1O objeto deste artigo é a regularização fundiária prévia em áreas de potencial eólico na cidade de Santa Luzia-PB. Justifica-se pela necessidade de estudos que analisem juridicamente a situação fundiária de áreas em que vêm sendo instalados parques eólicos.
2O problema fundamental é que o processo de absorção dos excedentes de capital tem sido um fator de deturpação da regularização fundiária, o que compromete a efetividade do poder público em garantir que esse instrumento seja utilizado como mecanismo de proteção dos posseiros de Santa Luzia ante o processo de expansão energética. A partir desse obstáculo, é importante saber qual a importância da regularização fundiária prévia como garantia de segurança jurídica para os posseiros em áreas de potencial eólico. Nesse sentido, o objetivo é investigar se a regularização fundiária prévia pode proteger os posseiros na negociação com as empresas.
3O método parte dos estudos de Mariana Traldi (2022), que trata da privatização dos ventos para a produção de energia eólica no semiárido brasileiro, particularmente das categorias de Acumulação por Despossessão (Harvey, 2010) e da Renda da Terra (Marx, 2017). A partir desse critério de decidibilidade, a metodologia da pesquisa tem como base a coleta de dados no estudo de caso realizado pelo grupo de pesquisa Dom Quixote no município de Santa Luzia-PB. Também passa pela coleta e tratamento de dados a partir da legislação, da jurisprudência, de livros e de artigos científicos relacionados ao tema. O trabalho investiga a Lei da Regularização Fundiária, Lei n.º 13.465/2017.
4O trabalho, então, foi desenvolvido seguindo três etapas metodológicas para alcançar os objetivos propostos. Na primeira etapa, o ensaio utilizou a pesquisa bibliográfica, que consiste no levantamento de livros, artigos e legislações para revisão e embasamento teórico-conceitual do tema. Na segunda etapa, foi realizado um levantamento de dados empíricos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Prefeitura de Santa Luzia-PB, da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e do Governo do estado da Paraíba, aliados aos dados e contratos de arrendamento coletados em campo pelo Projeto Dom Quixote (UFPB) entre os meses de janeiro e novembro de 2021. A terceira etapa se constituiu da análise, da discussão e da interpretação direta dos dados coletados.
5A hipótese que será investigada é se os efeitos negativos da implantação das usinas eólicas, no quesito das terras, poderiam ser sanados com a regularização fundiária prévia, partindo da ideia de que quem possui a titularidade da terra tem maior segurança jurídica, principalmente no processo de arrendamento para a produção de energia eólica. Uma possível solução para a situação de vulnerabilidade dos posseiros é a implementação de políticas eficazes de regularização fundiária. Essa abordagem forma o cerne da hipótese principal deste trabalho: a regularização fundiária em áreas de potencial eólico, se realizada antes da chegada das empresas, pode oferecer maior segurança jurídica na negociação entre agricultores e empresas de energia em futuros contratos de arrendamento.
6Apesar de o vento ser um recurso natural não esgotável, para a sua captação pela tecnologia atual, é necessária a instalação de turbinas eólicas em grandes extensões de terra, e esses lugares devem ser adequados para capturar a máxima quantidade de vento possível. Desse modo, somente alguns lugares possuem as condições ideais para a produção desse tipo de energia, tornando a terra um recurso valioso para essa indústria. Como assegura Traldi (2019, p. 37): « o controle das fontes de energia nada mais é do que o controle sobre territórios que dispõem dessas riquezas naturais. Por isso, falar da produção de energia é falar da apropriação e do controle de territórios ».
7Torna-se claro que as empresas desse ramo requerem acesso a locais específicos, aqueles com maior potencial energético, para realizar suas atividades. Portanto, necessitam utilizar mecanismos legais que garantam seu acesso à terra, sendo o mais comum, o arrendamento. Todavia, como será exposto nos tópicos posteriores, é necessário realizar esse acordo com quem tem a titularidade do imóvel. Caso o posseiro somente tenha a posse e não o título de propriedade, será necessário regularizar o imóvel para se obter o direito de propriedade.
8A empresa de energia para concorrer no leilão da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) precisa comprovar que o arrendador é o titular do direito de propriedade. Apenas nessa condição, será admitido o contrato de arrendamento firmado com o agricultor. O contrato de arrendamento precisa ser registrado e averbado no cartório de registro de imóveis. Para tanto, a área precisa estar livre de invasões, de litígios, de penhoras ou quaisquer outros ônus ou impedimentos legais, sob pena de inviabilizar a utilidade da celebração do contrato junto à ANEEL. O contrato de arrendamento somente pode ser celebrado, portanto, com quem possuir o título da terra regularizada, sem nenhum impedimento jurídico (Diniz, 2006).
9É nesse contexto que a regularização fundiária se torna singularmente relevante, já que confere o direito de propriedade àqueles que apenas têm a posse das terras. Desse modo, os agricultores podem arrendar suas terras às empresas de energia eólica. A regularização fundiária é o instrumento cujo objetivo é transformar um direito de posse, como consta no art. 1.200 do Código Civil (CC), em um direito de propriedade (art. 1.228 do CC), para que assim o posseiro garanta seu acesso à terra com dignidade e possa participar de políticas públicas e consolidar direitos de exploração sobre a terra (Tartuce, 2018). A regularização pode ser iniciada pelo Estado se as terras forem públicas, ou pelo posseiro, caso sejam privadas.
10A regularização fundiária engloba diferentes matérias que convergem para transformar a posse em um direito de propriedade. Assim, compreendem vários dispositivos legais, como a Constituição Federal (CF), o Código Civil (CC) e o Estatuto da Terra. Salienta-se a importância da Lei n.º 13.465/2017, que altera várias normas sobre a regularização fundiária rural, incluindo a lei de reforma agrária (Lei n.º 8629/1993), a lei de regularização fundiária em terras da União na Amazônia (Lei n.º 11.952/2009), a lei de pagamento de crédito por assentados de reforma agrária (Lei n.º 13.001/2014), entre outras (Mota; Torres, 2022).
11A regularização fundiária implica custos. Existem aspectos do licenciamento ambiental que exigem recursos, e o crédito fundiário pode ser utilizado para a resolução desse problema. As empresas de energia eólica também têm acesso a esse recurso e utilizam-no para justificar a função social da terra.
12A função social é um requisito que precisa ser cumprido pelo posseiro e pelo proprietário, conforme o art. 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal, que diz: « a propriedade atenderá a sua função social » (Brasil, 1988). Já o art. 186, do mesmo diploma legal, especifica a função social para a propriedade rural (Brasil, 2022):
13A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
14Os princípios jurídicos que norteiam a regularização fundiária, com base no princípio da função social da propriedade, possuem uma carga normativa aberta, não são descritivos e não apontam claramente os beneficiários específicos, mas apontam metas a serem alcançadas. Incluem esses princípios a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, a isonomia, a justiça social, o desenvolvimento sustentável e a segurança jurídica (Tartuce, 2022).
15São princípios de suprema importância na relação entre os posseiros e as empresas de energia eólica. Como carecem de descritividade, têm baixa efetividade e não conseguem reproduzir eficazmente a relação social que envolve o direito de propriedade a que pretendem regular.
16A regularização fundiária é uma condição para a construção dos parques eólicos. A ANEEL exige que as empresas tenham acesso prévio à terra, que é realizado, normalmente, por meio de contratos de arrendamento. Contudo, para que a posse seja transferida, é necessária a regularização fundiária como garantia da função social da terra, já que, nesse processo, esse é um dos requisitos. Trata-se de um modo de garantir a destinação das terras a quem as utiliza, embora seja subvertido pelas empresas proprietárias de usinas eólicas para lucros financeiros.
17Os instrumentos de regularização fundiária são mecanismos jurídicos e políticos que a União, os Estados e os Municípios utilizam para enfrentar as diversas irregularidades fundiárias e assegurar à população a segurança jurídica nas relações que envolvem posse e propriedade (Instituto Jones dos Santos Neves, 2008). Entre os instrumentos da regularização fundiária rural, estão a desapropriação para fins de reforma agrária (art. 184 da CF), a desapropriação genérica (art. 5º, inciso XXIV da CF), a compra e venda, a doação e a concessão de direito real de uso (art.18 da Lei n.º 8624/1993).
18Outro instrumento que merece destaque é a usucapião, sendo um dos mais conhecidos pela população em geral. A usucapião rural é prevista no art. 191 da CF, nos arts. 1.238 e 1.239 do CC e no art. 2º do Estatuto da Terra. A usucapião rural é um dispositivo em que alguém que não tem a propriedade, mas tem a posse, prova judicialmente ter o direito de adquirir a propriedade pelo decurso do tempo, comprovando a função social da terra (Pereira, 2017).
19Essas são as principais características da regularização fundiária, um instrumento de suma relevância no processo de instalação dos parques eólicos. Dado que o país possui uma estrutura marcada pela irregularidade e uma baixa definição de direitos de propriedade, é necessário um procedimento regularizador para que aqueles que utilizam a terra obtenham o poder de dispor dela nos termos da Constituição Federal e do Código Civil, incluindo a possibilidade de arrendar sua terra.
20O procedimento de regularização fundiária para as terras onde os aerogeradores serão instalados é influenciado por duas leis principais. A Lei n.º 10.438/2002 (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – PROINFA), que versa sobre a redução de impostos para instalação de parques eólicos, e o Decreto n.º 5.025/2004, que regula os investimentos em tecnologias estrangeiras para a instalação de parques eólicos.
21De acordo com o portal da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o PROINFA tem por objetivo:
[...] aumentar a participação de fontes alternativas renováveis (pequenas centrais hidrelétricas, usinas eólicas e empreendimento termelétricos a biomassa) na produção de energia elétrica, privilegiando empreendedores que não tenham vínculos societários com concessionárias de geração, transmissão ou distribuição (ANEEL, 2022).
22Esses dispositivos legais direcionam a instalação dos parques eólicos da seguinte maneira: inicialmente, ocorre a chamada pública, seguida da contratação por meio de leilões de energia de eletricidade; após o anúncio dos leilões pela ANEEL, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) avalia se os geradores estão aptos a participar do processo; na sequência, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica seleciona e contrata o projeto com o menor preço. Salienta-se que antes de qualquer investimento no setor eólico, a empresa deve fazer um estudo aprofundado sobre o vento no local desejado, com medição que devem ser realizadas por um período de 36 meses.
23O licenciamento ambiental é uma das etapas exigidas para estabelecer um empreendimento eólico no Brasil. Para tanto, é necessário que a empresa tenha acesso à terra que pretende utilizar. Nessa etapa, ocorrem as negociações entre as empresas de geração de energia eólica e os proprietários de terras de potencial eólico. Ressalte-se que, para o arrendamento da terra, é necessário que a posse esteja livre de vícios, e o ato somente pode ser realizado por aquele que detém o título de propriedade.
24Todo esse processo é marcado, como visto no trabalho de Mariana Traldi (2019), por elementos como o desapossamento, a expulsão de posseiros, a grilagem de terras, a inflação no preço das terras, a apropriação de terras de uso comum da comunidade, a pressão política para a assinatura dos contratos, a intimidação dos moradores pelas empresas, pela elite local e por atravessadores.
25Toda a regulação dos contratos de arrendamento de terras para a implantação de aerogeradores somente tem efeito jurídico, do ponto de vista da autorização da agência reguladora de energia (ANEEL), se a regularização fundiária for possível. O contrato é regido por normas de direito privado, a exemplo do Estatuto da Terra e do Código Civil. Ressalte-se que os contratos de arrendamento foram pensados para proteger os direitos dos que estão alugando a terra, seguindo a lógica de que o proprietário tem mais poder na relação contratual. Ainda que esse não seja o caso no arrendamento em terras de potencial eólico, como ressalta Mariana Traldi (2019). Via de regra, um proprietário de terra não está em posição de igualdade com uma empresa, pois, nas condições do semiárido brasileiro, marcado por pequenas propriedades e minifúndios, os proprietários são agricultores com pouco poder aquisitivo. Tudo isso é bem descrito e analisado por Mariana Traldi (2019).
26Um ponto importante desse processo é que o contrato de arrendamento precisa ser averbado na matrícula do imóvel no cartório de registro de imóvel local e, nesse caso, é exigido que o posseiro tenha também o título da propriedade. Impõe-se a regularização fundiária para sanar os vícios jurídicos do imóvel, titularizar o posseiro e permitir o licenciamento ambiental. Para ter acesso à terra e realizar o licenciamento ambiental, as empresas, muitas vezes, oferecem auxílio jurídico ao posseiro para regularizar o imóvel junto ao cartório de registro, fruto de uma necessidade da empresa para construir seus aerogeradores e, assim, expandir seu capital. Trata-se de uma situação que pode encobrir vícios de consentimento, já apontado por Traldi (2019), e que será argumentado a seguir.
27O posseiro é aquele que utiliza a terra, mas não tem propriedade sobre ela, o que torna sua posse precária em relação ao direito de propriedade. É uma situação que o deixa em desvantagem em sua relação com as empresas de geração de energia eólica. Geralmente, o posseiro não tem conhecimento jurídico ou recursos financeiros. Muitas vezes, é coagido a assinar os contratos – mesmo que muitos não saibam ler ou não entendem a linguagem utilizada nesse tipo de documento. Nesse sentido, a lei falha em protegê-los, pois o Estado, normalmente, não interfere em contratos de arrendamento, instrumentos regidos pelo direito privado, sendo subentendida a equidade de poder entre as partes e a dispensabilidade de ingerência estatal (Traldi, 2019).
28Após a confirmação do acesso à terra, o licenciamento ambiental pode prosseguir, sendo feito, na sequência, o georreferenciamento do terreno nos parâmetros estabelecidos pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Também é solicitada a emissão de Certificado de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR); é feito um levantamento do status da propriedade na Receita Federal e, quando for necessária, a regularização de impostos devidos.
29Como referido por Diniz (2006), o imóvel não pode estar irregular ou será impossível a averbação do contrato de arrendamento em cartório, o que é uma exigência do processo e comum em casos em que haja transferência de posse de imóvel. Ressalta-se que com a simplificação do processo de licenciamento ambiental, a própria empresa pode buscar o órgão responsável para regularizar as terras que pretende explorar, desde que seja autorizada formalmente pelo proprietário. Assim, a empresa se apropria do mecanismo da regularização fundiária e o utiliza para a expansão do seu capital.
30É a expansão do capitalismo, por meio da apropriação da renda da terra, que está na base da utilização de mecanismos de proteção dos direitos de posse para legalizar a função social da utilização da terra pelas eólicas. Para Marx (2017, p. 595), a renda da terra é aquela parte da mais-valia, o produto do trabalho excedente associado ao « dinheiro do arrendamento pago ao proprietário da terra a título de renda fundiária em troca da utilização do solo ».
31Nessa nova onda de expansão de mercado, emergem claramente as características de mercantilização da terra. Sobre esse tema, Marx sustenta que: « A propriedade fundiária baseia-se no monopólio de certas pessoas sobre porções definidas do globo terrestre como esferas exclusivas de sua vontade privada, com exclusão de todas as outras ». Portanto, o processo de mercantilização da terra consiste na valorização desse monopólio, fundada na exploração das massas, como reitera Marx (2014, p. 825):
[...] o monopólio da propriedade da terra é uma premissa histórica e continua a ser a base constante do modo de produção capitalista, assim como de todos os modos de produção anteriores que, de um modo ou de outro, fundam-se na exploração das massas.
32Quem trabalha na terra, ao fazer melhorias em sua plantação, agrega valor àquela. Entretanto, o capitalista que possui a titularidade do terreno, ao vender para outro, agrega esse valor fornecido pelas melhorias, sem pagar por elas. Aumenta, desse modo, seu patrimônio por meio da exploração do trabalho de outrem. É um notável paralelo a apropriação do valor da terra pela indústria eólica no processo de arrendamento, como afirma Traldi (2019). As empresas alugam a terra por um valor para a agricultura e instalam uma turbina eólica que gerará uma fortuna. Nesses casos, o dono da terra é explorado para que os capitalistas invistam na produção de energia elétrica, nessa nova onda de expansão dos mercados.
33Na apropriação do valor da terra pelas empresas eólicas, deve ser considerado o valor dessa terra para as empresas, já que, para a otimização dos aerogeradores, elas devem ser instaladas em áreas de elevado potencial eólico. Portanto, as possibilidades de locais para a instalação dos aerogeradores são reduzidas ao fator força do vento. Os donos da terra nesse processo, normalmente, não agregam ao preço do arrendamento o valor que a terra possui por essa localização privilegiada, pois tendem a ser agricultores com baixa escolaridade e pouco conhecimento sobre energia eólica, como comprovado pelas análises de Traldi (2019).
34Os agricultores posseiros assinam os contratos de arrendamento sem ter conhecimento das consequências jurídicas envolvidas, incluindo a restrição do uso da propriedade. O modelo de contrato de adesão utilizado pelas empresas para os arrendadores, aliado à falta de conhecimento jurídico dos proprietários de terra, faz com que, na maior parte dos casos, inexista a negociação das cláusulas contratuais, inclusive as disposições relacionadas à utilização da terra por ambas as partes. Como consequência, as usinas eólicas utilizam frequentemente as terras conforme seus interesses, apropriando-se da renda dos agricultores e provocando mudanças nas áreas circundantes, incluindo a modificação de estradas e áreas de uso comum. O processo de instalação dessas usinas também altera a vida de toda a comunidade onde as terras estão localizadas.
35É comum, como demonstrado na tese de Traldi (2019), que as empresas prometem quando da assinatura dos contratos que os proprietários ainda poderão utilizar parte da terra para plantio. No entanto, essa promessa não se concretiza após a assinatura dos contratos. A autora descreve casos em que seguranças das empresas impedem os moradores de se aproximarem das turbinas ou de suas proximidades. Além disso, são relatadas situações em que as empresas constroem muros e cercas, restringindo ainda mais o acesso aos moradores.
36Evidencia-se que, para uma empresa utilizar as terras, precisa comprovar perante a ANEEL que possui permissão para tal, e somente então poderá firmar um contrato de arrendamento e construir seu parque eólico na área autorizada. Sendo o acesso à terra um requisito para a instalação das em presas, o contrato de arrendamento se torna um meio para concretizar essa necessidade técnica. O problema surge quando as empresas, visando expandir seus negócios com o menor custo possível, exploram os proprietários de terra menos favorecidos. Isso perpetua o modelo capitalista de crescimento pela exploração das massas.
37Os donos de terras arrendadas pelas empresas eólicas que precisam permanecer utilizando parte da terra para sobrevivência, normalmente com pequenas colheitas, sofrem com a restrição de seu acesso. Levando em consideração que esses agricultores recebem muito pouco, em comparação com a renda auferida pela empresa na utilização da sua terra, está claro que se está diante de um processo de exploração em detrimento dos direitos desses proprietários de terra.
38O município de Santa Luzia se encontra inserido na microrregião denominada Seridó Ocidental, com acesso pela BR-230 ou PB-221, e fica próximo à cidade de Patos-PB. Devido às suas condições geográficas favoráveis, o município tem atraído projetos de parques de geração de energia solar e eólica. De acordo com o Atlas da Paraíba, a região apresenta uma perspectiva de vento médio anual de « até 9,5 m/s nas melhores áreas, a 120 metros de altura », o que representa um potencial eólico significativo, capaz de gerar cerca de 1.452 MW de energia (Paraíba, 2016).
39Essas condições favoráveis atraíram empresas como a Neoenergia, integrante do grupo espanhol Iberdrola, que iniciou suas atividades em Santa Luzia em 2017 e segue até hoje com a construção do complexo eólico Chafariz. A empresa conta com 11 empreendimentos exclusivamente em Santa Luzia, e o outro se divide entre os municípios de Santa Luzia, Junco do Seridó e São José do Sabugi (Nascimento et al., 2022).
40O complexo, formado pelos parques Canoas, Lagoa I e Lagoa II, contém 45 aerogeradores do tipo G114, com potência de 2,1 MW, que estão em funcionamento desde outubro de 2017 e somam uma potência instalada total de 94,5 MW. Essa potência é suficiente para abastecer 150 mil residências (Nascimento et al., 2022). Com 15 geradores por parque, a empresa estima que gerará um total de 471 MW (Iberdrola, 2018).
41Os municípios têm competência para impetrar suas próprias regulamentações fundiárias, com base na legislação vigente. No entanto, o Relatório Dinâmico de Indicadores Municipais (Paraíba, 2021) demonstrou que Santa Luzia não possui regulamentação fundiária específica, constituindo um problema, uma vez que a titulação da propriedade pelo arrendador é requisito no processo de instalação de parques eólicos. Assim, não possuindo norma específica, a matéria fica sujeita à lei geral, sendo basilar a Lei n.º 13.465/2017 que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, além de outros aspectos relacionados ao tema (Brasil, 2017).
42O município também não faz parte nenhuma iniciativa governamental que vise à regularização fundiária coletiva, tanto que não foi encontrado nenhum registro de sua participação. Portanto, conforme o art. 28 da lei supracitada, é possível aplicar na parte urbana do município a regularização fundiária urbana, resumida neste artigo pela sigla REURB. É importante destacar o parágrafo único desse artigo que permite sua utilização no município de Santa Luzia. Cita-se (Brasil, 2017):
43Art. 28. A Reurb obedecerá às seguintes fases:
I - Requerimento dos legitimados;
II - Processamento administrativo do requerimento, no qual será conferido prazo para manifestação dos titulares de direitos reais sobre o imóvel e dos confrontantes;
III - Elaboração do projeto de regularização fundiária;
IV - Saneamento do processo administrativo;
V - Decisão da autoridade competente, mediante ato formal, ao qual se dará publicidade;
VI - Expedição da CRF pelo Município; e
VII - Registro da CRF e do projeto de regularização fundiária aprovado perante o oficial do cartório de registro de imóveis em que se situe a unidade imobiliária com destinação urbana regularizada. Parágrafo único. Não impedirá a Reurb, na forma estabelecida nesta Lei, a inexistência de lei municipal específica que trate de medidas ou posturas de interesse local aplicáveis a projetos de regularização fundiária urbana.
44Para o produtor rural, a baixa definição de direitos de propriedade afeta diretamente o acesso aos investimentos, aos recursos governamentais e às políticas públicas de incentivo e de assistência à produção agrícola. A ausência do título de propriedade dificulta o acesso ao crédito agrícola e, por consequência, torna desafiador para o posseiro produtor rural enfrentar as dificuldades climáticas e superar o caráter extensivo da produção agropecuária – típicas do semiárido nordestino (Traldi, 2019).
45Do ponto de vista imobiliário, são propriedades que não acompanham a valorização do mercado e podem acabar desvalorizando os imóveis circundantes. Um terreno ocupado com aerogerador pode impactar negativamente o preço de outro terreno sem aerogerador, se o aluguel ou venda tiver outra finalidade que não seja a de instalar turbina eólica. No caso específico das eólicas, as dificuldades enfrentadas pelos posseiros são exacerbadas.
46Na chegada de empreendimentos eólicos, a pesquisa de Traldi (2019) aponta que ocorreu um boom no mercado imobiliário, com elites locais prospectando terras de potencial eólico. Nesse processo, as elites estão dispostas a tudo, realizando ações, como a grilagem de terras, a expulsão de posseiros e a compra de terras por preços baixos, na expectativa de que serão valorizadas posteriormente.
47Municípios como Santa Luzia sofrem com altas temperaturas e pouca incidência pluviométrica, dificultando a utilização da terra para plantação e criação de animais, ocorrência comum no Nordeste. Essas condições climáticas, aliadas à inércia governamental em criar e implementar programas eficazes de geração de empregos no município, tornam os habitantes mais suscetíveis a negociar suas terras com as empresas de energia eólica. O arrendamento funciona como garantia de renda mensal, algo que a produção agropecuária não pode assegurar de maneira consistente.
48Santa Luzia também apresenta um solo árido e enfrenta uma crise de abastecimento hídrico, comum no interior do Nordeste. Os municípios dependem de abastecimento por carros-pipa ou de dias de chuva com nível pluviométrico suficiente para encher as cisternas de quem as possui. As elites locais têm a possibilidade de construir grandes reservatórios de água e pagar carros-pipa para enchê-los, algo financeiramente inviável para o restante da população.
49Não surpreende que um produtor rural com pouco conhecimento e sem a titularidade de seu terreno, ao ser abordado com oferta de assistência jurídica pela empresa de energia para conseguir a regularidade de suas terras, aceite realizar o arrendamento para as eólicas sem se atentar para as consequências desse ato. Entre essas consequências estão a perda da aposentadoria rural e a restrição de acesso à terra. Esses impactos afetam diretamente a renda do agricultor, tornando-o completamente dependente dos valores auferidos pelo arrendamento (TRALDI, 2019).
50Como bem evidenciado por Traldi (2019), alguns agricultores, por se encontrarem nessa situação de vulnerabilidade e sem perspectiva de assistência governamental, entendem que a assinatura do contrato é a sua única escolha, ou teriam de buscar outro local para morar, como ocorre há anos no sertão nordestino. O êxodo para capitais é notório e é um reflexo da necessidade de maior assistência e de programas de incentivo de emprego e geração de renda eficazes em localidades castigadas pelo clima.
51A ausência de instrumentos de planejamento territorial em Santa Luzia, conforme o Relatório Dinâmico de Indicadores Municipais (Paraíba, 2021), como também a inexistência de legislação específica, plano, programa ou processo de regularização fundiária em curso, tornam evidente que a assinatura de contratos com as empresas eólicas resulta dessas dificuldades. A regularização fundiária não deve ser vista como um ato necessário. Os municípios devem entender como obrigatória a criação de regulamentações locais para implementar a regularização em suas cidades e, por consequência, a melhoria de vida de sua população.
52O governo estadual falhou em garantir a realização da regularização em Santa Luzia, mas se mostrou empenhado em garantir investimentos das empresas do segmento energético, algo comprovado pela criação de portfólios/atlas eólicos para demonstrar o potencial da Paraíba, além de tratativas visando facilitar o licenciamento ambiental e a oferta de incentivos fiscais. Tudo sob o pretexto de que a chegada das empresas de energia eólica promoveria o progresso da cidade e representaria uma alternativa sustentável à crise da energia hidroelétrica do país (Paraíba, 2021).
53A situação enfrentada pelos agricultores de Santa Luzia é comum em todo o Nordeste brasileiro, marcado pelas condições climáticas severas e pela falta de apoio governamental, o que dificulta a atividade agrícola para aqueles que não têm condições financeiras. O arrendamento das terras para as empresas de geração de energia eólica é apresentado como a única alternativa para a sobrevivência das pessoas do campo. Avulta-se que o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) investiu 1,3 bilhões de Reais para a instalação dos parques eólicos, enquanto a agricultura e a agropecuária local não obtiveram o mesmo incentivo (NEOENERGIA, 2022).
54Ao ser realizada uma pesquisa sobre os fatores do georreferenciamento em Santa Luzia, Barreto (2018) percebeu que 63,39% foram realizados por motivos associados à energia renovável. O georreferenciamento é necessário para demarcação da terra em procedimentos de regularização fundiária e pedidos de licença ambiental, ambos requisitos para a implantação de empresas de energia renovável pela ANEEL (Barreto, 2018).
55Nas visitas que o projeto Dom Quixote fez na região, no local onde os aerogeradores estão instalados, foram observados anúncios de venda de hectares de terra, o que reforça a existência de um mercado imobiliário que objetiva a venda e a aquisição de terras para as empresas de geração de energia. Foi observado, inclusive, um aumento no valor do arrendamento desde o início da instalação dos parques aos dias atuais, o que aponta um dos efeitos da instalação dos parques eólicos. verifica-se, assim, um crescimento no mercado imobiliário e uma supervalorização do valor da terra (Relatório de Visita de Campo, Santa Luzia-PB, 2021).
56A terra para as empresas de energia eólica é uma necessidade e o acesso prévio a elas é uma exigência da ANEEL. Em Santa Luzia, é nítido o efeito que a chegada das empresas de geração de energia eólica no mercado imobiliário. Formou-se uma rede especulativa que somente leva em consideração aqueles que possuem o título de propriedade da terra e, portanto, podem dispor dela como quiserem, mas esse não é o caso da maioria dos agricultores da região, posseiros que são. Como já exposto, para a celebração de contratos de arrendamento com as empresas de energia eólica é necessário que a terra esteja livre de vícios e que o agricultor tenha o título da terra. Caso contrário, deve-se proceder à regularização fundiária (Relatório de Visita de Campo, Santa Luzia-PB, 2021).
57A regularização fundiária de terras para a instalação de parques eólicos surge como um instrumento utilizado pelas empresas para convencer e, muitas vezes, até coagir o posseiro a arrendar suas terras em troca do título de propriedade. Desse modo, o capital toma para si a renda da terra, agilizando o processo de obtenção de lucro. A irregularidade na definição de direitos sobre a terra no Brasil torna os mais vulneráveis suscetíveis a abusos pelos grandes capitalistas, que subvertem instrumentos criados para beneficiar os agricultores e os tomam para si. As empresas usam a regularização para forçar os agricultores a assinarem contratos de cessão de uso da terra e de arrendamento para a instalação de empreendimentos eólicos.
58A desigualdade na estrutura fundiária brasileira e a ineficácia das políticas públicas para a regularização fundiária condicionam o homem do campo, que depende da terra para sua reprodução social, a se apossar de terras sem possuir titularidade sobre elas, aumentando sua vulnerabilidade ante aos anseios do capital. Com a chegada das empresas de geração de energia eólica, essa situação se agrava, como exposto no texto. Um parque eólico requer vastas extensões de terra, disputadas em áreas limitadas às condições ideais de vento, tornando a terra valiosa para essa indústria.
59Ocorreu em Santa Luzia o que a literatura já citada neste artigo aponta como padrão. Com a notícia de que um parque seria instalado na cidade, as elites arrendaram suas terras, o poder local abraçou a iniciativa, o mercado imobiliário se aqueceu, os atravessadores surgiram e a terra se configurou como o elemento principal na exploração capitalista do vento. Destaca-se que é uma exigência da ANEEL que a empresa eólica tenha acesso prévio à área de construção e, para isso, ela firma contratos de arrendamento com os agricultores da região. Inclusive, de acordo com a Empresa de Pesquisa Energética, a geradora de energia eólica precisa comprovar o direito de uso do terreno destinado ao empreendimento, para fins de cadastramento nos leilões de energia. Assim, ela somente pode atuar na terra em que tem a posse, mas é dependente de que o agricultor tenha o título de propriedade da terra (Empresa de Pesquisa Energética, 2018).
60Os contratos de arrendamento são documentos que concedem o uso da terra a outrem, portanto, somente podem ser firmados com quem detém a propriedade do bem. Em casos em que há transferência da posse, é preciso averbar o contrato em cartório; nesses casos, exige-se apenas a comprovação da titularidade. Portanto, as empresas eólicas somente podem celebrar contratos de arrendamento com os proprietários da terra. Esses, por terem a segurança na posse da terra, em tese, teriam margem para negociar com as empresas, como já aconteceu em Santa Luzia.
61Entretanto, não é a regra. Em situações de insegurança na posse, regra no Brasil, ocorrem injustiças. Os posseiros enfrentam a pressão das elites locais, grilagem, pressão direta das empresas eólicas e, por vezes, são coagidos a ceder a posse de suas terras em troca da titulação com a regularização fundiária. Trata-se de práticas que configuram a acumulação por despossessão, como afirma Mariana Traldi (2019). Essa é inclusive uma prática comum. As empresas de energia eólica oferecem assistência jurídica para a regularização da terra de maneira a utilizar o instituto da regularização fundiária, que foi criado visando fornecer o título de propriedade àqueles que precisam, para beneficiar a empresa e perpetuar a exploração capitalista dos recursos naturais.
62A regularização fundiária no processo de instalação de um parque eólico é uma necessidade da empresa, faz parte de uma exigência legal. Logo, a oferta de assistência jurídica ao posseiro pode ser interpretada como uma estratégia do capital para se beneficiar da insegurança que os posseiros sofrem, manipulando-os a ceder o uso da terra às empresas.
63A insegurança da posse da terra também gera barreiras para o estabelecimento de instituições econômicas, como contratos, regulamentos e estatutos, que poderiam melhor distribuir os benefícios gerados pela energia eólica. Em contraste com os parques eólicos nos EUA e na Europa, apresentados no trabalho de Brannstrom (2015), a empresa eólica em Santa Luzia não beneficiou a comunidade com acolhimento. Os aluguéis foram mínimos e não representaram acréscimo substancial na renda dos agricultores. A maior parte da renda da terra foi capturada pela empresa de energia. Não foram estabelecidos royalties e instituições para gerar benefícios econômicos para a comunidade, ao contrário do ocorrido na América do Norte (Brannstrom et al., 2015).
64Com relação ao ganho econômico das empresas, é nítido que esse se correlaciona com aspectos negativos na comunidade, como pressão das empresas para assinar os contratos, acolhimento político dos empreendimentos, lobby político para captação de potenciais arrendadores, ausência de contraprestações das empresas (social, econômica e ambiental), baixa geração de empregos formais, falta de transparência nas negociações, dificuldade de conscientização dos proprietários ou posseiros, impacto na supervalorização no setor imobiliário (pressão imobiliária) e falta de políticas públicas na zona rural.
65Na visita às comunidades da região de Santa Luzia e adjacências (Junco do Seridó, São José do Sabugi e Picuí, realizada entre outubro e novembro de 2021, foi observado que, em curto e médio prazos, as usinas de energia eólica levaram aparentes benefícios econômicos para uma área com condições climáticas adversas, dificuldades na produção agropecuária, desemprego e carência de assistência governamental. Porém não passam de aparências. A realidade é que a carestia, o desemprego, a falta de políticas públicas para a agricultura, o desmantelamento da própria produção agrícola e as condições desfavoráveis do clima tornam a comunidade vulnerável à exploração contratual pelos empreendimentos de energia. Prometem renda fácil às famílias, contudo, muito aquém do que as empresas podem oferecer; assediam os agricultores das áreas de interesse para assinar contratos em condições precárias e desiguais de negociação; com pouca oferta ou nenhuma compensação pelos impactos causados pelas usinas de energia eólica.
66A regularização fundiária é necessária devido à má distribuição de terras, que remonta aos primórdios da colonização, agravada pela expansão capitalista e pela diferenciação entre posse e propriedade. É necessário transformar posseiros em proprietários legítimos de terra. No contexto das usinas eólicas, que dependem do acesso à terra na exploração do vento, em terras onde não se tem propriedade, é imprescindível a regularização fundiária.
67Diante dessas considerações, é evidente a necessidade de garantir a regularização fundiária para todos os que exercem a posse de boa-fé em áreas com potencial eólico, para assegurar seus direitos sobre a terra em que habitam. Na eventual chegada de empresas do ramo, isso permite que estejam em posição de negociar melhores condições nos contratos de arrendamento.