1Ao pensar o mundo do petróleo e as questões de soberania do território nacional, o tema da Ecologia Política se impõe inevitavelmente. No presente momento, as enunciações relativas à descarbonização da matriz energética invadiram até mesmo os discursos das próprias companhias petrolíferas. O tema da transição energética é tratado como novo consenso no debate público, e transformações profundas vêm ocorrendo no mundo da produção energética. No que se refere ao petróleo, o combate à poluição da atividade focou primeiramente na produção de derivados utilizados no transporte urbano, resultando no controle de contaminantes, principalmente o enxofre presente no diesel e na gasolina.
2Essa discussão está ampliada – o controle das emissões de CO2 é, na atualidade, a principal questão. Esse controle impõe àqueles que produzem e consomem combustíveis fósseis limites fundamentais às suas atividades. Muitas são as nuances dos interesses de quem defende a descarbonização da matriz energética. De toda maneira, o apelo é grande e envolve interesses geopolíticos e econômicos do tamanho do mercado internacional de petróleo.
3Nossa pesquisa tem-se debruçado sobre o papel mediador da Petrobras entre o mundo das finanças (a geopolítica do petróleo) e o território nacional. Ao refletirmos acerca da economia política do território, com a análise desse ramo, até aqui nevrálgico da indústria e da energia, destacam-se as questões eminentemente econômicas, como o preço da energia, dos derivados, o acesso dos brasileiros a esses benefícios e as pressões inflacionárias decorrentes do aumento ou diminuição desses preços finais.
4Para além dessas alterações, chamadas de curto prazo pelos economistas, as condições infraestruturais do território são ainda mais relevantes. Desde sua fundação, conforme a racionalidade que governa a Petrobras, temos ciclos que prepararam o território para um funcionamento soberano, para o atendimento das demandas internas do país, para o fortalecimento das relações horizontais no território, para a Formação Econômica do Brasil (Furtado, 2009). Também há ciclos de privatizações, de transferência das decisões estratégicas para as finanças e de preparo da infraestrutura legada para a exportação de commodities. Nesses casos, a Petrobras funciona como instrumento do Estado neoliberal, o Estado forte guardião do direito privado (Dardot; Laval, 2016).
5Nessas condições, ficamos diante do contraditório proposto por Gottmann (2012), do território tratado como recurso e do território como abrigo. Para as questões relativas à Ecologia Política, a ação soberana do Estado sobre seu território também se manifesta na racionalidade que controla a Petrobras e as demais empresas submetidas ao controle federal. Além disso, destacam-se as autarquias públicas, como o IBAMA, os órgãos estaduais e municipais de controle das atividades degradadoras e poluidoras.
6Conforme as diretrizes de quem governa o Estado, essas instituições valorizam mais efetivamente o território na condição de abrigo dos brasileiros, de sua fauna, sua flora, suas bacias hidrográficas, seus biomas, todas as suas coletividades, assim como suas atividades econômicas, sociais e culturais. Alternativamente, essas diretrizes podem priorizar o cumprimento do papel de atendimento do território como recurso que, neste momento da história, visando atender a sanha da finança internacional, da necessidade permanente do mercado de financeirizar novos fronts da economia real como forma de acumulação primitiva de capital (Harvey, 2014; Sassen, 2016).
7Mais fortemente desde a década de 1970, podemos observar o processo de financeirização da economia mundial. Esse processo foi antecedido pelo início de uma nova dinâmica de grande concentração de capital em poucas firmas. No mundo da economia real, começaram a se formar empresas que, por vezes, são maiores que os Estados nos quais operam, sobretudo se considerarmos as administrações locais das cidades, estados, municípios e províncias.
8Enquanto Friedman e Hayek eram promovidos a lideranças intelectuais no campo científico da economia, Margareth Tatcher e Ronald Reagan lideravam seus países e influenciavam o mundo com políticas do corolário neoliberal. No âmbito da economia real, poucas empresas concentravam capitais. Essas empresas passaram a operar oligopolisticamente os mercados, exercendo pressões e realizando lobbies junto aos agentes públicos. Assim como na psicosfera das nações, gradativamente, foram consagrados os métodos e os valores do neoliberalismo nos territórios.
9Esse processo de concentração de mercados em poucas empresas, ao mesmo tempo, implicou a transferência paulatina das decisões sobre como produzir, onde produzir, o que produzir e como distribuir para o universo do sistema financeiro. Isso resultou no aumento do controle exercido por esse sistema sobre os mecanismos de decisão no funcionamento cotidiano das empresas. Economistas, estatísticos e administradores passaram a substituir engenheiros, geólogos, médicos, professores nos quadros diretivos das instituições, tanto no ambiente fabril, logístico e comercial, quanto nas esferas não empresariais, como no setor público. A lógica da otimização, maximização dos lucros e receitas e minimização dos custos passou a ser adotada como regra geral e exclusiva nas decisões.
10Christian Laval (2022) aponta o papel da invasão dessa lógica na subjetividade das coletividades, assim como dos indivíduos, transformados agora em sujeitos neoliberais. Para ele, estaríamos neste momento, todos nós, submetidos a esse cânone, a conduzirmos nossas decisões cotidianas com base na competitividade. Diz o autor: « seu princípio é a concorrência, seu modelo é a empresa » (p. 21). Dessa forma, afirma que, embora não sejamos donos de alguma empresa, devemos nos comportar como se fôssemos uma, maximizando nossa satisfação e minimizando nosso sofrimento. Essa condição submete o sujeito a um conflito, como se ele agora fosse inimigo de si.
11Essa condição de inimigo de si pode, a nosso ver, ser aplicada à gestão neoliberal do território nacional. A proposição de Joseph Schumpeter (1961) previa que a capacidade de inovação de produtos, sistemas logísticos e processos em geral deveria incluir a permanente destruição criativa, mecanismo que dotaria as empresas de maior capacidade competitiva a não apenas sobreviverem no mercado, mas também aniquilarem os mercados, ou mesmo as empresas concorrentes.
12Esse princípio agora, não apenas econômico, mas ideológico e filosófico, passou a ser aplicável a todas as esferas da vida humana, desde os indivíduos, as empresas, todas as instituições ao próprio Estado. Talvez possam nos explicar por que a humanidade segue destruindo direitos civis conquistados, culturas tradicionais espalhadas pelo globo, como também a própria Terra que nos abriga.
13Após a Segunda Guerra Mundial, Schumpeter (1964) observou que a concorrência perfeita, tão propagada na teoria econômica liberal, não existe na economia real, apenas nos modelos teóricos, ou por curtos períodos de tempo. Apresentada como espécie de segredo da prosperidade das sociedades e suas economias reguladas pela mão invisível de Adam Smith, a concorrência de mercado, na realidade, manifesta-se no contexto intercapitalista como um ambiente predatório. Nesse cenário, ao longo do tempo, as firmas mais competitivas absorvem os mercados e até mesmo as próprias empresas concorrentes, transformando o mercado da livre concorrência em um mercado de oligopólios, em que poucas firmas concentram as decisões de produção, circulação e distribuição das mercadorias.
14Assim, a partir da metade do século XX, a racionalidade capitalista passou a trabalhar com a ideia da destruição criativa, conceito pensado para todos os aspectos da produção, distribuição e administração das empresas capitalistas. As margens de lucro que definem quem são os mais competitivos e que, portanto, sobreviverão e se apropriarão dos mercados das concorrentes, pertencem às empresas mais aptas a destruir o estabelecido e inovar (Schumpeter, 1964).
15A produção alienada, característica do capitalismo, passou a operar em alta velocidade, impulsionada pela busca da sobrevivência e orientada para a competitividade predatória, visando à produção maximizada de excedente, redução sistemática dos custos e à destruição permanente dos próprios processos estabelecidos. A destruição se tornou a norma, a forma e a ideologia.
16A financeirização da economia mundial aprofundou o processo de acumulação capitalista, ampliando a capacidade de esses oligopólios elevarem a sua destruição criativa em escala planetária. O neoliberalismo, apresentando-se como um conjunto ideológico e normativo da forma de administrar as empresas, o Estado, as instituições e as próprias vidas humanas, tornou a competitividade o único critério de nossas decisões e ações.
17Em Para além do Leviatã, Mészáros (2021) aponta que os valores liberais propagandeados nos discursos nos últimos séculos encontravam na realidade um Estado mais próximo das proposições de Hobbes e Hegel do que estados efetivamente liberais ou democráticos. Trata-se, nas mais das vezes, de estados fortes, porém, tirânicos na garantia da reprodução da desigualdade das classes. Nas palavras do autor: do caráter antagonístico do processo sociometabólico.
18Charbonnier (2021) argumenta que o Estado democrático liberal, desenvolvido pelo Ocidente ao longo dos séculos XIX e XX, ainda que tenha ostentado em seus discursos os ideais do liberalismo e da democracia eleitoral, na realidade, mantinha seu equilíbrio dinâmico e político, na luta de classes de caráter industrial.
19Nos últimos séculos, tanto nos aspectos relacionados à economia quanto à política e ao Estado, os valores liberais coloriam os debates. Contudo, no interior dos processos, a dinâmica se manifestava de maneira diferente. Nesse contexto, a destruição criativa, e não a livre concorrência, parece ter-se tornado uma espécie de motor da infraestrutura da economia política, agora consagrada no neoliberalismo, no mundo da produção, nesse tempo da financeirização do capitalismo.
20Até o momento, as soluções hegemônicas apresentadas para as contradições ambientais que enfrentamos parecem desejar a busca de um capitalismo sustentável. Como argumenta Oliveira (2022), não estamos contra a sustentabilidade, mas o problema, ao que tudo indica, somente encontrará reais soluções em novas formas de produzir, ou, se preferirmos reelaborar a frase, em um novo modo de produção que não tenha na destruição criativa, na otimização dos lucros e no capital sua centralidade.
21De toda a maneira, a humanidade tem-se dado conta da necessidade de transformações estruturais na matriz energética mundial. A poluição e a degradação ambiental são características do modo de produção alienado, baseado na geração de excedente econômico que atende os anseios da acumulação e degrada o território em seus aspectos humanos, sociais e ambientais.
22Muito utilizado pelo marketing dos grandes oligopólios da destruição criativa, o debate ambiental não raro se concentra mais em apresentar possíveis consequências catastróficas do que propriamente observar os mecanismos estruturais da produção da destruição planetária. Nas palavras de Bruno Latour:
Todos aqueles que esperaram da política da natureza uma renovação da vida pública se vêem constatando a estagnação dos chamados movimentos ‘verdes’. Eles bem gostariam de saber por que a montanha tantas vezes deu luz a um rato. [...] Nós não podemos fazer de outra forma, visto que não existe de um lado a política e de outro a natureza (Latour, 2004).
- 1 O Protocolo de Quioto foi o primeiro tratado internacional para controle da emissão de gases de efe (...)
23O Clube de Roma (1968), a Conferência de Estocolmo (1972), o Relatório Brundtland (1987), seguidos pela Rio-92 e o Protocolo de Quioto1 (1997) transformaram, ainda no século XX, o que chamamos de debate ambiental em princípios que passaram a influenciar a política, a economia e o direito internacional.
- 2 Limits to growth, nome do relatório encomendado ao MIT pelo clube de Roma, publicado em 1972. Dispo (...)
24O princípio dos limites do crescimento2 foi a pedra angular que orientou o debate em escala mundial, derivado desses grandes encontros internacionais. Nesse conceito, reside a ideia de que, se o mundo seguisse crescendo àquelas taxas de consumo e de produção, não haveria recursos suficientes no planeta Terra ao longo das décadas.
25Para os países periféricos, isso passou a ser uma condenação ao subdesenvolvimento, como se chamava no século XX. A retomada da consciência da Natureza e de seus ciclos apareceu no debate público ampliado, hegemônico, apresentando-se como uma grande irmanação dos povos em torno de seu futuro. Todavia, na prática, isso condenou o futuro dos pobres à escassez, o futuro daqueles que nunca desfrutaram de fato dos benefícios da dita sociedade moderna.
26Já adentrando o primeiro quarto do século XXI, essas contradições se apresentam ainda mais evidentes. Por um lado, os acordos ambientais foram sistematicamente desrespeitados, principalmente pelas nações mais degradadoras e poluidoras. Por outro lado, resultaram em um extenso arcabouço normativo que se refletiu em legislação ambiental rigorosa, pelo menos no caso brasileiro, e em uma moral tanto inabalável quanto um tanto vaga, nacional e internacional, que constrange sujeitos, Estado e mercados a se apresentarem como verdes e a favor do meio ambiente, eco-friendly.
27O Estudo de John Zapata (2022) na Colômbia evidencia como o mercado financeiro veleja pelos mares ambientais. Os mercados de crédito de carbono e a mercantilização da floresta naquela região reproduzem os mesmos mecanismos de acumulação de todos os sistemas extrativos dos períodos anteriores de modernização do território colombiano.
28No mundo da energia, mais especificamente em toda a cadeia industrial do petróleo, enxergamos claramente o que Latour (2004) propõe como « o parto da montanha de um rato ». O Acordo de Quioto de 1997 e seus desdobramentos nos encontros seguintes buscaram, por meio da normatização da produção, estabelecer limites de crescimento para a indústria do petróleo que, segundo Sauer (2016), corresponde de um quarto a um terço do excedente econômico mundial.
29O Acordo previu e impôs aos seus signatários reduções drásticas na emissão de gases de efeito estufa, sobretudo o CO2, nas atividades produtivas. Essa medida tenderia a inviabilizar as explorações dos poços de petróleo, visto que a queima do gás residual, realizada nas tochas de segurança (flares), produz toneladas de CO2, além de outros gases efluentes.
30Por suas características geológicas e físico-químicas, todo poço de petróleo possui quantidades maiores ou menores de gás. Portanto, para a produção de óleo bruto em plataformas, sempre é necessário encontrar uma finalidade para o gás residual. Antes da assinatura do Acordo e da implantação de suas restrições, as plataformas eram dotadas de grandes tochas de segurança que queimavam todo esse gás residual. Após a implementação das novas medidas normativas que impedem a queima desse gás, seu uso se tornou medida inevitável para a produção de óleo bruto. Passaram a ser necessários grandes sistemas de engenharia para a canalização, tratamento e destino do gás natural, outrora residual, transformado em derivado lucrativo da indústria petrolífera.
31Quanto mais leve o hidrocarboneto mais inflamável e explosivo ele é, em condições atmosféricas, para garantir estanqueidade de gases para transportá-los ou armazená-los, também são requeridas medidas especiais de segurança e robustez de equipamentos (juntas, tubos, parafusos, válvulas, compressores).
32Atinente ao transporte de líquidos (petróleo bruto, óleo diesel, querosene e mesmo a gasolina), a indústria do petróleo, desde a era de Rockfeller no final do século XIX, utiliza dutos para o transporte de longas distâncias. Os líquidos são físico-quimicamente incompressíveis, o que torna os controles de segurança dos dutos em relação a vazamento, roubos, sabotagens, e, consequentemente, os riscos de perdas, explosões e poluição mais facilmente mensuráveis e controláveis. Por outro lado, os gases são compressíveis e, portanto, requerem um controle operacional muito mais refinado dos indicadores de vazões e de pressão ao longo de toda a faixa de extensão do duto.
33Assim, o armazenamento e transporte do gás natural são mais complexos, caros e arriscados em comparação com os derivados líquidos. Para que o gás natural pudesse se tornar um combustível tão amplamente utilizado quanto os derivados líquidos de petróleo, historicamente foi necessário um grande aporte de investimento em tecnologias de comunicação e instrumentação, o estabelecimento de robustas malhas logísticas – como gasodutos que transportassem o gás das regiões produtoras para os mercados consumidores – e investimentos e estímulos para a conversão industrial, residencial e veicular para o consumo desse gás. Além disso, devido às dificuldades e custos elevados de armazenamento, era também necessário operar com a lógica de estoque zero, o chamado just-in-time.
34No Acordo de Quioto, o movimento ambiental colocava, por meio da normatização, a extração de petróleo em uma situação difícil, a indústria do petróleo estava encurralada. A desejada transição energética, a descarbonização da matriz energética, parecia próxima, e a necessidade de investimento em formas alternativas de produção de energia era o caminho único para as sociedades e grandes corporações do petróleo.
35Mas a montanha parece mesmo ter parido um rato. Ainda que as fontes alternativas de energia tenham recebido novos estímulos e investimentos, a produção do petróleo segue em crescimento e a indústria do gás natural, até então incipiente em comparação com a indústria do petróleo, encontrou um estímulo, dada a sua sobrevivência, a sobrevivência da exploração de óleo bruto. Agora, para produzir o óleo, era agora necessário produzir, tratar, escoar e consumir o gás natural. Assim, o gás não é mais um resíduo gerador de efluente (CO2), mas uma nova mercadoria de alto valor, uma fonte de energia livre de poluentes urbanos, como enxofre, nitrogenados e metais pesados, próprios dos derivados líquidos de petróleo.
36Nas últimas décadas, o desenvolvimento dos sistemas digitais de instrumentação e automação industrial, dos sistemas informáticos, telemáticos e a comunicação via satélites viabilizam o controle à distância de grandes faixas de gasodutos. O constrangimento trazido pela norma ambiental referente à proibição da queima do gás residual e, portanto, o consumo desse, fez com que as sociedades e as corporações de petróleo se transformassem em investimentos públicos e privados para estabelecer mercados consumidores – malhas de consumo de gás natural, estímulos à conversão veicular para o consumo de GNV e estímulo ao uso industrial em caldeiras e fornos como substitutivo ao uso do carvão e do óleo de caldeira, que é poluente e relativamente ineficiente. Em relação aos altos custos e às dificuldades de armazenamento do gás natural, a própria dinâmica industrial capitalista veio desenvolvendo e estabelecendo lógicas de mercado de estoque zero e just-in-time.
37A conjunção de elementos da norma ambiental aplicada, do processo industrial do petróleo e as características do período técnico-científico-informacional (Santos, 2014) criaram uma situação em que atender os novos constrangimentos normativos da legislação ambiental, levou a indústria petrolífera a encontrar um novo front de exploração econômica e energética.
38A indústria do petróleo é caracterizada desde suas origens na produção de excedentes e externalidades ambientais (Milaré, 2017), bem como pelos resíduos que, paulatinamente, são transformados pela própria indústria e pelo mercado em insumos, a princípio, baratos, para o desenvolvimento de novas demandas e novos usos energéticos, industriais, comerciais e residenciais. Quando, por exemplo, o motor a diesel, cuja história remonta ao século XIX, passa a demandar maiores volumes no mercado de derivados, a separação feita no refino produzia os hidrocarbonetos mais leves que o diesel, como querosene, gasolina, nafta petroquímica, butano, propano, propeno, gás combustível, e os mais pesados, como óleos de lubrificação, parafínicos, óleos combustíveis pesados, negro de fumo e asfalto.
39A família de técnicas relacionadas ao petróleo, conforme Santos (2014), caracteriza-se pela maneira como cada um desses derivados foi incorporado ao crescimento das cidades e às demandas urbanas crescentes ao longo do século XX, especialmente na segunda metade do século.
40O querosene, que já foi de uso de limpeza e iluminação, hoje é derivado de grande valor, usado como o principal combustível aeroviário; o mercado de automóveis particulares incorporou o mercado da gasolina; o propeno que foi de gás de queima e aquecimento, é atualmente insumo da indústria de polímeros e plásticos finos; a nafta petroquímica é insumo de toda a cadeia de derivados de borrachas, plásticos, flavorizantes, conservantes, defensivos agrícolas, materiais como PVC, fibras plásticas, fármacos, solventes, entre outros. Entre os derivados pesados, tem-se o asfalto, usado para pavimento em que circulam os veículos a diesel e gasolina que utilizam os óleos lubrificantes em seus motores e engrenagens. A dinâmica de estabilidade desses veículos é garantida por pneus de borracha que utilizam o subproduto negro de fumo como insumo principal.
41Outros resíduos da indústria de refino também foram transformados em mercadoria e têm acordos ambientais anteriores a Quioto como marco. As preocupações com a emissão de enxofre na atmosfera resultaram, por exemplo, em 1986, no PROCONVE3, o programa de conversão veicular, que trata principalmente da emissão de enxofre nos escapamentos automotivos.
42Esse programa, por um lado, constrangeu a indústria automobilística a alterar seus motores de maneira a reduzir a toxicidade dos efluentes emitidos pelos escapamentos dos veículos. Por outro lado, regulou a quantidade de enxofre permitido nos combustíveis derivados de petróleo para que a eficiência ecológica dos novos motores pudesse garantir a redução das emissões poluentes.
43Como consequência dessa norma ambiental, o controle da presença de contaminantes nos combustíveis demandou vultosos investimentos no refinamento de petróleo para a adequação ambiental das unidades de produção de diesel e gasolina. A remoção do enxofre resultou na produção desse ametal industrial, tanto em sua forma sólida quanto líquida, essencial na fabricação de fósforos, inseticidas, têxteis, além de ter aplicações na metalurgia, na indústria farmacêutica e cosmética. Seus principais compostos incluem o ácido sulfúrico (H2SO4), o dióxido de enxofre (SO2) e o sulfureto de hidrogênio (H2S).
44O movimento draconiano de normatizar a indústria do petróleo conseguiu movimentos importantes de enquadramento de poluentes e transformações estruturais nos processos produtivos dessa complexa cadeia industrial. No entanto, paralelamente, essas grandes dificuldades impostas pela legislação parecem ter estimulado essa indústria a ampliar sua capacidade produtiva e de seus mercados e, paradoxalmente, aumentou a importância da atividade petrolífera no cotidiano dos territórios.
45O exposto até aqui compõe o cenário da indústria do petróleo em contexto global. Dilemas fundamentais emergem quando pensamos na Petrobras e suas perspectivas futuras: que finalidade ela pode ter? Como podemos vê-la sob a perspectiva do atendimento aos interesses dos brasileiros e do território nacional? O que fazer com ela?
46O debate internacional acerca do meio ambiente, aparentemente, bem enraizado no cotidiano e no senso comum, pretende apontar para uma inevitável descarbonização da matriz energética mundial. Um retorno à discussão cíclica sobre os horizontes de fim da economia baseada no petróleo.
47O que diferencia a questão, neste momento, é que não está em discussão mais o esgotamento de um recurso não renovável. As descobertas em águas ultraprofundas, em que a Petrobras se destaca, abriram novos horizontes técnico e econômico. Entretanto, agora, o que ganha relevo são as preocupações relacionadas ao nosso modo de vida e à nossa capacidade de destruir nosso próprio habitat, juntamente com o aumento da capacidade dos órgãos reguladores e fiscalizadores de monitorar o descarte de efluentes nos solos, nos corpos hídricos ou na atmosfera.
48É importante destacar que este não é o espaço para um aprofundamento no debate. No entanto, é válido observar que a questão da descarbonização é permanentemente pautada pelos países do Ocidente Europeu, que são historicamente importadores de petróleo e gás. Esses países se encontram encurralados politicamente entre os interesses dos russos (grandes produtores de óleo e gás), dos chineses (grandes consumidores) e dos EUA que, além de grandes produtores, são importadores.
49Nesse cenário, a Petrobras é potencialmente um instrumento de soberania energética do Brasil. A capacidade dessa empresa hoje de prospectar, explorar, transportar e refinar o petróleo nacional pode garantir total independência às variações internacionais desse mercado que, como já argumentamos, corresponde à relevante fatia da produção de excedente econômico mundial.
50Dessa maneira, ainda que decidamos que o melhor para nosso futuro seja desmobilizar totalmente o uso de hidrocarbonetos no território, o controle soberano sobre a Petrobras é fundamental para existir o instrumento de aplicação da tomada de decisão. Contudo, mais premente do que essa hipótese definitiva, termos controle de como essa atividade é praticada no território nacional é ainda mais relevante.
51Os exemplos das catástrofes industriais consecutivas de Mariana e Brumadinho, praticadas pela antiga Vale do Rio Doce, agora a privatizada Vale S.A., demonstram a importância de os brasileiros terem controle decisório e político sobre o que é feito nessas atividades de grandes escalas e potencialmente devastadoras. Não é possível que convivamos com o controle político sob a lógica da destruição criativa em atividades dessa escala de risco e periculosidade.
52Portanto, nessa nossa perspectiva, os temas da Ecologia Política parecem encontrar os temas fundamentais da luta política cotidiana que enfrentamos em nosso território. A luta social e política não apenas não deve ficar obscurecida pelos temas ecológicos, como também se torna ainda mais relevante a importância da construção de mecanismos de controle social sobre as tomadas de decisão, sob o controle político das comunidades por quem habita nesses lugares.
53Meszáros (2021), fazendo a sua crítica ao Estado, propõe a superação do Estado Leviatã, destacando seu caráter genético de reprodução da diferenciação de classes. Mészáros convoca aqueles que enxergam um outro mundo possível – para além do capital – a produzir uma teoria crítica sobre o Estado na construção de um processo sociometabólico, em que o poder de decisão político esteja entre todos nós e não apenas em classes dirigentes.
54Dardot e Laval (2016), em Comum, defendem que a centralidade da reprodução da vida não apenas não deve estar no capital, na propriedade privada, mas na superação dessa terrível condição. Também não deve ter sua centralidade no Estado, na propriedade pública. Essa ideia entra em conflito com a concepção tradicional das teorias que defendem a construção do socialismo. Os autores sugerem que a superação dessas contradições pode ocorrer por meio do conceito de « comum ». Para isso, é necessário estabelecer novas instituições que se concentrem em decisões verdadeiramente democráticas, em que o modo de governar seja determinado pelas pessoas envolvidas nas atividades. Nas palavras de Dardot:
Pretendemos, aqui, reconhecer o sentido ativo do termo: o ato de instituir é o instituinte, e não o instituído existente (a escola, o hospital, o exército, a prisão). Instituir é fazer existir algo novo, mas a partir do que já existe. Duas formas são particularmente importantes: seja criar novas instituições, pois as já existentes tornaram-se obstáculos (por exemplo, criar uma cooperativa autogerida), seja transformar ou alterar o instituído já existente por que vale a pena salvar algo nele (por exemplo democratizar um serviço público). Falamos então de práticas instituintes que podem ser ‘criadoras’ ou ‘alteradoras’ e que consistem em produzir regras coletivamente (Dardot, 2022, p. 245).
55Ao refletirmos sobre a condição atual do Estado, deparamo-nos com algumas dessas instituições, nas quais « vale a pena salvar algo ». Instituições públicas que, no presente, são instrumentos do Estado em sua face produtora de território como abrigo. Se refletirmos a importância social de instituições brasileiras, como o SUS, o INSS ou o IBAMA, percebemos sua validade histórica e podemos desejar sua existência na construção e estabelecimento de um outro modo de produzir, um novo modo de viver. Muitas outras instituições de serviço público se enquadram nessa condição, como IBGE, ICMBIO, Universidades, escolas, CNPq, CAPES, Banco do Brasil, Caixa Econômica, Correios, IPEA, BNDES, Embrapa, INPE, companhias de saneamento e abastecimento de água, e tantas outras autarquias e empresas públicas.
56Assim também enxergamos a Petrobras. Como argumentamos, essa empresa tem sido, em diferentes momentos de sua história, um instrumento do Estado e da nação brasileira na construção de uma sociedade soberana – quando sua infraestrutura não é apenas utilizada como mecanismo de acumulação. A ação soberana que evocamos aqui não é mais a soberania do Tratado de Westfalia (Cataia, 2011) do Estado que defende uma competição com outros Estados e nações, protegendo os interesses particulares de elites econômicas e políticas locais.
57Muito ao contrário, defendemos aqui um novo enfoque da soberania popular. As burguesias nacionais, sobretudo nas periferias do sistema, tornaram-se internacionalizadas por meio do mundo das finanças e se comportam como sócias menores dos interesses externas ao território, transformando o território nacional em um espaço da economia internacional (Santos, 2000).
58Paolo Virno (2013) argumenta que, durante a criação das constituições dos Estados nacionais modernos, houve uma disputa etimológica sobre o tratamento do caráter popular da soberania que ficaria constelado nos textos constitucionais. O termo « povo » teria sido escolhido porque, segundo o autor, permitia que uma elite política definisse quais dos sujeitos nacionais formariam o povo legítimo daquele Estado, facilitando assim a predeterminação das condições e dos interesses soberanos daquela nação. Essa escolha foi feita em contraste com o termo « multidão », que representaria uma pluralidade persistente na cena pública, na ação coletiva e na atenção aos assuntos comuns, sem convergir no Uno.
59A socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (2005) propõe que essa multidão diversa, composta pelos sujeitos sociais comuns, muitos dos quais antes desconsiderados e vítimas de estereótipos e preconceitos, agora reivindica a defesa do território por meio da resistência cotidiana, muitas vezes na luta pela reprodução da vida. Eles transformam essa bandeira, outrora elitista, em uma causa progressista e inovadora. Trata-se da construção de uma soberania nacional que vai além da simples soberania estatal, promovendo uma soberania do lugar.
60Nesse momento, a bandeira histórica do movimento sindical petroleiro pela Petrobras 100% estatal, com controle dos trabalhadores, parece-nos uma condição necessária, mas não suficiente para que a empresa possa de fato enfrentar democraticamente as contradições inerentes à sua atividade no território. Podemos aceitar as propostas de Mészáros, Dardot e Laval e trabalhar não apenas em uma reflexão crítica sobre o papel dessa empresa e desse serviço público, mas também para instituir, ou transformar, a Petrobras em uma empresa comum, um serviço público comum?
61De toda maneira, o atual momento da correlação de forças políticas no Brasil nos permite lutar para que a Petrobras seja uma empresa que não apenas esteja voltada aos interesses nacionais em detrimento da acumulação capitalista, não apenas uma fornecedora de serviços públicos de qualidade, mas também uma instituição que contribua para a construção de uma verdadeira democracia.