1No Brasil, as áreas protegidas são chamadas de Unidades de Conservação (UC). Conforme definição na lei n.º 9.985/2000, a UC é um « espaço territorial e seus recursos ambientais [...] com características naturais relevantes [...], sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção. » (Brasil, 2000). No âmbito da Geografia, diversos trabalhos discutem complexidades relacionadas ao estabelecimento de áreas ambientalmente protegidas, sobretudo a respeito de conflitos com populações que mantêm relações outras de reprodução material e imaterial com a natureza e acabam tendo suas práticas, de certa maneira – ou completamente –, cerceadas. Existem modificações profundas no modo de vida das pessoas em função da política ambiental. Ainda assim, é importante apontar que as Unidades de Conservação também funcionaram durante as últimas décadas como uma das últimas fronteiras a conter, por exemplo, o avanço da especulação imobiliária em diversas localidades. Esse contexto é intrinsecamente marcado por contradições, pois, apesar de dificultar a reprodução social de certos indivíduos, em certa medida, são também o instrumento garantidor dessa reprodução.
2Entretanto, nos últimos anos, diversas áreas protegidas vêm sendo alvo do avanço do controle empresarial por meio dos dispositivos legais ambientais, isto é, por meio das unidades de conservação, diversas novas modificações têm sido impostas pelo Estado e pela iniciativa privada. Sendo assim, a privatização da natureza ganha destaque atualmente como uma nova e urgente agenda de pesquisa a respeito das complexidades das áreas protegidas, tendo a Geografia grande relevância na contribuição da análise.
3É preciso questionar o pensamento da natureza e sociedade como dualidades, bem como produção e meio ambiente, e outros binômios do tipo (Oliveira, 2020). Na verdade, a experiência espacial e histórica do capitalismo sempre foi marcada por diferentes estratégias de acumulação, fundamentadas na apropriação da natureza. Contudo, nos últimos anos, casos como o avanço da fronteira agrícola, o desmatamento oriundo da expansão da sojicultura e da pecuária e os crimes ambientais ligados à mineração, por exemplo, colocam em xeque as dualidades citadas, bem como o momento contemporâneo de ressignificação da proteção da natureza, cada vez mais orientada para o mercado.
4Segundo Neil Smith (2007), estamos em um período em que a relação socioeconômica com a natureza está sendo profundamente transformada. Nas décadas de 1980 e 1990, as mercadorias ecológicas passaram a figurar no centro do radar do mercado. O autor atribui, dando destaque para a contradição, o aprofundamento da criação de mercadorias ecológicas ao sucesso de movimentos ambientalistas dos anos 1960 e 1970. A legislação ambiental, que evidentemente se desenvolveu de forma desigual em diferentes contextos, foi ampliada após essas décadas. Porém, o alargamento da política ambiental do final do século XX alterou a dinâmica ao fazer com que o mercado rompesse com o antagonismo entre desenvolvimento econômico e preservação. Em vez disso, passou-se a enxergar uma oportunidade econômica sustentada na abertura de um novo domínio para acumulação de capital. Em outros termos, as áreas protegidas se tornaram um novo mercado de bens ecológicos.
5Bakker (2010, p. 216), sobre esse momento de reorganização, aponta que a década de 1970 foi caracterizada por mudanças significativas, voltadas para a criação de estratégias de acumulação intensiva por meio da mercantilização da natureza. Essa reorganização foi uma resposta do capital aos movimentos ambientalistas da época, que apontavam os limites da abordagem instrumentalista da natureza como mera fonte de recursos e, ao mesmo tempo, sumidouro de resíduos. Esse período foi marcado também pela emergência do neoliberalismo, em que, « simultaneamente, a produção de naturezas neoliberais tornou-se um projeto global, mediado por organismos financeiros internacionais » (Bakker, 2010, p. 216).
6A política ambiental brasileira sempre esteve conectada, de alguma maneira, aos interesses turísticos (Gomes, 2021). Hoje, no Brasil, as unidades de conservação de diferentes níveis de gestão estão sendo centralizadas em projetos de concessão privada, seguindo variados modelos legislativos em um processo que consideramos se enquadrar no contexto neoliberal.
7Uma das categorias de UC são os Parques, que podem ser de âmbito Nacional, Estadual ou Municipal. Dos 74 Parques Nacionais (PN) do Brasil, apenas 3 estavam sob regime de grande concessão privada até 2017: Parque Nacional Fernando de Noronha (PE), Iguaçu (PR) e Tijuca (RJ), todos geridos pelo Grupo Cataratas. Sendo assim, o estado do Rio de Janeiro possuía um dos três dos Parques Nacionais (PN) sob gestão privatizada até 2017.
8Além disso, está no estado o primeiro Parque Nacional do Brasil, criado em 1937, o Parque Nacional do Itatiaia que, em 2019, também passou a ser operado por meio da concessão privada de serviços públicos, com a empresa Hope como vencedora da licitação. Essa concessão fez parte do Programa de Concessão de Serviços de Apoio à Visitação em Unidades de Conservação Federais.
9Em 2021, o Parque Nacional da Bocaina, na região sul do estado, e o Parque Nacional Serra dos Órgãos, na região serrana, foram incluídos no Programa Nacional de Desestatização, vinculado ao Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, « para fins de concessão para prestação dos serviços públicos de apoio à visitação », conforme o decreto n.º 10.673, de 13 de abril de 2021. No ano seguinte, o decreto n.º 10.958, de 07 de fevereiro de 2022, inseriu outro PN do estado do Rio de Janeiro, Restinga de Jurubatiba, no mesmo Programa.
10Em síntese, no estado do Rio de Janeiro, existem cinco Parques Nacionais: Itatiaia, Serra dos Órgãos, Tijuca, Restinga de Jurubatiba e Serra da Bocaina. O primeiro está localizado na divisa com o estado de Minas Gerais, e o último na divisa com o estado de São Paulo. Todos esses PN estão atualmente em algum estágio do processo de concessão privada. Esse cenário não se restringe somente aos Parques Nacionais, tendo em vista que as legislações estaduais também foram reformuladas para promover a privatização da gestão de unidades de conservação nessa esfera.
FIGURA 1 – PN Tijuca, PN Itatiaia e PE Ilha Grande
Fonte: Organizado pela autora (2022).
11Conforme exposto, o Estado vem buscando priorizar a gestão privada de áreas protegidas. A partir da análise da apropriação estatal da natureza para criação de unidades de conservação e da apropriação privada para sua gestão, surge o problema a ser investigado – o processo de neoliberalização da natureza em curso no estado do Rio de Janeiro, sobre o qual o presente trabalho busca apresentar considerações, com foco em casos específicos como o Parque Estadual da Ilha Grande (PEIG), Parque Nacional da Tijuca (PNT) e Parque Nacional do Itatiaia (PNI), conforme a Figura 1.
12A metodologia empregada se fundamenta em pesquisa bibliográfica, documental e de campo.
13Em relação à pesquisa bibliográfica, dividida entre seleção e análise para discussão teórica das temáticas da pesquisa, foram utilizados autores como Oliveira (2011 e 2020); Smith (2007); Harvey (2008, 2016); Bernini (2019); Penna-Firme (2015); Brockington, Duffy e Igoe (2005); Claval (2005) e outros como suporte para reflexão de conceitos como desenvolvimento sustentável, ecologia política, neoliberalismo e neoliberalização da natureza. Na medida em que o trabalho analisa especificidades do estado do Rio de Janeiro, também Mascarenhas (2014), Tunes (2020), Gomes (2021) e outros.
14Em relação à pesquisa documental, foram analisados os mecanismos da legislação ambiental nacional e fluminense, como o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, e a legislação voltada para a promoção das parcerias entre Estado e iniciativa privada, a partir de 2004, quando entrou em vigor a Lei das Parcerias Público-Privadas. Foram investigadas as reformulações legislativas dessa década no que concerne à questão ambiental, como a inserção das unidades de conservação do estado do Rio de Janeiro nos programas de desestatização a partir de decretos. Pesquisas de campo foram feitas na Ilha Grande entre 2016 e 2021, em que foram realizadas entrevistas abertas com diferentes agentes, e participações nas audiências públicas que discutiram a Parceria Público-Privada para a gestão do PEIG.
15A política ambiental, turística e de concessões no estado do Rio de Janeiro é destacada. Há, no RJ, 446.000 hectares de áreas estaduais protegidas, incluindo 19 unidades de conservação de proteção integral, 14 unidades de uso sustentável e 5 parques nacionais, segundo o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), órgão responsável pela administração das unidades de conservação fluminenses. Por outro lado, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) é responsável pelas unidades federais, como os Parques Nacionais.
16As diferenças entre as categorias de unidades de conservação podem ser encontradas na lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). As UC de proteção integral têm como objetivo básico a preservação da natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais. Já as UC de uso sustentável têm como objetivo compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parte dos seus recursos naturais, sendo mais permissivas em comparação com as de proteção integral.
17A Figura 2 apresenta todo o território ambientalmente protegido do estado, incluindo as unidades de conservação municipais, estaduais e federais, com categorizações detalhadas na legenda do mapeamento.
FIGURA 2 – Territórios ambientalmente protegidos do estado do Rio de Janeiro
Fonte: Organizado pela autora (2022).
18A nível de comparação, o estado de São Paulo tem apenas um Parque Nacional, compartilhado com o estado do Rio de Janeiro, o PN Serra da Bocaina. Ambos os estados são significativamente relevantes na economia nacional, mas um deles se destaca na disposição da natureza na centralidade dos processos de acumulação, conforme descrito anteriormente.
19Com base em Tunes (2020), compreendemos que não é possível analisar o processo geral de produção de mercadorias e relações sociais, nem tampouco as estratégias de acumulação do capital sem considerar a dimensão espacial desses processos. Dessa forma, parte-se da concepção « de que o espaço é uma condição para o desenvolvimento das atividades econômicas, é um meio para a circulação, produção e consumo e é um produto do capital » (Tunes, 2020, p. 82). Assim, a análise geográfica é crucial para compreender o processo de neoliberalização da natureza, evidenciado nas concessões dos parques nacionais do Rio de Janeiro e nas reformulações das unidades de conservação estaduais e municipais. Harvey (2005) também destaca a importância da dimensão espacial na acumulação, destacando as reorganizações espaciais e a busca por novas oportunidades de acumulação de capital.
- 1 Para mais discussões sobre a temática: MASCARENHAS, G. Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade tu (...)
- 2 Sobretudo do tipo Parceria Público-Privada, o grande modelo utilizado também nos megaeventos no Rio (...)
20É importante se atentar às especificidades do estado do Rio de Janeiro, uma vez que nele foi criado o primeiro Parque Nacional do país, o Itatiaia, ele abriga o PN mais visitado do Brasil, o da Tijuca, além de ter sido no estado o desenvolvimento pioneiro da atividade turística nacional. Tendo como capital o município do Rio de Janeiro, que foi sede de grandes eventos na última década1, como os Jogos Olímpicos de 2016, e promoveu concessões privadas de diferentes formatos.2 Partindo do pressuposto de que « as decisões dos agentes econômicos sempre têm dimensões espaciais » (Claval, 2005, p. 23), a análise do processo descrito a partir da Geografia é potencial para a compreensão do fenômeno de neoliberalização da natureza.
21Relativo ao desenvolvimento da atividade turística no Brasil, originado na cidade do Rio de Janeiro, hoje capital do estado, o processo é identificado, sobretudo, a partir da construção dos primeiros hotéis na década de 1920. Em níveis institucionais, a preocupação também nasce no Rio – em 1960, surgem a Companhia de Turismo do Estado do Rio de Janeiro (Flumitur) e a Riotur S/A no Estado da Guanabara. Em nível nacional, a Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) foi criada em 1966, com sede na cidade do Rio de Janeiro.
22Além disso, o Rio de Janeiro foi pioneiro em projetos de ordenamento turístico no Brasil, como o Projeto Turis, que influenciou a criação de várias unidades de conservação, visando manter o « capital paisagístico », expressão que aparece nos relatórios do projeto. A partir da década de 1970, houve um aumento na criação de áreas protegidas no estado, seguido pelo movimento atual em direção à privatização de sua gestão. Para estabelecer considerações sobre o processo em curso, em conformidade com o objetivo do trabalho, são apresentados alguns exemplos da dinâmica recente da política ambiental do estado.
23Em 2012, foi lançado o projeto « Fortalecimento e implantação da gestão do uso público para o incremento da visitação nos parques estaduais do Rio de Janeiro », que impulsionava a ideia de que o momento político e econômico era propício para a promoção de parques como destino turístico. Sob o título « Contratação de empresa para o fortalecimento e implantação da gestão do uso público para o incremento da visitação nos parques estaduais do Rio de Janeiro », o projeto tem como objetivos específicos (item 3.2); « consolidar os programas de uso público dos parques estaduais e subsidiar as Reservas Biológicas e Estações Ecológicas » (item 3.2.1); e « criar um marco regulatório institucional para concessões, permissões e autorizações de serviços de apoio à visitação nos parques » (item 3.2.3).
24Outros pontos se destacam. Dentre as justificativas do projeto, é estabelecido que esse envolve a contratação de serviços para contribuir na gestão institucional de Unidades de Conservação de Proteção Integral do estado, em especial aquelas representantes estaduais dos Parques da Copa 2014. Consta no relatório:
Com vistas a consolidar a imagem dos parques estaduais como destinos turísticos e indutores do desenvolvimento regional, e ainda sob a ótica da complementaridade, outro conjunto de ações estratégicas foi desenhado para fortalecer a gestão do uso público em nível âmbito institucional. As seguintes unidades de conservação estão contempladas nesse projeto: Parque Estadual da Pedra Branca – PEPB, Parque Estadual da Serra da Tiririca – PESET, Parque Estadual da Costa do Sol – PECS, Parque Estadual Cunhambebe – PEC, Parque Estadual da Ilha Grande – PEIG, Parque Estadual dos Três Picos – PETP, Parque Estadual da Serra da Concórdia – PESC, Parque Estadual do Desengano – PED, Reserva Ecológica da Juatinga – REJ, Reserva Biológica de Araras – RBA, Reserva Biológica de Guaratiba – RBG, Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba – EEEG (INEA, 2012).
25No projeto, argumenta-se que o momento político e econômico era propício para a promoção de parques como destino turístico, sobretudo, porque eles compunham a paisagem dos cinco destinos indutores do turismo regional estabelecidos pelo Ministério do Turismo: Petrópolis, Rio de Janeiro, Armação de Búzios, Paraty e Angra dos Reis. A Copa do Mundo no Brasil foi precedida pela criação de um aparato institucional que visava à concessão de parques.
26Os Jogos Olímpicos de 2016 também foram precedidos pela criação de um aparato legal que possibilitou o estabelecimento de Parcerias Público-Privadas para a gestão de unidades de conservação estaduais. No ano de 2015, entre os meses de agosto e setembro, foi apresentada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) a Lei n.º 7.061/2015, aprovada em caráter de urgência. Essa normativa possibilitou o estabelecimento de Parcerias Público-Privadas para a gestão de unidades de conservação estaduais, além da limitação do número de visitantes e cobrança de taxa de permanência. A Ilha Grande, maior ilha do estado do Rio de Janeiro e distrito do município de Angra dos Reis, foi escolhida pelo governo estadual como projeto piloto, isto é, Projeto de Modelagem Estadual de Concessões e Parcerias Público Privadas (PPP) em Unidades de Conservação (UC), por meio do Edital de Chamamento n.º 01/2016 do INEA.
27É importante fazer uma apresentação do aspecto legislativo que envolve a questão. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, as parcerias entre setor público e privado ganharam centralidade na legislação brasileira, sobretudo, a partir de 1990, com a criação do Programa Nacional de Desestatização (PND), pela Lei Federal n.º 8.031/90. Após a criação do PND, surgiram os novos regimes de licitação e contratos administrativos (Lei Federal n.º 8.666/1993) e de concessão de serviço público (Lei Federal n.º 8.987/1995).
28Esse contexto de crescimento das parcerias entre o setor público e privado ganhou maior destaque com a promulgação da Lei n.º 11.079, de 30 de dezembro de 2004 (Brasil, 2004), conhecida como a Lei das PPP, já que define e prevê o estabelecimento das parcerias público-privadas no âmbito da administração pública. Inúmeras alterações foram propostas à Lei das PPP, assim como a criação de novas normativas, como a Lei federal n.º 13.334, de 13 de setembro de 2016, sancionada pelo ex-presidente Michel Temer, que criou o Programa de Parceira de Investimentos (PPI). Esse programa intenta promover o fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada e busca viabilizar a execução, sobretudo, de projetos de infraestrutura que envolvam parcerias público-privadas (Campos; Damasceno, 2020; Baptista; Accioly, 2019).
29Em 2016, também houve a criação do Projeto « Parcerias Ambientais Público-Privadas », o PAPP. Com o novo governo, a tendência se manteve. O programa do governo Temer foi entregue ao governo Bolsonaro, que deu continuidade a esse processo, interligando o Programa de Parcerias de Investimentos ao Programa Nacional de Desestatização, incluindo diversos Parques Nacionais por meio de decretos frequentes desde então.
30Retomando à Ilha Grande, é importante destacar que ela está totalmente inserida em Unidades de Conservação, que incluem o Parque Estadual da Ilha Grande, a Reserva Biológica da Praia do Sul, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Aventureiro e a Área de Proteção Tamoios. As duas primeiras são de proteção integral, isto é, de uso restritivo à habitação humana, enquanto as últimas de uso sustentável, permitindo a ocupação. A Ilha Grande é, portanto, uma extensa área ambientalmente protegida.
31Toda a dinâmica da Ilha passa a ser amplamente afetada a partir da década de 1970 com a abertura de um trecho da BR-101 conhecido como Rio-Santos. Com ela chega a atividade turística, que por sua vez trouxe a legislação ambiental. Em 2016 a Ilha foi escolhida como projeto piloto de gestão privada em unidades de conservação estaduais.
32Mais uma vez, percebe-se o papel determinante da legislação ambiental. A dinâmica da Ilha passaria por alterações significativas em função da mudança de gestão do Parque Estadual. Quando, e se, gerida por uma instituição privada, a unidade de proteção integral alteraria os processos de entrada e saída de turistas de toda a Ilha, possivelmente mudando o perfil econômico dos visitantes e promovendo profundas alterações nos estabelecimentos e nas atividades turísticas realizadas pelos nativos, entre outros impactos.
33Na última década, a Ilha Grande tem sido alvo do avanço do controle empresarial mediante dispositivos legais ambientais. Por meio das UC, são impostas – pelo Estado e pela iniciativa privada – diversas novas modificações. Projeto piloto de modelo estadual para gestão privada de UC, o processo que ocorreu na Ilha Grande fez parte de um contexto nacional de corrida do empresariado por um novo mercado em expansão. Diferentes empresas e organizações fomentaram mudanças legislativas e institucionais voltadas para a flexibilização das concessões e outros modelos de parcerias entre o público e o privado no setor ambiental. A PPP da Ilha Grande, combatida pela população, faz parte de um contexto de neoliberalização da natureza.
34O Instituto SEMEIA, uma organização não governamental sem fins lucrativos, criada em 2011, foi um agente responsável pela promoção da PPP na Ilha Grande. A iniciativa aparece pela primeira vez no relatório anual da instituição de 2015, mesmo antes da aprovação da lei que permitiu a gestão privada. O relatório de 2017 menciona que, em razão do turbulento contexto político e econômico, o projeto foi suspenso temporariamente. Entretanto, não há alguma menção ao enfrentamento realizado pela população da Ilha que ocorreu de forma intensa (Gomes, 2021).
35A palavra « temporariamente » evidencia que as tentativas não foram encerradas ali. Porém, a Ilha não é citada nos relatórios de 2018 e 2019, e este último não faz menção ao estado do Rio de Janeiro. Finalmente, em 16 de maio de 2019, por meio do Termo de Encerramento 001/2019, o Projeto de PPP para a Ilha Grande foi encerrado pelo governo do estado.
- 3 SATRIANO, N.; COELHO, H. Bolsonaro diz querer fazer de Angra dos Reis, no RJ, uma ‘nova Cancún’. O (...)
36Em 2019, o ex-presidente Jair Bolsonaro declarou que gostaria de transformar a Baía da Ilha Grande na « Cancún Brasileira ».3 Desde então, o termo vem ganhando força. Em setembro do mesmo ano, a Associação de Pilotos Proprietários de Aeronaves do Brasil (AOPA) publicou um documento intitulado « A Cancún brasileira depende de uma aviação geral capaz de operar em segurança na região de Angra e Paraty [...] ». Em dezembro de 2020, a companhia aérea Azul passou a operar voos para Ubatuba (SP), Paraty (RJ), Angra dos Reis (RJ), partindo dos aeroportos de Congonhas (SP) e Santos Dumont (RJ).
37Da escala estadual para a municipal, a capital do estado também desloca a gestão de certos serviços ambientais para a concessão privada: o Grupo Cataratas, responsável pela operação do PN Tijuca, hoje administra o AquaRio e o BioParque do Rio, atrações turísticas de cunho ambiental do município do Rio de Janeiro. São diferentes escalas da reprodução da acumulação capitalista da natureza. Além disso, em 2023, foi realizado um acordo entre prefeitura e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a concessão de sete parques municipais à iniciativa privada.4
38A empresa Hope Serviços, vencedora da concessão para o PN do Itatiaia, no Rio de Janeiro, e PN Pau Brasil, na Bahia, foi criada como Hope Recursos Humanos em 1987 e hoje se apresenta como « uma das principais prestadoras de serviço de outsourcing e facilities do país », segundo seu site institucional. Nos serviços de facilites, a empresa atua na operação e gestão da infraestrutura predial, desde a manutenção preventiva à execução de obras, em mais de 10 mil prédios administrativos, incluindo os mercados de mineração, manutenção de áreas verdes, óleo e gás. Nos serviços de outsourcing, a Hope realiza « alocação de mão de obra baseada em um modelo flexível, [...] com alta capacidade de execução e elevados níveis de entrega e produtividade ».
39Em 2022, houve uma substituição da gestão da concessão do PN Itatiaia: a empresa Hope foi afastada, após o não cumprimento do contrato estabelecido. Atualmente, a gestão do Parque é realizada pela empresa Parquetur por meio do consórcio BRParques. A Parquetur se define como « uma empresa brasileira, administradora do uso público de parques naturais » que busca desenvolver « polos de turismo sustentáveis », conforme descrito em seu site.
40O Grupo Cataratas, que atua nos Parques Nacionais do Iguaçu, Tijuca e Fernando de Noronha, foi fundado em 1999 para operar « na gestão e operação das experiências em parques e atrações turísticas no Brasil ». A empresa iniciou sua trajetória com a gestão do Parque do Iguaçu e, na atualidade, gerencia « seis parques naturais e atrações ». Seu propósito é focado na « conservação do meio ambiente e na educação ambiental pelo turismo responsável », de acordo com o site institucional.5 Além dos PN, o Grupo Cataratas também faz a gestão do Marco das 3 Fronteiras, em Foz do Iguaçu, do Bioparque do Rio (antigo Zoológico do Rio), do AquaRio, das Paineiras Corcovado e da EcoNoronha.
41Na medida em que o presente estudo desenvolve considerações sobre a neoliberalização da natureza no estado do RJ, a partir da elucidação de alguns casos, cabe ampliar a investigação acerca da operação dessas concessões em pesquisas posteriores. E também acerca dos agentes envolvidos e interesses que direcionam as políticas públicas. Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, a categoria Parque Nacional tem como objetivo a preservação de ecossistemas naturais, possibilitando, entre outras ações, o turismo ecológico. A visitação pública está sujeita às normas estabelecidas no Plano de Manejo, às normas estabelecidas pelo órgão responsável por sua administração (no caso dos parques nacionais, o ICMBio) e àquelas previstas em regulamento. O Parque Nacional do Itatiaia abrange os municípios de Itatiaia e Resende (RJ), e Bocaina de Minas e Itamonte (MG), e foi criado em 1937. Em 1961, houve a criação do Parque Nacional do Rio de Janeiro, que teve seu nome alterado para Parque Nacional da Tijuca em 1967.
- 6 BRASIL. Decreto n.º 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimen (...)
42O SNUC (Brasil, 2000), apesar de suas complexidades analisadas em diferentes pesquisas no âmbito da Geografia e outras ciências, foi produto de um esforço coletivo de diversos atores e setores sociais, como universidades, movimentos sociais e populações tradicionais.6 As unidades de conservação funcionam até hoje, em certa medida, como um importante instrumento de proteção da biodiversidade e, por vezes, da manutenção da vida de comunidades locais, quando impedem a especulação imobiliária. Todavia, desde o momento em que começaram a crescer no país – os anos de 1970 – têm seus interesses entrelaçados com a política de turismo, o que reforça o caráter mercadológico relacionado, inclusive, ao processo de privatização atual. Esse processo está inserido em um contexto de reformulação e flexibilização orientada para o mercado da política ambiental do país, que se iniciou com o golpe/impeachment de 2016.
43O estado do Rio de Janeiro possui destaque nesse processo, pelo protagonismo turístico e pelas especificidades já apresentadas. É necessário, então, refletir sobre esse modelo de criação e gestão de áreas protegidas e o processo em curso de neoliberalização da natureza.
44A ecologia política é um novo território do pensamento crítico e da ação política (Leff, 2001 [1998]), bem como um campo de conhecimento que lida com a « transformação material da natureza e produção de discursos sobre ela e seus usos » (Souza, 2019, p. 98), procurando revelar as relações de poder envolvidas nesses processos. Dessa forma, é necessário investigar os processos de neoliberalização à luz desse campo do conhecimento e a partir da geografia econômica, que permite « uma crítica à mercantilização da vida social em suas múltiplas escalas », sendo fundamental « ampliar os debates acerca da ecologia política e trazê-la para o universo da geografia econômica » (Oliveira, 2020).
45Sendo basilares as definições e os trabalhos de diferentes autores, como Harvey (2008), Chomsky (1999), Dardot e Laval (2016), entendemos o neoliberalismo como um programa de Estado que se torna central a partir da década de 1970, fundamentado, sobretudo, na reestruturação dos mecanismos institucionais voltados para a dominância do mercado. Por isso, a centralidade das reformulações jurídicas no processo de ampliação da gestão privada de áreas protegidas só pode ser entendida como parte de um programa de Estado neoliberal, que promove processos de neoliberalização. Em outras palavras, para compreender as formas específicas de neoliberalismo, pode-se deslocar a análise para os processos de mudanças regulatórias específicas, relacionados ao sistema de governança global.
46A década 1970 foi marcada por um contexto de ressignificação da natureza e da gestão de recursos naturais e, no final do século XX, vivenciou-se a intensificação das mudanças regulatórias de diferentes âmbitos, inclusive na legislação ambiental, fazendo com que a extensão de áreas protegidas no mundo tivesse significativo aumento. Nasce nesse contexto uma « nova geopolítica com a globalização e o desenvolvimento sustentável como nova forma de colonização/exploração » (Porto-Gonçalves, 2012, p. 26).
47Oliveira (2011, p. 60), analisando esse cenário, introduz o conceito de Geopolítica do Desenvolvimento Sustentável. como sendo « um projeto político de dominação territorial com base no controle das riquezas naturais », integrado ao processo de reestruturação produtiva do capital sob o neoliberalismo econômico.
48Nesse contexto de intensificação da neoliberalização, observa-se também uma nova fase na gestão de recursos naturais, como aponta Porto-Gonçalves:
As transformações que o mundo experimentará a partir dos anos 1970, que alguns chamarão de período neoliberal e outros simplesmente de globalização, nos anos 1980 tem a questão ambiental como uma das questões mais debatidas. A natureza passa a ser ressignificada diante de transformações de fundo nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia que conforma um novo ciclo longo de acumulação e crescimento econômico [...] (Porto-Gonçalves, 2012, p. 22).
49Para Harvey (2016, p. 231), a questão ambiental é um grande negócio aos olhos do capital, que compreende a natureza como uma grande reserva de valores a serem monetizados, capitalizados, trocados e comercializados como mercadoria. A natureza, fracionada, é dividida como direitos de propriedade privada, garantidos pelo Estado.
50O que não se considera é se houve ou não trabalho social na preservação da natureza. Muitas vezes, as paisagens preservadas pelas populações tradicionais foram essenciais para a existência de ecossistemas considerados valiosos para a preservação pelo Estado, resultando em áreas protegidas. O trabalho social de longo prazo realizado por essas comunidades na manutenção dessas áreas é negligenciado. E, agora, com o crescimento da gestão privada, a atividade turística passa a ser controlada por outros agentes – conglomerados empresariais ligados ao setor de gestão de parques. Segundo Harvey:
As formas de vida, o material genético, os processos biológicos, o conhecimento da natureza e a inteligência para usar suas qualidades, capacidades e potencialidades [...], tudo isso é subsumido na lógica da comercialização. A colonização do nosso mundo vivido pelo capital se acelerou. A acumulação exponencial sem fim e cada vez mais irracional do capital é acompanhada de uma extensão sem fim e cada vez mais irracional da ecologia do capital ao nosso mundo vivido (Harvey, 2016, p. 241).
51Segundo Penna-Firme (2015, p.111), ao transformar a natureza em um conjunto de serviços e objetos para um mercado de consumo global, criam-se restrições para grupos específicos. O acesso privatizado se torna privilégio de quem tem o poder de pagar pela entrada em determinados parques; além disso, ocorre uma alteração na reprodução cultural e material das pessoas que habitavam ali antes da criação das áreas protegidas.
52Para discutir todo esse processo, Penna-Firme (2015) utiliza os termos « conservação neoliberal », « mercantilização da natureza » ou « neoliberalização da natureza », considerando esse último mais adequado para abordar todo um conjunto de ações e discursos utilizados por governos e instituições na formulação de legislações ambientais.
53Há a criação de conhecimentos técnico-científicos sobre a natureza, que tornam guias e caminhos para o processo de tomada de decisões sobre os recursos naturais, juntamente com a difusão, pelos meios de comunicação de massa, do discurso em defesa da sustentabilidade. Assim, forma-se um cenário que justifica uma governança global sobre os recursos naturais de todos os países, legitimando um aparato de regras universais que busca uma nova ordem socioambiental.
54Essa ordem define o que é a natureza e quem se beneficia dessa definição. Opta-se, então, pelo uso do termo « neoliberalização da natureza », tendo em vista a dimensão de governança global que carrega.
55Para Bernini (2019, p. 663), a construção das políticas de conservação ambiental reflete uma tensão em torno da definição de como e para quem se produz a natureza na sociedade. A autora trabalha com as ideias de Smith (1998 e 2007) acerca da produção da natureza como um conjunto de práticas, conflitos, significados e regulações em torno da apropriação da natureza, entendida como social e inserida em um processo histórico marcado por contradições.
56As políticas públicas brasileiras voltadas para atender as demandas ambientalistas acabaram por direcionar ações em territórios ocupados historicamente por populações tradicionais, na tentativa de ordenar o uso, adequando a ocupação à necessidade de conservação – que é a conservação capitalista da produção da natureza (Bernini, 2019).
57As propostas de solução para os problemas ambientais passam a ser postas em um « cenário em que a financeirização comanda o desenvolvimento » e, se antes a natureza era entendida sobretudo como fonte de recursos,
[...] agora, a própria « natureza natural » e seus processos biofísicos se constituem como mercadoria, ativo e dispositivo gerador de serviços. E os negócios que essa natureza tem originado passam a ser realizados nos mercados financeiros. Nesse sentido, a natureza passou a ser entendida como uma estratégia de acumulação (Bernini, 2019, p. 668).
58Como propõe Leff (2021, p. 24), « o desenvolvimento sustentável é o sintomático disfarce da estratégia de poder do capital em sua fase ecológica ». Assim, conclui-se que neoliberalismo e natureza estão intensamente relacionados.
59A partir da análise dos recentes eventos da dinâmica da política ambiental no estado do Rio de Janeiro, é perceptível que há um movimento atual de abertura e incentivo à gestão privada de unidades de conservação, as quais funcionam como mercadoria ecológica, em um contexto mais amplo de neoliberalização da natureza. À luz da geografia econômica, a dimensão espacial é fundamental para compreender o protagonismo do estado do Rio de Janeiro nesse processo, visto que seus aspectos paisagísticos sempre foram apropriados para a acumulação de capital.
60A ecologia política, como campo de estudo de extrema relevância para essa análise, auxilia no entendimento de que a própria lógica por trás da criação das áreas protegidas foi fundamentada em um contexto alinhado aos interesses empresariais. Além disso, o discurso envolvido na conservação da natureza e na produção de ideias como a de desenvolvimento sustentável está intrinsecamente ligado a esses interesses.
61Apesar de se estar diante de um novo contexto do capitalismo, a mercantilização da natureza sempre esteve presente nesse sistema. O que se testemunha hoje é uma forma específica e conjuntural, em que a proteção ambiental não é mais vista como um entrave, mas como uma estratégia e uma possibilidade de mercado.
62É importante dar continuidade à agenda de pesquisa, investigando quais são os interesses, agentes e grupos que estão envolvidos no mercado da apropriação da proteção ambiental, que chamamos de neoliberalização da natureza.