1Os discursos acerca da sustentabilidade têm se inserido no planejamento urbano há algumas décadas. No entanto, o que se percebe é a apresentação desse tema enquanto fábula, tomando como referência as três globalizações apresentadas por Milton Santos (2003). Frente aos atuais problemas enfrentados, a despeito das mudanças climáticas, tem-se apresentado uma espécie de « globalização verde », na qual vivencia-se um suposto « desenvolvimento sustentável ». Todavia, ao observar mais a fundo, percebe-se a reprodução das problemáticas enfrentadas, agora sob uma ótica verde. Milton Santos, em seu livro « Por uma outra globalização », aponta três globalizações. A primeira delas é a globalização como fábula, que é justamente onde se insere o discurso deste desenvolvimento chamado sustentável. Este termo demasiado utilizado mascara os problemas nele entranhados.
2Pensar a cidade hoje é refletir sobre as resultantes do Estado neoliberal na formação socioespacial. Nesse sentido, faz-se necessário considerar a cidade neoliberal e a reprodução do espaço sob os comandos do neoliberalismo, pensando em como este atua sobre as cidades inseridas no contexto da periferia capitalista, tal como é o caso das cidades brasileiras. Como afirma Souza (2010), o planejamento dito sustentável reitera a necessidade de modernizações, mas, no entanto, preocupa-se em abordar a problemática ambiental, sobretudo nas cidades. Com foco em questões como o teor de CO2 emitido por automóveis, essa abordagem se mostra alheia aos problemas enfrentados pelas classes mais pobres. Nota-se nessa forma de planejamento o que Souza (2010) chama de fixação no crescimento, e isso cria uma situação paradoxal entre dois objetivos: o crescimento econômico e a proteção ambiental.
3No presente trabalho, pretende-se discutir a materialização do « desenvolvimento sustentável » e da « globalização verde » no planejamento urbano, especialmente na questão da moradia. Dedica-se aqui um esforço de compreensão da atuação neoliberal no espaço sob a ótica ambiental. Como exemplo empírico, apresentamos grandes empreendimentos imobiliários denominados sustentáveis e a lógica discursiva por trás deles.
4Tomando como exemplo empírico o Eixo Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte, objetiva-se mostrar casos concretos da mercantilização da natureza na cidade neoliberal. O município de Nova Lima, sobretudo, abriga uma diversidade de empreendimentos nos quais a natureza é utilizada como atributo para venda do lote, junto com o estilo de vida, cujo discurso é voltado à sustentabilidade e a uma nova forma de viver. A natureza, portanto, é vendida. Como cidade localizada na chamada APA Sul, o município de Nova Lima incentiva o uso « sustentável » da natureza nesses empreendimentos ditos sustentáveis. Nota-se, no entanto, que as classes populares são afastadas dessa natureza do Eixo Sul da RMBH, mostrando uma seletividade de acesso à natureza de acordo com a renda do indivíduo. Assim, busca-se demonstrar a fábula do capitalismo verde e do desenvolvimento sustentável.
5Monte-Mór (2006) fala da forma assumida pela urbanização no mundo contemporâneo, em que o urbano pode ser entendido como « uma síntese da antiga dicotomia cidade-campo ». A cidade industrial, cuja extensão territorial espraiou-se para além da cidade propriamente dita, tomando para si as regiões circundantes, iniciou uma nova forma de urbanização, a urbanização extensiva. Ela pode ser entendida, de acordo com Monte-Mór (2006), como:
a materialização sócio-temporal dos processos de produção e reprodução resultantes do confronto do industrial com o urbano, acrescida das questões sociopolíticas e cultural intrínsecas à polis e à civitas que têm sido estendidas para além das aglomerações urbanas ao espaço social como um todo (MONTE-MÓR, 2006, p. 10).
6Intensificada no Brasil a partir da segunda metade do século XX, a inserção industrial impulsionou-se neste território, sobretudo na região dita concentrada, com mais enfoque em São Paulo. Passou-se, então, de uma economia anteriormente centrada na exportação agrícola para uma economia de substituição de importações. A partir disso, as cidades industriais tornaram-se « polos de dinamização e de transformações seletivas no espaço e na sociedade brasileira » (MONTE-MÓR, 2006, p.11). O avanço da industrialização no Brasil, foi também um avanço da urbanização em espaços antes não atingidos ou pouco atingidos por esse fenômeno. Dentre os espaços atingidos por esse fenômeno, o autor destaca a fronteira amazônica e o centro-oeste.
É neste sentido amplo que se pode falar de uma urbanização extensiva que se impõe no espaço brasileiro para muito além das cidades, integrando espaços rurais e regionais ao espaço urbano-industrial através da expansão da base material requerida pela sociedade e economia contemporâneas e das relações de produção que são (ou devem ser) reproduzidas pela própria produção do espaço (MONTE-MÓR, 2006, p.12).
7Voltando a Monte-Mór, o autor destaca que neste processo as fronteiras urbanas se multiplicam conforme a lógica urbano-industrial predominante. Com a urbanização extensiva, observa-se uma dominação e centralidade dessa lógica sobre áreas tanto novas quanto antigas. É importante salientar que com a chegada da indústria ao território brasileiro, ocorre também uma significativa introdução de novas técnicas, as quais alteram o espaço em que são implementadas, gerando novas racionalidades. Posteriormente, essas técnicas se difundem, dando origem ao que Monte-Mór denomina de urbanização extensiva: a metrópole se expande, porém também se fragmenta, resultando na formação de vastas Regiões Metropolitanas.
8Nesse contexto de metropolização é que se apresenta a problemática em questão. Monte-Mór, apesar da existência das regiões metropolitanas, retoma as ideias de Henri Lefebvre ao afirmar que: « A área metropolitana é a expressão mais evidente da zona urbana mencionada por Lefebvre, representando a urbanização extensiva em sua forma mais notável e imediata » (MONTE-MÓR, 1994, p.170). Segundo o autor, os espaços urbanos em sua extensão são frequentemente considerados inertes, o que leva à pouca atenção dada à questão ambiental ou mesmo à sua negligência. Nota-se, entretanto, uma preocupação das classes mais privilegiadas com relação aos locais de habitação, voltando-se para a natureza e um estilo de vida sustentável.
9Por outro lado, ao se observar as classes menos favorecidas, percebe-se a exclusão delas do acesso a uma qualidade ambiental adequada, sendo que as questões que as cercam são muitas vezes tratadas apenas sob a ótica da legislação, com foco na informalidade. As condições de moradia, especialmente no que diz respeito à questão ambiental, apresentam disparidades consideráveis conforme a renda e a etnia dos moradores. Nesta urbanização extensiva, observa-se « a expansão fragmentada do tecido urbano » Costa (2006, p.112). Conforme a autora, ela inicialmente se dá sob a forma de assentamentos residenciais destinados às camadas de maior renda da população, empreendimentos complexos, que associam residência, comércio e serviço (COSTA, 2006, p.112).
10Esses empreendimentos evidenciam a conformação da metrópole cada vez mais fragmentada e corporativa (SANTOS, 2009). Todavia, fragmentada não apenas por sua expansão territorial, mas sobretudo pela impossibilidade de ser utilizada pela totalidade de seus habitantes. Assim, nesta urbanização extensiva, cujo processo de metropolização é a materialização, visualiza-se o que Santos (2009 [1990]) denominou modernidade seletiva, na qual
se justapõem e se sobrepõem traços de opulência, devidos à pujança da vida econômica e suas expressões materiais, e sinais de desfalecimento, graças ao atraso das estruturas sociais e políticas. Tudo o que há de moderno pode aí ser encontrado, ao lado das carências mais gritantes (SANTOS, 2009 [1990], p.15).
11A seletividade das modernizações na metrópole revela também a seletividade do Estado. A expansão da metrópole ocorre de forma diferenciada ao longo das Regiões Metropolitanas, e no caso de Belo Horizonte, há disparidades entre o Vetor Norte da RMBH e o Eixo Sul. A partir desses processos, é possível perceber claramente « a demarcação rígida de espaços excludentes » (COSTA, 2006). Na Figura 1, apresenta-se a localização da região que foi objeto de estudo neste trabalho.
FIGURA 1 – Localização da Região Metropolitana de Belo Horizonte
Fonte: Elaboração própria, 2024.
12As elites, além de estenderem seu controle para as esferas das políticas públicas, impõem sua lógica de ocupação de maneira direta e discursiva. Ao abordar a temática da moradia de forma intrinsecamente ligada ao debate da segurança urbana, esses grupos geram segregações socioespaciais que podem ser entendidas como o reflexo de sua existência e perpetuação como indivíduos numa sociedade.
13Pardes, ou paraíso em Hebraico, é a palavra que se refere a um jardim murado, segundo o Instituto de Estudos Bíblicos de Israel. Talvez essa palavra nunca tenha tido seu sentido tão bem definido como agora. Para alguns, é já estar neste « sonho maravilhoso, florido e colorido ». Para a grande maioria, aquela do lado de fora dos muros construídos por tijolos dourados, é apenas a quimera de um mundo que insiste em diariamente se mostrar enquanto realidade material, muito longe deste paraíso construído.
14A grande redoma por estes projetada, abarca desde as suas necessidades mais básicas até as mais absurdas megalomanias, tudo para apresentar força e poder. Esta busca de uma vida urbana, ausente dos problemas e contradições do urbano tem se mostrado uma anomalia cada vez mais presente, principalmente no Eixo Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
15Em certa medida, estes « paraísos » são vistos como modelo de gestão e solução frente aos desafios de ordem socioambiental que se apresentam no contexto urbano, por serem empreendimentos sustentáveis, planejados e inovadores. Assim eles conquistam o discurso público como um projeto de pessoas visionárias que relacionam e estruturam estes pilares que norteiam os rumos para um futuro melhor. Por meio destes mecanismos perversos, estes conglomerados abarcam grandes áreas em regiões perimetrais aos grandes centros, dispondo-as assim de uma centralidade construída, artificial, diante do assolamento dos aspectos naturais desses lugares. Ou seja, os empreendimentos imobiliários vendidos no Eixo Sul, que sempre remetem ao discurso de ecologicamente corretos, não somente constroem o ideário de sustentabilidade com base na venda de elementos naturais como qualidades exclusivas, como também utilizam a natureza como fator de segregação socioespacial.
16Natureza esta que é vendida não apenas como um elemento paisagístico, mas também como um « estilo de vida » embutido a essa aquisição. É como se a natureza fosse vendida junto com o terreno e mais, do que isso, a capacidade hermética de usufruir desta posse de forma privada. Houve dentro do sistema capitalista uma naturalização dos comandos de mercado e uma mercantilização acentuada dos atributos ambientais como necessários para a realização desta nova dinâmica de vida urbana sustentável. Além disso, vende-se o sentido do medo e das suas fragilidades presentes, mesmo que neste fenômeno sejam gestadas diversas violências sistêmicas. Ou seja, estes enclaves urbanos tidos como paraísos urbanos se apresentam de forma dicotômica daquelas urbanidades predominantes nos grandes centros, e respectivamente das suas mazelas e diversidades existentes. Segundo (COSTA, 2018. p.120),
Na urbanização elitizada do eixo sul, o capital imobiliário vem sendo bem-sucedido na apropriação de mecanismos de preservação ambiental, que, embora pensados para propriedades particulares, traz em si a noção de um valor de uso coletivo, transformando-os em mercadoria e agregando valor à terra e ao produto.
17Apresenta-se, nesse sentido, um novo urbanismo, que « tenta oferecer produtos diferenciados, alinhados com a ideia de vida bucólica e suave, tornando os espaços ‘habitáveis’ e agradáveis » (ALMEIDA; MONTE-MÓR; AMARAL, 2017, p.330). Este novo urbanismo ao quebrar as constituições básicas do metabolismo urbano, dotando este processo de artificialidade, os empreendimentos retiram da essência das cidades a capacidade de ser o lócus resultante das pessoas e dos objetos que os rodeiam, estando estes em modificação constante (HEYNEN, 2013).
18Como mencionado, o Eixo Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte está situado na APA Sul - Área de Proteção Ambiental ao Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte, que é uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável. Esta APA foi criada em 26 de julho de 2001, por meio da Lei Estadual nº 13.960, sob a gestão do Instituto Estadual de Florestas (IEF), e abriga empreendimentos imobiliários considerados « sustentáveis » e de alta renda. Nessa área, existe um conjunto de empreendimentos imobiliários considerados « ecologicamente viáveis ». Segundo Laschefski e Costa (2008, p.317),
O termo ecologicamente correto refere-se, por um lado, à proximidade com a natureza, ou melhor, à paisagem de beleza cênica como atributo da qualidade de vida, e, por outro lado, aos sistemas de tratamento de água e esgoto e à coleta seletiva de lixo. Assim, ecologia e natureza tornam-se parte do produto « solo urbanizado », acrescentando valor econômico ao produto, materializado pelos preços imobiliários. Assim, aparentemente, não há conflito nessa formulação.
19Estes empreendimentos, portanto, não são vistos como barreira à proteção da natureza; pelo contrário, integram-se, segundo o discurso do capitalismo verde. A proteção da natureza na APA Sul vai além do que Laschefski e Costa (2008) entendem como atributos para a aceitação de empreendimentos « sustentáveis ».
1) oferece benefícios econômicos diretos; 2) oferece benefícios indiretos através de um discurso ecológico que contribui para a agregação de valor a uma atividade econômica; e 3) é sustentada por um discurso científico-técnico justificando a proteção de certas áreas. (LASCHEFSKI; COSTA, 2008, p. 318).
20Sobre essa « natureza » que está sendo vendida junto ao lote no Eixo Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte destaca-se o seu caráter artificial. De acordo com Laschefski e Costa (2008, p.320), percebe-se então que « a beleza cênica da paisagem, então, já configura uma segunda natureza criada pelo processo de produção do espaço e de industrialização ». Nota-se ainda na APA Sul a seletividade com a qual a questão ambiental é tratada. Os grandes loteamentos implantados neste espaço correspondem a um grupo bastante específico: os moradores de alta renda. Assim, Laschefski e Costa (2008, p.320) afirmam que
Mesmo quando se assume que a construção de loteamentos fechados seja uma vocação desejada para a região, não há argumentos ambientais contra a implementação de loteamentos populares, pressupondo-se que sejam planejados com os mesmos cuidados ambientais que os primeiros. Contudo, isso envolveria investimentos públicos raramente destinados a esses fins.
21Dentre estes loteamentos, no município de Nova Lima um apresenta maior destaque, a Centralidade Sul Lagoa dos Ingleses, popularmente conhecido como CSUL, que se autodenominam como o « maior projeto de desenvolvimento urbano sustentável da América Latina ». Este empreendimento se apropriou de uma ideia proposta pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) da RM de Belo Horizonte, como aponta Drummond (2021, p.18):
Um megaempreendimento imobiliário capturou o PDDI como estratégia para se legitimar na região. Até seu nome se valeu da nomenclatura utilizada no plano: Centralidade Sul (CSul). O PDDI também serviu para ancorar justificativas locacionais constantes do relatório de impacto ambiental do empreendimento.
22Este projeto se baseia continuamente em uma ideia de sustentabilidade, destacando a preservação ambiental e como se diferencia dos demais projetos, como pode ser observado na Figura 2, que corresponde a uma imagem retirada do site do empreendimento0. Conforme Mello (2022) « a construção discursiva acionada pelos idealizadores da CSul cria um imaginário urbano uniformizado », prevalecendo ali determinados atributos universalizantes, dentre eles « sustentabilidade, inovação tecnológica, qualidade de vida, contato com a natureza e segurança ». Atributos estes que conferem uma espécie de distinção aos possíveis compradores.
23Conforme Drummond (2021), o empreendimento CSul está previsto para ocupar uma vasta área de aproximadamente 20 milhões de m² nas proximidades da Serra da Moeda, contemplando mais de 34 mil unidades domiciliares. Essa iniciativa é conduzida pela CSul Desenvolvimento Urbano, composta pelos principais acionistas Grupo Asamar, Alicerce/Tangará, Mindt e Barbosa Melo Participações e Investimentos (BPMI), com o projeto elaborado pelo escritório de Jaime Lerner.
FIGURA 2 – Anúncio do Projeto CSul-Lagoa dos Ingleses
Fonte: CSul Lagoa dos Ingleses (2023). Disponível em: https://www.csullagoadosingleses.com.br/projeto-csul. Acesso em: 16 jun. 2024.
24Este empreendimento se associa ao chamado « Novo urbanismo », surgido na década de 90 nos Estados Unidos. Em seu site oficial, o empreendimento apresenta a ideia de uma ocupação urbana sustentável, com a preservação natural. Conforme a CSul o loteamento ali proposto possui 10x mais área verde por habitante do que o recomendado pela OMS. Nota-se, neste empreendimento, uma ideia de natureza vendida junto ao lote.
A proposta da CSul encontra diálogo com os pressupostos do Novo Urbanismo e se tornam evidentes no discurso de Lerner. Segundo seu site oficial, a CSul possui quatro pilares que orientam a proposta do masterplan e da futura ocupação para a área: sustentabilidade; pessoas; inovação e tecnologia; planejamento e desenvolvimento (MELLO, 2022, p. 57).
25A Figura 3 apresenta o empreendimento mencionado, bem como a sua proposta de ser entendido como parte do Novo urbanismo. Conforme Mello (2022), termos como sustentabilidade; pessoas; inovação e tecnologia, « tornam-se recorrentes nos materiais de divulgação e nas discussões públicas do projeto – seja em seu Estudo de Impacto Ambiental (EIA), em palestras, audiências públicas ou eventos ». (p.54). Percebe-se assim, o uso Novo urbanismo como estratégia do empreendimento, mostrando a todo momento que a forma de urbanização proposta se difere das anteriores, sendo ela sustentável.
FIGURA 3 – Novo Urbanismo conforme a CSul – Lagoa dos Ingleses
Fonte: CSul Lagoa dos Ingleses (2023). Disponível em: https://www.csullagoadosingleses.com.br/projeto-csul. Acesso em: 16 jun. 2024.
26Nas campanhas publicitárias desenvolvidas por este empreendimento, conforme Mello (2022), os termos mais presentes são aqueles associados à proximidade com a natureza proporcionada pela localização privilegiada da CSul. De 454 peças analisadas, quase 80 utilizam os termos « meio ambiente », « natureza » e « sustentabilidade » (p. 95). A natureza enquanto produto é visível nas peças publicitárias da CSul Lagoa dos Ingleses, como se pode observar na Figura 4, a Serra da Moeda, ameaçada por empreendimentos variados, aparece ao fundo. Juntamente a ela, a Lagoa dos Ingleses, artificialmente criada, representando a « segunda natureza » anteriormente mencionada.
FIGURA 4 – Vida ao ar livre – Csul Lagoa dos Ingleses
Fonte: CSul Lagoa dos Ingleses (2023). Disponível em: https://www.csullagoadosingleses.com.br/projeto-csul. Acesso em: 16 jun. 2024.
27A Centralidade Sul Lagoa dos Ingleses exemplifica a fábula do capitalismo verde, que se nutre de conceitos como sustentabilidade e natureza, enquanto simultaneamente degrada a primeira natureza. Este empreendimento ilustra a contradição inerente ao capitalismo verde: enquanto promove uma imagem de responsabilidade ambiental e respeito pela natureza, na prática, suas operações frequentemente resultam na destruição e exploração dos recursos naturais.
28Percebe-se, por fim, que a APA Sul deveria ser um mecanismo capaz de contribuir para um melhor uso da natureza de forma sustentável, mas acaba por sustentar privilégios de classe, dado o acesso desigual das classes aos espaços com qualidade ambiental. O Eixo Sul da RMBH, em sua totalidade, apresenta-se como um espaço de segregação; na verdade, é um espaço homogêneo preparado para pessoas de alta renda que compartilham o mesmo estilo de vida. O novo urbanismo, representado pela CSul, evidencia esta afirmação. Distanciadas dos problemas enfrentados pelas populações de baixa renda, essas pessoas, juntamente com o mercado e, por que não, o Estado, constroem uma fábula, a de um capitalismo verde, cujo desenvolvimento se dá de modo sustentável.
29Constitui-se como elemento central do debate acerca da formação artificial destas tais centralidades a caracterização e recaracterização da natureza em um conjunto de organizações e organismos de consumo, que diferencia a vida urbana « comum », difusa e alucinante com estas simulações urbanas envelopadas. Diante de um processo de alteridade, ou seja, a capacidade de se ver e identificar no outro relações que os interagem e se complementam, estes grupos se fecham em sociedades e por consequência indivíduos que replicam e legitimam este status quo.
30Neste cenário, a natureza, cada vez mais rarefeita no espaço urbano, se torna produto para uma formação socioespacial concreta. Sendo ela passível de especulação financeira, contribuindo fundamentalmente como catalisadora da segregação socioespacial, retirando aspectos da cidadania de seus habitantes.
31Percebe-se também como o capital imobiliário se liga ao discurso da sustentabilidade ecológica, tomando de assalto e utilizando tal ideário para validar o seu crescimento, requerendo mudanças legislativas que as favoreçam e diminuindo, mesmo que discursivamente, as pressões que poderão aparecer. Nesse sentido, nota-se como a natureza é desligada da ideia de « comum » para produtora de renda diferencial.
32Neste artigo, reforça-se que a modernidade se expressa de forma incompleta e seletiva na visão socioespacial, sendo notada na materialidade destes empreendimentos. Fica nítido que « a valoração simbólica da natureza metamorfoseada em forma de vida e sonho de consumo de uma habitação exclusiva e diferenciada » (COSTA, 2008, p.120) se materializa no Eixo Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte, sobretudo, no município de Nova Lima.
33Em consonância com essa mercantilização da natureza, percebe-se por meio desses empreendimentos ditos sustentáveis um catalisador do processo de segregação socioespacial, contribuindo para que os habitantes se tornem cada vez menos cidadãos. Há uma verdadeira reinvenção da natureza pelo capital, podendo-se visualizar a modernidade incompleta e seletiva do espaço. A « modernidade ecológica » vem a serviço de um dado grupo e as benesses dela provenientes pouco ou nada servem às classes populares, de maneira que tal seletividade pode ser sentida e vivida no cotidiano.