1Quando Marx escreveu os seus Manuscritos econômico-filosóficos, indicou quatro aspectos principais da alienação: a alienação dos seres humanos em relação à natureza, a alienação dos seres humanos em relação à sua própria atividade produtiva, a alienação dos seres humanos em relação ao seu ser genérico e a alienação na relação do ser humano entre si.
2Tais aspectos podem ser sintetizados de forma abrangente: o estranhamento do homem da natureza e de si, e as manifestações desse estranhamento na relação ser humano-gênero humano e ser humano-ser humano. Desvinculando-se dialeticamente das perspectivas filosóficas anteriores, Marx enfatiza que não é fruto do acaso uma fatalidade da natureza, mas que se trata de uma forma de autoalienação. Ao mesmo tempo, como resultado de um tipo determinado de desenvolvimento histórico, pode ser superado, transcendido por uma intervenção prático-teórica que visa ultrapassar a autoalienação.
3Lefebvre (1968, p. 28), em Sociologia de Marx, reflete se:
Seria o homem, enquanto ser de necessidade, para Marx e para o pensamento marxista, objeto de uma de uma ciência particular que se poderia chamar de antropologia? Sem dúvidas. Os Manuscritos de 1844 esboçam essa antropologia e ao mesmo tempo contém a sua crítica. A antropologia (e a de Feuerbach é o exemplo típico) tende a imergir o homem na natureza ou a separá-lo dela. Ao contrário, o que é preciso perceber é a relação conflituosa entre o homem e a natureza: unidade (o homem mais desenvolvido não se separa da natureza) e luta (a atividade humana arranca da natureza a satisfação das necessidades humanas, transformando-a, devastando-a). O fundamento do ser humano na natureza pode legitimamente ser tomado por ontológico. Por outro lado, tudo o que o homem faz entra no vir a ser, isto é, na História. Mas não temos o direito de « ontologizar » a História e muito menos a natureza, fazendo dela uma filosofia, separando assim mais uma vez o humano do natural. As necessidades são estudadas na medida em que entram no movimento geral da espécie humana e enquanto estimulam as atividades do homem que vai tornando humano [...] a passagem da utilidade natural ao uso humano. O estudo das necessidades revela um entrelaçamento dialético. [...] A necessidade é, ao mesmo tempo, ato (atividade) e relação, em si mesma complexa, com a natureza e outros seres humanos, com objetos. Pelo trabalho o ser humano domina a natureza e se apropria parcialmente dela. [...] O trabalho torna-se uma necessidade. [...] O trabalho substitui a necessidade como sinal de impotência, pela necessidade como capacidade de gôzo, como poder de realizar tal ou qual ato. O ser humano substitui assim, aquela sua unidade com a natureza – imediata e pouco diferenciada, enquanto ser natural, – por uma totalidade diferenciada. Sendo múltiplo, ele se arrisca a mutilar-se pela alienação.
4Marx não foi o primeiro a utilizar o termo alienação nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844: o termo alienação aparece na metafísica, na religião ou mesmo no estoicismo, assim como o termo desalienação (quando, por exemplo, no estoicismo se percebe a possibilidade de superação da alienação pela razão e pela libertação da ligação – emocional – com o outro etc.). Como salienta Mészáros (2002, p. 183):
[...] naturalmente, o sistema do capital não surgiu a partir de alguma predestinação mítica nem das determinações decisivas e das exigências auto-realizáveis da chamada « natureza humana ». Em geral, está é sempre definida circularmente por filósofos e economistas políticos que adotam o ponto de vista do capital, e que descrevem o mundo em termos da característica de imposição de valores do sistema socioeconômico capitalista que, por sua vez, se supõe ‘naturalmente’ resultante da própria ‘natureza humana egoísta’. Todavia, apesar de toda a poderosa influência das ideologias que postulam nestes termos a origem do capital e sua dominação contínua, nem o início, nem a forçosa persistência desse modo de controle sociometabólico podem se tornar inteligíveis com base numa necessidade natural arbitrariamente postulada e historicamente insuperável [...] A natureza humana é em si inerentemente histórica e por isso totalmente imprópria para o congelamento arbitrário da dinâmica do desenvolvimento socioeconômico real visando atender à conveniência do modo de reprodução sociometabólico do capital. A história, ainda que muitas vezes tendenciosamente ignorada, não merece o seu nome a não ser quando concebida como aberta tanto em direção ao passado como na direção do futuro.
5Entretanto, nenhuma abordagem levou em consideração aquilo que era essencial para a dialética marxiana: o homem se faz, desenvolve-se dialeticamente por meio da relação humano-inumano no decorrer da história. Sob esse aspecto, Marx apresenta um sentido mais complexo e preciso às concepções anteriores acerca da alienação, saindo do labirinto metafísico e do labirinto moral, evidenciando o social e o histórico como princípios ontoepistemológicos para entendimento/superação da autoalienação.
6Em Marx, os termos entäusserung e entfremdung apresentam funções conceituais como alienação em português, fazendo alusão à alienação para expressar um princípio geral, um estado de coisas atual ou um processo que leva a tal estado, revelando, pois, exteriorização/reificação – entäusserung – ou o fato de o ser humano ser confrontado por um poder hostil produzido por ele mesmo – entfremdung, como se percebe em Marx (2004), Jappe (2014) e Mészáros (2016).
7Nesse desenvolvimento – e tomando como ponto de partida a categoria trabalho – Marx irá reconhecer que no desenvolvimento histórico concreto do capitalismo há a degradação da humanidade do homem baseada em sua grande ideia sintetizadora: « a autoalienação do trabalho » como causa que está na raiz de todo um tecido de estranhamento e reificação, que tem como substrato e como corpo tantos os estranhamentos manifestos da vida cotidiana como as concepções alienadas da filosofia e da ciência. Assim, a superação do Estado e a superação da filosofia e da ciência alienadas (Marx parte da defesa de uma « ciência humana » como expressão e como condição da superação da separação entre ciência e filosofia, teoria e prática) emergem como alvos de Marx para a caracterização da alienação, assim como para a sua suplantação, contradição e suplantação como nexos categoriais constitutivos da auphebung hegeliana.
- 1 Já em 1843, em «Sobre a questão judaica» e em «Crítica da filosofia do direito de Hegel», Marx ir (...)
8Para Marx, somente na prática social (nos Manuscritos acentua o trabalho alienado como dimensão ontológica dessa prática sócio-histórica de humanização do homem) é que se pode alcançar um nexo aglutinador entre os dois principais conjuntos de questões apresentadas nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 – o « porquê » (diagnóstico) e o « como » (transcendência) da autoalienação. É justamente nessa perspectiva que reside o caráter revolucionário do autor ao longo da trajetória do conceito de alienação, assim como por todo um programa de pesquisa amparada na teoria da alienação como central na filosofia da práxis (que, por conseguinte, conjectura-se como o coração do materialismo histórico-dialético) e que terá manifestações e ressignificações em O Capital, por exemplo.1
9Ao mesmo tempo, falar em prática social como fundamento do entendimento/superação da alienação pressupõe, em vez de confundir prática social como um conjunto de ações as quais podem ser descritas empiricamente, buscar um entrelace ontoepistemológico entre filosofia e antropologia, ou melhor, entre antropologia e ontologia.
10Sobre essas considerações, Mészáros (2016, p. 47) aponta que:
[...] a percepção profunda que Marx teve da verdadeira relação entre antropologia e ontologia reveste-se de suma importância. Com efeito, há uma só maneira de produzir uma teoria histórica oniabrangente e consistente em todos os seus aspectos, a saber, situando positivamente antropologia dentro de um quadro de referência ontológico geral adequado. Contudo, se a ontologia for subsumida na antropologia [...] princípios antropológicos apreendidos de modo unilateral que deveriam ser explicados historicamente tornam-se axiomas autônomos do sistema em questão e solapam sua historicidade. [...] É particularmente importante ressaltar aqui que não há como apreender o fator antropológico específico (« humanidade ») em sua historicidade dialética, a menos que seja concebido com base na totalidade ontológica historicamente em desenvolvimento (« natureza ») à qual ele, em última instância, pertence. A falha na identificação da adequada relação dialética entre totalidade ontológica e especificidade antropológica traz consigo contradições insolúveis. Em primeiro lugar, ela leva a postular alguma « essência humana » fixa enquanto « dado original » do filósofo e, consequentemente, em última instância, à liquidação de toda historicidade [...] O « princípio antropológico », por conseguinte, deve ser posto no lugar que lhe é próprio, dentro do quadro de referência geral de uma ontologia histórica abrangente. Em termos mais precisos, qualquer princípio desse tipo deve ser transcendido na direção de uma ontologia social dialética complexa [...] De modo similar, nada será compreendido sobre a alienante « natureza do capital » em termos dos postulados fictícios de uma ‘natureza humana egoísta’ tão cara aos economistas políticos [...] torna-se possível visualizar a transcendência (auphebung) da alienação, desde que essa questão seja formulada como uma transformação ontológica radical da estrutura social como um todo [...] somente se e na medida em que algumas condições básicas de uma transcendência ontológica forem satisfeitas – isto é, desde que haja uma ruptura efetiva na continuidade ontológica objetiva do capital no mais amplo sentido marxiano –podemos falar de uma fase qualitativamente nova de desenvolvimento: o início da « verdadeira história do gênero humano ».
11Nesse sentido, não cabe no sistema marxiano – no que concerne à teoria da alienação – apresentar o entendimento e a superação da alienação como elemento pontual de ações humanistas empiricamente observáveis, porém, desprovidas de acepção ontológica, tampouco apresentar prerrogativas morais (como pode ser percebido na moral judaica ou mesmo no humanismo de Rousseau – mas também em filósofos medievais como Santo Agostinho), mas, sim, identificar o possível do ser – na constituição do ser genérico – ao longo da trajetória concreta no processo de superação da autoalienação do trabalho, por meio de uma possível « reintegração da vida humana no mundo real, por meio de uma transcendência positiva, em lugar da auphebung (hegeliana) meramente conceitual da alienação » (Mészáros, 2016, p. 78).
12A (des)alienação, pois, passa a ser vista como instaurada no vivido, derivada de mediações as quais não são ontológicas ou essencialmente ligadas ao ser humano – como, por exemplo, a divisão do trabalho, a troca e a propriedade privada – engendrando produtos do homem. Esses subtraem a sua humanidade, fazendo com que a produção humana crie abstrações concretas, as quais são opressoras do autêntico concreto: o ser genérico, o humano, em sentido amplo, assim como as possibilidades de outras relações sociedade-natureza pautadas no comum como horizonte.
Atividade, divisão do trabalho, troca e propriedade privada constituem conceitos-chave dessa abordagem da problemática da alienação. O ideal de uma transcendência positiva da alienação é formulado como suplantação sóciohistórica necessária das mediações: propriedade – troca – divisão do trabalho, que se interpõem entre o ser humano e sua atividade e o impedem de encontrar satisfação no seu trabalho, no exercício de suas capacidades produtivas (criativas) e na apropriação humana dos produtos de sua atividade (Mészáros, 2016, p. 78).
13Nesse encaminhamento, pensar a desalienação em seus múltiplos aspectos pressupõe pensar a crítica das mediações. A crítica marxiana da alienação e os horizontes de sua suplantação, mediante o nexo abordado anteriormente entre ontologia e antropologia, na constituição de uma verdadeira « ciência humana » (Marx, 2004), perpassam, assim, pela rejeição das mediações. Não de toda mediação, mas das mediações de segunda ordem, uma « mediação da mediação », concreta, pois historicamente específica e oriunda da automediação ontologicamente fundamental do ser humano com a natureza, da mediação de primeira ordem.
14Para Marx, a noção de produção é central para pensar as mediações. Aspecto ontológico fundamental é o fato de o ser humano precisar produzir a fim de satisfazer as suas necessidades, evidenciando a relação ser humano e natureza a partir da atividade produtiva vista como mediadora da relação sujeito-objeto. Ratificando tal ideia, Postone (2014, p. 255) afirma que « a teoria da prática de Marx é a teoria da constituição e possível transformação das formas de mediações sociais », indicando, como já mencionado, as noções de produção e de trabalho alienado como centrais na transformação da totalidade concreta. Nesse sentido, « a ‘totalidade social’ existe por e nessas mediações multiformes. » (Mészáros, 2013, p. 58).
15A crítica estabelecida nos Manuscritos é que o ser humano se apropria de forma estranhada de seus produtos. O ser humano se encontra, no desenvolvimento do capital, numa encruzilhada que é a atividade produtiva vista como atividade alienada, já que não proporciona uma mediação humanamente não estranhada na relação sujeito-objeto. Em outras palavras, o ser humano se encontra reificado nesse processo, uma vez que o seu encontro com o seu ser genérico – aquele que poderia existir somente sem a institucionalização capitalista de todo um sistema de mediações de segunda ordem – se encontra negado. Assim, o próprio homem, em sua relação coconstitutiva com a natureza, torna-se objeto apropriado pelo capital em seu processo de reprodução.
16E é por isso que a economia política não é capaz de chegar às raízes da questão. Ela:
[...] concebe uma forma particular de atividade (divisão capitalista do trabalho) como a forma universal e absoluta da atividade produtiva. Consequentemente, no raciocínio dos economistas políticos, o ponto de referência último não pode ser a atividade mesma, tendo em vista o fato de que a forma particular da atividade – prática socioeconômica historicamente estabelecida do capitalismo – é absolutizada por eles (Mészáros, 2016, p. 86).
17Em sua crítica, Marx mostra que a economia política não assume a atividade produtiva como condição absoluta da existência humana justamente porque tal ponto de referência – o possível visto como possibilidades de transcendência positiva da autoalienação do trabalho – impossibilitaria a absolutização de uma forma específica, particular, de atividade.
18Mais do que um jogo de palavras, a inversão do universal e do particular realiza uma operação ontoepistemológica positivista para os economistas políticos que permitem a eles naturalizar toda sorte de mediações de segunda ordem do capital; a propriedade privada, a troca capitalista e o trabalho alienado não aparecem como pseudoconcreticidades ou mesmo como manifestações concretas de um mundo (ainda) não apropriado plenamente pelo homem (total) – em seu encontro com a sua genericidade – mas sim como realidades naturais e absolutas concretamente percebidas na realidade.
19Em interessante análise sobre essa questão e de forma sarcástica, Mészáros (2002, p. 182), em Para além do capital, afirma que:
[...] a idealização das relações capitalistas de troca tornou-se regra pouco depois de Diderot e outras grandes personalidades do Iluminismo formularem suas teorias. Essa idealização surgiu no horizonte em consequência da disseminação e consolidação do sistema dos ‘moinhos satânicos’, trazendo consigo a aceitação pelos economistas políticos burgueses de que a alienação e a desumanização eram o preço ‘que valia a pena ser pago’ em troca do avanço capitalista, não importa o quanto fossem miseráveis as chances de vida do trabalhador diarista de Diderot. Ainda mais tarde, até mesmo a memória do outrora sincero dilema de se ter de optar pela produção de riqueza capitalista, com toda a sua miséria e sua desumanização, desapareceu inteiramente da consciência dos ideólogos do sistema do capital.
20Em um sentido amplo, Marx traça a linha de demarcação conceitual entre trabalho como « manifestação da vida » e trabalho como « alienação da vida » (Marx, 2004). Distinguindo uma mediação adequada do ser humano com o ser humano – baseada em uma atividade motivada por uma necessidade interior à sua constituição como ser e em uma autoapropriação da atividade produtiva – de uma mediação alienada – na alienação da própria atividade de mediação, em uma desumanização do homem, sendo ele reificado no processo de imposição de regras e da apropriação de sua atividade pelo capital (um mediador estranho), Marx irá fundar nos Manuscritos a base para toda constituição da crítica do trabalho alienado – e de toda sorte de mediações de segunda ordem – no desenvolvimento da teoria crítica e da filosofia da práxis no século XX.
21Sintetizando a segunda ordem de mediações do sistema do capital, Mészáros (2002) aponta a existência de um círculo vicioso resultante da interação entre os componentes abaixo. Ele se refere ao modo como é estabelecido o controle sociometabólico do capital, enfatizando que os adversários da ordem estabelecida da reprodução sociometabólica têm de enfrentar e superar não somente a apropriação do trabalho, mas também a força destrutiva das mediações de segunda ordem, intimamente ligada a essa categoria.
A família nuclear, articulada como microcosmo da sociedade que, além do papel de reproduzir a espécie, participa de todas as relações reprodutivas do macrocosmo social, inclusive da necessária mediação das leis do Estado para todos os indivíduos e, dessa forma, vital também para a reprodução do próprio Estado; os meios alienados de produção e suas personificações, pelos quais o capital adquire rigorosa vontade férrea e consciência inflexível para impor rigidamente a todos submissão às desumanizadoras exigências objetivas da ordem sociometabólica existente; o dinheiro, com suas inúmeras formas enganadoras e cada vez mais dominantes ao longo do desenvolvimento histórico [...]; os objetivos fetichistas da produção, submetendo de alguma forma a satisfação das necessidades humanas (e a atribuição conveniente dos valores de uso) aos cegos imperativos da expansão e acumulação do capital; [...]as variedades de formação do Estado do capital no cenário global, onde se enfrentam (às vezes com os meios mais violentos, levando a humanidade à beira da autodestruição) como Estados nacionais autônomos; o incontrolável mercado mundial, em cuja estrutura, protegidos por seus respectivos Estados nacionais no grau permitido pelas relações de poder prevalecentes, os participantes devem se adaptar às precárias condições de coexistência econômica e ao mesmo tempo esforçar-se por obter para si as maiores vantagens possíveis, eliminando os rivais e propagando assim as sementes de conflitos cada vez mais destruidores (Mészáros, 2002, p. 180).
22Ainda, em alusão à importância do entendimento das mediações no sistema de reprodução e controle sociometabólico do capital, o autor afirma que:
[...] essa é uma questão não só extremamente complicada, pois os aspectos históricos do modo de controle sociometabólico do capital estão inextricavelmente entrelaçados, em sua dimensão trans-histórica, criando a ilusão de que o capital paira acima da história. É também de maior importância prática – e vital para a sobrevivência humana. Evidentemente, é impossível adquirir controle sobre as determinações alienantes, desumanizantes e destrutivas do capital (que demonstrou ser incontrolável ao longo de toda a história), sem a compreensão de sua natureza (Mészáros, 2002, p. 184).
23Desvencilhando-se de quaisquer aspectos ontoepistemológicos positivistas, faz-se, pois, alusão à mediação como objeto de problematização voltado à práxis. « O debate sobre as mediações passa (dialeticamente) do nível epistemológico (positivista) para o nível ‘ético-político’ » (Ciavatta, 2014, p. 212).
24Para Marx, qualquer tentativa de suplantar a alienação por meio do fim das mediações de segunda ordem deve estar em relação ao referencial da automediação ontologicamente fundamental da existência humana – mediação de primeira ordem – como contraposição à forma alienada. Daí surge o pressuposto (ético-político e ontoepistemológico, indissociável) da negação dialética de toda verdadeira teoria crítica. Nesse contexto, emerge o nexo aglutinador entre totalidade concreta em movimento e (im)possibilidade de encontro do homem com seu ser genérico.
Uma negação adequada da alienação é, por conseguinte, inseparável da negação radical das mediações capitalistas de segunda ordem. Contudo, se elas forem tidas como certas – tal qual, por exemplo, nos escritos dos economistas políticos, bem como nos de Hegel (e até na concepção rousseauniana como um todo) -, a crítica das várias manifestações da alienação estará fadada a permanecer parcial, ilusória, ou ambas. [...] A grande conquista histórica de Marx foi cortar o « nó górdio » representado por esses conjuntos mistificadoramente complexos de mediações, ao afirmar a validade absoluta da mediação de primeira ordem ontologicamente fundamental (Mészáros, 2002, p. 184).
- 2 Percebe-se essa relação nos Grundrisse pela alusão indireta à superação das mediações por meio do (...)
25Nesse sentido, emerge o possível como horizonte ontológico para qualquer epistemologia política e como « transcendência positiva da autoalienação » (Marx, 2004) por meio da práxis vista como apropriação. Essa apropriação ocorre por meio de uma relação dialética entre o particular e o universal2, o individual e o coletivo na (des)alienação, assim como a negação dialética das mediações de segunda ordem na atividade autoconsciente emancipatória e desalienadora.
26Salienta Marx (2007, p. 73) que:
[...] chegou-se a tal ponto, portanto, que os indivíduos devem apropriar-se da totalidade existente de forças produtivas, não apenas para chegar à autoatividade, nas simplesmente para assegurar a sua existência. Essa apropriação está primeiramente condicionada pelo objeto a ser apropriado – as forças produtivas desenvolvidas até formar uma totalidade e que existem apenas no interior de um intercâmbio universal. Sob essa perspectiva, portanto, tal apropriação tem de ter um caráter correspondente às forças produtivas desenvolvidas até formar uma totalidade e que existem apenas no interior de um intercâmbio universal. Sob essa perspectiva, portanto, tal apropriação tem de ter um caráter correspondente às forças produtivas e ao intercâmbio. A apropriação dessas forças não é em si mesma nada mais do que o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produção. A apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção é, precisamente por isso, o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades nos próprios indivíduos. Essa apropriação é, além disso, condicionada pelos indivíduos que apropriam. Somente os proletários atuais, inteiramente excluídos de toda auto-atividade, estão em condições de impor sua auto-atividade plena, não mais limitada, que consiste na apropriação de uma totalidade de forças produtivas e no decorrente desenvolvimento de uma totalidade de capacidades. Todas as apropriações revolucionárias anteriores foram limitadas; os indivíduos, cuja auto-atividade estava limitada por um instrumento de produção e por um intercâmbio limitados, apropriavam-se desse instrumento de produção limitado e chegavam, com isso, apenas a uma nova limitação. Seu instrumento de produção tornava-se sua propriedade, mas eles mesmos permaneciam subsumidos à divisão do trabalho e ao seu próprio instrumento de produção [...] O moderno intercâmbio universal não pode ser subsumido aos indivíduos senão na condição de ser subsumido a todos.
27Conjecturando-se como um círculo vicioso do qual aparentemente não há fuga, as mediações de segunda ordem se interpõem como destrutivas da mediação primária (Mészáros, 2002).
28Em seu desenvolvimento histórico, o homem está alienado da natureza e, ao mesmo tempo, de si, de sua própria atividade e da possibilidade de apropriação não alienada do seu produto e de si. A relação entre o homem e seu produto, na constituição do homem com seu mundo exterior sensível, assim como a relação do homem no ato da produção em suas relações sociais de produção, constituem-se em nexos centrais daquilo que Postone (2014) apresenta como abstrações – especialmente em suas análises sobre tempo abstrato.
O progresso do tempo abstrato como forma dominante de tempo está estreitamente ligado ao ‘progresso’ do capitalismo como forma de vida; ele se tornou crescentemente predominante à medida que a forma-mercadoria se tornava a forma dominante de estruturação da vida social [...] A forma abstrata de tempo associada à nova estrutura das relações sociais também expressava uma nova forma de domínio.
29O novo tempo proclamado pelas torres de relógio – frequentemente erigidas em frente aos campanários das igrejas – era o tempo associado a uma nova ordem social [...] A tirania do tempo na sociedade capitalista é uma dimensão central da análise das categorias marxianas. [...] Tal como o trabalho é transformado da ação de indivíduos em princípio geral alienado da totalidade a qual estes estão submetidos, o dispêndio de tempo é transformado de um resultado da atividade em uma medida normativa para a atividade. Esse processo, por meio do qual uma variável abstrata e independente que rege essa atividade, é real e não ilusório. Ele é intrínseco ao processo de constituição da sociedade alienada efetuado pelo trabalho. Sugeri que essa forma de alienação temporal envolve uma transformação da natureza do tempo em si. Não apenas o tempo de trabalho socialmente necessário é constituído como uma norma temporal « objetiva », que exerce uma obrigatoriedade externa sobre os produtores, mas o próprio tempo foi constituído como absoluto e abstrato (Postone, 2014, p. 248-249).
30Ou mesmo o que Lefebvre (1991a) apresenta como abstrações concretas – em especial em sua abordagem, na qual enfatiza a dimensão espacial da reprodução das relações sociais de produção, a qual será vista a contar desse momento – na dialética entre espaço abstrato e espaço social –, bem como da alienação e de todo um conjunto de mediações de segunda ordem.
31A partir dos Manuscritos, Lefebvre traça um sentido ontológico do homem – pela negação das mediações de segunda ordem e da constituição do « homem total » – não somente conforme um pressuposto ético-político que parte do « deve », mas do « é/está », na totalidade concreta em movimento (totalidade social). Assim como Marx, seu « materialismo humanista » apresenta epistemologicamente que a inversão parte-todo na acepção dos economistas políticos é um passo fundamental para a construção da naturalização da alienação – inerente ao homo faber – e, é claro, propõe uma nova concepção epistemológica, fundamental para um novo entendimento do real e das possibilidades de humanização do homem.
Devemos passar do produto isolado para a soma de produtos e, simultaneamente, da consideração dessa atividade fragmentária para a da atividade criativa como um todo. Essa integração é uma operação fundamental tanto na filosofia geral quanto em várias ciências específicas, nas quais uma mudança de escala deve ser efetuada para passar do elemento para o todo. Assim, a economia política exige que passemos da mercadoria em particular para o mercado: do ponto de vista do produtor isolado ao exame da produção e da produtividade como um todo. Essa mudança de ponto de vista é o correlato de uma mudança profunda na natureza do pré-fenômeno. A confusão entre as duas escalas leva a esses erros atuais entre economistas que, sem estar cientes disso, fetichizam o todo, imaginando-o como fora e acima dos fenômenos elementares, aceitos em seu isolamento. Também na sociologia e na história, devemos passar do ponto de vista psicológico e individual para o do todo social. E nas ciências naturais operações análogas podem ser encontradas, por meio das quais - graças a uma mudança de escala - podemos passar do fenômeno elementar até o resultado estatístico: o homem global. No que diz respeito à análise da atividade humana, tal operação é possível apenas porque o todo existe concretamente e preexiste seus elementos; em um sentido, esses elementos são reais, ‘em si’, como momentos de um todo, mas, em outro sentido, são simplesmente abstrações em relação ao todo. O todo social é dado como organização prática da Praxis. Essa mudança de escala corresponde à transição filosófica do Verstand (entendimento) para o Vernunft (razão), e dá a ordem para essa transição (Lefebvre, 2009, p. 115).
- 3 «A atividade do homem, analisado pela escala da práxis, recebe novas determinações, ou seja, uma fo (...)
32Nesse sentido, a « mudança de escala »3 no « mundo objetivo do homem », desenvolvida por Lefebvre (2009), está atrelada tanto a uma concepção epistemológica quanto a uma dimensão ontológica da constituição do homem. Se por um lado a relação entre parte e todo na « totalidade social » (vista como totalidade concreta em movimento) é modificada essencialmente (mediante a transição de uma epistemologia amparada em um positivismo acrítico da economia política para uma epistemologia política amparada nos Manuscritos), a naturalização do inumano (também realizada pela economia política, mas também por outras correntes de pensamento) é negada dialeticamente, na dialética humano-inumano constituída na práxis. E é justamente na práxis que reside a possibilidade de superação dialética da alienação do homem em relação aos seus produtos, assim como da alienação do homem em relação ao homem, indissociavelmente, na práxis.
Lefebvre desenvolve essa noção de alienação no capitalismo para abranger outras atividades além do trabalho, e busca abolir a alienação da vida cotidiana a partir de uma perspectiva marxista. Essa perspectiva marxista é o materialismo dialético, um humanismo concreto. Como diz Lefebvre, a alienação pode ser definida filosoficamente como um movimento único e ao mesmo tempo duplo de objetificação e externalização, de realização e desrealização. Mas esse movimento deve ser visto em sua profundidade dialética. O que realiza também é o que desrealiza. Embora também seja importante entender o lugar da alienação na obra de Marx, a verdadeira questão para Lefebvre é saber como seu conceito é útil nos dias de hoje, para a compreensão do mundo de hoje assim como para a sua superação. Todas as outras maneiras de colocar o problema são escolásticas (Elden, 2004, p. 43).
33Para Lefebvre, há nexos entre a totalidade social e as (im)possibilidades de constituição do « homem total »; contradição.
34A atividade não abole a contradição, ela vive nela. No momento próprio, enquanto trabalha para reduzi-lo, ele o carrega dentro de si; só pode controlá-lo e criar uma unidade superior, fazendo com que renasça para uma existência mais profunda. [...] A atividade de produção contém em si a mais profunda de todas as contradições: a oposição agonizante entre o poder do homem e sua impotência, entre a existência de um setor ou realidade que foi controlada e consolidada pelo homem, e outro ainda em seu estado natural, entre o que faz a vida do homem e o que causa a ocultação da morte (Lefebvre, 2009, p. 125).
35Como verdadeiro dialético, que ampara sua análise no entendimento da atividade e da produção, perceberá que o humano se desenvolve mediante a práxis ao longo do tempo e do espaço, não podendo evoluir « harmoniosamente » pelo esforço de suas boas vontades – como mostra o idealismo ou mesmo a perspectiva rousseauniana, perpassando pelas perspectivas moralistas, desses e de outros, do « deve » e não do « é/está », mas doravante o movimento contraditório da totalidade social. Nesse sentido, o humano (ainda não realizado, ainda como possibilidade) e o inumano (o humano estranhado, exteriorizado e reificado) são fatos na totalidade social, fruto das contradições ainda não solucionadas pela atividade. Essa ainda exteriorizada, estranhada, pois alienada.
O inumano na história (e na verdade toda a história foi humana!) não nos deve abater; nem constituir um mistério como a eterna presença do mal, do pecado, do diabo. O inumano é um fato e o humano também. A história mostra-os indiscernivelmente, até a reinvindicação fundamental da consciência moderna. Essa verificação vem a ser explicada pela dialética e elevada à categoria de verdade racional. O homem só se pode desenvolver através de contradições; logo, o humano só pode constituir-se através do inumano, de início a ele misturado para, em seguida, se distinguir, por meio de um conflito, e dominá-lo pela resolução deste conflito. Assim, o conhecimento, a razão e a ciência humanas tornam-se e permanecem instrumentos do poder inumano. Assim, a liberdade só pode ser pressentida e atingida através da escravatura. E assim, o enriquecimento da sociedade humana só se realizou mediante o empobrecimento e a miséria das grandes massas humanas. Da mesma forma, o Estado, meio de libertação, de organização, também foi e continua a ser um meio de opressão. Em todos os campos, o inumano e o humano revelam-se com a mesma necessidade, como dois aspectos da necessidade histórica, dois lados do crescimento do mesmo ser. Mas estes dois aspectos, estes dois lados, não são iguais e simétricos, como o bem e o mal em certas teologias (o maniqueísmo). O humano é elemento positivo: é a história do homem, do seu crescimento, do seu progresso. O inumano é apenas o lado negativo: a alienação (aliás, inevitável) do humano. Eis por que o homem, por fim humano, pode e deve vencê-lo, ultrapassando a sua alienação (Lefebvre, 1979, p. 35).
36Destarte, é na práxis – vista como superação da filosofia e da cisão política entre sociedade civil e sociedade política – que reside qualquer possibilidade de teorização da alienação por Lefebvre, segundo uma nova concepção dialética da noção de produção do homem (total), assim como é na atividade re-produtiva que reside a possibilidade de construção prático-teórica da desalienação mediante o referencial ontológico e epistemológico analisado anteriormente (mediação de primeira ordem, relação parte e todo etc.). Lefebvre, assim, resgatando todo o potencial político de superação da alienação dos Manuscritos, ampara-se nessa noção – a de produção – para a construção de um horizonte – o homem total –não mais atrelado às mediações de segunda ordem, as quais « pesam » sobre o humano, negando-o.
37Nesse sentido, resgatando e dialogando com Ciavatta (2014) e Mészáros (2002, 2006), o horizonte, o possível visto como transcendência positiva da autoalienação em Lefebvre está como potência (como virtualidade) de toda sua obra, já na construção ético-política e ontoepistemológica do livro Materialismo Dialético (Lefebvre, 2009), como ratificado por Elden (2004).
38No bojo da constituição desse referencial analítico, Lefebvre desloca o olhar da reprodução dos meios de produção para uma perspectiva muito mais ampla e complexa, a re-produção das relações de produção quando enfoca a produção do espaço, em uma contraposição clara com as interpretações estruturalistas que até então colocavam acento no modo de produção e não nas relações de produção.
39Lefebvre não nega a importância do conceito de modo de produção, apenas apresenta um novo sentindo para a sua compreensão na totalidade da obra de Marx. Entende-se, aqui, que a re-produção das relações de produção na produção do espaço possibilita dois caminhos mais ricos e mais condizentes com o pensamento de Marx: por um lado o entendimento (epistemológico) da totalidade social; por outro, o entendimento (ontológico) da contradição entre humano e inumano, na construção das possibilidades concretas de transcendência positiva da autoalienação. Parte-se do pressuposto de que o que aglutina as categorias de alienação e produção do espaço em Lefebvre é essa nova chave analítica delineada em sua obra – a reprodução das relações sociais de produção – a qual engloba e ultrapassa o conceito de modo de produção.
40Possuindo um alcance « global e sintético » (Lefebvre, 1973, p. 6) para a compreensão da produção e reprodução da existência no/do capitalismo, a centralidade desse conceito reside no fato de abarcar a totalidade das relações de produção – não se limitando a este ou aquele aspecto da reprodução da sociedade de forma isolada – assim como no ato de deslocar o olhar da atividade vista somente a partir da concepção do homem econômico (Lefebvre, 2009), ou mesmo com base em mediações de segunda ordem (sem um referencial ontoepistemológico, como fizeram os economistas políticos, filósofos positivistas etc.) para a atividade vista de forma contraditória, no diálogo conflituoso entre « o humano e o inumano », na constituição do homem total.
41Em Estrutura Social: A Reprodução das Relações Sociais (Lefebvre, 1977b, p. 187), percebe-se que, na formação do capitalismo, na sua gênese, é pressuposta:
[...] apenas a análise crítica da produção e da re-produção dos meios de produção. [...] É em 1863 que Marx descobre o conceito de « reprodução total ». A expressão aparece numa carta de 6 de julho dirigida a Engels, em que comenta o famoso Quadro Econômico de Quesnay. Marx julga que este quadro não resume apenas uma circulação de bens e dinheiro; mostre de que modo e por que razão o processo não se interrompe, pois reproduz as suas próprias condições. O fim do processo (ciclo) teórico, a saber, a repartição da mais-valia, restabelece o começo, na sequência de um conjunto complexo de movimentos: perequações, permutas, médias etc. Já não se trata, portando, da reprodução dos meios de produção, mas da reprodução das relações sociais. É na mesma época que Marx redige o « capítulo inédito » explorando um novo horizonte. Aliás, neste capítulo ele se limita a estabelecer que as relações de produção são o « resultado incessantemente renovado » do processo de produção e que a reprodução é também « reprodução de relações ».
42Como salientado pelo autor, o conceito de re-produção das relações de produção é uma « constelação de conceitos » (Lefebvre, 1973, p. 5), na qual se insere o urbano, o cotidiano, o espaço e a produção do espaço. Como ratifica Beveder (2014, p. 347):
[...] a problemática da reprodução das relações de produção em Lefebvre tem suas bases em dois eixos: na ampliação do conceito de produção para dar conta da realidade contemporânea a seus escritos e na crítica à polissemia do conceito que em Marx e posteriormente a ele, no seio da tradição marxista, possui duplo sentido, um deles amplo e outro restrito. No entanto, Lefebvre afirma que foi o sentido restrito de « produção » em Marx e Engels o apropriado pelas abordagens economicistas, fazendo com que, correntemente, o conceito deixasse de designar a produção de obras, em sentido amplo, limitando-se à produção de produtos/ coisas. Em sua acepção lefebvriana, o conceito não se restringe à produção material, dos meios de produção e das mercadorias, mas também abarca a produção das relações sociais e sua reprodução.
- 4 Em Espaço e Política, Lefebvre (2008, p. 48) afirma: «é preciso tomar como referência a reprodução (...)
43Nesse sentido, re-produção é concebida de maneira muito mais ampla, associada à totalidade concreta em movimento (totalidade social) – produção, portanto, ideológica, concreta, cultural, social etc.; produção do espaço, no sentido de Lefebvre (1991).4 Sobre a interação entre essa « chave conceitual », sobre essa « constelação de conceitos » (Lefebvre, 1973) e a noção de totalidade, Lefebvre (1977b) contextualiza o seu retorno – do conceito de reprodução das relações de produção – afirmando que,
[...] depois da Segunda Guerra Mundial, o problema central sobe ao horizonte, mas com uma lentidão surpreendente. A tal ponto que só depois de maio de 1968 ele emerge completamente das brumas. Foram necessárias nada menos que três reconstituições das relações sociais capitalistas em meio século para que esta reconstrução, depois de abalos, mais ou menos profundos, se tornasse « objeto de reflexão », do conhecimento crítico! A passagem das considerações respeitantes à reprodução dos meios de produção para aquelas que dizem respeito às relações de produção, isto é, a passagem de um conceito restrito para um conceito lato, exige um esforço singularmente difícil e ainda incompleto. Esta dificuldade só se explica cabalmente pelos obstáculos acumulados diante do pensamento crítico e pelos desvios que este sofreu. Foram assim necessários dezenas de anos para redescobrir a última descoberta de Marx. Será necessário expor de novo o trajeto de um conceito, o percurso de uma pesquisa? Sim, embora rapidamente, para reestabelecer o contexto, o ambiente e a linguagem. A crítica da sociedade existente, durante o período considerado (1950-1970), torna-se cada vez mais violenta, cada vez mais motivada. Do mesmo modo, as « crises » e momentos críticos tornam-se cada vez mais numerosos. Contudo, a crítica (mais ou menos radical) da sociedade não basta para isolar o novo conceito. Muitas vezes essa crítica, desejando ser radical, denunciando a sociedade burguesa e o neocapitalismo, exagera este ou aquele aspecto mais odioso e esconde o conjunto por baixo dos pormenores. Ela se apresenta como sintoma e como aviso da crise final. Ora, o conceito de reprodução das relações de produção incide sobre a totalidade, sobre o movimento desta sociedade no nível global. A maior parte das análises experimentou e ainda experimenta dificuldades em sair dos aspectos particulares que adquiriu e em elevar-se até o global. Por exemplo, a « sociedade do trabalho », ao estudar as empresas, rodeia muitas vezes o problema: como é que as relações capitalistas de produção se manifestam e se perpetuam no interior da empresa? Problema este que levanta outro: as relações de exploração e de dominação, de autoridade e de poder, que implicam relações entre aqueles que decidem e os que executam, poderão perpetuar-se apenas nos locais de trabalho, nas unidades de produção? Não implicarão condições exteriores às condições de trabalho? Onde, como e por que se realiza então esta reprodução que nem coincide com a produção como tal, nem com a reprodução dos meios, humanos e materiais, da produção? Por não considerar a questão, esta « pesquisa » contribui para mascarála desempenhando o papel de uma ideologia.
44A noção de produção de Marx, segundo uma concepção revolucionária de atividade, na contradição entre as (im)possibilidades de realização do homem total, ganha, pois, com Lefebvre (2009) e posteriormente com Lefebvre (1973), um salto qualitativo imenso para pensar a totalidade social, já que não apresenta somente um processo repetitivo, mas também abre para o possível, para os horizontes da (des)construção da repetição, a partir da produção de novas relações sociais; produto e obra, inumano e humano, privação e apropriação na contradição que é a práxis. Tal perspectiva epistemológica se associa à questão ontológica inerente à discussão proposta sobre o homem total justamente porque escapa do labirinto que é o entendimento do real pela perspectiva estruturalista, a qual somente visualiza o modo de produção, ou mesmo, percorrendo o século XIX, a perspectiva positivista; crítica interna e externa ao Marxismo.
Lefebvre reconhece a eficácia causal das forças e relações de produção. Ele observa que não existe uma correspondência estrita e que às vezes as coisas são produzidas pelas contradições no modo de produção. Igualmente, desde seus primeiros trabalhos, ele se preocupava com a relação entre produção e Verstand, ou entendimento. A produção de objetos isolados, que consiste em separá-los, determinando aspectos e propriedades deles, é uma atividade intelectual que isola e define, o que define significado. Compara o movimento entre observar o particular e definir o geral que ocorre no pensamento abstrato. Para Lefebvre, portanto, produção significa tanto a produção estritamente econômica de coisas - bens e produtos, mas também o conceito filosófico mais amplo, a produção de obras, a produção de conhecimento, de instituições, de tudo o que constitui a sociedade. [...] Primeiro, esse senso de produção não é rigidamente separado em produção material e mental. Não há produção material de objetos e produção mental de ideias. Em vez disso, nossa interação mental com o mundo, nossa ordem, generalização, abstração etc. produz o mundo que encontramos, tanto quanto os objetos físicos que criamos. Isso não significa simplesmente que produzimos a realidade, mas que produzimos como percebemos a realidade. [...] Lefebvre reconhece que, embora exista esse duplo senso de produção em Marx - quando ele estudava o capitalismo, ele naturalmente enfatizou a produção das coisas - isso explica, mas não justifica, interpretações unilaterais. Segundo, e mais do que isso, Lefebvre enfatiza que a produção não é trivial, nem mera produção econômica. A criação que é perseguida na práxis, através da soma de atos e existências individuais, e ao longo de todo o desenvolvimento da história, é a criação do homem por si mesmo. Lefebvre cita uma passagem dos Manuscritos de Marx de 1844 para apoiar isso: o conjunto do que é chamado história do mundo nada mais é do que a criação [ou produção] do homem através do trabalho humano. Portanto, é claro que a produção e a alienação estão intimamente relacionadas. Se os humanos são apenas um meio para atingir algum fim, um instrumento, então sua condição se torna desumana (Elden, 2004, p. 44).
45Nesse sentido, produção emerge no sentido de criação, na contradição entre o humano ainda não realizado e o homem total (Lefebvre, 2009). Eis as possibilidades de visualização do possível em Lefebvre como transcendência positiva da autoalienação do trabalho, como apresentado anteriormente com base em Marx (2004) e Mészáros (2002, 2006), assim como a possibilidade epistemológica de entendimento da re-produção do homem mediante a atividade. « A sagacidade de Lefebvre foi relacionar a produção social do espaço à natureza do trabalho no capitalismo » (Lencioni, 2015, p. 41).
A grande contribuição de Lefebvre para a tradição marxista, no âmbito da análise sobre a reprodução capitalista, reside justamente na resposta à pergunta sobre a forma e os meios que possibilitaram a sobrevivência do capitalismo. Para ele, isso foi possível pela produção do espaço, lócus de realização das relações sociais, condição para a sua produção/reprodução e, ao mesmo tempo, fruto desse processo. Destarte, a teoria da produção do espaço de Lefebvre deve ser considerada em sua conexão com o conceito de re-produção das relações sociais (Beveder, 2014, p. 349).
46No conjunto de textos publicados com o título Espaço e Política, em 1972, e em 1975, com A produção do Espaço, Lefebvre apresenta sua problemática espacial de forma mais explícita e com ainda maiores incursões em uma nova epistemologia (política). Como indica Gregory (1996, p. 104), « à exceção de alguns vultos solitários tais como Walter Benjamin e Henri Lefebvre, o marxismo ocidental do século XX manteve o mesmo silêncio estratégico com relação à espacialidade do capitalismo ».
47Resgatando suas análises dos Manuscritos de 1844, Lefebvre apresenta que o homem se cria por meio de um conjunto de produções, entre as quais se situa a produção do espaço, em um processo de re-produção social. Nesse processo, o homem se « realiza como produto de relações sociais através de um conjunto de relações que organiza a vida em comunidade – a partir da divisão do trabalho, da propriedade etc. » (Carlos, 2011, p. 40). Dentro dessas mediações, ele produz as próprias possibilidades de sua existência como ser social.
É nessa condição que nos deparamos com a noção de produção. Como escrevem Marx e Engels, a primeira condição da história é manter os homens vivos, a segunda é assegurar sua reprodução. Podemos dizer que esse processo acontece numa relação dialética sociedade-natureza, em que cada elemento da relação se transforma no outro e pelo outro, produzindo a vida e o espaço, ambos como criação real. Assim, o ato da produção da vida é, consequentemente, um ato de produção do espaço, além de um modo de apropriação. [...] as relações sociais têm concretude no espaço, nos lugares onde se realiza a vida humana (Carlos, 2011, p. 40).
48A ação humana de produção do espaço se realiza mediante o uso, na apropriação. Fundamentado nas práticas espaciais, o homem, ao mesmo tempo em que produz o espaço, produz a si; corpo e lugar, espaço e civilização como escalas espaço-temporais da produção do espaço com base no sentido de apropriação de Marx. Nesse processo, que é ontologicamente coconstitutivo da totalidade concreta em movimento (totalidade social), o homem é sujeito que se apropria e que age produzindo espaço e, dialeticamente associado a isso, a sua consciência. Destarte, o espaço mental e o espaço material se configuram, pois, como dimensões da produção do espaço (social). Permite-se, assim, deslocar o sentido da produção para além de sua dimensão econômica e da produção de mercadorias e produtos strictu sensu para uma perspectiva mais ampla e complexa.
O espaço foi formado, modelado a partir de elementos históricos ou naturais, mas politicamente. O espaço é político e ideológico. [...] Porque esse espaço, que parece homogêneo, que parece dado de uma vez na sua objetividade, na sua forma pura, tal como o constatamos, é um produto social. A produção do espaço não pode ser comparada à produção deste ou daquele objeto particular, desta ou daquela mercadoria. E, no entanto, existem relações entre a produção de coisas e a produção do espaço. Essa se vincula a grupos particulares que se apropriam do espaço para geri-lo, para explorá-lo. O espaço é um produto da história, com algo outro e algo mais que a história no sentido clássico do termo (Lefebvre, 2008, p. 62).
49Segundo Carlos (2011, p. 42), « o processo de produção distingue, ainda, o movimento de apropriação e de dominação como ato coletivo e socializado ». Como dominação, o espaço é produto a ser vendido, mediante a troca capitalista, fazendo tábula rasa da prática socioespacial.
Esse processo tem concretude no plano do cotidiano como o lugar da reprodução do capital e da realização das alienações impostas pelo desenvolvimento da lógica da valorização. Desse modo, invadida pela lógica da acumulação, a vida se define por uma racionalidade que objetiva assegurar a reprodução das relações capitalistas na totalidade do espaço – cuja produção se transforma em fonte de lucro – estruturando a vida cotidiana e dominando todos os espaços-tempos (da vida) sob controle direto ou indireto da norma e da vigilância. [...] A produção do espaço se impõe como condição, meio e produto da reprodução da sociedade no seio do processo geral de reprodução capitalista. Sob o capitalismo, a produção do espaço torna-se uma mercadoria, ganhando concretude prática na contradição dialética entre valor de uso/valor de troca. Em seu movimento de reprodução, domina as relações sociais através da generalização da troca (e da forma contratual), que se desdobra para toda a sociedade como necessidade de ampliação da base de consumo necessário à reprodução ampliada e sem limites do mundo da mercadoria. [...] Esse movimento de reprodução – sob a forma da mercadoria – realiza-se pela cooptação, quase total, dos níveis da realidade humana desde o acesso à moradia até a produção do imaginário assentado na constituição da sociedade de consumo. A partir do acesso inicial do indivíduo ao habitar (condição de sua reprodução) como ponto de fixação no espaço, articulam-se e constroem-se outros lugares capazes de responder à satisfação das necessidades imperativas da realização do sujeito. É nesse sentido que o espaço criado enquanto condição, meio e produto da reprodução social revela uma prática que é socioespacial (incluindo o tempo da ação). Nessa perspectiva, os diferentes momentos da vida – promovido em lugares determinados como espaçotempo da ação que reproduz o indivíduo – submetem-se à lógica do valor de troca como extensão do mundo da mercadoria anunciado pela Revolução Industrial no século XIX. Portanto, em seu movimento de produção-reprodução, o espaço urbano exibe um conflito agudo e violento entre o valor de troca (e, nessa situação, fonte de realização do lucro) e o valor de uso (a vida urbana realizando-se através dos usos dos espaços-tempos que são, em essência, improdutivos do ponto de vista do capital). [...] a prática espacial urbana despedaçada sinaliza o empobrecimento e a deterioração da vida social diante da extensão da mercantilização que acompanha a privatização do mundo. A urbanidade esfacelada em espaços fragmentados desvela a forma das relações sociais e a situação do cidadão reduzido à condição de mera sobrevivência, o que dissocia o homem da cidade. Os sentidos da vida se esvaziam com a negação do passado subsumido à nova ordem. Obra da sociedade, a cidade se impõe ao sujeito como potência estranha, atualizando a alienação no mundo moderno (Carlos, 2017, p. 35).
50Lefebvre (apud Carlos, 2011, p. 32) afirma que « a ação dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades, dois atributos: a dominação e a apropriação ». Para o autor, a dominação está associada ao produto (sendo a mediação e a propriedade privada como mediações de segunda ordem inerentes à sua constituição) e a apropriação à obra, um « escape » à fragmentação, hierarquização e homogeneização inerentes à re-produção do espaço, acentuando o uso do espaço como momento de reprodução da vida em seu caráter criativo.
51Assim como em O Direito à Cidade, em Espaço e Política e em A Produção do Espaço, Lefebvre, em O Marxismo, apresenta a relação entre apropriação e obra como superação da alienação: « o homem só se torna humano pela criação de um mundo humano. Na sua obra e pela sua obra, o homem se torna ele próprio, sem com ela se confundir e, no entanto, sem dela se separar » (Lefebvre, 1979, p. 39). Não há realidade humana sem « obras, mas não há obras sem atividade humana produtora. As obras não deixam de ser ‘o ser-outro’ do homem, que mantém com elas dupla relação: alteridade, alienação » (Lefebvre, 1967, p. 96).
52« A apropriação é a meta, o sentido e a finalidade da vida social » (Lefebvre apud Carlos, 2011, p. 32). O homem total, assim como a transcendência positiva da autoalienação do trabalho, e o possível emergem em sua espacialidade alicerçados na noção de apropriação desenvolvida por Lefebvre.
53Sobre o homem total e sua relação com a natureza, Lefebvre (2009, p. 139) assinala:
História social é a história da apropriação do homem pela natureza e por sua própria natureza. O trabalho social e a atividade econômica são os meios dessa apropriação, momentos essenciais da essência humana - depois de controlados e integrados por essa essência. Em si mesmas, elas não são essa essência. O homem econômico precisa ser transcendido, para que a liberdade do homem total possa se manifestar: ‘O homem se apropria de sua essência múltipla (Allseitiges) [...] na medida em que é homem total’ (Manuscritos). O movimento total é dividido pela ação e pelo pensamento. Essa separação não pode ser absoluta, mas tem uma realidade relativa baseada na luta do homem contra a Natureza. [...] Os produtos e as forças de produção são o ‘outro’ desse homem total, no qual ele pode ser destruído. A independência das forças econômicas - o destino do homem moderno - deve ser entendida e controlada. Assim que a objetividade do processo social é definida como tal, ela já está a caminho de ser transcendida. Ele se une à atividade do sujeito humano ativo e já objetivo, e lhe fornece um novo conteúdo objetivo; é subjetivado nele, mas apenas para que uma atividade humana mais objetiva possa surgir, que pode se tomar mais efetivamente como objeto de uma ação ‘se produza’ de maneira mais racional e seja sua própria criação consciente.
54Nesse sentido, o espaço como produção é expressão prática daquilo que a civilização, ao longo do seu processo histórico, foi capaz de criar.
A partir dessa perspectiva, pensar a produção do espaço significa pensar a propriedade como mediação inerente à alienação, na contradição entre apropriação e dominação, em um processo de re-produção das relações sociais de produção. A propriedade como fundamento nesse processo revela as concretas possibilidades de apropriação e dominação do mundo humano. Em sua forma abstrata, a propriedade privada aponta a alienação na prática, permeada e sustentada por cisões profundas. Daí a afirmação de que a objetificação é no fundo mimética, ao se constatar que os homens reais agem em um mundo onde as cisões se reproduzem e apontam as crises, pois a prática espacial revela o caos decorrente da lógica que orienta o processo em direção à reprodução capitalista. A existência da propriedade propõe a separação entre sujeito (que produz e transforma) e objeto (produto da ação), assim como as relações constitutivas dessa separação que se defrontam com a racionalidade capitalista segundo a qual a valorização orienta a finalidade da produção do espaço. Desse modo, a historicidade produz a reprodução do capital como alienação, e produz também o seu outro, isto é, as lutas de classe, que se desdobram e se ampliam (não sem imensas dificuldades), ultrapassando os limites do mundo do trabalho e da fábrica e redundando em lutas pelo e no espaço. Assim, se o desenvolvimento do homem genérico (homem total) reside no pleno desenvolvimento de suas capacidades criadoras como realização de virtualidades, a história mostra aquilo que freia esse processo: a produção desigual numa sociedade de classes fundada na concentração da propriedade e da riqueza, que torna a produção do espaço uma exterioridade em relação ao ser social (Carlos, 2011, p. 48).
55Portanto, no contrassenso entre dominação e apropriação, na produção do espaço, realiza-se a alienação por meio da privação que é inerente à constituição de uma sociedade baseada na propriedade privada e na troca como elementos da lógica da valorização, como fundamentos da « exteriorização da vida » (Lebensäusserung) porque são mediações de segunda ordem.
56Em outras palavras, como abstração conceitual, revelam-se as mediações de segunda ordem, coconstitutivas da produção (social) do espaço (social), na valorização do capital. Como aspecto da prática espacial, dimensão da re-produção das relações sociais de produção – assim como do inumano e do humano, contraditoriamente –, destacam-se a « desobjetivação de si », o seu « estranhamento », elementos da « exteriorização da vida (Lebensäusserung) » (Marx, 2004). Essa ideia difere da perspectiva idealista hegeliana, que associa o pensamento não ao mundo objetivo, mas define a vida fundamentada em uma racionalidade que objetiva assegurar a reprodução das relações capitalistas na totalidade do espaço – cuja produção se transforma em fonte de lucro – « estruturando a vida cotidiana e dominando todos os espaços-tempos (da vida) » (Carlos, 2017, p. 35).
57O espaço privatizado se torna fonte de privação. O sujeito (alienado) se encontra diante da produção do espaço como valor de troca, na constante integração ao processo de valorização, na contradição entre dominação e apropriação, revelada porque a reprodução do espaço no capitalismo se estabelece pela contraditória relação entre produção social do espaço e pela sua apropriação privada; privação.
58No bojo desse processo, que é objetivo e subjetivo, material e mental, « a consciência das alienações eclode na medida em que a apropriação se defronta com a propriedade » (Carlos, 2017, p. 36), assim como a consciência (mesmo que limitada/cooptada) com toda sorte de mediações de segunda ordem no processo de re-produção do espaço. Eis os caminhos centrais para pensar a cisão sociedade-natureza a partir da dimensão espacial da realidade, assim como as possibilidades de construção de análises que caminhem em direção à desalienação.