1Num ano que começou com o gigantesco desafio de reconstruir o Brasil, recuperemos aqui um ato simbólico do então presidente eleito para seu terceiro mandato, Luiz Inácio Lula da Silva (PT): no dia 19 de janeiro de 2023, pela manhã, ele se reuniu com reitores e representantes institucionais de universidades e institutos federais no Palácio do Planalto sinalizando o “fim de um período de trevas” e a “construção de um novo tempo” (Motoryn, 2023). O Brasil se encontrava sob escombros (Magalhães, Osório, 2023) com crescimento econômico pífio, relações internacionais arruinadas, pobreza ostensiva nas ruas das principais metrópoles nacionais, normas ambientais destroçadas e eminente colapso financeiro das universidades federais e instituições públicas (Oliveira, 2022).
2A virada de ano significou um grande alívio para todos os que lutam pela educação no Brasil. O encerramento do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) era mais que o fim do suplício de uma gestão autoritária, inepta e com atmosfera protofascista, mas o alvorecer de tempos menos beligerantes para com a educação nacional. Durante os quatro anos de seu governo, professores dos níveis fundamental, médio e superior das esferas privada e pública e das redes municipal, estadual e federal sofreram fortemente com o discurso oficial eivado de anticiência e anticonhecimento e baseado em preconceitos, perseguições e acusações levianas e mesquinhas acerca de determinados conteúdos ensinados nas salas de aula. O perigo neles contido? Sua natureza humanista, emancipatória, democrática.
- 1 Vide site do Tribunal Superior Eleitoral.
3A criminalização da docência em sua forma crítica, a admoestação de conteúdos centrais para os alunos e alunas – da educação sexual nas aulas de biologia às múltiplas violências e crimes cometidas pelo Estado durante a ditadura civil-militar – e o vilipêndio de intelectuais do porte de Jean Piaget, Lev Vygotsky e, sobretudo, Paulo Freire, foram combinados com um violento corte em investimentos na educação e uma forte campanha de desprestígio simbólico da já tão combalida profissão docente. Ex-ministro da Educação do Governo Jair Bolsonaro (PL), Abraham Weintraub (ele próprio ex-professor universitário federal, o que torna tudo mais surreal) afirmou que Paulo Freire “é feio, fraco, não tem resultado positivo e o pessoal quer defender, então é bater em morto”. É primordial nunca esquecermos falas estúpidas como essa para termos dimensão do tamanho do abismo que enfrentamos (Putti, 2020) e da necessidade de disputarmos a memória e a história de um período em que a extrema-direita assumiu o poder do Estado brasileiro com 49 276 990 e 57 797 847 milhões de votos no primeiro e no segundo turno das eleições de 2018, respectivamente 1.
- 2 Tratava-se de um modelo em que militares integrantes das polícias estaduais ou das Forças Armadas a (...)
4De um lado, um amálgama de terraplanismo, anticomunismo extemporâneo, discurso antivacina e juízos moralistas-autoritários alimentavam as opiniões e os julgamentos (afinal, não podemos empregar o vocábulo argumentos em casos dessa natureza) dos grupos de apoio do então mandatário da nação; de outro, a criação de escolas cívico-militares – um modelo inspirado nas escolas das Forças Armadas no que se refere ao controle e hierarquia, mas sem as mesmas contrapartidas em investimentos, ensino e formação geral 2–, o total congelamento dos ganhos dos servidores, intimidações referentes a cortes salariais (Sampaio, 2018) e todo o tipo de intromissão pedagógica e estímulo à repressão e espionagem de professores em suas práticas. Fundado em 2015, o movimento ultraliberal e de base conservadora-cristã Escola sem Partido ganhou musculatura no Governo Bolsonaro. Sugerindo combater as chamadas ‘ideologia de gênero’ e ‘doutrinação ideológica’, o embuste, como não poderia ser diferente, não contribuiu em nada para o debate público sobre educação no país (Moura, 2018) senão para desvirtuá-lo, debochá-lo, desmoralizá-lo. Desde políticos invadindo escolas e ameaçando professores aos reiterados discursos visando censurar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) — zelosamente concebido por uma equipe nacional de docentes à luz de rigorosos métodos quantitativos e qualitativos elaborados e testados pelos profissionais do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o INEP — , os efeitos nefastos de performances midiáticas como as descritas acima caíram como uma luva para a parcela da opinião pública nostálgica da ditadura e adepta fervorosa do neoprotestantismo mas foram profundamente sentidos pela comunidade de educadores.
- 3 Foram ainda ministros da Educação de Bolsonaro: Milton Ribeiro (de 16 de julho de 2020 até 28 de ma (...)
5Por óbvio, as escolhas de Ricardo Vélez Rodríguez (de 1.º de janeiro até 8 de abril de 2019) e Abraham Weintraub (de 8 de abril de 2019 até 20 de junho de 2020) para Ministros da Educação simbolizavam o quadro de desalento na Educação Brasileira 3. Inexpressivos entre seus pares nos campos pedagógico e científico, incapazes de compreender a luta cotidiana e a relevância associadas a fazer pesquisa em um país periférico como o Brasil, desconhecedores do papel dos fóruns educacionais e conselhos de área e munidos de total desrespeito à diferença, à pluralidade de ideias, à multiplicidade de saberes e, no limite, à própria democracia, Vélez Rodriguez e Weintraub certamente protagonizaram alguns dos capítulos mais vergonhosos da gestão da educação contemporânea brasileira.
6Devido ao seu caráter crítico e contestador — aspectos fundantes do conceito de universidade moderna e inegociáveis em regimes ancorados na democracia —, evidentemente a universidade não ficou fora deste colossal abismo de idéias e do constante transbordamento de incompetências. Durante o Governo Bolsonaro, as universidades públicas foram tratadas como locais de práticas ilícitas e espúrias, conforme entrevista de Weintraub afirmando que os campi das universidades federais possuíam “plantações extensivas de maconha”, “a ponto de precisar de borrifador de agrotóxico” (Bermúdez, 2019). No mesmo cenário de ultraje à imagem das universidades públicas brasileiras, também se reforçava o projeto de convertê-las em verdadeiros balcões de negócios, com parca altivez perante os ditames do mercado e abalada em seu compromisso de atendimento às demandas de lecionação, pesquisa e extensão num país assolado por graves diferenças sociais.
7Apresentado como salvação da lavoura, o felizmente engavetado plano “Future-se” exprimia com clareza que o público-alvo não era efetivamente professores, técnicos e estudantes universitários, mas o aniquilamento do modelo de universidade hoje em vigor. Por trás de idéias envelopadas vendidas por meio de expressões supostamente modernas como empreendedorismo e inovação, o que estava em jogo era o total desmonte do financiamento público e da autonomia universitária, isto é, a própria privatização do ensino superior no Brasil (Araújo, Kato & Chaves, 2020; Silva Júnior & Fargoni, 2020; Lopes, 2022; Guilherme & de Oliveira, 2022). Ainda que de forma tosca do ponto de vista da relação com partidos políticos e o empresariado nacional, o Governo Bolsonaro, tendo à frente o neoliberal Paulo Guedes como Ministro da Economia, foi mais um a representar os interesses da elite do atraso que, de costas para os pobres e sem qualquer preocupação com a edificação de uma corpo social tendo a coisa pública como fundamento da igualdade social e econômica, comanda o país desde as origens da República.
8Junto a esse verdadeiro cerco privatizante e de violência, retomemos o infeliz comentário feito pelo ainda recém-empossado ministro Vélez Rodríguez: universidade “não é para todos”, mas “somente para algumas pessoas” (Mariz, 2019). Em apenas trinta dias no cargo, Vélez Rodrigues sinalizava o que era pretendido em sua gestão: cortes no financiamento das universidades; arrocho salarial; diminuição da oferta de bolsas e auxílios; fim do ciclo de expansão das vagas, campi e instituições federais; ataque às ações afirmativas e outros mecanismos de estrangulamento das instituições federais de ensino. Porém, para além das engenharias de cortes orçamentários e supressão de direitos, permanece importante indagar, ainda que conhecendo a resposta: para o então ministro, quem eram as pessoas que deveriam estar na universidade?
- 4 Neste final de ano, ganhou relevo o debate acerca o orçamento das universidades federais para 2024, (...)
9O terceiro governo Lula da Silva trouxe, decerto, boa dose de alento, mas, com um congresso engessado pelo “presidencialismo de coalizão” (Abranches 2018) (ou, em grade bem mais crítica, pelo “peemedebismo” [Nobre 2013, 2022]) e infestado de bolsonaristas (além das políticas de austeridade pretendidas por membros da própria equipe governamental), ainda há muitas dificuldades a serem enfrentadas. Junto à progressiva recomposição orçamentária da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), sem contar a retomada da nomeação de quadros competentes e adequados para as funções exigidas, os desafios são da seguinte monta: retomar as condições mínimas de sobrevivência das universidades federais 4; expandir as políticas afirmativas e de inclusão; ampliar o número de ingressantes no ensino superior; criar políticas contra a evasão discente; e retomar, aprimorar e consolidar as fórmulas de avaliação de periódicos científicos – a assombrosa demora da publicização da avaliação do último quadriênio Qualis Capes 2017-2020 foi um exemplo de desmantelamento do modelo –, cursos de graduação e programas de pós-graduação no Brasil.
- 5 O Programa de Pós-Graduação em Geografia, criado em 2015 com o curso de Mestrado e que em 2024 terá (...)
10De toda maneira, nestes tempos de esperança renovada, há que se louvar a criação do curso de Doutorado em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Muitas análises — bem-vindas, corretíssimas e justas — são realizadas sobre as assimetrias no território nacional e a concentração da maioria dos programas de pós-graduação nas regiões Sul-Sudeste. Todavia, há que se pensar também em outras escalas de assimetrias: ao contrário dos atuais cursos de doutoramento em geografia situados na capital do estado e na cidade de Niterói, o Doutorado em Geografia da UFRRJ será o primeiro situado num espaço periférico do estado do Rio de Janeiro. Sempre associada à violência, problemas desigualdades sociais, corrupção e desmandos políticos, o primeiro semestre de 2024 nos reservará a honra de orientarmos futuros Doutores em Geografia na Baixada Fluminense 5, subvertendo assim a ordem estabelecida e o discurso dominante a partir de um espaço historicamente marginalizado e periferizado.
11Partindo de nossas experiências pessoais como estudantes egressos de uma universidade situada na periferia e que, portanto, conhecem bem as dificuldades para se atingir um título acadêmico desta magnitude, é emocionante enfrentar aqueles que defendem publicamente que a universidade não é para todos: afinal, se defender uma tese em nosso país permanece uma grande vitória para quem é de família simples, pertencente à classe trabalhadora e vive em territórios segregados e inviabilizados, celebremos aqui a futura geração de doutores e doutoras da UFRRJ que ajudarão, a partir da ciência geográfica e de suas experiências de vida, a reconstruir e transformar o nosso combalido país.
12Temos nomeado este processo de geografias periféricas e, vislumbrando-o em termos de uma profunda potência de pensamento e de ação (Ribeiro, Santos, Silva & Fiori 2023), a instauração do doutorado em geografia da UFRRJ apresenta-se, no contexto delineado neste editorial, como um golpe contra o bolsonarismo. A médio e longo prazos, o remédio mais eficaz e duradouro contra o neofascismo não é outro senão a educação popular, gratuita e emancipatória. A Espaço & Economia. Revista Brasileira de Geografia Econômica e seus editores orgulham-se de fazer parte deste movimento e convidam autores e leitores a defenderem a democracia e o estado de direito no Brasil e em qualquer lugar do mundo onde a extrema-direita insista em ressurgir.