muito bem observa Corrêa (1999).
8Essas interações, por sua vez, derivam relações que, por ora, aparentam-se recíprocas devido às empresas se estruturarem em « redes de cooperação entre as instituições regionais e entre empresas localizadas na área », por meio de uma interdependência mútua (CASTELLS, 2003, p. 471). Essas redes, na concepção de Silveira (2003), não possuem neutralidades em referência à dinâmica territorial, fato que reforça sobremaneira a dependência mútua dos lugares.
9Nesse processo, na medida em que a circulação de capital se adensa e se diversifica, as funções centrais vão se tornando mais difusas do ponto de vista espacial. Antigas e tradicionais relações (a exemplo daquela envolvendo campo-cidade) vão se tornando mais complexas, de modo que é incongruente traduzir essa trama por meio de teorias duais. Tratam-se, evidentemente, de unidades interdependentes que se metamorfoseiam frente ao movimento crescente de especialização de áreas e de divisão de funções. Isso tangencia, como já observado por Lambooy (1969), uma interdependência funcional das relações entre empresas e instituições bem como de centralidades como um todo.
10Corrêa argumenta que as corporações também possuem, cada vez mais, capacidades de alteração da funcionalidade dos centros urbanos, « seja pela criação espacialmente seletiva de especializações produtivas, seja pela redução de sua capacidade produtiva, ou, ainda, pela convergência de atividades, criando economias de aglomeração e crescimento urbano » (2011, p. 47). Junto a essas novas funções incorporadas nos centros urbanos e os respectivos fluxos produzidos por tais funções, averígua-se uma distinção « de natureza hierárquica » de bens e serviços entre os centros, « combinada com diferenças devido às especializações funcionais, geradoras de relações de complementaridade entre cidades » (CORRÊA, 2018, p. 306).
11Na tradição geográfica, conforme observa Brandão (2012, p. 184), o debate acerca das redes urbanas « busca privilegiar as relações entre as cidades desde o ponto de vista da hierarquização resultante da capacidade que uma urbe possa ter de influenciar e dominar funcionalmente as demais com as quais estabelece vínculos ». Apesar do domínio dessa perspectiva mais voltada às relações hierárquicas, no segundo quartel do século XX alguns pesquisadores já apontavam a complementaridade como elemento presente nas relações interurbanas, a exemplo de Ullmann (1956) e especialmente Lambooy (1969). Contudo, conforme observa Meijers (2006), o conceito não recebeu a atenção devida por um longo período.
12Fato é que, no âmbito do que Santos (2014) denomina guerra dos lugares, a notável relação de competitividade entre centros urbanos vai se impondo na medida em que esses centros se estruturam para se tornarem atrativos com a criação de condições favoráveis por meio de recursos materiais e/ou imateriais, cujos objetivos se pautam em atrair atividades econômicas para a geração de riqueza. É nesse quesito que Sposito (2011) chama atenção a um processo de reestruturação das relações entre cidades vista como transformações profundas dos sistemas urbanos, tais quais vistos como conjunto de várias redes urbanas. Essas relações podem estar pautadas na intensificação de dinâmicas internas e entre redes urbanas distintas, seja « pelo aumento da quantidade e da frequência das interações », seja pela qualidade dessas interações, implicando essa qualidade, de modo relacional, no aumento da quantidade e da frequência das interações (SPOSITO, 2011, p. 126).
13Ainda, de acordo com a autora, o aumento da qualidade das interações espaciais redefine suas respectivas escalas « bem como dos vetores e direções em que os fluxos se estabelecem » e ocorre, principalmente, para a « ampliação das taxas de lucros ». Desse modo, se obedece a lógicas específicas de localização das atividades produtivas e das atividades de circulação, conformando « sistemas urbanos com níveis de integração progressivamente maiores » (SPOSITO, 2011, p. 126).
14A distinção entre centros urbanos, conforme assinala Bessa (2013, p. 86), também « está inexoravelmente relacionada com os processos de mudança social e suas espaço-temporalidades distintas », acrescentando que nesses processos de mudança social e suas distintas espaço-temporalidades « está a base para explicação das diferenças entre os centros urbanos e para a diversidade de suas redes ». Diante das inúmeras possibilidades de interações espaciais em redes urbanas, também é preciso considerar, de modo específico, a relação entre centros urbanos de uma mesma região.
15A distinção entre centros urbanos, em sua essência, ocorre diante de uma divisão territorial do trabalho que não se restringe apenas entre o campo e a cidade, como também entre distintos centros urbanos, conformando uma complexa diversidade socioespacial. Isso significa que a hierarquia urbana de uma dada rede de centros não é permanente ou estável, pois, além de estar vulnerável diante da concorrência entre os centros – ou dos acordos que ali se estabelecem, se sujeita também ao comportamento dos fluxos de capitais, principalmente financeiros, atingindo núcleos urbanos tanto localizados no topo quanto na base da rede urbana (CASTELLS, 2003).
16Essa distinção entre os centros é também perceptível e mensurável de acordo com os papéis urbanos desempenhados por cada um, tornando-se, por vez, complexa ao depender das funções inerentes de cada cidade, de seu tamanho, da qualidade das funções urbanas, do alcance espacial de uma determinada atividade e do seu grau de importância para uma dada área. As articulações se dão em múltiplas escalas e são possíveis por meio de diferentes redes técnicas. Por isso, é importante verificar como os agentes produtores e detentores dessas redes, principalmente agentes econômicos e políticos, movimentam-se entre as escalas e projetam, conforme salienta Sposito (2011, p. 131), « mais ou menos, as possibilidades de atividades e pessoas, que estão numa dada cidade, para se articularem em escalas mais amplas », pois esse movimento redefine o « escopo das redes urbanas ». Isso significa que a relação entre os centros não é estritamente hierárquica, uma vez que trata-se de uma organização complexa, de modo que essa reorganização do padrão espacial das redes urbanas é caracterizada pela sobreposição de padrões hierárquicos (verticais) e também de organizações horizontalmente estruturadas.
17Diante dessa dinâmica de (re)estruturação da rede urbana, resultante da sobreposição de estruturas espaciais antecedentes, os centros urbanos são dotados de papéis correspondentes ao que Sposito (2011, p. 131) denomina « demandas e características das redes hierárquicas, bastante conformadoras de áreas de comandos e, portanto, de continuidades territoriais ». Há também, conforme a autora, as atividades que se organizam por meio de descontinuidades territoriais. No que tange às continuidades e, principalmente, às descontinuidades, os agentes se articulam nas diversas escalas possíveis, pois buscam territórios para se reproduzirem com menor custo e maior lucratividade.
18Em rede urbana, inclusive na escala interurbana, juntamente a essa combinação entre o vertical e o horizontal, os agentes se movimentam sob a influência de decisões econômicas e políticas de diferentes escalas. Os fluxos, sejam de mercadorias, capitais, informações, etc., são importantes para explicar determinadas situações, uma vez que estão articulados aos interesses corporativos que, por sua vez, adotam estratégias para favorecer a fluidez na construção de redes técnicas, objetos e, até mesmo, cidades. Esses elementos são suportes para esses fluxos e, como resultado dessas ações, incorporam-se de valores (SANTOS, 2014). Nesse ínterim, é necessário considerar a fluidez e a funcionalidade técnica requerida ao território, como bem observa Silveira (2003), pois evidenciam a importância estratégica e funcional das construções humanas.
19É importante entender a diferença entre agentes que somente produzem fluxos daqueles que produzem e criam condições para a circulação dos fluxos, pois, não basta apenas produzir, é necessário « pôr a produção em movimento », conforme assinala Santos (2014, p. 275). Em outras palavras, é necessário ressaltar que a fluidez, ou as condições para a circulação do fluxo de mercadorias, de informações, de capitais e de pessoas, é derivada de uma construção conjunta, entre forças públicas e privadas, não sendo suficiente apenas identificar os agentes que produzem as condições da circulação, como também se faz necessário identificar aqueles que irão usufruí-las (SANTOS, 2014).
20Os grupos hegemônicos, inerentes à constituição da rede urbana, estão relacionados diretamente à dinâmica econômica, social e política da construção do espaço e se articulam nas mais diversas escalas, do local ao global, produzindo, intermediando, promovendo circulação e usufruindo de fluxos mais diversos, em uma relação dupla, ambígua e não dissociadas, entre complementaridade e competitividade. Enquanto a complementaridade, está associada à manutenção de trocas desiguais e hierárquicas estabelecidas entre centros urbanos e seus respectivos agentes produtores imbricados também à rede urbana, alinhados a uma concentração espacial urbana de bens e serviços, a relação de competitividade, associa-se ao modo como cada centro urbano e seus respectivos agentes produtores se ascendem nessa mesma rede urbana, seja regional ou nacional, no intuito de se agregarem, de maneira progressiva, à cadeia global de cidades. Isso ocorre com a intensificação das trocas de fluxos e na tentativa de inverter ou superar hierarquias preestabelecidas junto à descentralização ou, inclusive, para uma nova concentração espacial dos bens e serviços urbanos. Importante ressaltar que esse tipo de relação se dá no contexto de proeminência de sistemas corporativos em um ambiente regido pelo mercado.
21De um lado, as relações complementares são desencadeadas por meio de interações espaciais entre centros urbanos, os quais se especializam produtivamente, ou entre agentes produtores espaciais, de modo que cada um supre necessidades, individuais ou coletivas, ocorrendo por meio de trocas no âmbito interno de uma divisão territorial do trabalho Por outro ângulo, as relações competitivas são movidas por agentes dotados de estratégias e intenções de agregação para uma cadeia superior de centros, ocasionando certa instabilidade hierárquica urbana, de modo que a rede urbana vai respondendo às determinações das relações sociais de produção e de circulação bem como à reprodução ampliada do capital em diferentes escalas.
22Diante da progressiva ampliação de relações em escala mundial, mediadas por novos sistemas técnicos e práticas políticas de agentes hegemônicos, necessita-se da ampliação da escala de compreensão « das ações e dos fluxos que as revelam e as sustentam » (SPOSITO, 2011, p. 127). Apesar da necessidade e da importância do fundamento técnico e metodológico da cartografia, conforme lembrado por Silveira (2004), é fundamental superar as dificuldades do raciocínio analógico entre escala geográfica e escala cartográfica. Isso significa, conforme destacado por Castro (2012, p. 118), « ir além de uma medida de proporção da representação gráfica do território, ganhando novos contornos para expressar a representação dos diferentes modos de percepção e de concepção do real ».
23A escala, nesse sentido, pressupõe, conforme destaca a autora, « a escolha de uma forma de dividir o espaço, definindo uma realidade percebida/concebida » e atribuindo-lhe uma representação na qual contém « um conjunto de representações coerentes e lógicas » (CASTRO, 2012, p. 136). A leitura da realidade urbana atual também demanda ampliação das escalas conforme o nível das interações e conexões, especialmente considerando o fato de que os níveis espaciais inferiores, como o local, o regional e o nacional. Em outras palavras, os níveis intermediários e os níveis constituintes de uma dada rede urbana, estão condicionados aos interesses da escala global, conforme lembra Sposito (2011). Entretanto, cada rede urbana contém fluxos verticais e fluxos horizontais, fazendo-se necessário averiguar cada caso particular bem como os níveis de articulações possíveis (do local ao global e vice-versa) no sentido de entender os diversos níveis espaciais intermediários, inclusive, também, o próprio local.
24Nessa perspectiva, Bourdin (2001) apresenta uma contundente crítica da visão de território hierarquizado, na qual a hierarquia « degenera principalmente em macrodiferenças, entre entidades nacionais, regionais e urbanas », alegando sua característica gradual e contínua organizada pela distância. Esta definição, argumenta o autor, não se sustenta mais. No lugar disso, se desenvolve o território em rede. Os centros urbanos se dissociam de seus respectivos territórios, relacionando-se com outros centros ligados por meio de redes, e esse território das redes « dá lugar a um verdadeiro território em rede, em que cada pólo se define como ponto de cruzamento e de comutação de redes múltiplas » (VELTZ, 1996, citado por BOURDIN, 2001, p. 60). Esse território em rede, junto a suas redefinições, está indissociável da mobilidade generalizada, tal qual « produz uma sociedade cujos territórios são construídos a partir do movimento e onde o local se fundamenta na diferença das mobilidades » (BOURDIN, 2001, p. 69).
25Nesse sentido de apreender o local no âmbito da globalização, Santos (2013, p. 18) defende que os lugares se globalizam, pois cada lugar se torna « ponto de encontro de lógicas que trabalham em diferentes escalas, reveladoras de níveis diversos, e às vezes contrastantes, na busca da eficácia e do lucro, no uso das tecnologias do capital e do trabalho ». Em outros termos, o lugar se redefine conforme a mobilidade generalizada e as demandas de interesses corporativos, tais quais podem estar localizados próximos ou distantes. Assim, a globalização configura um processo segundo o qual « constitui o estágio supremo da internacionalização: a amplificação em ‘sistema-mundo’ de todos os lugares e de todos os indivíduos, embora em graus diversos » (SANTOS, 2013, p. 45).
26A rede urbana torna-se um instrumento que permite articular as diferentes escalas do espaço geográfico, não se restringindo a uma única escala regional. Na medida que a modernização territorial se adensa, maior é a tensão entre a localidade e a globalidade, na qual a primeira tende a se especializar, principalmente quando a globalização impõe « regulações verticais novas a regulações horizontais preexistentes », como destaca Santos (2013, p. 52). Sendo assim, a localidade não é suprimida, mas sim mundializada, pois essa mundialização é, na concepção de Bourdin (2001, p. 73), « um imenso sistema de troca em expansão » e de diferenças não necessariamente hierarquizadas que recebe da globalização um duplo efeito de escala entre o próximo e o distante.
27Os espaços locais se tornam espaços racionalizados e a atuação do mercado se torna superior em relação à atuação do Estado, que tende a ser enfraquecido sobretudo no que tange às políticas setoriais, como verificam autores como Santos (2013) e Dowbor (2018). O Estado tem sua função reduzida também no que diz respeito ao papel intermediador de interesses e ações corporativas entre instituições e processos por vezes globais, não atendendo, portanto, a vontade coletiva, pois sua clássica funcionalidade, pontua Bourdin (2001), já foi útil.
28Com isso, a atuação do Estado vai se restringindo à criação de condições que possibilitam a ação das forças mundializadoras do mercado (SANTOS, 2013), e isso inclui a realização ou o favorecimento de grandes obras, como aquelas voltadas aos transportes, energia e telecomunicações. Além disso, o Estado também vai se submetendo a processos avassaladores de privatização, como do setor elétrico no Brasil (CASTILHO, 2022). Diante do definhamento ou transformação da atuação do Estado em determinados setores, Bourdin (2001) observa que as forças políticas locais são supridas de significativa importância dado que a localidade é, por excelência, o locus de imposição das demandas globais.
29Nesse sentido, esculpe-se uma rede urbana tal qual se reafirma no âmbito da produção territorial, não somente devido à criação e à expansão dos novos espaços locais urbanos, mas, sobretudo, pelo incremento da fluidez e da circulação traduzidas ao próprio território. Isso torna a rede urbana uma interlocutora em um sistema de trocas de modo que seus agentes produtores estabeleçam movimentos não aleatórios, racionais e intencionais.
30Diante da diversidade territorial, as redes urbanas permitem que haja a articulação entre extremidades escalares, o que revela não somente seus padrões espaciais como suas naturezas funcionais ligadas a um dinamismo sustentado por pilares hierárquicos, os quais definem a importância de seus segmentos bem como a relação entre os mesmos e a própria rede. Cumpre destacar a necessidade de investigação das relações entre centros distintos de uma mesma rede urbana, tais quais podem ser de natureza complementar e/ou de natureza competitiva (que também tangenciam as de comando e de subordinação), as quais atribuem sentido ao dinamismo e ao significado da rede urbana.
31As conexões funcionais entre elementos urbanos da rede e entre eles e o meio rural são fundamentais para a existência de uma rede urbana, pondera Santos (2012). O autor é enfático ao dizer que as redes urbanas de países subdesenvolvidos merecem atenção especial devido às suas características peculiares relacionadas, por exemplo, ao pouco desenvolvimento econômico, à heterogeneidade e à vulnerabilidade. Também, critica a hierarquização das redes urbanas desses países, a qual, muitas vezes, se sujeita à existência de um escalão intermediário que deixa de responder às necessidades das populações. Esse fato ocorre tanto nas camadas mais pobres, que por condições financeiras não acessam aos bens e serviços dispostos, quanto nas mais ricas, que buscam serviços sofisticados em centros urbanos de maior porte configurando o que o autor denomina curto-circuito (SANTOS, 2012).
32De certo, verifica-se que há concorrência entre centros urbanos em todos os níveis espaciais e que essa concorrência está intimamente ligada ao funcionamento da rede e do próprio modo de produção, tal qual de um equilíbrio irregular entre os segmentos urbanos. Nos termos de Santos (2012, p. 172), a rede urbana seria, assim, « resultado de um equilíbrio instável de massas e de fluxos, cujas tendências à concentração e à dispersão, variando no tempo, proporcionam as diferentes formas de organização e de domínio do espaço pelas aglomerações ».
33Entretanto, a rede urbana, na condição de instrumento de ligação entre diversas e distintas escalas espaciais, por meio de trocas desiguais e hierárquicas, estará condicionada às variações das relações competitivas, mas, também, das relações complementares entre os seus segmentos. Essas relações, inerentes à distinção entre os centros urbanos, poderão influenciar no sentido de manter uma linearidade diferencial, como também podem atuar no sentido de reverter hierarquias constituídas, especialmente quando se considera o planejamento, as coordenações regionais de cooperação (MEIJERS, 2006), as intervenções sintomáticas do Estado ou as iniciativas de elites empreendedoras. No caso dessas últimas, Bessa (2010) as considera como elementos que desequilibram a situação costumeira da rede.
34A complexidade genética e funcional ajuda a explicar a distinção dos centros urbanos de uma rede urbana. A ampliação das interações espaciais, contudo, demanda entender os laços e os nexos do processo de especialização produtiva de diversos setores da economia com os signos da mundialização econômica. A respeito de suas complexidades genéticas, e com base nos estudos de Corrêa (1999, p. 47), permite-se inferir que embora dois centros tenham suas respectivas gêneses ligadas a processos de criações distintas, ambos respondem ao mesmo modo de acumulação, tornando-se, em conjunto, « produtos da globalização ». Em outras palavras, mesmo na condição de que os processos sócio-históricos que desdobraram suas gêneses estejam contidos em distintas espaço-temporalidades, ambos fazem parte de uma retroalimentação de um mesmo modo de produção, o que incidirá substancialmente em suas respectivas funcionalidades urbanas.
35Decorre-se de que, no contexto geoeconômico contemporâneo, verifica-se um incremento de funções especializadas nos núcleos urbanos, no qual, tanto de um lado como de outro, observa-se uma ampliação e concentração de serviços especializados, cada qual, evidentemente, obedecendo a uma lógica particular de especialização produtiva. Esses adensamentos de especializações funcionais são acompanhados de incrementos populacionais urbanos significativos de determinados núcleos, alterando de forma emblemática a composição e a forma espacial da rede urbana minimamente regional.
36Fato é que as diferenças entre centros urbanos desencadeiam instabilidades, ou estabilidades relativas, na rede urbana em termos de hierarquia, de modo que essa última também depende de relações complementares (não apenas competitivas) entre os centros urbanos, principalmente para aqueles situados no topo da sua própria rede. Nesse ponto, Lambooy (1969) lembra que a complementaridade exprime a ideia de especializações de áreas, o que implicaria na interdependência funcional entre estabelecimentos e também entre centros urbanos. Os centros se apresentam funcionalmente distintos, mas Meijers (2006) observa que, para além da distinção, é preciso que haja uma parcial sobreposição de mercados geográficos de procura de funções urbanas, ou seja, as atividades urbanas de um centro devem atender empresas e pessoas de outros centros cuja relação complementar é fundamental. A complementaridade se define, de acordo com Meijers (2005), como resultado da oferta e da procura. O autor ainda argumenta que, sendo um importante mecanismo de sinergia, a complementaridade é de particular relevância para regiões urbanas policêntricas.
37Considerando que é cada vez mais assumido que as relações verticais vão sendo suplementadas ou compartilhadas por relações mais horizontais (MEIJERS, 2005), a exemplo da complementaridade e de níveis de cooperação, é fundamental que a análise busque amarrações teóricas mais coerentes com essas transformações no âmbito das redes urbanas. Na concepção de Bessa (2010, p. 39), a relação de complementaridade, também associada à diferenciação entre os centros, está relacionada à « interdependência entre as empresas », gerando, inclusive, « uma crescente cooperação entre os centros urbanos » e privilegiando a interdependência funcional entre os mesmos. Em vista disso, entendemos a complementaridade como uma relação entre distintos centros, cuja finalidade está associada em estabelecer relações espaciais horizontais, envolvendo cooperações econômicas, políticas e culturais, com o intuito de destacar seus respectivos e distintos papéis no processo de (re)produção do espaço urbano-regional.
38Por outro lado, é também verificável a relação de competitividade entre centros, uma prática muito comum entre núcleos que partilham uma mesma região urbana policêntrica, ou uma rede urbana, conforme sinaliza Meijers (2006). A prática da competitividade leva à duplicação (seja de serviços especializados, produtos, etc.) de modo que a disputa interterritorial entre determinados centros em nível regional desdobra à replicação de ideários e investimentos nesses centros (MEIJERS, 2006).
39É preciso reiterar que essa duplicação de representações, materiais e imateriais, torna a rede urbana ainda mais diferente e desigual. A competitividade, nesse sentido, envolve relação entre distintos centros urbanos cuja finalidade está associada a lógicas espaciais envolvendo disputas econômicas, políticas e estratégicas, mantendo, inclusive, vínculos com centros de outras redes urbanas e a posição privilegiada em uma dada rede urbana.
40Importante destacar que os centros urbanos respondem ao mesmo processo de reestruturação produtiva, muito embora podem apresentar distintas especializações urbanas que desencadeiam relações de complementaridades entre si. Contudo, a subordinação de um centro em relação a outro se deve ao subordinador manter-se em posição privilegiada na rede, em termos de estratificação hierárquica, em virtude de relativa concentração e da maior diversificação de serviços especializados, o que o coloca como condutor de imposições e de relações de complementaridade que forem convenientes. Conforme ilustrado no diagrama da Figura 1, a relação de complementaridade, nesses termos, ocorre em um contexto fortuitamente regido pelas tramas do mercado.
41Nesse mesmo contexto, a relação de competitividade entre os núcleos também é resultado da reafirmação desses centros urbanos no quadro socioeconômico regional. Essa relação é realçada por elementos que se intensificam no âmbito externo aos núcleos urbanos, tais como em suas efetivas participações no processo de intercâmbio de fluxos (os quais podem alcançar escalas globais), e também no âmbito interno do núcleo urbano, como no progressivo incremento de seus setores produtivos, comerciais e de serviços junto à participação de elites econômicas no processo de expansão territorial urbana.
42Evidentemente, as diferenças entre os núcleos da rede urbana excedem suas complexidades genéticas e funcionais, como também na variação de intensidade de relações complementares e competitivas entre si e entre a rede urbana na qual estão inseridos. Trata-se de uma presença simultânea e dialética entre complementaridade e competitividade entre determinados núcleos, de modo que há uma sinergia entre essas relações, a qual atribui significado e sentido ao dinamismo da rede urbana regional também conectada a uma ordem de rede global de produção e de consumo.
43Importa destacar que o dinamismo de uma rede urbana, portanto, está associado à sinergia. Considerando esse fenômeno, conforme argumenta Meijers (2005), as cidades também se relacionam de maneira sinérgica por meio de mecanismos de cooperação e externalidades associadas a ambos mecanismos. Enquanto a cooperação está relacionada a uma parceria entre centros urbanos, cuja finalidade se pauta em atingir um bem comum para os envolvidos, alcançando, neste caso, a uma sinergia horizontal – o que depende, em grande parte, das intervenções públicas ou do protagonismo dos grupos envolvidos por meio de uma coordenação regional bem conduzida; a predominância de sistemas complementares sob o prisma do mercado ou de sistemas corporativos, está associada a interações entre atividades e centros urbanos derivadas da diferenciação funcional, atingindo, neste outro caso, a uma relação assimétrica e vertical, conforme ilustrado na Figura 1.
FIGURA 1 – Diagrama conceitual evidenciando tipos de sinergias entre centros urbanos
Fonte: Elaboração própria.
44Com a predominância de imposições e tramas corporativas – ou ao que Santos e Silveira (2008) denominam como uso corporativo do território, as relações de complementaridade entre centros urbanos ocorrem de forma vertical e com base em comandos hierárquicos. Isto é: a distribuição de funções e serviços, mesmo podendo ser identificada como complementar, obedece a interesses restritos localizados nos centros que ocupam posições superiores na rede urbana. A competitividade, embora possa ser ilustrada como uma relação horizontal – até porque as sinergias partem dos diferentes centros urbanos que competem entre si, se constitui de forma impositiva e opondo-se à cooperação. Por isso, as setas estão invertidas no sentido de representar ações diversas que se contrapõem. Neste caso, as sinergias amplificam as assimetrias e desigualdades ou promovem até mesmo inversões na rede urbana.
45Importante destacar que, ao mesmo tempo em que isso implica relativa manutenção do sistema de poder no âmbito da rede urbana, a preponderância de uma das relações, seja complementar ou competitiva, representa, por vezes, estratificações ou instabilidades hierárquicas. Com a preponderância da complementaridade sendo ditada por sistemas de comando centralizados, a hierarquia se mantém e não permite profundas transformações na rede urbana (ela permanece marcadamente desigual). Com a predominância da competitividade, a hierarquia se torna instável, ratificando para incertezas a respeito do controle regional dessa mesma rede urbana. Mesmo assim, conforme ilustra a Figura 1, a espiral não se completa apenas nessas duas formas de relações restritas ao mercado. Há um movimento mais amplo que vai além da simples interlocução dessas relações. Por exemplo, se as relações complementares forem pautadas por sistemas de cooperação, planejamento e protagonismo de diferentes escalas (incluindo as de base), a nodosidade e, consequentemente, a hierarquia, cedem lugar a relações e sistemas de trocas mais horizontais.
46Dessa forma, a relação sinérgica de complementaridade, conduzida pelo mercado, não incorre a relações mais horizontais ou colaborativas justamente porque são criadas e conduzidas por agentes corporativos – sendo, portanto, relações impostas, conduzidas e centralizadas. Por outro lado, a quebra nesse processo só é possível por meio de efetivos sistemas de cooperação, o que é bastante complexo, observa Meijers (2006). Segundo o autor, o desenvolvimento da complementaridade não é nada simples porque envolve uma grande variedade de agentes com agendas diferentes e não comprometidos com objetivos e metas de um planejamento voltado à complementaridade, nos termos sinérgicos de uma cooperação regional. Aqui podemos grifar: complementaridade cooperativa. Observa-se em muitas regiões urbanas a insuficiência ou total ausência de uma organização regional colaborativa. Meijers (2006) pontua que, sem essa capacidade organizativa (o que inclui quadros mais ou menos institucionalizados de cooperação, debate, negociação, tomadas de decisões) para definir de forma cooperativa o desenvolvimento territorial - incluindo mecanismos para conciliar diferentes interesses, se torna bastante difícil vencer o paradigma da competitividade em redes urbanas.
47Mesmo assim, é fundamental considerar a possibilidade da implementação ou do aprimoramento da capacidade de organização regional, especialmente na direção da confiança mútua entre distintas centralidades (MEIJERS, 2006). Do ponto de vista teórico e dos estudos sobre rede urbana, faz-se necessário evitar que se considere as escalas espaciais (global-local) e as relações (complementaridade-competitividade) de forma dicotômica, uma vez que há um processo efetivo de retroalimentação de ambas. Da mesma forma que a complementaridade de um núcleo urbano poderá depender do seu movimento de competitividade, para que esse mesmo núcleo urbano exerça seus papéis de centro de produção e de centro de consumo, a sua competitividade poderá depender do movimento de complementaridade para que esses mesmos papéis, de produção e de consumo, sejam igualmente exercidos por esse mesmo núcleo. A sinergia, sendo ditada pelo mercado, faz da complementaridade uma relação eminentemente hierárquica. Mas, se pautada por sistemas de cooperação, faz da complementaridade o caminho possível para relações mais horizontalizadas.
48As relações entre centros urbanos em diferentes regiões do Brasil têm evidenciado o papel hegemônico do comando corporativo, seja no âmbito de regiões com forte presença de indústrias transformadoras, incluindo as metropolitanas, seja naquelas com predomínio de atividades agrícolas mais elementares ou até mesmo vinculadas ao agronegócio globalizado. Isso tem sido evidenciado por importantes estudos, a exemplo do pioneiro trabalho de Geiger (1963), de investigações desenvolvidas por Corrêa (2001 e 2006) e Santos e Silveira (2008). As fontes de dados bem como pesquisas desenvolvidas pelo IBGE (2020), notadamente o estudo denominado Regiões de Influência das Cidades (REGIC), também evidenciam o incisivo desequilíbrio de forças no âmbito de redes urbanas ocasionado pelas imposições corporativas. Esse longo processo, evidentemente, suscita ao planejamento urbano-regional importantes questões em torno de sinergias em redes urbanas.
49No que tange os centros que disputam o controle de uma rede urbana regional, é preciso considerar que ora são de natureza complementar – pois esses núcleos desempenham o papel de consumo daquilo que é produzido globalmente, principalmente no que se refere às demandas produtivas, com suas respectivas especializações funcionais ao campo, impulsionando, desse modo, o ciclo de reprodução, ora são de natureza competitiva – pois esses mesmos centros também desempenham o papel de dinamizador daquilo que é produzido localmente, atendendo, de maneira inversa, a uma lógica global de consumo.
50Ditada pelo sistema de mercado, a competitividade impulsiona a complementaridade já preestabelecida na dinâmica da divisão territorial do trabalho. Isso acontece porque a competitividade condiciona as disputas geográficas, políticas e econômicas, ou, em outros termos, o controle territorial, logo, o controle da própria rede urbana regional. Além da verificável correlação entre complementaridade e competitividade, infere-se também para uma dialética entre ambas as relações, as quais se apresentam instáveis e intimamente ligadas à dinâmica e ao funcionamento da própria rede urbana na qual os centros fazem parte. Por outro lado, a quebra da sinergia entre competitividade e complementaridade demanda intervenção (podendo ser institucionalizada ou não) e efetiva construção de relações de cooperação.
51Considerando a realidade geográfica de redes urbanas em países como o Brasil, independentemente da relação predominante, complementaridade e competitividade apresentam uma indissociável imbricação dialética, com características que remetem para um fenômeno ambíguo e complexo, cuja finalidade está associada a um ciclo de reprodução e, sobretudo, ao controle regional de uma dada rede urbana. No que tange a uma realidade sinérgica, é preciso reconhecer a rede urbana como articuladora de diversos níveis espaciais, de modo a averiguar a intensidade do fenômeno complementar-competitivo, competitivo-complementar ou complementar-cooperativo entre seus centros urbanos, inclusive durante o processo de reestruturação dessa rede urbana, com certa prudência para não inferir súbitas previsões.