1O presente artigo parte desse ponto para evidenciar o constante processo de expulsão a que os pobres estão submetidos nas metrópoles brasileiras. Tendo por base o caso de São Paulo (Figura 1), a maior metrópole brasileira e a mais dinâmica (CARLOS, 2006), objetiva-se demonstrar como os processos de realização de uma metrópole voltada para atender as demandas do capital – em especial o imobiliário – significa a sua negação para as classes trabalhadoras, sujeitadas aos interesses da classe dominante. O argumento que se pretende sustentar é que, por meio desse processo, a metropolização de São Paulo representa a metropolização da pobreza com a utilização de mecanismos de classe violentos.
FIGURA 1 - Municípios da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP)
Fonte: Centro de Estudos da Metrópole, 2008
2As metrópoles dos países periféricos contemporâneas revelam um conjunto de questões que evidenciam uma nova lógica no processo de produção do espaço de acordo com os imperativos da acumulação do capital. Dentre estas questões, destaco a produção das periferias metropolitanas como elemento-chave para entender o processo de urbanização da sociedade. Desta posição deriva-se a hipótese a partir da qual a reprodução, em escalas cada vez mais abrangentes, das periferias aparece como possibilidade renovada da realização da reprodução ampliada do capital e que, hoje, passa a assumir novas formas de organização metropolitanas. No espaço das cidades contemporâneas existe uma estrutura socioespacial que organiza a distribuição da população pelo território e que vem sendo atualizada em uma nova geopolítica econômica da metrópole. A distribuição espacial dos grupos sociais está longe de ser aleatória, como se o espaço metropolitano fosse socialmente indeterminado. Ao contrário, existe um claro padrão de moradia que se define nas relações sociais que, materializadas no espaço, apresentam as relações de segregação.
- 1 A definição da linha da pobreza seguiu a metodologia proposta por Rocha (2008). Os valores para a m (...)
3Assim, para observar este processo no contexto da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) optou-se por trabalhar com o mapeamento das informações em ambiente de SIG para visualizar, espacialmente, os processos espaciais. A partir dos dados do censo demográfico do IBGE de 2000 e 2010, realizamos o mapeamento da população que se encontra abaixo da linha da pobreza em cada um dos anos, pois a pobreza pode ser entendida como uma proxy para a análise da periferização da população que permite captar o processo de expulsão e segregação. Para medir a pobreza com base em dados sobre a distribuição da renda é necessário fixar uma linha de pobreza.1 Serão consideradas pobres as pessoas cujo rendimento não superar essa linha. Assim, segundo a definição que será adotada nesse trabalho proposta por Rocha (2008, p.267):
São definidos pobres os indivíduos cuja renda familiar per capita é inferior ao valor que corresponderia ao necessário para atender todas as necessidades básicas como alimentação, habitação, transporte, saúde, lazer, educação, etc.
4Como forma de complemento, foram adotados três outros mapas: um referente às comunidades, vilas e favelas que sofreram com o processo de remoção; outro com o levantamento dos incêndios que ocorrem nas favelas paulistas, ambos elaborados tendo por base o trabalho de Fioravanti (2012); e, por fim, um mapa relativo à distribuição dos empreendimentos do Programa Minha Casa, Minha Vida para a Faixa 1, de renda familiar até R$ 1.600,00, que pode indicar também a tendência de periferização da pobreza, como pretendemos argumentar.
5Este artigo, a fim de alcançar seu objetivo, está organizado da seguinte maneira: na próxima seção é apresentado, em linhas gerais, o processo de urbanização de São Paulo e a metropolização da pobreza. Em seguida, dedicamo-nos a uma reflexão teórica sobre a relação do capital com a urbanização pensada com base no processo de destruição criativa como ‘motor’ da urbanização capitalista contemporânea. Assim, pode-se perceber, pelas informações coletadas, a violência que envolve o processo da produção da metrópole de São Paulo. Segue, então, uma discussão referente à produção das periferias metropolitanas e às suas relações com o processo violento de expulsão das famílias pobres e, por fim, as considerações finais desta pesquisa.
6O capitalismo, postulou Lefebvre (1981), sobrevive a partir de duas vias: 1) reproduzir as relações sociais capitalistas e; 2) produzir o espaço. Neste sentido, a classe dominante tem especial empenho em controlar a forma em que ocorre a produção do espaço na sociedade para que faça incidir sobre o restante da sociedade seus interesses de classe. Esta relação entre capitalismo e produção do espaço, simbiôntica, revela o exercício de uma hegemonia de classe sendo exercida e instrumentalizada através da produção do espaço. Neste processo, afirma Lencioni (2011, p.135): « a metrópole se colocou como pedra angular » nas últimas décadas como forma preferencial para que essa dominação ocorra.
7Assim, o espaço passou a integrar, cada vez mais intimamente, os circuitos de valorização do capital. Seja pela mercantilização da terra, pelo seu parcelamento (loteamento ou verticalização) ou, até mesmo, pela sua inclusão na circulação do capital financeiro (BOTELHO, 2005). Esta situação pode ser percebida quando observamos as grandes metrópoles do mundo contemporâneo. Espaços contraditórios e conflitantes são resultantes da produção capitalista do espaço que tem como fim primeiro a manutenção deste modo de produção.
8Compreender o urbano contemporâneo, portanto, só é possível se alocarmos sua produção na base do processo capitalista. Isso significa pensar as intrínsecas relações existentes entre a acumulação de capital e a urbanização. Este argumento é muito bem explorado, em diversas oportunidades, pelo geógrafo David Harvey (2008; 2011; 2012). Segundo o autor, os capitalistas encontraram na produção do ambiente construído a excelente oportunidade para absorver capital sobreacumulado (que, se não investido, é destruído) de outros setores e outras escalas. Dessa forma é que podemos entender o gigantesco crescimento nos ritmos de urbanização, assentados, é claro, na exploração e expropriação das classes trabalhadoras.
9Apesar de não haver novidades estruturais neste processo – Harvey (2012) lembra da situação que ocorreu na Paris do segundo império em que, sob os comandos do artista-demolidor Barão de Haussmann toda a capital francesa foi reconfigurada espacialmente, e também destaca os escritos de Engels referente à situação de moradia, nos cortiços ingleses, da classe trabalhadora no início da revolução industrial -, o século XXI tem sido marcado pela intensificação dos processos de expropriação das classes trabalhadoras. Assim, gera-se um dreno de riqueza constante que parte dos trabalhadores, que produzem socialmente a riqueza, em direção à burguesia, que, detentora dos meios de produção, apropriam-se que foi produzido e mercantiliza ampliando, assim, o capital.
10Com isso, observa-se a consolidação de um monopólio de classe sobre o espaço que exclui os pobres. Ao se tornar instrumento da acumulação do capital, o espaço passa também a ser, por outro lado, lado, a via de empobrecimento das classes trabalhadoras. A maximização dos valores de troca na produção do espaço gera benefícios e malefícios de forma desproporcional e, assim, marca a gênese da segregação espacial.
11A segregação urbana aparece de forma imperiosa na literatura sobre o espaço e tem se alçado a uma ampla discussão teórica e empírica. A forma como as cidades foram desenvolvidas e, também, a produção do espaço geográfico durante o desenrolar do capitalismo, criaram formas de ordenação específicas que estão subordinadas aos imperativos da acumulação do capital. Esse processo acaba « reproduzindo em novos patamares as segregações e alienações socioespaciais » (VOLOCHKO, 2015, p.106). Santos (1978) afirma que a organização do espaço reflete e, ao mesmo tempo, condiciona a organização da sociedade. De tal forma, numa sociedade de classes capitalista, a organização espacial das cidades ocorre de acordo com essa hierarquização social. Assim, a cidade capitalista é desigual e o processo de urbanização tem produzido e aprofundado as desigualdades e injustiças da cidade, já que é realizado para atender os interesses da acumulação de capital produzindo segregações (CANETTIERI; PEREIRA; LIBERATO, 2015). Dessa forma, tem-se o espaço atuando como instrumento de separação social. Assim, revela-se a existência de um componente espacial da exclusão. Mais do que sua expressão espacial de segregação, o espaço atua na produção de exclusão social.
12A metropolização é a forma de produção e organização do espaço (e das relações espaciais) desencadeada pela reestruturação produtiva do capitalismo, marcadamente a partir da década de 1970. Por mais que cada metrópole do mundo tenha forças endógenas, que, portanto, garantem características particulares, é necessário perceber que as dinâmicas globais e estruturais atuam de forma incisiva, produzindo espaços homogêneos com processos espaciais muito semelhantes. Tendo explicitado tais considerações, devemos destacar, como faz Lencioni (2011), que a metrópole é a tradução urbana da manifestação espacial do processo de globalização e, assim, a metropolização, a radicalização desse processo de urbanização marcadamente globalizado.
13A metropolização pode ser entendida como o momento mais avançado do processo de urbanização, já que este passa a constituir uma determinação histórica da sociedade capitalista contemporânea. A metrópole é condição para a reprodução do capital, um meio utilizado para a sua reprodução e um produto do próprio capital (LENCIONI, 2011). Os imperativos para essa reprodução são ordenados por lógicas hegemônicas que são aquelas determinadas e marcadas pelas dinâmicas da valorização do valor. Isso é expresso pela intensificação e multiplicidade dos fluxos de pessoas, mercadorias e informações, bem como, tratando da sua forma espacial, pela conurbação das cidades, com a expansão e a concentração de infraestrutura. Tal processo significa uma grande mudança na organização e na dinâmica espacial. Tendo se tornado o epicentro da acumulação capitalista, é também na metrópole que vai se acumular a expressão espacial de suas contradições, podendo-se destacar, seguindo Lefebvre (1981), o centro e a periferia, que expressam, respectivamente, o capital e o trabalho.
14Dado esse contexto geral, o caso específico da metropolização de São Paulo é marcado, segundo Lencioni (2011) e Carlos (2011), pelo processo de desconcentração industrial que ocorreu ao longo da década de 1970. Esse processo significou a concentração produtiva das indústrias em São Paulo como forma de otimizar o circuito de reprodução do capital. Em razão disso, nesse momento a capital paulista foi também o destino de milhares de imigrantes atraídos pelo seu dinamismo. Com isso, a cidade inchou sobre si mesma e foi marcadamente produzida de maneira informal, com os imigrantes pobres ocupando os espaços residuais e as áreas verdes que a ocupação formal deixava. Vale lembrar que isso não significa permissividade das estruturas capitalistas, mas que existia interesse nessa forma de ocupação informal do espaço, já que ela garantia a reprodução a baixos custos de parcela da população (MARICATO, 2003).
15Nas décadas seguintes ocorre a desconcentração industrial, apontando uma queda significativa da produção da indústria nacional, antes quase toda concentrada na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Em 1970, a RMSP representava 43,4% da produção do estado. Em 1980, foi reduzida para 34,2%, até chegar a 26,6% em 1995 (LENCIONI, 2011). Todavia, esse processo não significou uma perda de importância econômica de São Paulo e de sua região metropolitana, que passou a integrar outros circuitos diferentes do capital industrial, mantendo--se como localização privilegiada para a reprodução das formas de atração e concentração de capital, principalmente o de serviços, o financeiro e o imobiliário, marcadamente conjugados a partir do final do século XX (CARLOS, 2006). A expansão da mancha urbana – com maior fragmentação – e a produção das periferias metropolitanas significou que, embora o processo de metropolização apresente a tendência de homogeneizar o território, essa homogeneização é marcada pelo processo de fragmentação (CARLOS, 2011).
16Novas formas espaciais são produzidas em razão da transformação produtiva para o modo de acumulação flexível, passando da hegemonia do capital industrial ao capital financeiro. Esse processo gera um duplo movimento que marca a metropolização de São Paulo: ao mesmo tempo em que ocorre a desconcentração do processo produtivo, há o aprofundamento da centralização do capital no centro da metrópole, o que significa reafirmar que a metropolização representa a extensão das relações capitalistas num âmbito ainda mais intensificado e, exatamente por isso, aprofunda as desigualdades espaciais existentes. A dinâmica espacial da atividade econômica em curso, que desconcentra a indústria da metrópole e o crescimento do setor financeiro e de serviços modernos, acaba gerando uma nova forma de estruturação espacial, mas que reproduz a mesma dimensão da lógica centro-periferia.
17Assim, é necessário destacar que a dinâmica de ganhos do capital imobiliário está ligada à especulação, em que as terras à disposição para construção são deixadas à espera de investimentos que possam aumentar os ganhos dos capitais investidos. Isso faz com que aumente, necessariamente, a distância, tanto geográfica como social, entre as classes, agravando cada vez mais as desigualdades socioespaciais.
18Portanto, o processo de metropolização de São Paulo, como descrito, ocorre com a extensão de sua periferia para o território metropolitano, todavia marcadamente com uma dimensão de classe, e se dá com a extensão territorial das periferias pobres, acompanhada por uma intensa reestruturação urbana que se organiza para atender aos novos imperativos da acumulação de capital. Esse processo já vem sendo acompanhado por autores como Lecioni (2011) e Brito e Souza (2005).
19Em especial, vale destacar que em São Paulo se observa uma intensa reorganização do sistema de transporte viário, além do estímulo dos governos para o seu acesso, o que permitiu às classes populares possuírem seu próprio carro e, portanto, residirem em áreas cada vez mais distantes (KOWARICK, 2000). Vários autores (MARICATO, 2013; ROLNIK, 2013) têm chamado atenção ainda para os processos de periferização decorrentes das práticas espaciais que condicionam o provimento de moradias por intermédio dos programas habitacionais do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), que reproduzem, com grande intensidade, os padrões de centro e periferia, forçando aqueles que acessam o programa, na grande maioria das vezes, a residirem em periferias longínquas.
20Assim, esse processo tem significado uma expansão da área onde os pobres residem. Mas, mais do que isso, está conectado com a expulsão dos pobres das áreas centrais, espaços valorizados onde o capital tem maior interesse em investir para a acumulação e em que, portanto, os pobres não podem ficar. Ele está claramente representado se observamos o local de moradia dos pobres durante a primeira década do século XXI, expresso no mapa.
FIGURA 2 - Densidade da população em situação de pobreza nos setores censitários da RMSP em 2000 e 2010.
Fonte: IBGE (2000 e 2010) – Elaboração: Thiago Canettieri
21Constata-se, no período analisado (censo de 2000 e 2010), uma considerável redução dos pobres residentes nas áreas centrais e seu consequente espraiamento no restante do território metropolitano, passando a ocupar áreas cada vez mais distantes. Embora ao analisar os valores absolutos de pobres, com o uso da metodologia escolhida, o número deles tenha se reduzido de 2000 para 2010, observa-se que essa população passou a se localizar cada vez mais distante das áreas centrais, o que pode levar a se considerar a hipótese da expulsão. Em 2010, o mapa demonstra como os pobres estavam dispersos no território da RMSP. Até 2000, eles estavam mais ou menos concentrados em periferias mais próximas do município polo (São Paulo), mas, em razão dos processos já analisados, têm sido obrigados a se mudar para os lugares que conseguem acessar, o que significa que estão indo para lugares mais distantes, estendendo a periferia metropolitana.
GRÁFICO 1 - Famílias em situação de pobreza na RMSP em 2000 e 2010
22O gráfico 01 permite qualificar a informação, indicando que, apesar da redução do número de famílias pobres no contexto da RMSP, ela acontece de maneira desigual entre o município polo, São Paulo e os outros municípios da RMSP. No contexto do município de São Paulo a redução foi de quase 10% no decênio, ao passo que a redução da pobreza nas periferias metropolitanas foi muito mais tímida, aproximadamente 2%. Uma das hipóteses que pode ser levantada é que, parte da redução das famílias pobres de São Paulo não correspondem à um aumento de renda necessariamente, mas à expulsão destas famílias para os outros municípios que ocorre sob vários expedientes.
23Como é descrito na análise de Torres e Gonçalves (2007), a centralidade do mercado imobiliário formal na cidade de São Paulo converge para o chamado quadrante sudoeste da cidade. Até 2003, esse foi o vetor preferencial para a atuação do capital imobiliário e seus lançamentos de empreendimentos. Por consequência, no mapa anterior é possível observar que a pobreza em 2000 tendia a se concentrar no quadrante oposto, na porção nordeste de São Paulo. Mas essa intensificação da produção imobiliária da cidade, marcadamente na segunda metade dos anos 2000, em que ocorreram variados empreendimentos privados (BOTELHO, 2005) e a demarcação de parcerias público-privadas para essa produção no território de São Paulo (FIX, 2004), acabou por levar ao espraiamento e à dispersão dos pobres, como observado para o ano 2010 no mapa.
24Os indícios encontrados, juntamente com a bibliografia sobre São Paulo, em especial o trabalho de Maricato (2003), apontam para um constante processo de elitização do município polo (São Paulo) e para uma extensão da pobreza para periferias metropolitanas, abarcando cada vez mais municípios distantes da área central. Assim, é preciso deixar claro que o processo de metropolização desse município está ligado diretamente a um processo de expansão das periferias, articulando outros municípios à dinâmica de classes que garante a estruturação de São Paulo.
25Dessa maneira, a literatura sobre o tema, conforme apontam Torres e Gonçalves (2007), apresenta a existência de um nexo causal entre a dinâmica do mercado formal de terra e a expansão da periferia. Os bairros das classes de alta renda, bem como o desenho do transporte, afirma Villaça (1998), são duas das forças que atuam na periferização do espaço metropolitano de São Paulo obrigando os grupos de menor renda a ocupar as periferias distantes, menos dotadas de infraestrutura, muitas vezes em soluções de habitação autoconstruída, de baixo custo e localizadas em áreas irregulares.
26O mercado imobiliário é caracterizado como vetor responsável pela produção e reprodução da segregação residencial no contexto da metrópole de São Paulo, já que, de maneira geral, não se interessa em atender a maior parte da demanda por habitação, mas sim em garantir a reprodução ampliada do capital na forma da indústria da construção civil e da especulação imobiliária (MARICATO, 1996; VILLAÇA, 1998; TORRES, 2005; TORRES, GONÇALVES, 2007).
27Os capitalistas estão sempre produzindo os excedentes financeiros de que necessitam por meio da competição imposta pelo funcionamento do mercado, encontrando saídas para sua absorção na forma de investimentos lucrativos. No contexto mundial, aponta Harvey (2012), observa-se que desde 1989 os capitalistas encontraram no processo de urbanização uma aplicação rentável para as massas crescentes de recursos, levando investidores a exercitar de forma frenética seus poderes de alavancar oportunidades de investimentos com a urbanização.
- 2 Foi com base nesse entendimento que Marshal Berman (2007, pp.116) afirmou que a «a burguesia é a ma (...)
28Junto com a criação de solo urbano, e de toda a infraestrutura necessária que, por si só, já absorve grandes parcelas de excedente de capital e de trabalho, existem ainda os processos de reestruturação urbana que surgem como fenômenos de destruição criativa2 . Esses processos significam a abertura de espaços na cidade que possam receber outros circuitos de investimento do capital, ou seja, implicam destruir o que já está constituído para que o capital possa atuar naquele espaço e, dessa forma, realizar sua valorização.
29Esse, na verdade, é um processo já identificado por Engels (2008, p.248) ao escrever, em 1845, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Segundo o autor:
O crescimento das grandes cidades modernas dá a terra em certas áreas, em particular as de localização central, um valor que aumenta de maneira artificial e colossal. Os edifícios já construídos nessas áreas lhes diminuem o valor, em vez de aumentá-lo, porque já não pertencem às novas circunstâncias. Eles são derrubados e substituídos por outros. Isso acontece, sobretudo, com as casas dos trabalhadores que têm uma localização central e cujo aluguel, mesmo com o máximo de superlotação, não poderá jamais, ou apenas muito lentamente, aumentar acima de um certo limite. Elas são derrubadas e no seu lugar são construídas lojas, armazéns e edifícios públicos.
30Tal processo insiste em se perpetuar. Mesmo dois séculos e meio mais tarde, a urbanização contemporânea segue os mesmos imperativos daqueles encontrados por Engels (2008). O processo de destruição criativa tornou-se essencial para a sobrevivência do sistema capitalista. Marx (2013) destacou a existência de uma acumulação primitiva do capital que ocorre por meio da apropriação, à força, de parte das riquezas a fim de iniciar o circuito do capital. Assim, o nascimento e a perpetuação do capital foram possíveis, segundo Marx (2013, p.151), apenas ao serem « escritas em letras de sangue e fogo ».
31A origem do capitalismo teve que ser violenta para que se iniciasse a acumulação por meio de um duplo processo: a instituição da propriedade privada (capitalista) e a expropriação dos meios de produção. Essa fase da espoliação capitalista como aparece descrita em Marx (2013) parece já ter sido superada ao longo do processo de colonialismo e do escravismo. No entanto, Hannah Arendt (2004, p.28) afirma que a acumulação primitiva « eventualmente deverá ser repetida, a fim de evitar que o motor da acumulação pare de súbito ». Por essa razão, Harvey (2012) aponta que não faz sentido falar em uma acumulação primitiva, já que essa estratégia continua a acontecer. O autor passa então a designar esse fenômeno de acumulação por despossessão. Esse processo é reproduzido em diferentes escalas, inclusive dentro das cidades contemporâneas. Assim, cabe destacar que o regime de acumulação dentro do capitalismo contemporâneo passa, necessariamente, por uma despossessão – inclusive por vias violentas – da classe trabalhadora. Este é um dos expedientes, talvez o mais intenso, de transferência de riqueza socialmente produzida para as mãos da burguesia. E, num contexto urbano contemporâneo, é possível identificar em cada despejo e remoção traços deste processo de expropriação violenta, como mecanismo de abrir espaço para que o capital possa realizar sua acumulação.
- 3 Aportuguesamento da palavra inglesa gentrification, que se refere ao termo gentry, alta sociedade.
32Para complementar a interpretação anterior, é necessário recuperar o conceito de gentrificação3 cunhado por Neil Smith (1996) para designar o processo de substituição dos padrões de ocupação nos espaços urbanos. Esse conceito está muito vinculado à ideia de reestruturação urbana e/ou de renovação urbana que ocorre por intermédio de variados mecanismos. O termo gentrificação indica o processo que o sistema capitalista insere, com a utilização de uma diversidade de estratégias político-legais urbanísticas, às leis de mercado e à oferta de moradia, o que acaba alterando substancialmente a ocupação da área. Essa alteração, por fim, serve, em primeiro lugar, para a acumulação e a expansão do capital (SMITH, 1996).
33Em linhas gerais, o processo de gentrificação atua em áreas de baixa atração para a classe rica, áreas essas degradadas, tornando-as valorizadas. Assim, muitas vezes o Estado e seus aparatos (tanto de monopólio de violência física como as instâncias jurídicas) atuam de forma a retirar a população de baixa renda de tais lugares, ao passo que promove uma série de reestruturações urbanas responsáveis por valorizar a área e promover, assim, sua ocupação pela classe dominante.
34Os repetidos episódios de destruição criadora do espaço urbano contemporâneo agem para permitir a revitalização e a reconstrução de áreas da cidade a fim de garantir absorção de capital excedente e uma maior apropriação de lucros. Mas, nessa reestruturação urbana, a população pobre (maior atingida por esses processos) é retirada e levada a ocupar outras áreas: as periferias metropolitanas, cada vez mais distantes. Vale ressaltar ainda, como faz Sampaio (2015), que a violência reside não exatamente e somente nos meios e métodos empregados, mas nos danos sociais, econômicos e políticos derivados desse processo.
35É imperioso relacionar as ideias de destruição criativa, acumulação por despossessão e gentrificação para contribuir com o entendimento da produção capitalista do espaço metropolitano contemporâneo. A dinâmica da ação do capital imobiliário e sua necessidade de expansão obrigam a destruir espaços já construídos e, especialmente, espaços degradados do ponto de vista da valorização do capital para dar espaço a novas rodadas de acumulação, permitindo que seja possível alizar o investimento. Isso configura, sobretudo, uma despossessão violenta das classes trabalhadoras pobres, que são vulneráveis a esse processo. Com isso, o resultado é a gentrificação, ou seja, a alteração do padrão da ocupação: antes precária, própria da população de baixa renda, passa a dar lugar à ocupação de alto padrão, representando melhores taxas de retorno para o capital. A produção capitalista do espaço é, portanto, colocada em uma perspectiva central para a acumulação de capital. Nesse sentido, David Harvey (2012, p.57) adverte: « The economy of dispossession of vulnerable population is as active as it is perpetual. » O funcionamento normal de um sistema urbano capitalista tende a uma distribuição regressiva da riqueza social geral e da renda real em favor dos mais ricos (HARVEY, 2008).
36No caso da produção do espaço metropolitano de São Paulo, a situação não é diferente da lógica hegemônica da urbanização capitalista assentada no mecanismo de acumulação por despossessão. Observa-se, nesse processo, uma constante presença da violência física contra as populações de baixa renda no sentido de abrir áreas para que ocorra o investimento e assim a acumulação de capital. Se o espaço se tornou estratégia de acumulação, este deve responder aos interesses da classe capitalista – os pobres são expulsos com a utilização de vários mecanismos para abrir esse espaço.
37A cidade tornou-se instrumento da acumulação do capital (HARVEY, 2012), e a busca pelo lucro, inerente à lógica capitalista, transforma o solo urbano em valor de troca, e os proprietários fundiários e imobiliários se apropriam do valor criado pela coletividade na urbanização (PEREIRA, 2005). É possível averiguar, no município de São Paulo, uma valorização do metro quadrado superior a 200% no período de 2008 a 2012. Em um duplo movimento, a valorização gera a expulsão, e a expulsão acaba aumentando intensamente a valorização, cujo processo significa maiores oportunidades de apropriação da riqueza socialmente produzida por parte dos capitalistas.
38No entanto, existem limites materiais para essa apropriação. A terra e a benfeitoria são mercadorias especiais porque existe uma espécie de monopólio: a localização e a construção são únicas. Dessa forma, quando o mercado necessita de novas áreas de expansão, muitas vezes em locais já saturados, é necessário que os capitalistas recorram ao poder público. Nesse sentido, é permitido, utilizando uma série de elementos próprios do Estado, renovar espaços para a acumulação. Pode-se remover, desapropriar, flexibilizar normas, mudar zoneamento etc., e essas mudanças promovidas pelo poder público favorecem a acumulação de capital.
39É importante destacar que a política urbana de São Paulo, há muito tempo, tem sido voltada a atender a essas demandas do capital, por exemplo, por meio das Operações Urbanas Consorciadas (FIX, 2004; 2001).
40No mapa a seguir (Figura 3) demonstra-se a correspondência espacial desse fenômeno. As maiores concentrações de vilas, favelas e ocupações removidas estão exatamente em áreas delimitadas para ocorrer operações urbanas. Nesses espaços ocorrem vultosos investimentos por parte do poder público para o desenvolvimento da área, valorizada para atender aos interesses capitalistas da produção do espaço.
41Esse processo representa a íntima relação estabelecida entre o Estado e o capital, voltada para atender aos interesses da classe dominante. As remoções destacadas no mapa foram todas levadas a cabo pelo poder público.
FIGURA 3 - Mapa das remoções realizadas em São Paulo (2012) e área das Operações Urbanas
Fonte: FIORAVANTI, 2012.
42O mapa revela uma correspondência espacial entre as operações urbanas e um grande número de remoções de comunidades populares, apontando também aquelas já notificadas ou que estão em projetos urbanos aprovados. A informação serve exatamente para confirmar o processo de despossessão das classes trabalhadores. As áreas de operação urbana, espaços que implicam vultosos investimentos por parte do poder público e de entidades privadas, remove as famílias pobres, sendo exatamente esse processo de expulsão que acaba por abrir espaços em locais em que existe interesse da acumulação capitalista, lugares onde pode ocorrer a valorização. Neste sentido, as comunidades que não têm força política para fazer frente ao poder econômico do capital são despejadas de forma violenta. Vale notar, sobretudo, que a maior parte das comunidades que já foram removidas eram localizadas na área mais central do município de São Paulo. Dessa forma, é necessário reforçar a intenção do capital de reocupar o centro em um processo de gentrificação, já que os ganhos de capital nessa região da cidade são grandes e de baixo risco em razão de toda a existência da malha de infraestrutura que é revitalizada e valorizada por meio das políticas públicas.
43Vale ressaltar que o Estado cumpre um papel fundamental no processo de expulsão das famílias pobres, sendo essencial para a produção desse projeto de acumulação e dominação. Por meio de mecanismos legais e também do monopólio da violência, o Estado garante a reprodução capitalista do espaço, orientada para satisfazer a necessidade de valorização do capital.
44No entanto, a produção capitalista do espaço não se restringe aos limites legais. Davis (2006) destaca que em vários lugares do mundo os capitalistas atuam à margem da lei para satisfazer seus interesses de classe na produção do espaço urbano. O mesmo tem ocorrido em São Paulo, o que se pode verificar ao se analisar a localização dos incêndios nas favelas e a área da operação urbana, revelando uma preocupante correspondência, como pode ser observado na Figura 4.
- 4 Para citar algumas: Joseph Silva, 09/06/2014 – O que está por trás de incêndios nas favelas de São (...)
45Foco de várias investidas do jornalismo investigativo4, esse fenômeno pode estar relacionado com a ação ilegal dos capitalistas exatamente para atuar na abertura de novas áreas, principalmente as áreas centrais, para que ocorra a acumulação.
FIGURA 4 - Localização de incêndios em favelas de 2008 a 2012 e área das Operações Urbanas
Fonte: FIORAVANTI, 2012
46Essa correspondência revela a violência que está envolvida na produção capitalista do espaço. A acumulação continua a ocorrer marcada por « ferro e fogo », como descreveu Marx (2013). Inclusive, há mais uma ‘coincidência’ no método utilizado para fazer acontecer essa « destruição criadora ». Huberman (1981) descreve que uma das formas adotadas pela ascendente classe capitalista no processo de cercamento dos campos, entre o século XVII e XVIII na Inglaterra, para retirar os camponeses era, também, o incêndio. As casas dos camponeses ingleses incendiadas tornavam-se inabitáveis, obrigando-os a irem para a cidade e assim vender sua força de trabalho para as indústrias que surgiam. O método de expulsão se repete, obrigando, mais uma vez, os trabalhadores da metrópole contemporânea a se mudarem.
47Essa remoção das famílias pobres, ora por vias ‘legais’ e levada a cabo pelo Estado, ora por vias ilegais, significa, em primeiro lugar, abrir espaço nas áreas centrais (e, portanto, mais valorizadas) para a realização do lucro dos investimentos do capital.
48Nessas áreas onde ocorre investimento público, a iniciativa privada encontra condições favoráveis para realizar a acumulação e, dessa forma, também investe nessas áreas com expectativa de grandes retornos de renda. Vale ainda destacar o papel que as operações urbanas consorciadas exercem nesse tipo de ação que representam. Como aponta Fix (2004, 2001), essa é uma excelente estratégia do capital, que se utiliza da política pública urbana para encontrar meios de valorização do capital imobiliário e, também, de outros capitais.
49Assim, perpetua-se a lógica de reforçar o caráter central da cidade polo. Sua centralidade rica (que pode, todavia, tornar-se expandida) reforça também as periferias, que se tornam mais distantes. Por isso, é possível se referir a esse processo como uma formação de novas periferias, agora em uma escala metropolitana. Como afirma Pereira (2005, p.8):
Agora esse crescimento é definido, de outra maneira, pela dinâmica da produção imobiliária intensiva que se manifesta como uma nova lógica de crescimento, que intimamente se subordina à metropolização dos espaços (Grifos do autor).
50A dinâmica da produção imobiliária intensiva, ou seja, aquela que ocorre nas áreas centrais, abre espaço (literalmente) para que o capital imobiliário e das incorporadoras possa atuar nos terrenos especulados, localizados nas áreas centrais e bem dotadas de serviços públicos e infraestrutura. Relação essa muito semelhante à encontrada por Smolka (1992) para o Rio de Janeiro na última década do século XX. Dessa forma, obriga-se a população que antes residia nessas áreas a se deslocar para espaços mais distantes, criando uma ocupação espacial extensiva sobre o território metropolitano. O mesmo processo também é apontado por Marques (2005) e Torres e Gonçalves (2007), que observam em São Paulo uma importante expansão do mercado imobiliário, o que significa a expulsão dos pobres. Essa expulsão é necessária para que se abram novos nichos espaciais, em especial em áreas estratégicas para empreiteiras, imobiliárias e especuladores, para que possa ocorrer a acumulação de capital.
51Nas áreas centrais, conforme identificado por Torres (2005), observa-se um significativo decréscimo populacional a despeito do grande volume de lançamentos imobiliários nas áreas mais centrais de São Paulo. Tal fato representa, portanto, um processo de troca populacional em que os pobres tornam-se impossibilitados de se manterem nas áreas centrais, que passam a ser ocupadas por camadas de renda mais elevada ou, como ocorre muitas vezes, as habitações são deixadas vazias, já que são tratadas como ativos financeiros (PASTERNAK; BÓGUS, 2015).
52Esse processo, como observado em diversos trabalhos (ROLNIK, 2009; MARICATO, 2009; CARDOSO; ARAGÃO; ARAUJO, 2011; BARAVELLI, 2014; LIMA NETO; KRAUSE; FURTADO, 2015; ROLNKI et. all. 2015), possui larga dependência das políticas habitacionais levadas a cabo pelo governo, em especial o Programa Minha Casa, Minha Vida. No PMCMV a construção das unidades habitacionais está condicionada à possibilidade de lucro que a empreiteira pode angariar com os recursos já fixos e estabelecidos para o financiamento e, portanto, utiliza os terrenos mais periféricos e com menos infraestrutura, para que possa maximizar seus lucros.
FIGURA 5 - Lançamentos PMCMV Faixa 1 (2012)
Fonte: Marques; Rodrigues, 2013
53O mapa revela a organização que tende a ocupar as áreas periféricas dos empreendimentos destinados à Faixa 1 (até R$1.600,00). Quando comparado com o mapa da pobreza em 2010, é possível observar que existe uma clara correspondência entre esses empreendimentos e a área ocupada pelos pobres. Como aponta Cardoso, Aragão e Araújo (2011), na RMSP, 88% dos empreendimentos destinados ao PMCMV – Faixa 1 não se localizam no município de São Paulo, sendo que essas unidades habitacionais atendem a apenas 7% do déficit habitacional das famílias de renda até R$1.600,00 mensais (MARQUES; RODRIGUES, 2013), o que sugere que grande parte dessas pessoas ainda reside em moradias autoconstruídas e em loteamentos clandestinos ou arcam com pesados aluguéis, o que faz perpetuar o déficit habitacional que o PMCMV não conseguiu reduzir (BOULOS, 2014).
54Dessa forma, a estrutura da acumulação capitalista, calcada no relacionamento entre capital e Estado, acaba por obrigar os pobres a ocuparem as periferias, estas, por sua vez, cada vez mais distantes do centro, sendo consideradas as novas periferias metropolitanas.
55Tendo por base o caso de São Paulo, é possível falar na formação de um novo processo de produção das periferias metropolitanas. A forma de organização da urbanização contemporânea passa a ter um padrão fractal, cada vez mais disperso e difuso no território. Muito tem sido escrito sobre a incapacidade de se manter as categorias, amplamente utilizadas nas décadas de 1970 e 1980, de centro-periferia, como apontam Limonad e Costa (2014, p.118): « [...] contemporary urban and metropolitan sprawl defies previous centre-periphery correlations ».
56É inegável que vem ocorrendo uma reorganização espacial das metrópoles em escalas diferentes, bem como a imposição de novas lógicas sociais e espaciais que estão em jogo na produção do espaço na primeira década do século XXI. Deve ser reconhecido ainda que essas novas estruturas desafiam as tradicionais interpretações e paradigmas, necessitando de novo esforço analítico para compreender a realidade urbana que vem se desdobrando na atualidade. Não faltam evidências da fragmentação e dispersão da expansão urbana. Nesse sentido, é necessário repetir o questionamento de Limonad e Costa (2014, p.118): « Has the ideia of centre and centrality expired? Or has it acquired new meaning? » Partindo do questionamento das autoras e das análises efetuadas ao longo do artigo, é impossível abrir mão da ideia de centro e periferia. Como aponta Lefebvre (1991), enquanto se tratar das cidades capitalistas, por causa de sua lógica inerente, é imprescindível adotar a ideia da dicotomia centro e periferia, expressão espacial da contradição entre capital e trabalho.
57A produção dessas novas periferias metropolitanas está relacionada aos interesses do mercado formal e à estratégia espacial dos lançamentos imobiliários. « O mercado influencia também os fenômenos urbanos, que parecem ter origem e caráter essencialmente sociais, como a expansão de favelas e das periferias » (TORRES; GONÇALVES, 2007, p.15).
58Para abarcar a manutenção da ordem centro e periferia, bem como a complexidade da nova forma de urbanização que ocorre com a produção das periferias, propõe-se a ideia de Periferia Fractal (CANETTIERI, 2014). Com isso, pretende-se pensar como a atuação do mercado imobiliário, na produção ‘intensiva’ do espaço nas áreas centrais, está ligada à (re)produção ‘extensiva’ das periferias metropolitanas, cada vez mais fragmentadas e distantes. Deve ser destacado, portanto, que a produção das periferias fractais é a expressão da tensão criada (e, de certa forma, recriada) das contradições latentes que não são (e nem podem ser) resolvidas pela produção do urbano sob os ditames do capitalismo. Assim, a saída acaba sendo produzir uma aparência funcional que permita estar inscrita na própria organização da metrópole. Ou seja, « [...] a periferia fractal é uma resposta, na forma urbana, para aliviar as tensões sociais intrínsecas ao funcionamento urbano, o que, por sua vez, garante a reprodução dessas mesmas tensões » (CANETTIERI, 2014, p.215).
- 5 Para confirmar, pode-se verificar, no trabalho de Silva e Rodrigues (2010), que no saldo migratório (...)
59Nesse sentido, o que se está chamando de periferia fractal é uma nova forma espacial, mas que mantém seu conteúdo social inalterado, representando a separação entre as classes em uma distância geográfica que não para de aumentar sob os tecidos urbanos, cada vez mais difusos e dispersos no território. Para tanto, é necessário recuperar a Figura 2, que representa o mapa da localização de moradia dos pobres no ano de 2000 e 2010, e que retrata a expansão fragmentada da periferia da metrópole de São Paulo. A expansão da periferia e a metropolização da pobreza de São Paulo guardam, portanto, relação direta com os processos de destruição criadora, de acumulação por despossessão e de gentrificação que ocorrem no município núcleo5, espaço que é colonizado pelo capital para atender aos imperativos de sua reprodução a taxas favoráveis.
60Embora ainda seja apresentada como uma tendência, observa-se que a metropolização dos espaços ocorre por meio de uma fractalização, ou seja, de uma dispersão fragmentada da pobreza. Para atender a esses processos, pode-se falar na existência de uma estrutura (que determina tanto uma superestrutura quanto uma infraestrutura) socioeconômica que age sobre a distribuição da população no espaço. « O mercado, ao ser o principal mecanismo de hegemonia da coordenação das decisões de uso do solo, produz uma estrutura ou forma de cidade particular » (ABRAMO, 2007, p.26). Mais do que uma forma de cidade, pode-se falar em uma forma específica de periferia: a periferia fractal.
61É necessário destacar que a produção das periferias metropolitanas oriundas da segregação socioespacial é condição e fundamento para a realização da propriedade privada da terra e para a urbanização capitalista expressa pela manifestação da violência que lhe é própria (SAMPAIO, 2015).
62Esses vários processos existentes atuam em grandes rodadas de rearranjos populacionais a fim de satisfazer determinada lógica de circulação e acumulação de capital nas metrópoles contemporâneas.
63A metrópole continua com seus ritmos de (re)produção calcados em uma série de relações sociais de trabalho e de consumo que, embora com pequenas alterações, são mantidas substancialmente as mesmas. O conteúdo subjacente ao urbano continua sendo essencialmente segregador e exclusor. No entanto, em virtude da necessidade imperativa da reprodução ampliada do capital, a forma urbana teve que ser alterada para um novo padrão de periferia.
64A lógica dominante é um imperativo do capital. Dado o circuito limitado deste (ainda mais hoje, que, como descreve Harvey (2012), as taxas de lucros sofrem com queda tendencial), a saída encontrada pelo capitalismo foi a urbanização. Sendo impossível urbanizar a área dos ricos mais de uma vez, a não ser por meio de intensa verticalização, foi necessário urbanizar as periferias. Não apenas urbanizá-las, mas dispersá-las no território (CANET-TIERI, 2014, 2015). Passa-se, portanto, à ideia de Harvey (2008, 2012) de que a reordenação espaço-temporal do processo de urbanização é uma das formas efetivas para a sobrevivência do capitalismo, com a destinação rentável de capital sobreacumulado de outros setores e escalas.
65Para essa reordenação espaço-temporal o estado capitalista cumpre função primordial. Como aponta Sampaio (2015), desde os escritos de Marx (2013) se tem a clareza da atuação violenta do Estado voltado para a realização e consolidação da acumulação de capital. No caso de São Paulo, é ainda mais explícito se contraposta aos projetos de urbanismo para a cidade, que correspondem exatamente às áreas onde ocorre a violência direta da expropriação dos trabalhadores de seus espaços. É por meio dessa constatação que Henri Lefebvre (1981) destaca o papel do Estado na reprodução do capitalismo e, acima de tudo, na garantia da forma capitalista de produzir o espaço. Assim, essa reordenação espaço-temporal do circuito do capital está ligada à reorganização espacial da população pobre na metrópole. Organização essa relacionada a uma determinada estrutura de dominação e submissão mantida pela contínua despossessão das classes trabalhadoras que, por vias violentas, são obrigadas a se submeter à organização da metrópole, imposta para que ocorra a reprodução do capital.
66Por fim, faz-se necessário deixar claro que o argumento aqui desenvolvido é que a metropolização de São Paulo é, sobretudo, a metropolização da pobreza. A formação da pobreza dos outros municípios é ligada à expulsão dos pobres do município de São Paulo, o que indica uma articulação funcional entre os municípios metropolitanos subsumida a uma lógica de classes: municípios periféricos recebem a pobreza, enquanto o município central recebe os ganhos do capital. Isso significa, sobretudo, um aumento da separação entre as classes, não apenas geograficamente, como também dentro da estrutura social. Esse processo é interno à própria lógica da produção capitalista do espaço e a violência nos processos de despossessão e gentrificação representa a garantia para que se possa ocorrer a reprodução do capital e a formatação do espaço metropolitano nos moldes prescritos por essa ordem hegemônica.