Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento concedido na forma de bolsa de mestrado, que contribuiu para a execução desta pesquisa.
- 1 O evento é definido como uma ação que tem extensão, cuja área de ocorrência depende do tempo ( (...)
1O processo da digitalização expressa a radicalização do meio técnico-científico-informacional, tendo como evento1 catalisador a pandemia da covid-19 (CATAIA, 2020). As plataformas digitais dizem respeito aos aplicativos, sites e mecanismos de intermediação de ações quotidianas (compras, contratações de serviços, pagamentos etc.) realizadas por meios digitais, tendo ganhado destaque a Google, Amazon, Facebook e Microsoft (GAFAM). Elas permitem a atuação de agentes hegemônicos no território intensificando os fluxos de informação e adaptando os comportamentos locais aos interesses globais, cuja racionalidade é indiferente à realidade dos indivíduos. É importante ressaltar que o fenômeno da digitalização se insere um novo elemento no circuito da produção do valor (Valor-trabalho) de Marx (2008 [1859]). Ou seja, as plataformas digitais tornam-se agentes que capturam a renda nos mais diversos circuitos espaciais de produção (BARRIOS, 1978; ROFMAN, 2016 [1978]; SANTOS, 1986; MORAES, 1989; CASTILLO; FREDERICO, 2010).
2O aplicativo (app) iFood está inserido na economia urbana expressando concretamente esse fenômeno. Dessa forma, questionamos: Como as plataformas digitais renovam o tecido urbano das cidades? Nosso objetivo foi compreender a expansão do iFood no Brasil, no período de 2020 a 2022, tendo como referência a situação geográfica (SILVEIRA, 1999) de Campos dos Goytacazes. Situação geográfica entendida como a profusão de eventos que caracteriza a uma construção histórica, sendo necessária a seleção destes segundo uma hierarquização para a compreensão dos lugares. Assim,
A situação é resultado do impacto de um feixe de eventos sobre um lugar e contém existências materiais e organizacionais. Inovações técnicas e novas ações de empresas de força diversa, dos vários segmentos do Estado, de grupos e corporações difundem-se num pedaço do planeta, modificando o dinamismo preexistente e criando uma nova organização das variáveis (SILVEIRA, 1999, p. 5).
3Nesse sentido, partimos da compreensão de que o meio técnico-científico-informacional expressa a globalização, ou seja, a ciência, a técnica e a informação estão na própria base da produção, da utilização e do funcionamento do espaço geográfico, e este atualiza-se por meio da digitalização. A união entre técnica e ciência vai se dar por intermédio do mercado e tem como energia principal de seu funcionamento a informação. Graças a essa junção, o mercado tornou-se global (SANTOS, 2017 [1996], p. 238-239).
4No entanto, a digitalização não seria possível sem a construção de um sistema de valores sociais. Por isso a psicoesfera, « reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido », fornece regras à racionalidade e estimula o imaginário e « consolida a base social da técnica e a adequação comportamental » (SANTOS, 2017 [1996], p. 256). Ela apoia, acompanha e pode anteceder a expansão do meio técnico-científico-informacional. Como parte desse mesmo processo, contemplamos a tecnoesfera, que compreende o conjunto de objetos técnicos resultantes da crescente artificialização do espaço. O sistema de valores sociais associado a era da digitalização tem um forte componente da racionalidade neoliberal (Dardot e Laval, 2016). Em outras palavras, ele é regido hegemonicamente pelos princípios da meritocracia, concorrência generalizada e pelo empreendedorismo.
5A racionalidade neoliberal tem sido a norma regente do processo de digitalização. Segundo Dardot e Laval (2019, p.17-19), o neoliberalismo constitui uma racionalidade política mundial imposta aos governos, à economia, à sociedade e ao próprio Estado. A lógica do capital converte-se em uma subjetividade normativa hegemonicamente reguladora da existência humana, e seu principal princípio é a instituição da concorrência mercantil para todas as esferas sociais. A psicoesfera neoliberal é parte constitutiva do processo de expansão das empresas digitais globais. Ela viabiliza as transformações criando as necessidades e induzindo os comportamentos. Em nossa perspectiva, as plataformas digitais são agentes da digitalização e da neoliberalização. Logo, não podem ser compreendidas isoladas dos sistemas de valores. Por isso, a psicoesfera é parte da análise.
6Com o intuito de analisar a presença do iFood em Campos dos Goytacazes, além do levantamento e da leitura de bibliografias sobre a temática, tivemos como metodologia, em um primeiro momento, a coleta de dados secundários no seu site e nos da Prosus, da Movile, da Amazon Web Services (AWS), da WOBA e da Naspers, com o objetivo de compreendermos as conexões e associações entre elas. Em um segundo momento, efetuamos a análise qualitativa do conteúdo do perfil do referido app no Instagram nos anos de 2020 e 2021, período mais agudo da pandemia. Isso nos permitiu capturar como o iFood atua na fabricação dos discursos e produção de imaginários para agir. Então, realizamos a sistematização e análise dos dados e a discussão dos resultados com a literatura. Com a intenção de identificarmos os estabelecimentos cadastrados, utilizamos as informações disponíveis no próprio aplicativo do iFood. Esse procedimento foi realizado por meio da captura de telas do celular na área dos comércios. Em seguida, todos os nomes dos estabelecimentos que aparecem como opção ao consumidor foram digitados no Excel e complementados com os endereços adquiridos através dessas mesmas consultas. Na sequência foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os estabelecimentos da Avenida Pelinca. Por fim, foram confeccionados os mapas para a análise e a discussão teórica.
7Expomos a pesquisa em três seções. Na primeira, apresentamos o iFood como agente ativo no processo da digitalização do território brasileiro e a forma como ocorreu a expansão da empresa e a participação dela em circuitos globais de extração de renda dos lugares. Em seguida, demonstramos as estratégias da plataforma para a formação dos consensos utilizando a psicoesfera no meio digital, a fim de atrair consumidores e restaurantes. Por fim, analisamos como ela atua em Campos dos Goytacazes, revelando de que maneira empresas-plataformas se tornaram agentes relevantes na dinâmica das cidades. No entanto, elas renovam as desigualdades socioespaciais e do trabalho.
8A digitalização é compreendida como a radicalização do meio técnico-científico-hiperinformacional marcado pelo surgimento da tecnoesfera e da psicoesfera digital (SILVA, 2021, 2022, 2023). Além dos macrossistemas técnicos, o atual meio geográfico incorpora aplicativos, sites, redes de mídias sociais e comunicacionais em seu funcionamento. Nesses espaços virtuais, é difundida a psicoesfera digital, a fim de captar as informações dos indivíduos para ampliar os poderes dos agentes hegemônicos através da algoritmização das subjetividades (SILVA, 2021, p. 294-295). Israel (2020, p. 89) mostra a criação de verticalidades virtuais e rastros geodigitais, revelando as ações dos indivíduos e permitindo a utilização desses dados pelas empresas. Dessa forma, o território é convertido em informação.
9A era digital caracteriza-se por ter a informação como sua principal fonte de energia. Ela constitui o atual meio geográfico. Em razão disso, as corporações competem com vantagem quando a detêm. A disputa se impõe ao próprio espaço, e os lugares tornam-se mais ou menos atrativos em razão da densidade informacional.
10As empresas-plataformas são plataformas territoriais que utilizam a informação como um fator produtivo na gestão corporativa e algorítmica do território nacional (TOZI, 2020, p. 491). Elas promovem alterações na regulação e no uso do território instaurando uma nova divisão territorial do trabalho; além disso, drenam o dinheiro – antes, de circulação local – para os centros de comando das corporações (TOZI, 2018, p. 4). Embora estas últimas tenham enorme flexibilidade para acionar e desligar os lugares de sua ação, elas dependem do território e da economia das cidades (TOZI, 2019, p. 8-9). As plataformas implantam-se nos lugares segundo essa densidade informacional e a rede urbana.
- 2 Sobre a importância das plataformas digitais como instrumentos de extração de renda d (...)
- 3 estudo do fenômeno das plataformas digitais e digitalização já tem um acúmulo de contr (...)
11Em outras palavras, as etapas do circuito de produção do valor (valor de uso e valor de troca), teorizado por Marx (2008 [1859]) – a produção, circulação, distribuição e consumo da mercadoria que se transforma em mais valia para os donos do meio de produção – passam a ter a intermediação das plataformas digitais. Entretanto, elas não são produtoras de mercadorias e sim extraem essas rendas principalmente na ação na etapa da circulação2. Outrossim, é relevante pontuar que as plataformas digitais se tornam extratoras de dados dos usuários e estão associadas ao domínio das Big Techs da era informacional (MOROZOV, 2018). Isso significa que a própria « datificação » se transformou em uma grande indústria em que corporações como a Google, Amazon, Facebook e a Microsoft, conhecidas pelo acrônimo GAFAM, denominadas plataformas-raiz por Moraes (2020), formam oligopólios globais de proporções nunca antes visto, cuja informação dos usuários é a matéria-prima para a extração de riqueza3.
12Na verdade, a topologia dessas corporações está ligada sobretudo pelas virtualidades dos lugares, ou seja, pela existência da camada técnica que permita a ação destas, como redes de transporte, energia e telecomunicações e, em especial, internet. A popularização dos smartphones contribuiu à adesão da população aos serviços vinculados às plataformas digitais como as de entrega de alimentos como o iFood. A pouca regulação do Estado também é um fator relevante ao êxito delas no Brasil. Portanto, o iFood é um agente ativo no processo da digitalização do País, e sua expansão foi acelerada com a pandemia da covid-19. Em 2020, a empresa atuava em aproximadamente 1.620 cidades brasileiras (29%); em 2021, aumentou para 5.112 (93%), em um total de 5.570 cidades existentes no território brasileiro (Figura 1).
FIGURA 1 – Evolução da atuação do iFood no território brasileiro (2020 a 2023)
Fonte: Concepção e elaboração de Nágila da Silva Ferreira Souza, 2023.
13A empresa domina o mercado de plataformas de entrega de alimentos no Brasil com a estratégia de comprar os aplicativos regionais, como foi o caso da Plataforma Devorando, do Rio Grande do Sul, uma de suas aquisições (Cf. STARTUP..., 2016).O iFood é uma plataforma de origem brasileira de intermediação entre comércios – majoritariamente restaurantes – e consumidores.
14Trata-se de uma plataforma de oferta de vários serviços de entrega. Ela recebe cadastros de entregadores, oferece os serviços do iFood Shop (disponibilizando fornecedores para os estabelecimentos no site), iFood Empresas, iFood Refeição Digital e iFood Card. Somente no ano de 2022 recebeu 750 milhões de pedidos (PROSUS, 2023a). Tem mais de 330 mil estabelecimentos cadastrados, 250 mil entregadores, 43 milhões de consumidores e 5 mil trabalhadores em escritórios (IFOOD, 2024). A companhia tem uma história de aquisições, fusões e aportes de organizações de capital global. Hoje a Movile (controlada pela holandesa Prosus) tem 100% das ações do iFood.
- 4 A Movile também é de origem brasileira (Campinas/SP) e é um grupo investidor e dese (...)
- 5 A Naspers é uma empresa global. Uma das maiores investidoras em tecnologia com sede (...)
15A corporação começou o atendimento ao consumidor em 2011 com a Disk Cook em São Paulo, fora do mundo digital, porém recebeu investimentos da Warehouse – plataforma desenvolvida pela Google e adquirida pela norte-americana Trimble –, lançando, no ano de 2012, o aplicativo e o site. Em 2014, recebeu investimentos da Movile4 após comprar as ações da Warehouse. Nesse mesmo ano dos aportes da Movile, o iFood fez a fusão com o Restaurante Web, do grupo britânico Just Eat. Nos anos de 2016 e 2018, efetuou mais fusões, agora com a SpoonRocket e a Rapiddo, respectivamente. Adquiriu a Hekima em 2020. Hoje, a Prosus controla 100% do iFood através da Movile (Cf. O grupo..., 2022). Dessa forma, na atualidade, o iFood pertence à Movile, subsidiária da holandesa Prosus, cujo centro de comando e investimento localiza-se em Amsterdã. Esta, por sua vez pertence ao grupo Naspers5.
16A Figura 2 expõe uma síntese dos principais eventos da expansão do iFood. Destacamos a complexidade de identificar quem controla o iFood atualmente, pois, ao longo da história da empresa, houve muitas fusões, aquisições e aportes. Tais aportes revelam mudanças do controle acionário da companhia, nem sempre revelado ao público. Embora o iFood se apresente como sendo brasileiro, ele é, no momento atual, controlado pelo grupo holandês Prosus. Esse define-se como um « investidor e operador global de tecnologia », com domínio global ao controlar as empresas iFood, Delivery Hero, Swiggy, Flink, Foodics, Oda e Sharebite.
FIGURA 2 – A trajetória do iFood com os principais eventos de sua expansão
Fonte: Elaboração de Silvana Cristina da Silva a partir dos dados do iFood, 2024; (Cf Unicórnios brasileiros..., 2023).
17A estrutura organizacional do iFood revela os agentes envolvidos e como os lugares são mobilizados para atender às demandas da empresa e aos interesses dos investidores globais. Assim, a atuação da corporação envolve escritórios da Naspers, da Prosus e da Movile, os escritórios do iFood, o data center da AWS (serviços computacionais em nuvens da Amazon), os comércios e serviços do espaço urbano, os escritórios cadastrados no WOBA e na base desse sistema, estão os trabalhadores-entregadores. Além disso, há a atuação da empresa nas redes de mídias sociais (tecnoesfera digital).
18No Brasil, o iFood tem escritórios localizados em Osasco (sede corporativa), Belo Horizonte, Jundiaí, Ribeirão Preto, São Carlos, Uberlândia, Campinas, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiânia, Piracicaba, Salvador e Taubaté (Figura 3). A empresa fez parcerias com a Woba para a utilização dos coworkings, com o intuito de atender os funcionários dos escritórios. Associou-se à grande corporação do circuito espacial de produção da informação digital utilizando os serviços da AWS, a fim de realizar suas operações (Cf. ESTUDO…, 2018). Os escritórios do iFood estão agrupados principalmente na Região Sudeste. São Paulo concentra grande parte dos fixos, ou seja, é o centro de gestão do iFood. A sede corporativa da Movile está localizada na cidade de São Paulo. Os data centers da AWS estão nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, mas são para atender possíveis clientes em toda a América Latina.
19A estrutura organizacional do iFood revela a interação desta com outras organizações globais da era informacional e se vale da rede urbana nacional e global para realizar suas operações (Figura 4). Os escritórios marcam a existência das empresas-plataformas. São nesses espaços que ocorre o planejamento intencional e saem os comandos globais alterando as ordens locais. Através das sedes corporativas e presença nas bolsas de valores, observamos as ações estratégicas das empresas controladoras do iFood. Por meio desses fixos e de suas ações, identificamos a geografia do poder da era da digitalização.
FIGURA 3 – Rede de operações do iFood no território brasileiro
Fonte: Concepção: Autoras; Elaboração: Nágila da Silva Ferreira Souza, 2023.
20Como indicado no mapa da Figura 4, o centro de comando e investimento do iFood está localizado em Amsterdã, lugar do escritório-sede da Prosus e de onde saem os fluxos de comando e investimentos para o Brasil – onde a empresa iFood atua e local da sede da Movile (São Paulo). A Prosus é uma corporação de internet e tecnologia de capital aberto na bolsa de valores Euronext em Amsterdã e em Joanesburgo na África do Sul, tendo uma base de acionistas nos EUA (PROSUS, 2023b). Ela compra ações e investe nas companhias que abrangem serviços de consumo on-line envolvendo negócios nos setores de classificados on-line, entrega de alimentos, pagamentos e fintech e tecnologia educacional, totalizando 80 instituições. A corporação está presente em quase 100 países dos cinco continentes. É interessante notar que em alguns segmentos de atuação, a Prosus passa a comandar grupos locais em países como o Brasil, Índia, Romênia, Polônia e África do Sul (Cf. THE..., 2023). A Naspers é a sua proprietária majoritária, entretanto, a composição acionária e os fluxos de ordens e financeiro entre as empresas são opacos ao público em geral, característica cada vez mais marcante do processo de financeirização.
FIGURA 4 – Origem dos comandos para as operações do iFood no Brasil
Fonte: Concepção: Autoras; Elaboração: Nágila da Silva Ferreira Souza, 2023.
21A digitalização conecta-se com o processo de financeirização e concentração econômica, que se dá em escala global. Os fundos financeiros, gestores de plataformas digitais, investidoras de startups, empresas de tecnologia, estão por trás da aceleração de processos de digitalização, potencializando a oligopolização em patamares não identificados em outros segmentos (MORAES, 2020). No entanto, é significativo recordar que o fenômeno técnico (ELLUL, 1968 [1954]) não é novo, mas ganhou outras dimensões com as possibilidades advindas da internet e da popularização dos computadores e smartphones nas duas últimas décadas (SADIN, 2015 [2013]) e da algoritmização da vida quotidiana, em razão da exploração, em escala industrial de uma massa de dados, uma espécie de « fissão nuclear contínua e expansiva », em que toda sorte de informação pode ser traduzida em valor monetário (SADIN, 2015 [2013], 2018).
22O iFood é a empresa-plataforma que permitiu a digitalização dos serviços de entrega com relações baseadas na hiperexploração do trabalho. Ela inseriu uma nova forma de gestão dos estabelecimentos possibilitada pelo uso de um aplicativo. Promoveu uma nova maneira de consumo que requer mais fluidez territorial. Assim, podemos afirmar que esta companhia compõe e usa o meio técnico-científico-informacional, pois utiliza a tecnoesfera digital para produzir uma psicoesfera facilitadora da extração de dados referentes aos consumidores, bem como para captar os estabelecimentos e adequar os comportamentos às suas normas. Ela está ligada aos interesses econômicos de agentes globais e dos países centrais, complexificando as relações territoriais para além de sua ação no Brasil. Uma de suas aquisições envolveu uma empresa que se tornou a maior do ramo da inteligência artificial na América Latina, a Hekima. Ela trabalha com inteligência artificial, desenvolvimento de softwares e big data combinando técnicas de machine learning (aprendizado de máquina) e ciências comportamentais, intencionando, dessa forma, dominar o entendimento da « comunicação entre os objetos técnicos e automatização dos processos » e a « compreensão da psicologia humana » para a adesão dos serviços do iFood (NOBRE et al., 2023, p. 203).
23Assim, ao mesmo tempo que o iFood expandiu sua atuação no Brasil, se consolidou como agente ativo no processo da digitalização do território brasileiro, com normas pautadas na racionalidade neoliberal, globalizando-se por meio de investimentos em empresas globais de tecnologias e fundos de investimentos. Isso foi possível em razão da sua ação direta na construção da psicoesfera de aceitação dessa novidade.
24O iFood ampliou sua atuação no território através da produção dos consensos de uma demanda produzida pela pandemia, mas também pela insistente propaganda e pelo convencimento de que as entregas via app seriam a solução. Por isso, a psicoesfera é um elemento que integra a difusão da digitalização.
25No período da pandemia da covid-19, as relações sociais se estabeleciam intensamente no meio digital. O iFood utilizou as mídias sociais, o site e o aplicativo da empresa como recursos corporativos, a fim de fazer circular os discursos para a adesão de entregadores, estabelecimentos e consumidores e de educar todos os indivíduos dentro do processo da digitalização. Por isso, as linguagens de marketing e propaganda produzidas pela plataforma de entrega são parte da modernização digital do Brasil.
26Na era da digitalização surge o marketing digital. Agora a persuasão e o convencimento não ocorrem somente por intermédio de revistas, jornais, televisões, rádios, mas também através da psicoesfera digital, que envolve todo o aparato das redes de mídias sociais. As plataformas de publicidade têm papel importante, pois quanto mais possuem usuários, maior o poder de persuasão nos meios digitais e, por consequência, maior o poder de influência no território. Assim, a psicoesfera faz parte da realidade social justamente para facilitar e legitimar a exploração e dominação do iFood fazendo com que os produtos e alimentos pareçam acessíveis a todos. Entretanto, essa esfera acaba por facilitar a ação das plataformas, privilegiando as áreas onde estão as classes dominantes. Além disso, a psicoesfera administra o ritmo de nossas vidas e interfere na dinâmica dos lugares, intencionados acelerar a mais-valia das corporações.
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27Os discursos produzidos pelo iFood são construídos a partir da racionalidade neoliberal presente na própria política interna de gestão da empresa. Identificamos que ele dissemina os princípios neoliberais entre os trabalhadores dos escritórios. A ideia central usada é o (intra)empreendedorismo. Essa fala apresenta-se como uma possibilidade de empreender na carreira sem ser dono do negócio (PAPO SOBREMESA, 20216). O (intra)empreendedor comunica-se com o que Dardot e Laval (2016, p. 149) denominam sujeito neoliberal, « onde o indivíduo aprende a se conduzir », empreendedor de si.
28Pelo marketing, a intenção do iFood no período pandêmico (2020-2022) era sua expansão no espaço intraurbano, com a captação dos estabelecimentos e, sobretudo, dos consumidores. A plataforma de delivery prometia visibilidade aos locais comerciais, mas todos os investimentos em marketing eram voltados à divulgação da própria corporação, ou seja, por meio das propagandas, ele divulgava sua própria plataforma, e não os restaurantes cadastrados. Assim, ao invés de comprarem diretamente no local de venda, os clientes o faziam pelo aplicativo, infiltrando-se nas relações da economia urbana local. Foram várias as propagandas para a captação dos estabelecimentos e consumidores. O conteúdo do site direcionado aos comércios e serviços era composto por um marketing baseado em promessas, como obter novos clientes, expandir a área de entrega e aumentar as vendas. Com a urgência do distanciamento físico, as empresas-plataformas surgiram como salvadoras, alimentando a hegemonização da psicoesfera da modernização digital.
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29Em 2020, momento de eclosão da pandemia, o iFood utilizou técnicas de persuasão com o intuito de se apresentar como única opção face ao isolamento físico. A corporação usou esse evento como justificativa para a adesão dos consumidores na plataforma de delivery, estabelecendo a confiança nessa interação utilizando a técnica do rapport7 adaptado para o meio digital. Observamos que os objetivos dos discursos eram estabelecer uma confiança com os consumidores, com o intuito de realizarem suas compras pelo aplicativo sem se preocupar com o contágio do vírus da pandemia, o SARS-CoV-2. Além disso, a intenção era mostrar preocupação com seus entregadores, mascarando as relações de grande tensão entre a companhia e os trabalhadores, os quais, em 2020, organizaram várias paralisações por melhores condições de trabalho. Mas a psicoesfera é produzida para ser eficaz; nesse ano o número de pedidos foi de 48 milhões, bem maior que o do ano anterior, de 20 milhões. No site da empresa, havia uma página reservada somente para falar das medidas de proteção, mas tais informações, na verdade, tinham apenas a intenção de expandir sua atuação no território e aumentar a extração de renda. Poucas foram as medidas que de fato foram direcionadas à proteção dos entregadores e consumidores8.
30Durante a pandemia, o iFood também usou o tema « viver » nas propagandas. Empregava frases como « fazer mercado agora é assim »; « viver é também comer e pedir no iFood »; « viver é uma entrega ». Além disso, a empresa manteve o foco no distanciamento físico com os seguintes temas: « o mercado chega até você », ou « entrega sem contato », ou « com entrega, sem contato », fazendo o consumidor desconsiderar o risco de contaminação ocorrida por meio de entregas. Com esses discursos, percebemos que, além de incentivar o indivíduo ao consumo, elas intencionavam educá-lo para o processo de digitalização da vida urbana. Observamos a empresa usando a frase « viver é aprender » em uma das imagens de divulgação, com a legenda reproduzindo o discurso da conexão iFood-cliente, reforçando assim o consumo por meio do aplicativo.
31Dessa forma, fica evidente o papel ativo do iFood no processo da digitalização através da fabricação do consenso transformador do modo de vida urbano. Porém, o impacto da digitalização envolve a produção da psicoesfera dissimulada que mascara as relações de extração de renda e hiperexploração da mão de obra do entregador, seduzido pela psicoesfera neoliberal; a violação de dados coletados em grande escala no meio digital para maior influência sobre os indivíduos; e o prolongamento e aprofundamento das desigualdades, sobretudo, materializada no tecido urbano. Por um lado, o entregador hiperprecarizado está convencido de que não é um empregado da plataforma e que depende dele mesmo alcançar melhores ganhos, ao ser mais « proativo » nas entregas. Por outro, o aplicativo (a plataforma iFood) é um sistema sofisticado de captura de dados do trabalhador, do consumidor e dos estabelecimentos, que alimenta o banco de dados geridos por algoritmos e Inteligência Artificial, programados para ampliar o processo de extração de renda do entregador e dos lugares. Logo, a hiperprecarização sob o moderno fenômeno da digitalização, não são movimentos contraditórios e sim parte do circuito da produção do valor, agora intermediados pelas plataformas de serviços e pelas plataformas-raiz. Todavia, a ação das plataformas digitais nos lugares não se dá de forma abstrata, tão pouco são ações de modernização e criação de verdadeiras oportunidades de trabalho, conforme o discurso. A seguir analisamos a ação concreta do iFood em uma cidade marcada pelas desigualdades sociespaciais, na intenção de evidenciar que por trás dos algoritmos e dos fundos financeiros, há a força de trabalho que sustenta o sistema e um espaço urbano precário.
32Campos dos Goytacazes tem uma população de 483.551 habitantes (IBGE, 2022) e pode ser considerada uma cidade média (SPOSITO, 2010), em razão de sua influência regional e sua função de intermediação na rede urbana entre as cidades pequenas e as metropolitanas (Rio de Janeiro e Vitória). Está localizada na Região Norte do estado do Rio de Janeiro. Foi fundada em 1885 e tem sua história sustentada na atividade canavieira e no processo de escravização relacionado à produção de cana-de-açúcar.
33No final do século XIX, o crescimento físico da cidade se concentrava na área central de Campos, enquanto na área compreendida por Guarus não era constatada essa dinâmica de crescimento (FARIA; VIEIRA, 2005, p. 13). Os planos urbanísticos contribuíram para a estruturação do espaço urbano desigual (FARIA, 1998). As áreas centrais tinham – e têm – prioridade nas intervenções públicas, ao passo que os demais bairros das classes menos abastadas não eram alcançados pelos serviços e infraestrutura. Até a década de 1950, o Centro era o único bairro com a concentração de comércios e serviços da cidade e, nos anos seguintes, ocorreu a reestruturação com o surgimento das centralidades da Pelinca, o bairro Jardim Carioca e o subdistrito Goitacazes. Essa estruturação se mantém hoje (FÉRES, 2017, p. 26).
34Segundo Sposito (1991, p. 5-6), as centralidades surgem da divisão social do espaço, caracterizando-se como local de aglomeração de comércio e serviços geradores de fluxos, em geral, ligados a distintos níveis sociais e resulta na estruturação das cidades (em constante processo de (re)estruturação). Em Campos dos Goytacazes, identificamos 1.867 estabelecimentos que aderiram à plataforma de entregas (em outubro de 2022), sendo que há uma lógica de concentração deles correspondente às centralidades preexistentes.
35O município de Campos é composto de 14 distritos. Sua sede urbana localiza-se no distrito-sede denominado também Campos dos Goytacazes. Ele tem quatro subdistritos, no entanto, nosso recorte espacial inclui apenas os subdistritos Centro, Guarus e Goitacazes, que compreende a maior parte da área urbana da sede municipal. No subdistrito Centro, as maiores rendas concentram-se nos bairros Parque Avenida Pelinca, Parque Tamandaré, Parque Conselheiro Tomás Coelho, Jardim Maria de Queiroz, Parque Dom Bosco e Flamboyant, onde residem as classes com maior poder aquisitivo. No subdistrito Guarus, encontram-se os bairros com menores rendas. Somente os bairros Santo Antônio e Jardim Carioca obtêm os maiores ganhos nesse subdistrito. Todos eles são servidos por comércios e serviços do Centro e das subcentralidades do Parque Avenida Pelinca, Jardim Carioca e o subdistrito Goitacazes.
FIGURA 5 – Espaço urbano no distrito-sede de Campos dos Goytacazes
Fonte: Concepção: Autoras; Elaboração: Nágila da Silva Ferreira Souza, 2023.
36O Centro histórico é o centro principal da cidade e apresenta grande diversidade de comércios e serviços para atender sobretudo as camadas mais populares. Os bairros Jardim Carioca e Goitacazes têm comércios e serviços também voltados às classes de menor poder aquisitivo, mas o primeiro supre, em especial, os residentes no subdistrito Guarus, e o último, os moradores dos bairros de Goitacazes, Tocos e Donana. Os comércios e serviços do Parque Avenida Pelinca são compostos em particular por estabelecimentos voltados às classes de alto e médio poder aquisitivo, principalmente atendendo aos consumidores que residem nos bairros próximos a ele. É nessa estruturação do tecido urbano que o iFood atua mais fortemente (Figura 5).
37Segundo os dados analisados, o primeiro estabelecimento em Campos dos Goytacazes cadastrado na plataforma data de 2017. O cadastramento não ficou restrito àqueles localizados no Centro principal e nos subcentros, mas adentrou os pontos comerciais dos bairros e as próprias residências. Observamos a concentração das adesões na região da Pelinca, mas alguns bairros periféricos das classes de baixa renda, como Penha, Jockey Club, Turf Club, Nova Brasília, Parque Aurora, apresentam maior número de locais de atividades comerciais e de serviços cadastrados se comparado com o restante dos bairros. As únicas áreas que não mostraram adesões no subdistrito Centro são aquelas onde estão os condomínios residenciais horizontais das classes de alto padrão.
38No subdistrito Guarus, a concentração dos comércios e serviços da plataforma está localizada nos bairros Jardim Carioca, Parque Barão do Rio Branco, Parque Vicente Gonçalves Dias, Parque Presidente Vargas e Parque Alvorada, locais onde encontramos comércios e serviços ao longo da Avenida Senador José Carlos Pereira Pinto. A mancha de concentração vai perdendo intensidade à medida que vai se distanciando do Jardim Carioca (Figura 6). Os bairros periféricos onde residem as classes de baixa renda não apresentam estabelecimentos cadastrados nesse subdistrito.
39Embora os estabelecimentos cadastrados estejam distribuídos por diversos bairros do tecido urbano da cidade, os entregadores estão reunidos em cinco áreas: Centro; Parque Avenida Pelinca; Shopping Boulevard, próximo ao McDonald’s; e hipermercado Carrefour, ou seja, todos perto dos bairros centrais onde se encontra a maior concentração de renda.
FIGURA 6 – Concentração dos estabelecimentos cadastrados no iFood em Campos dos Goytacazes – 2022
Fonte: Concepção: Autoras; Elaboração: Nágila da Silva Ferreira Souza, 2023.
40A situação de hiperprecarização dos entregadores experimentada em todo o país, está presente em Campos dos Goytacazes. Os trabalhadores encontram-se em péssimas condições de trabalho e vivenciam um modo de vida urbano marcado pela escassez, passando grande parte do dia e da noite aguardando serem chamados pelo aplicativo – esse tempo de espera não é contado como hora trabalhada. Além disso, eles ficam à espera de receber os pedidos de entrega sem uma estrutura física que leve em conta as necessidades básicas de uma pessoa. Com base nessas condições, os trabalhadores se deslocam pela cidade, sobretudo, para os consumidores residentes nos bairros centrais se beneficiarem dos seus serviços prestados.
41Os pontos de espera dos entregadores indicam o espaço urbano usado por eles. Tais pontos sinalizam onde existem lojas cadastradas no Plano iFood Entrega e quais bairros utilizam esses serviços no app. Dessa forma, eles estão disponíveis para os comércios do Centro histórico e das centralidades dos bairros do Parque Avenida Pelinca; Parque Tamandaré; e Parque dos Rodoviários, onde está situado o Boulevard Shopping. Nesse plano, são cobradas maiores taxas aos locais de vendas que utilizam os serviços prestados pelos entregadores. Por isso, os subcentros do Parque Jardim Carioca, Goitacazes e demais centralidades nos bairros periféricos não aderem a ele – que oferece como opção as entregas realizadas pelos trabalhadores cadastrados no aplicativo. Isto ocorre porque esses locais de vendas dos bairros periféricos atendem a uma parcela de menor renda. O uso do Plano iFood Entrega implicaria no encarecimento desse serviço para os comércios e para o consumidor dessas áreas.
42Assim, observamos a forma seletiva das possibilidades de consumo dos serviços de entrega do iFood revelando a segregação e a desigualdade no espaço urbano. Tal fato ocorre, porque esta plataforma de delivery provoca e permite o acesso diferenciado a essas centralidades de Campos dos Goytacazes. As pessoas que compram produtos ou serviços não recebem a mesma forma de tratamento dos estabelecimentos comerciais cadastrados, sobretudo a população residente no subdistrito de Guarus, que não tem acesso a determinadas formas de entregas do iFood, como no caso do Plano iFood Entrega, que encarece os produtos.
43As classes de alta renda são servidas por todos aqueles que são cadastrados e têm a presença de entregadores próximos às suas residências. Revela-se, assim, a fragmentação urbana evidenciando a segregação urbana produzida pelo meio técnico-científico-hiperinformacional através do acesso diferenciado da cidade promovido pelas plataformas digitais.
44Embora a empresa possibilite, por meio do aplicativo, a compra de produtos e alimentos em diferentes bairros – expandindo o raio de atuação dos comércios –, a configuração espacial da sua atuação indica que os pobres das periferias não aproveitam todos os serviços da plataforma. Sendo assim, cada consumidor é satisfeito por uma camada específica de estabelecimentos; ou seja, de acordo com as centralidades e as camadas sociais por ela atendidas, verificamos que a segregação e as desigualdades sociais e de acesso à própria cidade – já existentes – são reforçadas pela digitalização.
45Ao analisar o deslocamento dos trabalhadores, podemos observar que a maioria das entregas realizadas por eles são nos bairros Centro, Parque Tamandaré e Parque Avenida Pelinca. As poucas aquisições realizadas nos comércios do Parque Avenida Pelinca pelo consumidor menos abastado – que reside em bairros mais distantes – envolvem produtos mais acessíveis.
46O trajeto de entrega com a origem no Parque Avenida Pelinca apresenta maior movimento em direção aos bairros do subdistrito Centro, ao passo que, ao subdistrito Guarus, apenas para os bairros Jardim Carioca e Parque Guarus. O subdistrito Goitacazes não apresenta fluxo de entregadores pelos produtos adquiridos nos estabelecimentos do Parque Avenida Pelinca através do aplicativo. Assim, a sequência de informações e de entregadores não associados ao iFood se concentram somente entre os comércios e serviços dessa área e os bairros atendidos por eles. Podemos afirmar que, na era digital, a atuação das plataformas de delivery ocorre segundo as centralidades preexistentes. Em outras palavras, o acesso aos comércios e serviços da cidade é diferenciado pela ação da plataforma reafirmando a fragmentação, a segregação e as desigualdades do espaço urbano.
47Dessa forma, tal empresa-plataforma possibilitou novos fluxos de informação em todo o tecido urbano, em função da forma inédita de consumo e gerenciamento dos estabelecimentos propiciada pela gestão algorítmica do espaço urbano. Trata-se da gestão corporativa e algorítmica do território abordada por Tozi (2021) concretizada nas cidades. Todavia, ressaltamos que o algoritmo não é neutro, os fluxos correspondem aos interesses das classes de maior renda e de poder nas cidades. A intermediação da circulação na cidade ocorre com base na coleta de informações da própria plataforma, como um sensor que identifica os lugares com renda potencial (perfil dos consumidores) e a disponibilidade de estabelecimentos, segundo a demanda identificada. A partir dessas informações, o algoritmo conecta os entregadores e orienta as rotas mais rápidas e rentáveis.
48O iFood é uma corporação que participa ativamente do processo de digitalização do território brasileiro e revela como os circuitos da produção do valor atualmente tendem a ser globais e mediados por plataformas geridas por fundos financeiros. O que implica na extração voraz das rendas das cidades.
49A pandemia da covid-19 foi o evento acelerador da digitalização. Assim, questionamos: Como as plataformas digitais renovam o tecido urbano das cidades? Nosso objetivo foi compreender a expansão dessa plataforma no Brasil no período de 2020 a 2022, tendo como referência a situação geográfica de Campos dos Goytacazes. A partir da pesquisa realizada, podemos tecer algumas considerações.
50O iFood – ao inserir uma nova forma de consumo e gestão dos estabelecimentos através do uso do aplicativo, em especial durante a pandemia – é um agente ativo no processo de digitalização no Brasil, promovendo a intermediação digital dos serviços de entrega e da economia urbana. Tal ação se deu e se dá por meio do uso do marketing digital como instrumento de fabricação dos consensos. Ou seja, atuou e atua na formação da psicoesfera afinada com a racionalidade neoliberal direcionada aos trabalhadores, bem como aos citadinos, a fim de absorverem a nova forma de acessar os comércios de alimento nas cidades. É esse sistema de valores que dá sustentação ao processo de acumulação do capital. Ele autoriza a plataformização sem limites e sem uma normatização de proteção aos trabalhadores. Um trabalhador que se entende como empreendedor de si e um consumidor mais do que perfeito, unidos por um aplicativo fornecedor de alimentos, produzidos por outros trabalhadores, onde cada um desses agentes transferiu renda para investidores globais cada vez mais difíceis de identificar, se deve em parte à promoção de uma lógica que evidencia as benfeitorias da digitalização e esconde a lógica perversa das relações de exploração do trabalho. Nesse sentido, a psicoesfera é relevante para iluminar esse processo.
51A referida plataforma de entrega está ligada aos interesses econômicos de agentes globais permitindo a intensificação da transferência de capitais para os centros estratégicos da empresa: Estados Unidos, Países Baixos e África do Sul. Desse modo, os nódulos da gestão constituem redes de atuação de atores hegemônicos que adaptam os comportamentos locais para a digitalização. À vista disso, o Estado torna-se extremamente importante na era digital através da regulamentação da atuação das plataformas em todas as escalas. Os fluxos de informações e financeiros são avessos às regulações que os impeçam de adentrar os lugares, mas ao mesmo tempo são exigentes por normatizações favoráveis a esses fluxos. As desregulamentações trabalhistas, as regulações da ação dos trabalhadores de aplicativos, a corrosão das leis municipais são alguns aspectos da necessidade do Estado afinado com as grandes plataformas digitais.
52Outrossim, constatamos a importância de algumas cidades em escala global na gestão do iFood (suas controladoras Prosus e Naspers), assim como da Região Sudeste do Brasil onde se concentram os escritórios corporativos das empresas, sobretudo em São Paulo. Portanto, apesar da digitalização, sua atuação depende da hierarquia urbana para ação e gestão. Dessa forma, as centralidades se mantêm mesmo diante da imposição das ordens globais.
53Os fluxos de informação são intensificados no espaço urbano na era digital, porém eles se valem do tecido urbano preexistente sem alterar a estrutura territorial. Identificamos que o iFood atua na cidade de Campos dos Goytacazes obedecem às centralidades materializadas historicamente. Estas, por sua vez, revelam a estratificação social urbana e as desigualdades de acesso aos bens e serviços na cidade. Constatamos que Guarus é desprivilegiado com relação ao atendimento oferecido pela plataforma. Logo, a digitalização renova as desigualdades, mesmo com um discurso de convencimento sobre suas benesses.
54Assim, não observamos alterações estruturais no tecido urbano em Campos dos Goytacazes quanto às suas funções. Houve a inserção e intensificação dos fluxos de informação pelo iFood. Entretanto, as centralidades materializadas historicamente foram renovadas, bem como as desigualdades espaciais. Apresentamos neste artigo alguns aspectos do fenômeno da expansão das plataformas digitais. No entanto, reconhecemos a necessidade de aprofundamentos tanto teóricos, quanto em relação a estudos empíricos.