1Os textos aqui agrupados correspondem às respostas de geógrafos anglo-saxões efetuadas trinta anos depois às questões formuladas por Foucault à revista Hérodote (Abril-junho, segundo trimestre de 1977, n.6, p.3- 39). Essas questões e respostas de Foucault datando de 1977 e traduzidas estão sendo publicadas nesse mesmo número da Geografares.
2Dentre essas respostas à Foucault com trinta anos de intervalo, há notadamente um texto de David Harvey. Desse modo, podemos avaliar as diferentes recepções e comentários às questões e à obra de Michel Foucault, feitas com trinta anos de intervalo por geógrafos de matrizes teóricas distintas.
3No final de sua entrevista com os editores de Hérodote, Foucault disse:
- i Na edição em português: Foucault, Michel: A Microfísica do Poder; pág. 164-165. Organização e Tradu (...)
Eu gostei muito desta entrevista com vocês, porque mudei de opinião entre o começo e o fim... Agora me dou conta de que os problemas que vocês colocam a respeito da geografia são essenciais para mim. Entre um certo número de coisas que relacionei estava a geografia, que era o suporte, a condição de possibilidade da passagem de uma para outra. Deixei as coisas em suspenso ou fiz relações arbitrárias... A Geografia deve estar bem no centro das coisas de que me ocupo. (1980, 77; este volume, 182)i
4O subsequente apelo de Foucault aos geógrafos por orientação sobre como essa « condição de possibilidade » funcionaria, é interessante notar, enfoca mais no conceito de espaço do que na geografia. Enquanto muitos geógrafos aceitariam que a espacialidade é um de seus conceitos fundamentais, eu duvido que atualmente muitos deles defendam uma concepção tão restrita do assunto (Harvey 2004). Quanto mais a geografia se afasta da seara positivista que assumiu na década de 1960 como uma ciência exclusivamente espacial, mais difícil se torna responder as questões a partir de seu status epistemológico atual. O pedido de Foucault para esclarecimentos merece alguma resposta. Curiosamente, respostas do tipo podem ser elaboradas a partir de própria história intelectual de Foucault.
5Consideremos, por exemplo, a frase « condição de possibilidade » que Foucault usa para descrever a posição da geografia em relação ao seu próprio trabalho. Essa é uma frase bem Kantiana. Ao apelar a essa frase, Foucault está, penso eu, remontando ao seu antigo encontro com a antropologia de Kant. Foucault traduziu para o francês o texto Anthropology from a Pragmatic Point of View (publicado em 1964) de Kant. Ele terminou sua introdução da tradução com uma promessa de preparar um trabalho mais aprofundado para trabalhar as questões postas no texto. Esse trabalho mais aprofundado nunca se materializou, mas Foucault deixou um extenso material não publicado, « Commentaire », que agora está disponível (Kant 1964), Foucault (2005).
6Em seu comentário Foucault argumenta que a Antropologia de Kant tem um papel muito mais vital do que marginal em relação ao pensamento global de Kant e que, na realidade, as três críticas de Kant não poderiam ter sido escritas sem ela. Amy Allen sintetiza o argumento de Foucault da seguinte forma:
A Antropologia (talvez inconscientemente) abre o quadro da filosofia crítica, revelando a especificidade histórica de nossas categorias a priori, seu enraizamento em práticas e instituições sociais e linguísticas historicamente variáveis. A leitura que Foucault faz da Antropologia de Kant sugere então que o sistema de Kant contém as sementes de sua própria transformação radical, uma transformação que Foucault vai realizar em seu próprio trabalho: a transformação da concepção de a priori como universal e necessário para o a priori histórico; e a transformação relacionada a partir do sujeito transcendental, que serve como a condição de possibilidade de toda a experiência para o sujeito, é condicionada por seu enraizamento em circunstâncias históricas, sociais e culturais específicas. (Allen, 2003)
7É esta transição no pensamento de um sujeito desencarnado e transcendental para um sujeito enraizado que é crítica. Que tipo de teoria da espécie humana poderia ser construída através de investigação científica? O principal veículo que Kant usa para explorar essa questão, de acordo com Foucault, é fornecido pela Antropologia. Para Foucault, entretanto, deveria ser fornecido pela arqueologia, mas em termos de conhecimento e não de artefatos (1982). O que essa questão nos coloca é: porque não deveria ser fornecido, tanto para Kant como Foucault, pela Geografia? A Geografia afinal trafega muito fortemente na ideia do enraizamento do sujeito humano em circunstâncias históricas, sociais, culturais e, devemos adicionar, ambientais específicas. A Geografia, ainda mais que a antropologia, aspira o status de ciência. O que Foucault parece admitir em sua entrevista e em suas perguntas é que a geografia poderia muito bem ter realizado uma função paralela ao que é visto na Antropologia de Kant ou em sua própria arqueologia. No caso de Kant, entretanto, a resposta é ainda mais interessante. Ele de fato viu a geografia como « uma condição de possibilidade » de todas as formas de conhecimento e ele começo a ensinar isso muitos anos antes de ele ter começado a pesquisar na área de antropologia (ver May 1970; Zammito 2002). Se Foucault era consciente desse fato, ele nunca mencionou isso, talvez porque a geografia de Kant nunca foi publicada durante a vida de Kant e quando foi publicada mais tarde a partir de uma compilação de notas de Kant e de seus estudantes, teve muito pouco impacto. A pergunta para nós é: porque a geografia como condição de possibilidade de todas as outras formas de conhecimento é deixada de lado até ser finalmente reconhecida, sob pressão, por Foucault aos editores de Hérodote?
8Dada a forte influência Kantiana no trabalho de Foucault, eu penso que é útil primeiro reconstruir os pontos de vista de Kant. Kant lecionou geografia quarenta e nove vezes, em comparação às quarenta e quatro ocasiões que ele lecionou lógica e metafísica e às quarenta seis e vinte e oito vezes que ele lecionou ética e antropologia respectivamente. Ele saiu de seu percurso e obteve dispensa das normas da universidade para ensinar geografia no lugar de cosmologia. Ele explicitamente argumentou que a geografia e a antropologia de nem as « condições de possibilidade » de todo conhecimento. Ele considera esses conhecimentos uma preparação necessária – propedêutica como ele chamou – para todo o resto (May, 1970, 132-6). Enquanto tanto a antropologia quanto a geografia estavam em um estado « pré-crítico » ou « pré-científico », seu papel fundamental exige muita atenção. A pergunta é: por que ele pensa assim?
9Para Kant a metafísica e a ética não deveriam ser baseadas em um ponto de vista do sujeito transcendental dada pela teologia ou pela cosmologia especulativa. Teriam que ser baseadas na compreensão científica da experiência humana. A sua antiga batalha contra ensinar cosmologia e a sua substituição pela geografia foi o primeiro tiro nessa guerra. Se a teologia e a cosmologia já não podiam prover respostas adequadas à questão « o que é o homem? » então era necessário algo mais científico. De onde viria essa « ciência do homem » se não da antropologia e da geografia? A diferença entre antropologia e geografia, na visão de Kant, está na diferença de perspectiva entre o « conhecimento exterior » dado pela observação do lugar do homem na natureza e o « conhecimento interior » das subjetividades (que às vezes se aproxima da psicologia na prática) (May 1970, 107–18). O fato de que ele começou primeiro a ensinar geografia (em 1756) e de que muito do que ele então pesquisou concerne os processos físicos que afetam a superfície da Terra e a vida humana sobre ela, sugere uma certa atração inicial por uma teoria subjacente do determinismo ambiental como uma base científica potencialmente segura para a reflexão metafísica. Muitos dos exemplos que ele cita em geografia invocam temas relativos ao determinismo ambiental. Ainda mais problemático, como Bernasconi mostrou, foi a tentativa inicial de Kant de fundar uma ciência das diferenças raciais (2001). O interesse futuro de Kant pela antropologia (que ele começou a lecionar em 1772) e o fato de ele ter dado grande atenção para escrever sobre isso (até mesmo preparando o texto para publicação) em seus últimos anos sugere que ele tenha encontrado o conhecimento interior das subjetividades mais relevantes para o seu projeto filosófico. Ele parece ter desistido da ideia de uma geografia científica em meados de sua carreira e as anotações dos alunos em suas aulas são evidências abundantes da incoerência e de frequentes atributos preconceituosos no pensamento de Kant sobre questões geográficas. É significativo, além disso, que as passagens finais da antropologia abordam a questão da ética cosmopolita diretamente, indicando uma certa conexão entre sua antropologia e sua ética. Não há menção a este tema na geografia. Essa passagem da antropologia vale a pena citar na íntegra. Os seres humanos, ele diz:
Não podem existir sem coexistência pacífica e ainda assim eles não conseguem evitar contínuos desentendimentos entre eles. Consequentemente, eles se sentem destinado pela natureza para desenvolver, através de coerção mútua e de leis escritas por eles, uma sociedade cosmopolita que é constantemente ameaçada por dissensão, mas que geralmente progride em direção a uma coalizão. A sociedade cosmopolita é, em si mesma, uma ideia inalcançável, mas não é um princípio constitutivo... É apenas um princípio regulador que exige que nos submetamos à sociedade cosmopolita como o destino da raça humana; e isto não ocorre sem motivos razoáveis para supor que existe uma inclinação natural nessa direção... Temos a tendência de apresentar a espécie humana não como má, mas como uma espécie de seres racionais, que se esforçam constantemente entre os obstáculos para avançar do mal para o bem. A este respeito, a nossa intenção em geral é boa, mas a realização é difícil porque não podemos esperar para alcançar nosso objetivo pelo livre consentimento dos indivíduos, mas apenas através da organização progressiva dos cidadãos da terra, dentro e para a espécie, como um sistema que é unido por laços cosmopolíticos (Kant 1974,249).
10A missão da antropologia de Kant é, portanto, definir « as condições de possibilidade » para aquele « princípio regulador » que pode nos levar de uma condição inicial « de vaidade/presunção insensata e infantil » para o « nosso destino » de sociedade cosmopolita. Isso desencadeia uma análise de nossas faculdades cognitivas, sentimentos (de prazer e desprazer) e de desejo. A influência do projeto de Kant no trabalho de Foucault é óbvia. Kant também procurou refletir como e porque os dotes naturais (« temperamento ») são transformados pelas práticas humanas em « caráter ». Kant escreveu: « o que a natureza faz do homem pertence ao temperamento (aqui o sujeito é passivo) e o que os homens fazem de si mesmos revela se ele tem caráter » (1974, 203). Kant derivou da proposição geral de Rousseau em que « o homem faz a si mesmo » e isso é transportado muito fortemente, é claro, na tradição Marxista. Como Foucault observou em seu comentário: « o homem não é simplesmente ‘o que ele é’, mas ‘o que ele faz de si mesmo’. E isso não é precisamente o campo que Antropologia define para seu campo de investigação? » (Foucault, 2005). Esta formulação permite que Kant reflita mais especificamente na última parte do texto sobre as diferenças no caráter nacional. Os seres humanos fizeram-se de forma diferente em diferentes lugares.
11O que Kant parece ter feito aqui, é mover de um lado para outro o que na geografia nós conhecemos há muito tempo como uma divisória entre, de um lado, « determinismo ambiental » e, de outro, « possibilismo » (Tatham 1957). A negligência relativa de Kant sobre a geografia mais tarde em sua carreira, agora faz sentido, pois é realmente abalado com o determinismo ambiental, o racismo e comentários preconceituosos. Mas há razões mais profundas para as dificuldades de Kant no que diz respeito à geografia. Kant simplesmente não conseguia fazer as suas ideias sobre as causas finais funcionarem no terreno do conhecimento geográfico. « Estritamente falando », ele escreveu (na passagem que Glacken coloca como fundamental), « a organização da natureza não tem nada análogo com qualquer causalidade que conhecemos » e esse problema bloqueou sua tentativa de construir conhecimentos geográficos em estilo parecido com a ciência natural Newtoniana (Glacken 1967, 532). Sua metafísica e sua ética não poderiam encontrar na geografia uma sólida fundamentação científica que ele considerava essencial. Ele teria que voltar para a esfera de mera especulação, para a cosmologia. Comparado com isso, voltar-se para a antropologia deve ter parecido mais atrativo.
12Mas ainda há outra dificuldade com as formulações de Kant. A Geografia, ele argumentou, organizou sinteticamente o conhecimento de acordo com o ordenamento do espaço. A História é considerada distinta porque proporciona uma narrativa no tempo. Espaço e tempo são, portanto, considerados bem distintos um do outro no esquema Kantiano das coisas. História e geografia são bem diferentes uma da outra. Isso posiciona Kant firmemente no campo Newtoniano (em vez de, digamos, Liebniziano) na conceptualização do espaço e do tempo (May 1970, 118–31; Harvey prestes a ser publicado). A geografia de Kant é então definida como uma forma empírica de conhecimento sobre ordenamento espacial e estruturas espaciais. Isso talvez explique porque Foucault formulou suas questões aos geógrafos com questões apenas sobre espaço e espacialidade. Seu antigo ensaio não publicado sobre diferenciações espaciais como « heterotopias », é carregado de marcas da aceitação da visão absoluta do espaço de Kant e da separação do espaço do tempo (Foucault 1987). A particularidade do posicionamento do espaço absoluto é marcada por contingência, fragmentação e singularidade. Isso contrasta radicalmente com a universalidade unida ao conceito de tempo unidirecional que nos aponta teleologicamente em direção a algum destino, como a governança cosmopolita de Kant. Foucault adota a teoria absoluta da espacialidade e desenvolve uma panóplia de metáforas espaciais (o Panóptico é de longe o mais proeminente). No esquema das coisas de Kant, o ordenamento espacial necessariamente produz verdades e leis locais e regionais opostas às universais. Aqui, também, há uma forte concordância entre as descobertas de Kant e a missão de Foucault. Em seu comentário sobre o ensaio « O que é Iluminismo » de Kant, Foucault adota a especificidade da localização e da diferença, da contingência e da micropolítica do poder enquanto ele batalha com a teleologia e a macro-teoria. « A nossa ontologia histórica deve se afastar de todos os projetos que se dizem global ou radical », ele escreveu, porque « sabemos por experiência que a busca para escapar do sistema da realidade contemporânea, de modo a produzir programas globais de uma outra sociedade, de uma outra maneira de pensar, de outra cultura e de outra visão do mundo, levou apenas ao retorno de tradições mais perigosas » (Foucault 1984, 46).
13O problema, entretanto, é que toda a abordagem de Kant da geografia e do espaço repousa sobre uma pura base newtoniana de espaço e tempo. O que acontece com esse argumento quando é levantada a restrição da concepção absoluta do espaço? Há bons argumentos, que já mostrei anteriormente, no sentido de que o espaço deve ser visto dialeticamente e simultaneamente, como absoluto, relativo e relacional (Harvey, 2006). Neste caso, a distinção entre geografia e história desaparece. Tudo o que temos é a geografia histórica ou história geográfica em que a dialética das transformações socioambientais tem papel central. E a mudança filosófica que Foucault observa a partir da perspectiva espacial de Kant nas perspectivas temporais de Hegel, Bergson e Heidegger apareceria como uma grande distração (Foucault 1980, 149).
14A aceitação por Foucault da concepção kantiana de espaço e tempo representa toda uma série de dificuldades e vai contra qualquer desenvolvimento da geografia como a « condição de possibilidade » de todas as outras formas de conhecimento. Tomemos, por exemplo, o conceito de Foucault de heterotopia (como a geografia de Kant, era uma incursão precoce a um problema que permaneceu inédito por muitos anos). Eu tenho profundas objeções à concepção de Foucault precisamente porque está baseada em uma interpretação da espacialidade puramente kantiana (newtoniana). A concepção de heterotopia de Foucault é uma representação bastante não dialética do que é e do que o espaço pode ser (Harvey, 2001). Lefebvre, em sua maneira espontânea e indireta (e, possivelmente, como uma refutação direta aos argumentos de Foucault de quem ele quase certamente já tinha ouvido falar pelos seus amigos da arquitetura), apontou para uma forma muito mais dialética de discutir heterotopias como espaços de possibilidades em A Revolução Urbana (publicado três anos depois da palestra de Foucault) (Lefebvre, 2003). E o próprio Foucault parece ter parcialmente reconhecido a dificuldade. Ele certamente tinha a sua própria formulação de heterotopia em mente, quando se preocupava com a forma como « espaço era tratado como sendo morto, fixo, não dialético e imóvel », enquanto « o tempo, ao contrário, era riqueza fértil, vida e dialética » (1980, 70; este volume, 177). Suas outras afirmações de que se « o espaço é fundamental em qualquer forma de vida comunitária », então o espaço também deve ser « fundamental em qualquer exercício de poder » e que « uma história completa dos espaços ainda precisa ser escrita – o que seria, ao mesmo tempo, uma história de poderes (ambos os termos no plural) » abrem possibilidades que permanecem frustrantemente não desenvolvidas (1980, 252). Embora estes comentários possam sinalizar um certo desconforto com a teoria kantiana do espaço absoluto, Foucault falha em desenvolver uma teoria crítica viável sobre o que é o espaço e o tempo.
15Então, por que Foucault se ateve tão resolutamente a esta concepção kantiana do espaço e do tempo? Há aqui uma outra peça do quebra-cabeças de possibilidades. Kant classificou a arqueologia como uma ciência espacial distinta e Foucault adotou uma abordagem arqueológica do conhecimento como seu princípio orientador. Será que o abandono do sentido kantiano do espaço teria afetado esta abordagem arqueológica do conhecimento? A fixidez do espaço kantiano acaba enfraquecendo a abordagem de Foucault do conhecimento e do poder. Seus argumentos, cheios de ideias espaciais iniciais, colapsam em estase. Foucault aprisiona-se em um panóptico kantiano de sua própria criação. O resultado é uma rigidez insuportável em seus escritos.
16A ideia da geografia não como uma ciência morta de ordenamento espacial, mas como uma ciência viva da geografia histórica, como uma disciplina que pode abraçar abertamente a dialética e executar sua função radical ao lado da antropologia como uma « condição de possibilidade » de todas as outras formas de conhecimento, deve ter parecido ameaçador para Foucault. Por mais que eu admire muitas das realizações de Foucault, eu tenho que dizer que a riqueza e fertilidade de suas próprias contribuições teriam sido bem maior se ele tivesse seguido sua promessa de aprofundar a crítica da antropologia de Kant mais diretamente e, então, talvez, considerar uma crítica da geografia (e não como ciência espacial, mas como uma análise dialética do espaço, do lugar e do meio ambiente no desenvolvimento humano). Resta-nos, no entanto, perceber os poderes tanto da antropologia quanto da geografia como « condições de possibilidade » não só para todas as outras formas de conhecimento, mas também, como o próprio Kant previu, como uma preparação para viver de forma mais esclarecida.
17A última parte da questão de Foucault é particularmente importante para a pesquisa científica feminista. Isso tem sido mais debatido entre linguistas feministas e geógrafos que têm analisado a maneira como conversamos sobre gênero em relação ao poder sem assumir que há uma simples correlação entre masculino/poderoso e feminino/sem poder (por exemplo, Thornborrow 2002, e o periódico Gender Place and Culture: A Journal of Feminist Geography). Muitos geógrafos têm focado nas relações entre gênero, poder e relações espaciais (Blunt 1994; 2000; Bluntand Rose 1994). A relação entre poder e espaço é complexa, particularmente se o poder é definindo de forma produtiva como Foucault fez e se sustenta que o poder é uma rede de relações entre as pessoas, o qual é negociado a cada encontro, e também se define o espaço como relacional e relativo como Foucault sugere. Esta complexa rede de relações cambiantes é tão produtiva quanto problemática para a pesquisa científica feminista. É produtivo na medida em que permite a teorização de poder, o que salienta que cada relação de poder institucionalmente sancionada é negociada a um nível local e pode, portanto, ser desafiada abertamente ou veladamente; é problemática na medida em que não leva adequadamente em conta o fato de que existem diferenças de poder que têm efeitos materiais. A análise estritamente foucaultiana iria contra perguntar « quem tem o poder? », uma vez que ninguém dentro deste contexto poderia se dizer que possui o poder. O poder, ao contrário, é visto como algo que é negociado nas interações. O trabalho de Thornborrow (2002) por meio desta posição foucaultiana leva a uma análise que destaca a resistência e os desafios daqueles que estão em posições institucionalmente mais fracas; no entanto, embora seja claro, é importante se reconhecer que o ciais de polícia, professores e médicos são respeitados em suas declarações por causa de suas posições dentro de uma hierarquia de uma forma que os suspeitos, os estudantes e os pacientes não o são. Thornborrow centra-se na complexa negociação entre o status institucional que é concedido a alguém e que lhe dá uma posição em uma hierarquia, e o status local que esse alguém pode negociar para si mesmo, através de sua agilidade mental ou de habilidades verbais, por exemplo. Assim, por exemplo, você pode estar relativamente baixo na hierarquia dentro de uma instituição, mas você pode ser capaz de negociar localmente uma posição mais poderosa para si mesmo por causa de suas habilidades e capacidades. Esta distinção entre dois tipos de poder é importante por ser capaz de avaliar quais as posições de poder que são negociáveis e quais não são. Pode-se negociar o status local, mas o seu status institucional não é tão flexível. Assim, embora o questionamento de Foucault sobre a noção de que se pode possuir ou ter o poder é uma oposição útil para pontos de vista muito fixos sobre o poder, ele, no entanto, sugere que tudo está em aberto e, por vezes, ignora o poder institucional muito real em que certas pessoas, de fato, trabalham e o usam, mesmo que não o possuam.
18Em relação à espacialidade e poder, eu tenho tentado, em meus trabalhos recentes, descobrir como podemos discutir espacialidade em relação ao poder (Mills 2005). Sobretudo no contexto colonial, no século 19, é claro que há uma série de estruturas espaciais que interagem umas com as outras, algumas deles ratificadas pelos poderes coloniais e outras não. O que tem me interessado é a maneira na qual o poder colonial aceita algumas dessas estruturas espaciais como normal, mas não necessariamente elimina a existência de outras estruturas espaciais.
19Em « Anormais », aulas de Foucault recentemente publicadas pelo Collège de France, há uma interessante abordagem sobre as relações espaciais e poder. Ele descreve em pormenores o desenvolvimento da prática confessional dentro da Igreja Católica Romana e mostra como houve uma mudança nessa prática, cujo foco era na penitência, com todas as práticas que isso envolve, para um foco na confissão dos pecados, o que exigiu um novo conjunto de relações entre os sacerdotes e os fiéis. Estas eram relações espaciais e de poder, não em um sentido simples, mas elas demandaram um conjunto de arranjos espaciais que eram muito precisos e que eram as respostas à percepção de problemas a serem resolvidos. A confissão dos pecados demandava que o pecado tivesse que ser confessado a alguém e esse alguém tinha quer ser capaz de conceder a remissão dos pecados; nesse sentido, o papel do sacerdote na Igreja mudou radicalmente e Foucault argumenta que as relações de poder, consequentemente, também mudaram. Essa mudança se manifesta no desenvolvimento de um novo conjunto de relações espaciais que se tornou evidente no confessionário, ao qual Foucault se refere como « a cristalização material de todas as regras » (Foucault 2003/1975, 181). O confessionário, assim como outros elementos arquitetônicos, determinava relações espaciais e era determinado por uma consciência da importância das relações espaciais serem geridas « adequadamente » – as pessoas tinham que ser organizadas no espaço para que a confissão fosse ouvida de forma e eficaz: o penitente e o sacerdote não deveriam ser vistos um pelo outro, mas o penitente precisava ser ouvido bem pelo sacerdote; o sacerdote e o penitente tinham que ser separados um do outro e do resto da congregação, mas era importante que, por causa do celibato do sacerdote e das tentações inerentes à confissão de pecados sexuais, eles não cassem isolados inteiramente do resto da congregação. Essas demandas discursivas muito particulares determinaram esta estranha configuração arquitetônica com grelhas [no confessionário] e meias-cortinas, estimulando certas revelações e desencorajando outros discursos. A análise cuidadosa de Foucault sobre as pressões discursivas que deram origem ao desenvolvimento do confessionário para organizar o espaço de maneira particular, me parece uma forma muito produtiva de pensar como as relações de poder se desenvolvem em conjunto com as relações espaciais, cada uma delas exercendo uma pressão diferente, uma sobre a outra, mas não necessariamente determinista.
20Eu tive um relacionamento de idas e vindas com os trabalhos de Michel Foucault desde que eu li, pela primeira vez, em Cambridge nos anos 1970, suas obras naquelas edições Tavistock brilhantes, de cor preta, que pareciam munidas de autoridade. Eu sempre liguei Foucault à uma certa austeridade desde então: o homem de preto. Essa impressão – de uma perspectiva um pouco sombria – permaneceu comigo, mesmo que tenha lido e lecionado sobre seu trabalho subsequente e mesmo que tenha se tornado claro que essa impressão é, em grande parte pelo menos, um erro.
21Duvido que alguém não concorde que Foucault era um gênio, um homem de extraordinária erudição, que mudou a forma como vemos o mundo. Mas apesar da reverência que lhe faço, ele tinha pontos cegos e estes eram, eu acho, sistemáticos e, em certos sentidos, politicamente incapacitantes. Eles não são, portanto, adendos triviais, mas vão direto ao cerne de seu projeto. Eu quero trabalhar em quatro desses pontos cegos e, em seguida, após tê-los identificados, sugerir o que eles podem indicar, não no sentido de simplesmente completar o projeto de Foucault, mas de mudar o sentido da política com que ele trabalhou.
- 1 De fato, um dos muitos textos a que Foucault estava explicitamente respondendo em The Order of Thin (...)
- ii Edição em português: Foucault, Michel: História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Pe (...)
- iii Edição em português: Foucault, Michel: As palavras e as coisas: uma arqueologia das Ciências Humana (...)
- iv Edição em português: Foucault, Michel: A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. (...)
- 2 Stuart Elden apontou-me que Merleau-Ponty se associou com Sartre, especialmente em torno do projeto (...)
- v Edição em português: Canguilhem, Georges: O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universi (...)
- 3 Embora em seus trabalhos posteriores fique claro que a posição de Foucault era mais complexa do que (...)
22O primeiro desses pontos cegos surge do anti-humanismo pós-estruturalista de Foucault, uma posição que dominou toda a vida intelectual em larga escala das ciências sociais e humanidades nos últimos 30 anos mais ou menos. Em particular, esse anti-humanismo suprimiu muitas das ambiguidades da fenomenologia do registro. Se for para confiar em Dosse (1997), grande parte dessa supressão é resultado da crescente antipatia de Foucault com a fenomenologia depois da publicação de seu primeiro livro, Madness and Civilization1 [edição em português, História da Loucuraii]. Em seus estudos arqueológicos do início dos anos 1970, e mais notadamente em e Order of Thingsiii e Archaeology of Knowledgeiv, processos são concebidos sem sujeitos, uma posição que rapidamente se torna uma ortodoxia; « é provavelmente impossível dar conteúdo empírico a valores transcendentais, ou deslocá-los em direção a um componente de subjetividade, sem dar origem, pelo menos em silêncio, a uma antropologia » (Foucault 1970, 248). Apesar dos trabalhos posteriores de Foucault, esse ponto cego continuou, tipificado pelo texto no qual trata de Merleau-Ponty e Sartre na introdução à The Normal and the Pathological2v (1991) de Canguilhem, mesmo que Merleau-Ponty estivesse tentando produzir uma « uma explicação intuitiva mais robusta do conhecimento, que não se baseasse na existência prévia do sujeito, mas sim em sua aparência fenomenológica » (Carmanand Hansen 2005, 20). Em outras palavras, Foucault foi certamente um dos colaboradores involuntários à atual tendência instintiva de rotular quase toda discussão de questões como a percepção ou a correlação ontológica do ser humano e do mundo como mero humanismo subjetivista, ou como parte de uma tentativa de constituir um sujeito transhistórico que por si só pode ser submetido aos procedimentos que ele esboça3.
- vi Referência ao estoicismo, escola de filosofia fundada em por Zenão de Cítio no início do século III (...)
- 4 Outra possível explicação pode ser que Foucault, assim como muitos teóricos sociais, nunca consider (...)
23O segundo ponto cego surge de sua aversão aparente para discutir afeto de forma explícita. Quase todas as práticas nas quais Foucault trabalha vem carregadas de afeto, algumas vezes do tipo mais extremo. Assim, ele claramente se volta para práticas que envolvem a análise de violência física real e a morte ou os traços de violência reprimida ou canalizada e a morte. Dor e tortura, muitas vezes são mencionadas. Periodicamente, também, Foucault discute afetos negativos – como raiva e lisonja (cf. Butler 2005, Foucault 2005). Mais uma vez, o trabalho de Foucault em si parece-me ser cheio de uma raiva reprimida a qual é raramente permitido vir à tona e ser confrontada e, na maioria das vezes, é permitida existir apenas na qualidade de sua prosa centrada nas análises dos discursos sobre o crime, e no tipo de rancor polido e reluzente que é a picada do crítico. Ainda assim, a lacuna é curiosa. A explicação óbvia é a concentração de Foucault no poder, em contraposição ao desejo, sinalizando, assim, a diferença essencial entre os sistemas Foucaultiano e Deleuziano. Mas isso é muito simplista. Outra explicação pode ser o apego de Foucault ao discurso, mas a noção de discurso de Foucault dificilmente poderia ser mais corpórea. Uma outra explicação pode surgir a partir de um aparente desejo de ressuscitar a premeditação estoicavi de uma forma de males contemporânea e, relativamente, a necessidade de se proteger contra a perda de controle das paixões. Seja qual for o caso exato, é certamente uma pena. Pense apenas no que Foucault poderia ter feito com, digamos, a história da obsessão, e com as suas formas contemporâneas, como a perseguição4.
- 5 Embora, como Stuart Elden me apontou, num registro mais amplo, o espaço Francês pode ter um signifi (...)
- 6 No mínimo por causa de um interesse em cinema.
24O outro ponto cego era o espaço. É certamente verdade que Foucault tinha uma sensibilidade espacial (convencionalmente sinalizada pelas entrevistas em que ele aborda o tema) que surgiu naturalmente a partir de sua crítica ao espaço arquitetônico do projeto transcendental, mas não era, eu diria, uma sensibilidade com a qual ele fez muito. Foucault pode claramente produzir análise espacial sutil – mais notavelmente em The Order of Things (onde ele se deu a tarefa de descobrir um « quadro » através do qual os termos do pensamento estavam distribuídos) e Vigiar e Punir (onde muito dessa análise é distribucional). Ainda assim, parece-me que, embora ele argumente que a possibilidade de pensamento surge de um imaginário inerentemente espacial que (pelo menos na interpretação deleuziana de Foucault) emerge « tanto dos movimentos dos corpos como das imagens que esses corpos produzem um do outro » (Colebrook 2005,191), Foucault ainda tendia a pensar o espaço nos termos das ordens, e eu acho que essa tendência fez com que ele pensasse o espaço como um meio através do qual se poderia realizar mudanças e, ao mesmo tempo, cava cego para uma boa parte da vivacidade do espaço. Assim, quando ele queria sinalizar esta qualidade espacial ele frequentemente encontrou outras não-categorias, como a heterotopia5. Em todos os lugares, na obra de Foucault há, em outras palavras, marcas de sua sensibilidade à ordem espacial – como uma chave para a constituição do poder, como um marcador de si mesmo, como um co-ingrediente requisito de inúmeras práticas, como um ingrediente-chave da « eventalização », como uma aceitação da importância das qualidades do território – mas que foi deixada de lado por Foucault e outros autores construíram uma espacialidade Foucaultiana (por exemplo, Philo 2004). No entanto, esta é uma espacialidade que ainda parece estranhamente emudecida para mim, esterilizada especialmente pela sua incapacidade de sistematicamente pensar a co-incidência (exceto como o aleatório).Talvez parte desta esterilidade venha da falta de atenção mais precisa no relato de Foucault sobre o poder, um relato que tem que ser retrabalhado por outros que estavam mais preocupados com o movimento (Deleuze 1998)6.Talvez parte dela [da incapacidade] venha de uma dificuldade (compartilhada por muitos, tem que ser dito) de imaginar quão diferentes conteúdos podem habitar o mesmo espaço (Thrift 2006). E, talvez, parte dela vem de uma cegueira para o resultado do seu próprio raciocínio quando se trata de espaço, e, especialmente, da diferença entre o arquivo –entendido como « uma forma de raciocínio espacial (um mapa, uma planta baixa de um edifício, uma vista de cidade, um fluxograma) que classifica e categoriza conhecimento herdado. Como um mapa histórico, o arquivo é um repositório de fatos e, pela natureza da sua forma, ele permite que o passado seja tratado nos termos de sua organização e modo de apresentação » – e o diagrama, entendido como « um mapa destinado não apenas para resumir o passado, mas para moldar as formas que o presente e o futuro serão compreendidos e vividos. Um diagrama procura impor o controle do futuro, ao flexionar as formas nas quais o passado pode ser pensado enquanto também irá determinar o comportamento atual e futuro que seus autores querem impor » (Conley 2004, 567).
25Outro ponto cego era sobre as coisas. Embora Foucault escrevesse sobre tecnologia, uma de suas passagens mais frequentemente citadas gira em torno de um catálogo de coisas Chinesas, e alguns de seus mais agudos textos se centra em torno de obras de arte, seu trabalho ainda é curiosamente desprovido de coisalidade, exceto na medida em que envolve a mão divisória da arquitetura. Eu continuo a achar essa a mais estranha das ausências, pois um retorno para animar objetos inanimados imprecisos e persistentes teria sido claramente um movimento fácil o suficiente para Foucault, o que não seria menos importante, isso por causa de sua interpretação prática sobre a manifestação do mundo. Talvez seja o resultado de Foucault em geral evitar a economia, exceto como uma episteme ou, mais tarde, como a circulação de pessoas e bens. Ou talvez seja o resultado de sua ênfase, mais tarde, no estudo sobre o cuidado de si, mesmo que em culturas modernas pode-se argumentar que o eu vem não tanto envolto, mas modelado por coisas: as técnicas do cuidado de si são exatamente isso. Ou talvez seja parte de uma ênfase mais geral sobre a linguagem e sobre os textos que permeiam tantos de seus trabalhos. Ou talvez fosse apenas uma simples omissão: afinal de contas, ninguém pode escrever sobre tudo – os filósofos principalmente. Mas ainda é uma omissão trágica. Pense no que Foucault poderia ter feito com objetos como arame farpado (agora brilhantemente trazido à vida por Netz, 2004) ou armas – ou medicamentos prescritos.
26O leitor que conhece o meu trabalho dificilmente vai se surpreender com essas observações. Eu tenho um grande interesse nelas, pois são quatro as coisas sobre as quais eu concentrei muito da minha carreira acadêmica. Elas explicam por que, frequentemente, eu tenho achado Foucault tão relevante e, ao mesmo tempo, tão peculiarmente irrelevante. Seus textos parecem exsudar um tipo de daltonismo teórico que combina uma verve ontológica óbvia com a lixiviação de muitos dos ingredientes mais importantes do mundo. É por isso que, para mim, seus textos muitas vezes parecem existir em uma espécie de melancolia existencial. É um pouco como estar na floresta encantada que é o ator central de muitos contos de fadas, mas esta é uma floresta encantada em que a magia só traz seus habitantes parcialmente (e às vezes grotescamente) para a vida.
27Meu mundo [intelectual] está se deslocando para outro lugar. Eu quero seguir uma trajetória associacionista diferente, que compreenda certos tipos do novo pensamento fenomenológico: toda a gama de trabalhos que afetam, vários tipos de pensar sobre o espaço e a profusão de pesquisas recentes sobre as coisas. Isso pode nos dar um espaço para respirar. No entanto, eu também quero argumentar que talvez seja possível pensar nessa trajetória como pelo menos parcialmente Foucaultiana e eu quero usar a parte final deste breve capítulo para descrever o que eu quero dizer, em parte usando os pensamentos recentes de Butler (2005) sobre a questão do « desconhecimento », fortemente influenciados pelos escritos de Foucault sobre o « fora » constitutivo de pensamento como um ponto de partida.
28Para começar, uma trajetória diferente necessitaria ir além de argumentar que o sujeito é simplesmente o efeito de um discurso (seja como for entendido) e que as formas de racionalidade estabelecidas por esses discursos sempre têm um preço. Isto é, até agora, uma observação tão banal que tanto esconde quanto revela.
(…) devemos reconhecer que a ética nos obriga a nos arriscar em momentos de desconhecimento, quando o que nos forma diverge do que está diante de nós, quando a nossa vontade de nos tornar desfeitos em relação aos outros constitui a nossa chance de nos tornar humanos. Ser desfeito pelo outro é uma necessidade primária, uma angústia, para ser exato, mas também uma oportunidade – a ser abordada, reivindicada, ligada ao que não é comigo, mas também para ser movida, a ser solicitada para agir, direcionar-me para outros lugares, e assim a desocupar o auto-suficiente « eu » como uma espécie de posse. Se falamos e tentamos prestar contas a partir deste lugar, não seremos irresponsáveis, ou, se formos, certamente seremos perdoados (Butler 2005, 136).
29Então, uma trajetória diferente necessitaria ir além da noção das práticas de reflexividade sobre o pensamento como tendo apenas as três principais formas que tem no corpus Foucaultiano (memória, meditação e métodos). Como tentei mostrar aqui e em outros lugares, o que se considera como pensamento necessita ser entendido como distribuído de forma mais ampla, levando-se em consideração alguns dos atores que eu tenho assinalado diretamente e incidentalmente. E, é claro, esses atores são frequentemente recalcitrantes à reflexão, o que me leva à questão da inteligibilidade.
30Finalmente, nessa trajetória diferente, seria importante compreender que nem tudo o que é inteligível é conhecimento. Foucault compreendeu muito bem essa percepção, mas ele não a levou muito longe:
- vii Na edição em português: Foucault, Michel A: hermenêutica do sujeito; pág. 561. Edição estabelecida (...)
Este cuidado de si, precisamente, não é apenas um conhecimento. Se o cuidado de si - como hoje pretendo lhes mostrar -, inclusive em suas formas mais ascéticas, mais próximas do exercício, está sempre vinculado ao problema do conhecimento, todavia não constitui fundamentalmente exclusiva e inteiramente, um movimento e uma prática de conhecimento. Trata-se de uma prática complexa que dá lugar a formas de reflexividade completamente diferentes (Foucault 2005, 462 vii).
31Uma das grandes tragédias da morte precoce de Foucault é que nunca vamos descobrir o que ele achava que poderiam ser muitas dessas diferentes formas de reflexividade.
- viii No original, em inglês: “(...) of space and of things if we ever to forge a sense of responsibility (...)
32Parece-me que as questões aqui levantadas precisam ser levadas de uma forma diferente se quisermos conseguir sair do ciclo de um certo tipo de filosofia cujo nível de generalidade faz com que seja de uso limitado ao se discutir questões como identidade e si [self], deixando sozinho outros marcadores de associação. Para isso, se requer precisamente a noção Foucaultiana do sujeito constituído como uma forma não apenas de sabedoria, mas também de desconhecimento. Mas entender mais sobre esse desconhecimento requer precisamente uma consideração da fenomenologia (despojada de sua reivindicação de um horizonte humano geral), do afeto, do espaço e das coisas que forjam um sentido de responsabilidade que é, também, responsávelviii.
33Por sua vez, esse reconhecimento pode tornar possível forjar uma política que vai mais longe do que a de Foucault, uma política com mais nuances de esperança que não permite que o futuro seja selado pela regra do pior, uma política que é ativa e que ainda é digna do epíteto « revolucionária », até porque não precisa mais se consolar com, por exemplo, a crença banal que o pensamento ocidental está em uma crise terminal (como Foucault disse a um sacerdote zen-budista em 1978) ou a consolação banal que o Ocidente capitalista é necessariamente « a mais dura, mais selvagem e mais desonesta sociedade opressora que se poderia imaginar »(cf. Afarye Anderson 2005). Em vez disso, poderia se pegar os insights de Foucault de que o si nunca foi apenas sobre o autoconhecimento, mas sempre foi sobre o cuidado e ampliaria isso para que se torne um meio de construir associações « social cum-spatial » que realmente são diferentes, difundindo assim mais possibilidades para refletir sobre nós mesmos (Tarde 2000, 2004)7. Essas possibilidades incluiriam as possibilidades éticas que Foucault prezava, todo um conjunto de diferentes responsabilidades para com o mundo que « reconhece que a ética nos obriga a nos arriscar precisamente nos momentos de desconhecimento, quando o que nos forma diverge do que está diante de nós, quando a nossa vontade de nos tornar desfeitos em relação aos outros constitui a nossa chance de nos tornar humanos » (Butler 2005, 136).
- ix Em português, Crítica da Razão Dialética. Sartre, Jean Paul. Critique de la Raison dialectique. Par (...)
34O historiador Paul Veyne descreveu Foucault como um pensador « caleidoscópico ». Ele pegou o círculo de nossas opiniões recebidas e virou o cilindro ainda que levemente, causando configurações inteiramente novas, de modo que a pessoa nunca poderia recapturar o conjunto anterior na sua totalidade. A ingenuidade foi perdida. Essa metáfora visual é duplamente adequada porque Foucault era um pensador espacial. De fato, eu diria que sua preferência por metáforas e argumentos espaciais, mais do que uma peculiaridade pessoal, era a sua maneira de combater o pensamento dialético que impregnou o pensamento francês desde os anos 1930 (ver Baugh, 2003; Flynn, 2005). Entre outros efeitos, solapou o efeito « totalizante » da Critique of Dialetical Reasonix de Sartre e de outros Marxistas ortodoxos ao insistir na multiplicidade de racionalidades, que Foucault chamou de « poliedro da inteligibilidade », com a qual poderia se abordar qualquer evento histórico. Mas o seu pensamento espacial também rebateu a ênfase na « visão » que atraiu fenomenologistas Husserlianos, a principal alternativa ao pensamento dialético em seus dias, sobre a qual Foucault insistiu que sua geração de pensadores se libertasse.
35Paul Veyne sugere que a história tem mais em comum com a « geografia comparada » do que com a literatura (1984, 284-6) com o que Foucault revolucionou a história em nossos dias. Apesar de espaço e visão parecerem andar juntos e, assim, aliar Foucault com os fenomenólogos, para quem a compreensão intuitiva de uma essência ou contorno inteligível é o modelo de conhecimento, mas o método « arqueológico » de Foucault é comparativo e sua visão é diacrítica (Flynn 2005, 93–5). « Arqueologia », explica ele, « está no plural. » Ela não reside em uma essência a ser articulada em uma definição. De fato, é mais « nominalista » em seu afastamento inteiramente de « essências ». Pegando uma sugestão de linguística estrutural, Foucault, em seus primeiros trabalhos pelo menos, procura a inteligibilidade em contrastes: oposições binárias entre razão e desrazão, normal e anormal, conhecimento genuíno e pseudo-conhecimento. É claro que a questão é mais complexa do que isso, mas ele ressalta sua preocupação com a alteridade e oposição. Poder, por exemplo, presume e provoca resistência.
- x Se refere a uma série de conferências realizadas em várias universidades como Cambridge, Harvard, P (...)
36Além disso, citando Platão e William James, não há « separação nas articulações ». Esses limites são convencionais; eles têm uma história; eles podem ser alterados. Este é o aspecto « crítico » de « arqueologia » Foucaultiana. Para comentar a analogia de Veyne, Foucault em Tanner Lecturesx admitiu: « A experiência me ensinou que a história de várias formas de racionalidade é às vezes mais efetiva em abalar nossas certezas e dogmatismos do que um criticismo abstrato » (1997, Vol. 3, 323). Esta conjunção, se não síntese, do espacial e temporal, do aqui e ali com o antes e depois, é característica do raciocínio foucaultiano.
37Os exemplos mais conhecidos dos raciocínios « espacializados » de Foucault aparecem em sua obra-prima, e Order of Things, e na sua genealogia do sistema penal Vigiar e Punir. No primeiro, ele analisa as várias perspectivas, dentro e fora, da pintura « Las Meninas », de Velasquez, a fim de demonstrar a impossibilidade de representar a representação, que exemplificou uma mudança epistêmica do « Clássico » (circa 1650-1800) para era « Moderna » (circa 1800+). Como um professor em uma galeria, Foucault nos leva a descobrir o espectador que falta nesta coleção de espectadores na pintura, ou seja, o sujeito que está fora da imagem que assumiu a perspectiva do sujeito implícito da pintura, representada em um espelho na parte de trás da cena. O « argumento » está na organização da cena e em sua ordem de perspectivas, rastreáveis por ângulos lineares de visão. O sujeito em falta (o « homem » do humanismo moderno) está presente e também ausente da representação; ele é tão necessário quanto ele é invisível. Ele vai surgir no centro do palco, com o advento das « ciências humanas » na era moderna. O segundo exemplo do raciocínio espacializado de Foucault aparece em sua análise do « panóptico » de Jeremy Bentham como o modelo para os lugares onde se exerce a vigilância, tais como prisões, casernas militares, fábricas, hospitais e escolas. Neste caso, o arranjo do edifício destina-se a maximizar a visibilidade dos sujeitos, minimizando a visibilidade dos vigias para que os « presos » se tornem seus próprios guardiões, devido ao seu receio constante de estar sendo vigiado. Desta vez, o « argumento » está na arquitetura. E uma vez mais Foucault estende isso a uma tese maior, a sociedade « disciplinar » da era moderna. Daí em diante, não se pode ignorar a onipresença de dispositivos de vigilância, a vulnerabilidade dos nossos vários sistemas de comunicação para a avaliação externa e interpretação, e a insinuação das autoridades nas partes mais íntimas de nossa vida pessoal. O caleidoscópio virou novamente e não podemos ignorar as novas configurações que têm surgido.
38Até então este texto foi uma forma de contextualizar a minha resposta a perguntas de Foucault abordadas em 1976 pelos geógrafos (filosóficos) teóricos em uma edição da revista Hérodote. Deixe-me confessar desde o início que eu sou um filósofo, não um geógrafo. Eu tenho me intrigado por Veyne comparar a história à geografia comparativa, especialmente quando conjugada com sua visão de que Foucault revolucionou a historiografia em nossos dias. O que faz das quatro perguntas de Foucault particularmente interessante para mim é sua admissão de que estas são perguntas que ele faz a si mesmo, e não são perguntas para as quais ele já tem respostas. Da mesma maneira, minhas respostas não são respostas de definitivas, mas sim reflexões sobre as possibilidades inerentes a estas perguntas a partir da perspectiva do que sabemos dos interesses e do trabalho de Foucault naquele momento. Estou tentando supor o que Foucault poderia ter respondido às suas próprias perguntas.
391. A noção de estratégia é essencial quando queremos analisar o saber e suas relações com o poder. Será que ela implica, necessariamente, que através do saber em questão se faz a guerra?
40A estratégia não permite analisar as relações de poder como técnica de dominação?
41Ou devemos dizer que a dominação não é senão uma forma continuada da guerra?
42Qual é a importância que vocês dão à noção de estratégia?
43Foucault já nos advertiu sobre a redução do saber ao poder e ele ainda provocou essa redução, exibindo sua sobreposição quase universal. E ele sugeriu que a história é concebida não nos termos de saber e significado, mas em termos de « estratégia e tática ». De sua parte, ele tem mostrado mais interesse nos mecanismos sociais para o uso do conhecimento (o que ele chama de « jogos de verdade ») do que na epistemologia do conhecimento ou da própria verdade. Assim, enquanto uma enfermeira experiente pode ter uma melhor leitura dos sintomas, é o médico sozinho quem tem o poder legal para fazer o diagnóstico e prescrever a medicação. Foucault levanta uma questão maior sobre quem tem o « direito » de proferir a declaração « definitiva » em uma controvérsia; quem tem o direito de falar a « verdade ». Isso é conhecimento estratégico; o conhecimento como poder.
44Talvez um melhor exemplo dessa relação entre conhecimento e poder é a ascensão da tecnologia da informação e do pensamento sóbrio, sem dúvida, aqueles que controlam as informações (a sua recuperação, armazenamento e comunicação) são os que exercem o poder mais decisivo na sociedade contemporânea, em vez daqueles que controlam a sua riqueza. Estas redes ou « teias » são relações espaciais, diminuindo a distância e aumentando as possibilidades de comunicação, enquanto criam uma relação estratégica de dependência-controle do público e técnico, respectivamente. Como Foucault admitiu, na entrevista original concedida à Hérodotexi:
- xii Publicado no Brasil em A Microfísica do Poder, capítulo “Sobre a Geografia”.
Metaforizar as transformações do discurso através de um vocabulário temporal conduz necessariamente à utilização do modelo da consciência individual com sua temporalidade própria. Tentar ao contrário decifrá-lo através de metáforas espaciais e estratégicas permite perceber exatamente os pontos pelos quais os discursos e transformam em, através de e a partir das relações de poder (1980, 69–70; este volume, 177). xii
45Parece que o velho ditado « conhecimento é poder » ganha plausibilidade se o conhecimento é concebido estrategicamente, pode-se dizer « pragmático », e o poder é entendido como a capacidade de controlar. Mas, em seguida, a extensão do termo « estratégia » seria tão ampla quanto a de « conhecimento » em si.
46Será que isso dá suporte a conclusão otimista de que, com o advento da globalização, a probabilidade de uma guerra total é implausível porque muitos ao redor do mundo têm muita coisa em jogo em uma comunidade de bens e serviços interligados? Foucault não ignora a força da auto-interesse esclarecido dentro da comunidade internacional e ele parece mais simpático para com o cosmopolitismo neo-estóico do que com o nacionalismo. Mas não devemos esquecer o seu (mais tarde castigado) entusiasmo pelo « espírito » e « espiritualidade » da revolução iraniana nos dias do aiatolá Khomeini, se duvidamos de seu respeito pelo « regionalismo » ou da sua desconfiança de homogeneidade.
- xiii Referência ao “O mito de Sísifo”, ensaio escrito por Albert CAMUS em 1941
47E o seu aviso bem conhecido que, embora nem tudo seja ruim, « tudo é perigoso », aconselha uma prudência estudada sobre quaisquer esquemas utópicos da paz mundial ou de democracia universal. Foucault parece compartilhar a noção Sisifianaxiii de Camus de que a única esperança é saber que não há nenhuma esperança final. Em outras palavras, a esperança deve ser limitada; o utopismo é contraproducente.
48Foucault já distinguiu poder de força no sentido de que o poder supõe a liberdade e acarreta resistência ao passo que a força não requer nenhum dos dois. É possível equiparar « poder » com « dominação »? Sim, se alguém interpreta « dominação » como « eficácia », caso contrário, não. A interpretação mais plausível seria equiparar « poder » com « controle », incluindo o autocontrole do « super-homem » de Nietzsche. Dessa forma é o seu caráter positivo que Foucault defende, mas que ele omite frequentemente e é mais facilmente transmitido.
492. Se os compreendo bem, vocês procuram constituir um saber sobre o espaço. É importante para vocês constituí-lo como ciência?
50Ou vocês aceitariam dizer que o corte que marca o limiar da ciência não é senão uma maneira de desqualificar certos saberes ou de torná-los imunes à avaliação?
51A partilha entre ciência e saber não científico é um efeito de poder ligado à institucionalização do conhecimento nas Universidades, centros de pesquisa, etc.?
52Esta pergunta está no mesmo diapasão da pergunta anterior. Certamente « científico » é um título honorífico em nossa sociedade e é concedido por instituições de vários tipos, o mais proeminente sendo universidades e sociedades profissionais, bem como as organizações financiadoras e de atribuição de prêmios como a Academia Real ou o Comitê de seleção do Prêmio Nobel. Embora Foucault tenha um sentido apurado da natureza historicamente construída de tais instituições, isto não o impediu de fazer campanha para sua eleição para o Collège de France. No entanto, em uma sociedade onde todos os valores são socialmente construídos, dificilmente alguém pode ser acusado de « jogar o jogo » com o melhor de suas habilidades.
- xiv Estudo do caráter das pessoas pela forma do crânio.
53Mas Foucault, sem dúvida, com uma certa ironia e em resposta direta a uma observação feita por Sylviele Bon de Beauvoir em Les Temps Modernes, se referiu a si mesmo como um « positivista feliz ». Ele nunca foi crítico do caráter científico das chamadas ciências « duras », mas, como seu mentor Georges Canguilhem, ele estava mais interessado nas ciências marginalizadas e naquelas, como a frenologiaxiv ou a alquimia, que perderam seu status científico. Para Foucault, a consideração interessante é o que permitiu ou excluiu entrada de algumas disciplinas para o reino da ciência.
54Se alguém contrasta o moderno como raciocínio temporal (dialético) e o pós-moderno como raciocínio espacial (diacrítico), então a geografia comparativa seria uma disciplina adequadamente « pós-moderna », como seria a « arqueologia » foucaultiana. Mas se mereceu ou mesmo procurou o título honorífico de « ciência » é uma questão de preferência. Por uma questão de estratégia, os bens de prestígio social, de apoio financeiro e o resto oferecem incentivos para a geografia ganhar este título honorífico. E a natureza « geopolítica » da disciplina, como Foucault comenta, coloca a « ciência » geográfica diretamente no campo das estratégias e táticas como a própria palavra « manipulação » atesta.
553. Vocês acham que dá para responder à pergunta: quem tem o poder?
56Esta pergunta parece que é destinada à tendência marxista da revista Hérodote, embora também se estenda aos chamados « estruturalistas », bem como aos seguidores do estruturalista marxista Louis Athusser. Como professor da prestigiosa École Normale Supérieure, Althusser poderia muito bem ter sido professor de alguns dos editores da publicação como foi do próprio Foucault. Foucault era famoso por seu pronunciamento quase-estruturalista de que o « homem » do humanismo moderno tem uma história e pode desaparecer tão rapidamente como apareceu. Por causa disso, é claro, ele ganhou a inimizade de humanistas de todos os tipos. E nós acabamos de observar sua preocupação quase estruturalista para determinar os papéis sociais de certos indivíduos com poderes para falar com autoridade.
57Mas, em sua polêmica popular, Foucault parece mais « existencialista » em sua busca por aqueles indivíduos cujos « pequenos atos de covardia » os deixaram mudos sobre uma injustiça particular (especificamente, a demissão de um psiquiatra da prisão que se queixou de maus-tratos de prisioneiros pelos seus guardas) e surdos para a « voz que diz ‘Eu’ » em acusação (1994, Vol. 2, 238).
58Em outras palavras, a maldade não está inteiramente no sistema. Considere o seguinte, o que poderia ter sido escrito por Sartre:
Situações sempre podem dar origem a estratégias. Eu não acredito que nós estamos presos a uma história; pelo contrário, todo o meu trabalho consiste em mostrar que a história é atravessada por relações estratégicas que são necessariamente instáveis e sujeitas a alterações. Desde que, claro, os agentes desses processos tenham a coragem política de mudar as coisas. (Foucault 1997,Vol. 3, 397).
59Aqui e em outras ocasiões, quando Foucault fala de « coragem política » nos deparamos com as questões espinhosas da « responsabilidade », ética e moralidade em geral, que Foucault estava começando a abordar em seus livros e palestras no fim de sua vida.
604. Vocês acham que é possível fazer uma geografia – ou geografias, de acordo com as Escalas – da medicina (não doenças, mas de consultórios médicos com sua área de atuação e modalidade de ação)?
61Pode-se ver isso como uma consequência natural do interesse de Foucault no governo dos corpos e das populações (biopoder) por volta dessa época em sua carreira. Mais uma vez, nós testemunhamos o giro do caleidoscópio para considerar alternativas à nossa maneira atual de conceber a prática da medicina e da saúde pública.
62Primeiro nós devemos empregar a distinção de Foucault entre situações de poder, uma certa distribuição ou economia de poder em um determinado momento, e instituições de poder, como o exército, a polícia, o governo (1996, 260). Sua pergunta começa com as instituições, como hospitais, órgãos de certificação, a própria « profissão » médica e numerosas instituições de serviços relacionados, como a indústria farmacêutica, farmácias e várias agências governamentais para a distribuição e vigilância dos cuidados de saúde e a fins. Em outras palavras, a indústria de cuidados de saúde cujas relações podem ser « mapeadas » em termos de relações de poder entre o governo e seus cidadãos e não-cidadãos.
63Exemplos de situações de poder seria a introdução de condições para a implementação de serviços médicos para os indigentes ou a troca concreta entre um beneficiário do Estado de Bem Estar Social e seu assistente social.
64De outro ângulo e ao longo de outro eixo de relações de poder, pensa-se sobre as várias tecnologias para a comunicação de informações ao redor do globo, onde os centros médicos seriam simultaneamente centros de tecnologia médica e de tecnologia da informação. E isso cria a possibilidade de uma multiplicação de tais « centros de serviços » médicos, que, por sua vez, levanta a questão do papel face a face e da compaixão na distribuição de tais « serviços » para a população em geral. O problema da ciência com um rosto humano.
65Além disso, a questão da descentralização dos serviços versus centralização das fontes sugere a possibilidade da dispersão dos indivíduos « autorizados », em virtude de sua formação, para prestação de serviços « limítrofes » entre o tratamento humanístico e informação e técnicas « científicas ».
66Todas essas considerações não apontam para uma causa subjacente, como o determinismo econômico ou tecnológico, mas a um « poliedro de inteligibilidade ». Foucault, que se recusou o papel de profeta, estava disposto a abrir a história presente para as possibilidades que ela abrigava dentro si, apenas se alguém iria virar o caleidoscópio mais uma vez e ter a coragem para olhar dentro.