1David Harvey (2013) assinala que o capitalismo é extremamente dinâmico e inevitavelmente expansionista. Impulsionado pelo motor da acumulação e abastecido pela exploração da força de trabalho, constrói uma força que revoluciona permanentemente e reformula o mundo em que vivemos. O que nos interessa da assertiva de Harvey é trazer o debate para uma escala de mundo específica, no caso, a cidade e uma de suas especificidades: o processo da obsolescência espacial urbana.
2A reprodução do sistema tem em seus mais diversos agentes econômicos o objetivo de, por via da acumulação de capitais e da exploração da força de trabalho, obter diferentes modalidades ou formas combinadas de remuneração — no caso o lucro, os juros e a renda. Para alcançar tais condições, o Capital, entre outras ações, apropria-se e organiza múltiplos territórios sob uma lógica de produção espacial marcada por diferentes combinações, articulações e densidades em distintos lugares, escalas e tempos.
3Em dois artigos sobre a obsolescência espacial urbana (GONÇALVES, 2018 e 2020), assinalamos a imprecisão e superficialidade geográfica do conceito de deterioração urbana. Em contraposição, trabalhamos com a ideia de que a problemática da obsolescência expressa a lógica e atuação dos agentes do mercado fundiário encarregados da produção espacial da cidade, que a moldam em diferentes tempos e territórios, com ambientes construídos marcados por distintas formas, funções, conteúdos técnicos e sociais, bem como diferentes modos de circulação de capitais.
4O termo deterioração urbana, dada a sua carga ideológica, quando considerado para uma análise geográfica do espaço urbano impede uma análise que ultrapasse a aparência da paisagem — erro comum em muitos estudos urbanos e geográficos sobre a cidade. A leitura da paisagem é ponto de partida1, mas não explica os processos.
5A ideologia da deterioração oculta o discurso higienista e, quando lançada sobre os ambientes construídos, é argumento para justificar as intervenções por parte do Estado e do setor imobiliário no sentido da produção de novos territórios na cidade. As operações urbanas consorciadas vigentes na cidade de São Paulo são exemplo concreto dessa realidade2.
6Aqui não se nega a necessidade de modernização dos ambientes que possuem problemas de ordem física, funcional e econômica; porém na lógica da deterioração o que impera é a demolição em nome do processo da revalorização desses territórios.
7Exemplos não faltam de territórios, marcados por ambientes construídos ditos deteriorados que são colocados a baixo para dar lugar a empreendimentos residenciais de alto padrão ou edifícios de escritórios coorporativos, como o caso citado por Ramos (2006), “das atuais nas imediações do eixo viário composto pelas vias Francisco Matarazzo/Carlos Vicari e Ermano Marchetti/Marquês de São Vicente, envolvendo parte da Barra Funda e da Água Branca e Mooca3”, que em tempos pretéritos foram áreas e bairros industriais da cidade de São Paulo.
8O discurso da revitalização — no sentido de ocultar que as operações urbanas resultam sobretudo em ganhos financeiros expressivos para os agentes econômicos envolvidos, em especial, àqueles ligados ao setor imobiliário — tem como objetivo trazer para o território dito degradado uma falsa nostalgia de um passado onde tudo na cidade era melhor, seja lá o que isso queira dizer.
9A consequência imediata dessas ações é a expulsão da população pobre para as periferias. A revalorização da terra-mercadoria impede que essa classe tenha acesso ao novo ambiente construído. Essa parte da classe trabalhadora, somada aos moradores em situação de rua, são colocados como os responsáveis pela deterioração do território nos discursos diretos e indiretos promovidos pelo setor imobiliário, pelo Estado e pela mídia.
- 4 Aqui defendemos que se faz necessário a ideia de defesa da função social do uso da terra urbana e n (...)
- 5 Lei Municipal nº 16.050, de 31 de julho de 2014 / Decreto nº 56.589, de 10 de novembro de 2015. Con (...)
- 6 O jornal Folha de São Paulo disponibiliza no endereço eletrônico https://www1.folha.uol.com.br/espe (...)
10Outra realidade quando se trata do discurso da deterioração urbana em São Paulo diz respeito às edificações e ambientes construídos que se encontram em estado de abandono, ociosidade e subutilizados e que não cumprem a função social da propriedade4. A partir da legislação vigente5, até 2018, 1.385 imóveis na cidade haviam sido notificados pela prefeitura, a maioria localizados na região central tradicional e adjacências6(figura 1).
Figura 01: Imóveis ociosos e subutilizados São Paulo – Região Central e entorno (2018)
Base cartográfica: MDC (2004). Fonte: CEPEUC/PMSP, 2018.
- 7 O termo déficit habitacional somente reforça que a política habitacional no Brasil demanda de urgen (...)
- 8 Em 2019, segundo a Fundação Getúlio Vargas, “na capital paulista, seriam necessárias 474 mil moradi (...)
11Seria possível recuperar, modernizar e destinar parte considerável dos imóveis obsoletos da região central de São Paulo para atenuar a problemática do déficit habitacional7, sobretudo, por moradia popular em São Paulo8? A resposta obviamente é sim. Para fins didáticos, supondo 1.000 prédios com média de 10 andares e capacidade de abrigar 4 unidades (apartamentos) por andar, teríamos 40.000 unidades.
12Vozes contrárias, em especial economistas e urbanistas que não colocam em suas contas as reais demandas da população pobre, defendem que é mais barato construir novas edificações do que recuperar as velhas e/ou modernizar as antigas. Justificam ainda que diante da atual legislação, as edificações obsoletas não conseguiriam atender as exigências de segurança, mobilidade interna, infraestrutura entre outros. Um discurso absolutamente falso. Legislações possuem o aspecto técnico, mas acima de tudo têm uma dimensão política.
13A deterioração possui um caráter higienista, uma vez que atende aos interesses do setor imobiliário e imputa aos pobres a pecha de agentes da degradação. Adotar o conceito de obsolescência permite jogar luz sobre o modo como os proprietários desses imóveis operam, norteados pela lógica da especulação imobiliária. Edificações abandonadas, impostos atrasados, porém “ativos” em mãos — ou seja, a terra e localização no qual está situado o imóvel abandonado podem propiciar aos proprietários dos imóveis ganhos futuros.
14Modernizar uma edificação, um prédio em situação de obsolescência na área central é mais barato, pois mesmo que o custo de modernização de um imóvel seja mais elevado que construir um novo nas franjas da cidade, há que se considerar que a região central já está dotada de toda uma ampla gama de infraestrutura, coisa que não ocorre na periferia. Construir edificações nas periferias exige levar para essas localidades saneamento básico, ruas, avenidas, transporte público, enfim, um volumoso conjunto de infraestrutura e equipamentos de uso público.
15Adotar o processo da obsolescência espacial urbana como conceito corresponde a defender a necessidade de superação do termo deterioração urbana. A obsolescência espacial permite a compreensão, por exemplo, a partir das condições geográficas dos ambientes construídos, dos fatores pelos quais esses não conseguem atender de modo satisfatório as exigências de remunerações do capital, principalmente os setores econômicos ligados ao mercado imobiliário, bem como as demandas de retorno econômico para o Estado (Gonçalves, 2015). Essa última questão, como indicamos, é oculta para a população.
16Como forma de elucidar uma fração dessa problemática urbana, os preços praticados pelo mercado imobiliário no ambiente construído da cidade evidenciam o processo espacial da obsolescência urbana. Ao considerar as reflexões iniciais aqui apresentadas, passamos a tratar de modo indissociável o preço da terra, o ambiente construído e a obsolescência espacial urbana.
17Todos os objetos ou coisas que nos cercam possuem um valor, seja porque eles nos representam algo, são úteis de alguma forma, agem com maior ou menor intensidade com nossas emoções, memórias ou sentidos, seja porque entendemos que um objeto é fruto de um trabalho realizado, no caso, produzidos pelos homens ou pela natureza.
18Em nosso dia a dia utilizamos de maneira banalizada preço e valor de coisas e objetos como equivalentes: um objeto custa ou tem um preço de dez reais ou esse mesmo objeto possui um valor de dez reais.
19Também no dia a dia atribuímos valores diferentes para coisas e objetos novos ou velhos e que possuem preços distintos entre si. É possível deter um objeto de preço elevado e lhe atribuir um valor sentimental ou de uso pequeno e também é possível deter um objeto de preço irrisório e lhe dar um valor sentimental elevado ou de uso intenso, porém, o nosso objetivo é discutir a categoria valor como relação social mercantilizada
- 9 Nesse trabalho foram consultadas três versões em português do Capital Livro I. A primeira publicada (...)
20Falar em obsolescência urbana na realidade capitalista é remeter a um múltiplo conjunto de ambientes construídos, mercadorias consumidas e usadas no decorrer do tempo. Para refletir sobre a relação entre preço e ambiente construído, é de fundamental importância tratar o sentido e significado da mercadoria em nossa realidade. Marx (2013, p. 97)9 nos lembra que “a riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar”.
- 10 “Como criador de valores de uso, como trabalho útil, [...] é uma condição de existência do homem, i (...)
21A magnitude dos valores corporificados nas mercadorias pelo sistema capitalista não reflete a sua origem e só pode ser refletida sob a condição do trabalho humano. Segundo Rosdolsky (2001), tempo de trabalho socialmente necessário corresponde a um imperativo social coletivo, produzindo um determinado valor de uso10 e ao mesmo tempo a magnitude de seu valor.
22Por meio do trabalho produzimos valores de uso necessários à nossa sobrevivência e também é por meio dele que a existência social se realiza e emancipa-nos da natureza. No campo da economia existem duas formas para se definir valor: 1) a teoria do valor-utilidade, que parte da relação entre homem e natureza, onde a partir das suas demandas os homens, de acordo com suas subjetividades e satisfação de suas necessidades, produzem objetos atribuindo-lhes valor; e 2) a teoria do valor-trabalho, onde “o valor é fruto das relações que se criam entre homens na atividade econômica” (SINGER, 1987, p. 12).
23No sistema capitalista, não basta produzir somente o valor de uso para saciar uma determinada necessidade individual. Na dimensão da produção de mercadoria, para que seja estabelecido um valor de uso social, deve-se produzir valores de usos para outros que serão cambiáveis no mercado.
24No modo de produção capitalista, à medida em que uma fração da capacidade de trabalho dos homens é absorvida e transformada em força de trabalho, essa mercadoria será como qualquer outra mercadoria consumida. Se, anteriormente a essa realidade, o trabalho estava vinculado à produção de valores de usos e esses eram reconhecidos pelos seus produtores; no sistema capitalista aquilo que o trabalhador realiza, a produção de valores de uso, é externo a ele, pois os resultados de suas atividades pertencem aos capitalistas.
25Nessa condição, as liberdades relativas ao trabalho desaparecem. Apesar de o trabalhador crer que há uma relação de igualdade contratual na relação com a firma, ele não escolhe o que e como produzir, ele não determina sua jornada de trabalho e muito menos o seu salário. Isso lhe é externo e imposto. Há, portanto, uma sujeição da força de trabalho que é transformada em mercadoria para o capitalista, que a converte na produção para render valores de uso para terceiros, com o objetivo de acumular para si valores de troca e ampliação do seu capital.
- 11 Segundo Marx (1996, p. 188), “Quando no início deste capítulo, para seguir a maneira ordinária de f (...)
26Cabe aqui um esclarecimento: vários manuais de economia e correntes marxistas reproduzem de modo simplista e naturalizado que a mercadoria possui um duplo valor: de uso e de troca. Quando surge nos primeiros parágrafos do Capital – Livro I que a mercadoria é valor de uso e valor de troca, ignora-se tratar de análise crítica de Marx aos antecessores no campo da Economia Política, em especial, Adam Smith e David Ricardo11.
27A mercadoria como unidade isolada é valor de uso, mas não é valor de troca. Só será valor de troca quando o valor de uma determinada mercadoria for colocada no processo da troca. Valor de troca é a forma necessária de expressão de valor, em relação quantitativa, onde a proporção na qual valores de uso de uma espécie se trocam por valores de uso de outra espécie.
28Quando uma mercadoria é produzida, o seu valor de uso demanda de uma inversão para ser consumida — isto é, o valor da mercadoria, inicialmente carregado pelo valor de uso, só se realiza na troca com outra mercadoria, em nossa sociedade, o dinheiro, visto que esse é a expressão geral do valor comum a todas as mercadorias.
- 12 Teoria da Utilidade Marginal - Uma teoria econômica burguesa apologética que surgiu nos anos 70 do (...)
- 13 Da mesma forma há um tempo médio socialmente definido para a produção de uma mercadoria, as taxas d (...)
29Correntes que possuem em sua gênese a categoria “valor-utilidade12” defendem que a utilidade da mercadoria é que define o seu preço em uma relação subjetiva entre os compradores e as mercadorias. Nesse sentido, as taxas de lucro auferidos pelas empresas também ficariam atreladas a esse subjetivismo, o que é absolutamente falso13. A teoria do valor trabalho considera que o valor é incorporado na mercadoria a partir de um tempo médio necessário para a sua produção (tempo de trabalho social médio para a produção). Quando esta estiver pronta, será vendida tendo como parâmetro o tempo de trabalho cristalizado nela, que é o que definirá o preço no processo da troca que ocorre no mercado.
30Na “enorme coleção de mercadorias” os valores não podem ser reduzidos ao mero tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-las, pois reduziria o valor a somente uma dimensão quantitativa. O valor na perspectiva marxista é uma qualidade social e só se realiza quando ocorre a troca entre mercadorias. Não pode ser percebido pelos nossos sentidos, não se pode tocar ou cheirar. O valor é a maneira pela qual os seres humanos existem no capitalismo e define como as relações sociais se estabelecem na sociedade capitalista; vide, por exemplo, a relação desigual e contraditória entre trabalho-capital.
31O preço, quando tomado em uma perspectiva naturalizada, por si só pouco explica por que um objeto custa x ou y. Daí a necessidade em se considerar o preço como expressão monetária do valor e esse último como processo às relações de produção no capitalismo e tudo o que ela contém.
32Marx, ao tratar da relação entre valor de troca da mercadoria e dinheiro, explicita que o valor de troca sob a determinação do dinheiro é preço ou, em outros termos, a mercadoria possui um valor de troca, que não é preço, mas no decorrer do processo possui um preço (ROSDOLSKY, 2001). Somente quando nos debruçamos no processo, isto é, o processo do valor corporificado em um objeto (mercadoria) é que o preço passa a ter sentido. De acordo com Rosdolsky (2001, p.125):
No preço, o dinheiro se apresenta em primeiro lugar como a unidade de todos os valores de troca; em seguida, como unidade na qual esses valores são quantificados; por serem igualados ao dinheiro, eles podem expressar sua relação quantitativa recíproca. Nesse caso, o dinheiro atua como denominador universal, como medida de valores, como “o material em que o valor das mercadorias se expressa socialmente”, é a forma necessária de manifestação da medida de valor imanente às mercadorias: o tempo de trabalho. Esta determinação resulta da lei geral do valor: como todas as mercadorias, inclusive o dinheiro, contêm trabalho humano objetivado, o valor de uma mercadoria [...].
- 14 Sobre a relação entre a renda fundiária e o processo da obsolescência espacial urbana, consultar Go (...)
33Por mais simples que seja, a mercadoria produzida para outrem envolve um conjunto complexo de diferentes tipos de trabalho qualitativos e quantitativos para se realizar. O trabalho despendido na produção de uma mercadoria, seja ela qual for, possui um duplo aspecto: o trabalho concreto e o trabalho abstrato. Ao nos debruçamos sobre a terra-mercadoria, a categoria trabalho na produção urbana é fundamental para se compreender o peso das localizações na cidade e como elas se relacionam com diferenciações dos preços entre os lugares, além daquilo que em nosso trabalho é de fundamental importância, a renda fundiária urbana14 e o modo como clarifica o processo da obsolescência urbana.
34Antes de refletirmos sobre terra-mercadoria, pensemos na diferença entre pastilha de freio de automóveis e chip de computador. Tanto a produção da pastilha quanto o chip abarcam inúmeros setores produtivos e etapas para que se constituam como mercadorias, envolvem um contingente de trabalhadores que executam diversas tarefas de produção. Em comum, pastilha e chip têm o fato de ambas serem mercadorias, ou seja, as duas são resultado do trabalho concreto (trabalho físico e mental específico que resulta na produção de uma mercadoria) e trabalho abstrato (tempo socialmente necessário para a produção) realizado e corporificado na mercadoria. O valor de uso de uma mercadoria, sua existência física só é possível na medida em que o trabalho concreto acontece.
35A mercadoria só é portadora do valor de uso em função do trabalho concreto nela corporificado, porém, o trabalho concreto despendido na produção de uma pastilha e de um chip possuem distintas características e particularidades; portanto o quantum de trabalho concreto empregado na produção de ambas se difere, logo o valor dessas duas mercadorias também difere. A mesma lógica vale para o trabalho abstrato. Devemos considerar o tempo efetivo da produção de todos os componentes diretos ou indiretos na produção, isto é, desde matérias primas até o produto final, envolvendo amplo leque de relações e contradições sociais, em especial entre força de trabalho e capital, que vai da produção ao consumo das mercadorias.
36Uma das matérias primas utilizada na produção da pastilha de freio e do chip é o quartzo, um abundante mineral da Terra. O trabalho abstrato na produção da pastilha e do chip são diferentes em qualidade, mesmo que ambos possuam como ponto de partida o quartzo (aqui é importante salientar que não se trata da qualidade no sentido de produto melhor ou pior, mas sim do sentido do valor agregado e diferencial que pastilha e chip contêm). O uso do quartzo enquanto matéria-prima tanto para um quanto para outro se difere no que tange às propriedades a serem obtidas, no caso, a pastilha necessita do silicato e o chip do silício.
37Obter tais propriedades e processá-las até o produto final exige trabalhos concretos que por si só são diferentes e, ao mesmo tempo, demandam de trabalho abstrato, isto é, a especificidade do trabalho traduzida pela qualidade diferencial necessária ao longo da produção da pastilha e do chip. Para que seja diferencial, exige tipos específicos e distintos de trabalho determinados pelas qualificações dos trabalhadores, bem como pelos diferentes tipos de máquinas e tecnologias utilizadas na produção, sendo que tais máquinas e tecnologias em toda cadeia produtiva também são resultados do trabalho concreto e abstrato.
38O trabalho abstrato contém trabalho concreto e vice-versa, e isso determina o valor de troca da mercadoria, ou simplesmente o valor da mercadoria. O que define a diferença do valor da pastilha e do chip, valor esse expresso pelo preço, é o tempo do trabalho socialmente necessário para se produzir um e outro. O tempo de trabalho social médio como processo determina o valor social da mercadoria, esse traduzido pelo preço.
39O sistema capitalista oculta, de modo intencional, que custos e despesas envoltos nas mercadorias são frutos do trabalho realizado e corporificado nas mercadorias. Oculta também que a taxa de lucro e as demais formas de remuneração do capital são definidas não por outra condição que não seja a exploração da mais-valia. Ao trazer essa reflexão para o contexto da terra-mercadoria na realidade urbana, a sua dinâmica — o que envolve questões como valor, preços, localização, renda fundiária entre outros — tende a ser explicada de modo parcial ou com modelos muito bem elaborados que acabam por ocultar, de forma deliberada, que a lógica da terra-mercadoria é fundamentalmente determinada pela relação desigual e combinada entre capital-trabalho.
40Por não ser resultado do trabalho, a terra não possui valor, mas possui preço, portanto é considerada como uma mercadoria sui generis. No caso da terra urbana, como unidade isolada, um lote x, na medida em que o lote é incorporado ao processo de produção da cidade, além de ter o seu preço ampliado, se valoriza e atua também como elemento valorização do todo de um ambiente construído. Marx, no livro III do Capital, dedica parte das análises à questão do preço da terra, tomando como referência a terra agrícola, mas é possível transpor para a lógica da terra urbana. Segundo Marx (2017, p.896):
É a renda fundiária [...] capitalizada que forma o preço de compra ou valor do solo, uma categoria que prima facie, exatamente do mesmo modo que o preço do trabalho, é irracional, já que a terra não é produto do trabalho e, por conseguinte, não possui valor nenhum.
41Conforme asseveramos (GONÇALVES, 2015 e 2018), a renda fundiária (uma fração da mais-valia ou, mais precisamente, um componente particular e específico da mais-valia) se trata de um valor extraordinário apropriado sob a lógica do mercado de terras aos que detém a propriedade privada dessa mercadoria ou, nos termos precisos colocados por Oliveira (2007, p.43),
A renda da terra é uma categoria especial na Economia Política, porque ela é um lucro extraordinário, suplementar, permanente, que ocorre tanto no campo como na cidade. O lucro extraordinário é a fração apropriada pelo capitalista acima do lucro médio [...]. Como ela é um lucro extraordinário permanente, ela é, portanto, produto do trabalho excedente [...] o trabalho excedente é a parcela do processo de trabalho que o trabalhador dá ao capitalista, além do trabalho necessário para adquirir os meios necessários à sua subsistência.
42Esse lucro extraordinário trata-se de renda capitalizada, pois à medida em que os investidores e capitalistas compram a terra estão “convertendo o seu capital-dinheiro em renda capitalizada da terra, renda antecipada, ou seja, estão adquirindo o direito de extrair renda, mesmo naqueles lugares onde aparentemente ela pode não existir” (OLIVEIRA, 2007, p.63). Já na cidade a renda assume uma forma abstrata, “a renda não se apresenta mais como um produto do solo como ocorre no campo, ela aparece como nada mais que o juro de um capital investido” (BOTELHO, 2008, p. 26).
43Além disso, “a renda da terra é determinada pelo uso socialmente estabelecido na organização da produção e circulação, paga ao proprietário, consequência do valor de troca, muitas vezes antecedida à determinação do uso por ações de especulação e escassez de localizações” (HARVEY, 1980, p.154).
44Para Odette Seabra (1988, p. 100), a renda fundiária constitui-se numa categoria teórica exploratória e explicativa das especificidades dos lugares inscritos espacialmente e socialmente. Diz ela em relação à renda fundiária:
1º - se define num conjunto de relações políticas e jurídicas;
2º - como tal assume uma forma pertencente ao capital, no contexto da formação econômica social capitalista;
3º - se constitui num volume de riqueza social com o qual se remunera a propriedade;
4º - se constitui num elemento pertencente a este modo de produção sem que tenha a ver com a base fundamental do mesmo.
45A terra e o trabalho passaram por diferentes modos de apropriação, entretanto é no modo de produção capitalista que esses dois conheceram atribuições distintas e específicas. Na atual sociedade tudo se produz e se reproduz na forma de mercadoria. Terra e trabalho são mercadorias distintas das outras, possuem leis particulares de reprodução, mas sujeitas na totalidade às leis de reprodução social. É no mundo da mercadoria, através dos valores de uso e de troca, que sujeitos e lugares se realizam historicamente.
46De acordo com Carlos (1994: p, 85),
O uso ligado a momentos particulares do processo de produção das relações capitalistas é o modo de ocupação de determinado lugar da cidade, a partir da necessidade de realização de determinada ação, seja a de produzir, consumir habitar ou viver. O ser humano necessita para viver, ocupar um determinado lugar no espaço. Só que o ato em si não é meramente o de ocupar uma parcela do espaço; ele envolve o ato de produzir o lugar.
47A terra em si mesma não possui a propriedade de ser mercadoria, o que só ocorre mediante a formação do mercado de terras. Ao se tornar mercadoria, equivalente de trabalho ou a terra como trabalho, diz-se que se trata de uma mercadoria especial, pois possui características peculiares que nenhuma outra mercadoria tem. Tomando Harvey (1980: p. 135-6) como referencial, podemos inferir sobre as particularidades que marcam o solo urbano:
(a) O solo e as benfeitorias são fixos no espaço, não circulam, mas possuem localização, e devido a essa propriedade, proporciona ao seu detentor um monopólio, que lhe dá o direito de determinar o uso do espaço fixo, através da propriedade privada.
(b) Os homens não podem viver sem solo e benfeitorias, afinal, nossas realizações, nosso cotidiano, não se dá no plano abstrato. O solo e as benfeitorias são condições essenciais, por exemplo, para morar, trabalhar, circular etc.
(c) “O solo e as benfeitorias mudam de mãos relativamente com pouca frequência (...)”.
(d) “O solo é algo permanente, e a probabilidade de vida das benfeitorias é muitas vezes considerável. O solo e as benfeitorias, e os direitos de uso a elas ligados, por isso, propiciam a oportunidade de acumular riqueza tanto para os indivíduos como para a sociedade (...). Numa economia capitalista um indivíduo tem um duplo interesse na propriedade, ao mesmo tempo como valor de uso atual e futuro e como valor de troca potencial ou atual, tanto agora como no futuro”.
(e) “A troca no mercado ocorre em um momento do tempo, mas o uso se estende por um período de tempo”.
(f) “O solo e as benfeitorias têm usos diferentes e numerosos que não são mutuamente exclusivos para o usuário”.
48Ainda de acordo com Harvey, tomados em conjunto, esses usos em relação ao solo e suas benfeitorias se tornam valor de uso e dialeticamente valor de troca.
49Essa dupla propriedade do solo e suas benfeitorias serão determinadas de acordo com os interesses dos seus detentores. Para o proprietário pode ser valor de uso à medida em que ele a utiliza para morar ou para desenvolver um tipo de atividade econômica. Pode também o proprietário ser locador e daí obter renda. Logra também, possuindo ou não edificação no solo especular no mercado de terras, ao aguardar o melhor momento para realizar o valor de troca.
50Há também outros agentes que trabalham e interferem de modo acentuado no uso do solo e o alteram continuamente ao longo do tempo. Corretoras de imóveis atuam no mercado de terra para obter valor de troca através da compra, venda ou da cobrança de transações imobiliárias. Incorporadoras e construtoras operam no mercado de terra criando valores de usos (residenciais ou comerciais, por exemplo) para obter parte do processo de valorização em curso. Instituições financeiras também atuam no mercado fundiário financiando empreendimentos de forma direta, disponibilizando cartas de créditos aos consumidores ou criando fundos de investimentos, consórcios etc. Por último, as instituições pertencentes à esfera governamental, por meio de políticas habitacionais, produzem valores de uso relacionados à moradia. Em países como o Brasil, com políticas habitacionais voltadas à produção de moradias populares, o resultado é perverso, pois a produção de moradias na maior parte das vezes ocorre longe das regiões centrais das cidades, o que contribui para o aumento significativo de áreas periféricas e para a vulnerabilização da classe trabalhadora mais pobre.
51No interior do espaço-mercadoria, os lugares como valor de troca se realizarão ao incorporarem ou não trabalho social, fundamentalmente em função do volume e riqueza social (valores de uso) criados. Nesse sentido, de acordo com Seabra (1988, p.100):
o espaço-função de “n” lugares – tem um valor que lhe corresponde em função da produção social, um valor genérico (valor de uso) que se expressa num preço (expressão formal do valor de troca) o qual é primeiro equivalência da produção social para ser também, eventualmente, um valor agregado, acrescido por tributos próprios do lugar. Nesse sentido, o espaço é também objeto.
52O processo de produção e reprodução capitalista valoriza a terra na forma de propriedade, onde a renda que se obtém a partir das leis de reprodução é um meio de captação da mais-valia da riqueza da sociedade. O espaço, inicialmente convertido pelo seu vetor utilitário em valor de uso à sociedade, no decorrer do processo histórico social se torna prisioneiro das condições de produção e reprodução capitalistas.
53Na realidade da cidade capitalista, o valor de troca tem se sobreposto ao valor de uso. Isso significa que para usar o lugar é necessário que antes se realize o valor de troca. Por isso o processo de valorização do espaço sob a égide das relações capitalistas de produção passa necessariamente pela mercantilização dos lugares. A relação que se trava nos lugares, portanto, são também automaticamente mercantilizadas.
54Em relação à cidade capitalista, Odette Seabra (1988, p.102) nos fala que
O processo de valorização na circunstância histórica do capitalismo é o processo que vai pondo, gradativamente, os diferentes lugares da Terra — como localização, como recurso — sob a vigência das leis abstratas da reprodução social, no qual a terra vai se constituindo em força produtiva da sociedade, assumindo a condição de capital social. A virtualidade deste processo está em tornar social o espaço mesmo, ainda que sob a vigência da propriedade privada da terra. De tal forma que a socialização do espaço e a privatização do espaço são faces contraditórias de um mesmo processo que ao se desenvolver cria a cidade capitalista.
55À medida em que o espaço urbano se reproduz sob a lógica do processo das leis de mercado, esse se torna suporte das atividades produzidas pela sociedade. Os usos da terra urbana são os mais variados possíveis: industrial, comercial, serviços, residenciais etc. Porém as localizações dessas atividades não são de modo algum caóticas ou aleatórias, elas obedecem a uma ordem, a uma geografia absolutamente ordenada, segundo os preços de mercado. Tomemos que o espaço urbano é muito mais que um lugar onde se desenrola o cotidiano da sociedade, é mais do que o ato de viver, morar, trabalhar, interagir nas mais variadas situações, é mais do que um lugar em que se alocam atividades econômicas.
56O espaço urbano é em si mesmo não apenas o espaço dos conflitos, da produção e (re)produção de relações de todas as ordens e instâncias — social, política, cultural e jurídica — mas também o lócus da (re)produção do capital, da extração de lucros, rendas, juros. É marcado pelo “jogo” desigual entre as classes sociais. É um espaço sobre o qual incide as determinações do capital. O capital passa a comandar e determinar os possíveis usos dos lugares, das localizações, das atividades de todas as ordens, em síntese, da realidade como um todo. Nessa luta, não há passividade dos sujeitos, acirram-se os conflitos em que a vida imediata (o caminhar, o morar, o respirar etc.) está sujeita aos interesses econômicos.
57A apropriação privada da terra por parte dos capitalistas tem sido condição primordial para sua (re)produção. É no processo de apropriação privada da terra por parte desses sujeitos que se colocam em contraste a cidade como valor de uso e a cidade como valor de troca.
58Para que ocorra de modo concreto a produção, a circulação, a troca e o consumo na cidade, faz-se necessário construir, produzir espaços e localizações capazes de assentarem os usos técnicos na terra — indústrias, bancos, prédios comerciais e residenciais, casas comerciais. Porém esse construir, esse alocar usos técnicos na terra significa também ter disponibilizado o suporte das vias de circulação e comunicação, da infraestrutura como um todo. Aqui surge o Estado no processo de (re)produção do espaço urbano.
59As localizações produzidas não são dotadas dos mesmos conteúdos, dos mesmos ou similares usos técnicos. Independentemente da localização produzida no espaço, ela gera aglomeração tanto de objetos técnicos como de pessoas; mas dadas as estratégias e interesses do mercado fundiário gestam-se espaços diferenciados, uns dotados das máximas condições de vida social e econômica, enquanto outros são isolados e marginalizados, vivem na penúria em todos os âmbitos da vida.
60Como afirmado, as localizações não são aleatórias e só podem ser compreendidas na totalidade determinada pelo movimento social e histórico que marca o urbano. Entretanto o uso da terra no espaço urbano não é imutável, pois o movimento social e histórico é contínuo, traz no decorrer do tempo uma metamorfização ao espaço e altera sua dimensão, sua forma, seu conteúdo e seu cotidiano propriamente dito.
61O espaço urbano expressa a lógica da divisão social e territorial do trabalho e disto derivam os conflitos que permeiam a realidade da sociedade. Apreender o urbano necessariamente obriga-nos a debruçar sobre a totalidade dos fenômenos e eventos que determinam sua dinâmica. A realidade urbana determinada pelo modo de produção capitalista transcende a esfera da produção econômica, pois a economia é política e é só nessa perspectiva que interessa considerá-la.
62Os preços diferenciais da terra podem ser compreendidos de acordo com o ambiente construído e os usos do espaço que se processam na atualidade. Entretanto, o ambiente construído e os usos do solo não são imutáveis no tempo e no espaço, logo os preços expressam a sobreposição das condições passadas, presentes e futuras na dinâmica fundiária urbana. Desse modo, toma-se como premissa o fato de que há inúmeras escalas espaciais e temporais de análise para se compreender a formação de preços em uma determinada área ou bairro, bem como as variações internas desses preços nesses ambientes. Há em Harvey15 uma clarificação sobre a relação entre o ambiente construído e o preço, diz ele:
Os preços formam o que reflete as condições da produção em diversos lugares em condições variadas de trabalho concreto. O processo da troca está, em suma, eternamente se abstraindo das especificidades do lugar por meio da formação do preço. Isso pavimenta o caminho para a conceituação dos valores independem do lugar. O trabalho abstrato incorporado em lugares particulares sob condições concretas específicas é uma média social extraída de todas as localizações e condições.
63Diante dessa complexidade explicitamos o seu contrário, no caso, a lógica dos preços dos imóveis sob a perspectiva do mercado imobiliário, que adota os princípios da teoria do valor utilidade. A título de exemplo, em matéria veiculada pelo jornal O Estado de São Paulo, intitulada “Quando dois mais dois podem não ser quatro: a avaliação imobiliária é uma metodologia complexa, com variáveis subjetivas”, o autor procura demonstrar didaticamente quais os elementos que o mercado imobiliário trabalha quando se trata da questão do preço na realidade do ambiente construído da cidade. Diz a matéria16 em seus fragmentos:
Calcular o preço de um imóvel pode ser um árduo exercício. "O preço sempre será resultado do desejo de duas pessoas, do vendedor e do comprador" [...] Portanto, nesta conta, dois mais dois pode nunca ser igual a quatro.
Avaliações
A perita Angela dos Santos Silva, do Secovi ensina, [...] a fazer o cálculo utilizado nas avaliações oficiais, embora alerta que o resultado ainda não será o real. "Faça a pesquisa do preço do terreno no bairro em que está o imóvel, depois calcule o preço de custo de construção do imóvel, que chamamos benfeitoria, e some o resultado ao preço do terreno."
Para calcular o preço de custo de benfeitoria multiplique a metragem do imóvel por um dos índices utilizados pelo mercado. O mais comum é o Custo Unitário Básico (CUB), calculado pela Fundação Getúlio Vargas para o Sindicato da Construção (SindusconSP). Há, ainda, o Sinapi, do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Os dois podem ser encontrados nos sites das instituições [...].
O diretor de estudos especiais da Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio (Embraesp), Luiz Paulo Pompéia, ressalta, no entanto, que esta fórmula não inclui o lucro nem o custo de comercialização, que também são itens que compõem o preço de um imóvel. "O custo de comercialização é a corretagem, que em imóveis novos é de 3,5% a 6%. Nos usados, é de 6%."
Em imóveis novos é preciso acrescentar ainda o custo do marketing (6,5%) e o lucro do empreendedor. "Quando se questiona preços, sempre se reclama do preço do terreno e dos custos de construção, mas ninguém fala do lucro", diz. Segundo Pompéia, o mercado trabalha com uma margem de lucro mínima igual ao valor pago pelo terreno. Considerando que o preço do terreno corresponde de 10% a 20% do valor do imóvel, esta é a margem de lucro praticada atualmente. "Em alguns casos, especialmente em imóveis de alto luxo, é ainda maior”.
Especificidades
Por exemplo, numa rua pode haver predominância de imóveis comerciais de um lado e residenciais do outro. "Se o imóvel estiver na área comercial, vai valer menos". No caso de apartamentos, o andar também faz mudar o preço entre unidades iguais. "Até mesmo o tipo de comprador pode alterar o preço” (...) A incidência de luz solar e da vista também influem. "Se estiver virado para o fosso interno, por exemplo, ou para a face sul, ou no primeiro andar, também vale menos e a venda é mais demorada.
- 17 Sobre a abordagem espacial dos preços hedônicos no mercado imobiliário consultar também Campos (201 (...)
64Abordagens expressas nos depoimentos tratam dos denominados preços hedônicos17 ou preços implícitos, onde “os bens são medidos pelas características que se mostram relevantes para a escolha das pessoas, e o consumidor exerce preferências, maximizando utilidade” (ARRAES & FILHO, 2008, p. 292). O preço da terra e dos imóveis se dá em função de características vinculadas a três vetores preliminarmente primordiais:
Atributos físicos do bem, vizinhança ou localização ótima e características ambientais inerentes ao imóvel [...]. O capital imobiliário envida estratégia de ação para realização de ganhos fundiários, traduzindo-se em externalidades incorporadas aos preços dos imóveis e definindo escolhas de famílias com diferentes rendas (ARRAES & FILHO, 2008, p. 290).
65Para exemplificar os elementos e fatores considerados na composição dos preços dos imóveis a partir da lógica dos preços hedônicos, temos o seguinte esquema (figura 2) produzido por Arraes & Filho (2008), que em um estudo de caso, tratam dos determinantes econômicos e externalidades no processo de formação de preços na capital do Estado do Ceará: Fortaleza.
Figura 2- Modelo econômico-financeiro de preços hedônicos
Fonte: Arraes & Filho (2008)
66Não há como desconsiderar os modelos relativos aos fatores físicos dos imóveis levados em conta pelo mercado na determinação dos preços. Porém é fundamental considerar nos termos de Harvey (2013, p.436) que:
[...] os preços formam o que reflete as condições da produção em diversos lugares em condições variadas de trabalho concreto e que o processo de troca está, em suma, eternamente se abstraindo das especificidades do lugar por meio da formação do preço [...] pavimenta o caminho para a conceituação dos valores independente do lugar, isto é, o trabalho abstrato incorporado em lugares particulares sob condições concretas específicas é uma média social extraída de todas as localizações e condições.
- 18 HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
- 19 Ibidem, p. 436
67Essa assertiva de Harvey18 coloca em xeque a simplificação ou ocultação de dois fatores: 1) “o preço sempre será resultado do desejo de duas pessoas, do vendedor e do comprador19"; e 2) No preço final do imóvel deve se acrescer a porcentagem da corretagem e, no caso dos imóveis novos, o custo do marketing e a taxa de juros do empreendedor.
68No mercado de terras há um embate, pois cada sujeito, vendedor e comprador, desempenham “papéis” específicos, ademais o preço não está relacionado à produção da terra.
69Quando se trata da venda de novas edificações deve-se considerar toda uma cadeia envolvida no processo de produção de uma edificação em que cada agente econômico envolvido vislumbra para si obter valores de troca expressos nas formas de remuneração do capital: os juros, o lucro e a renda. Mas a composição do preço de um imóvel ou de uma terra nua na cidade não pode ser desarticulado do ambiente construído onde ele está situado.
70Por ambiente construído consideramos que vai além da sua forma física propriamente dita. O ambiente construído na realidade urbana só ganha sentido geográfico na medida em que o consideramos na sua totalidade como uma expressão da fisionomia relativa à configuração territorial da cidade, suas áreas, seus bairros, formados por objetos de todas as ordens produzidos pela sociedade, pelo Capital e pelo Estado — tal como nos ensina Milton Santos (1999).
71Nessa perspectiva, ao associarmos o ambiente urbano construído à configuração territorial, ambos decorrentes da dinâmica ou produção espacial capitalista, compreendemos que ele traduz a obsolescência urbana. Isso ocorre, pois tal processo é fomentado nos interstícios do modo combinado, desigual e contraditório como cada segmento presente na realidade da cidade (o que engloba os agentes econômicos privados, o Estado e os demais segmentos e instâncias da sociedade) exerce seus mecanismos de controle, ordenamento, conflitos, ganhos e perdas, suas intenções presentes e futuras, no que tange à disputa pelos usos (valores de uso e valores de troca) da terra urbana.
72De acordo com Girardi (2008, p.36), “a intensidade e a forma da ação de poder (exercidos pelos segmentos presentes na cidade) nas diferentes dimensões do espaço originam diferentes tipos de territórios”. Nesse sentido, os diferentes territórios na cidade de São Paulo expressam diferentes ambientes construídos, marcados por múltiplos usos da terra urbana e por um conjunto de objetos específicos e gerais, que possuem na sua totalidade, enquanto territórios constituídos, a finalidade de servirem como elementos fundamentais ao processo de reprodução do capital e da força de trabalho na cidade; mesmo que isso se dê nas contradições e nos movimentos desiguais da produção da cidade.
73Além disso, os diferentes tipos de territórios na cidade abrigam um conjunto amplo de equipamentos pertencentes ao Estado (federal, estadual e municipal), que distribuídos de modo desigual no espaço urbano, atuam em diferentes escalas de intensidade na realidade social e econômica de São Paulo e, ao mesmo tempo, de maneira articulada ao capital contribui para as diferenciações sociais e econômicas vivenciadas por toda a população no espaço urbano paulistano.
74Tal condição implica e reforça que alguns segmentos da população, direta ou indiretamente, tendem a se beneficiar mais em detrimento de outros. Isso vale para questões relativas ao que se pode chamar de qualidade de vida, bem como aos processos de maior ou menor valorização das propriedades privadas da terra.
- 20 Quando nos remetemos à ideia de comunicação entre os objetos para que ela ocorra estamos consideran (...)
75Na comunicação20 entre distintos objetos geográficos produzidos por diversos agentes e marcados por formas, estruturas e funções específicas, é que eles (os objetos) justificam suas existências na realidade espacial urbana, formando um sistema de objetos. Entretanto, esse vínculo possui diferentes graus na medida em que os objetos ou os sistemas de objetos presentes na cidade são concebidos de acordo com a lógica da divisão técnica e social do território que se impõe na realidade urbana.
76Goldenstein & Seabra (1982) lembram que o desenvolvimento das atividades econômicas não se dá de maneira uniforme entre os diversos ramos e seus setores, além disso, historicamente, há sob o capitalismo a existência de formas avançadas de divisão do trabalho e a permanente redefinição das proporções e do significado social e territorial desta divisão.
77Para Lipietz (1977 apud GOLDENSTEIN; SEABRA, 1982) é possível levar em conta duas formas de divisão do trabalho social quando nos reportarmos ao território: uma divisão horizontal que se dá entre os diferentes ramos de atividades econômicas atuantes na cidade e uma divisão vertical entre grupos sociais — dominantes e dominados — os que possuem os meios de produção, no caso os capitalistas e os que não os possuem, ou seja, os trabalhadores, também marcados como classe social pela não uniformidade de suas funções, atividades exercidas e remunerações recebidas.
78Desse modo, para Lipietz21 temos uma relação dialética onde na divisão horizontal está contida a uma divisão vertical, o que leva a divisão social e técnica do trabalho a ter uma dimensão territorial, porém desigual e combinada; o que notadamente em uma cidade como São Paulo, expressa uma diferenciação espacial significativa, marcada por áreas e bairros, que em uma escala vão de conteúdos ou ambientes construídos altamente modernos a ambientes construídos extremamente obsoletos.
79Na medida em que alguns objetos não conseguem desempenhar funções para os quais foram criados, tendem a ter seus conteúdos alterados, substituídos por outras funções ou simplesmente serem eliminados — isso considerando que os objetos e infraestruturas construídas, ao menos em tese, são produzidas para durar por um longo tempo.
- 22 O capitalismo tem como fundamento a constante transformação em seus parâmetros econômicos produtivo (...)
80Cidades como São Paulo e os bairros que as compõem não envelhecem, mas muitos lugares envelhecem precocemente, pois o ambiente construído definido pelas mais diversas tipologias construtivas e infraestruturas estão em constante estado de transformação. Não por se tratar de um dado natural ou porque simplesmente envelhecem, mas sim por ser um processo inerente à lógica e às exigências do capitalismo, que demanda para sua própria existência a condição de destruir ou redefinir as formas, funções e conteúdos conforme eles não mais servem para sua reprodução22.
81Destruir, manter e redefinir os objetos que formam o ambiente construído na cidade são ações fundamentais para garantir aos agentes econômicos diversas formas de remuneração: no caso, o lucro, o juro e a renda.
82Também é condição importante para garantir ao Estado — nas três esferas de poder, a saber: federal, estadual e municipal — os impostos e tributos cobrados, revertidos e aplicados de maneira seletiva entre as diferentes áreas e territórios da cidade.
83Em suma, os ambientes construídos que se tornam obsoletos são aqueles que não conseguem mais remunerar de modo satisfatório aquilo que é exigido pela lógica do capital, isto é, a acumulação e remunerações de capitais para os agentes capitalistas que produzem o espaço urbano.
84O processo da industrialização-urbanização em um passado não muito distante ditava efetivamente a dinâmica espacial da cidade, ao mobilizar vultosos capitais de todas as ordens, tanto de agentes privados, quanto do Estado (em nível federal, estadual e municipal), além de uma massa exponencial de força de trabalho.
85Na atual fase da cidade o setor financeiro, bancário, de crédito e o setor terciário moderno são agentes primordiais no processo de urbanização, exigindo e imprimindo continuamente de modo selecionado alterações nos ambientes construídos para dar sustentação a seus interesses, em especial, na acumulação de capitais.
86Há que se considerar que os objetos presentes na cidade nos tempos atuais — em função de suas mais variadas escalas determinadas pelas suas formas, conteúdos e funções, bem como pelas suas localizações — possuem caráter relativo, isto é, um conjunto de objetos consegue se comunicar entre si com maior eficiência do que outros. Logo, podemos falar em uma obsolescência técnica e socialmente determinada dos objetos que não conseguem cumprir as exigências determinadas pelos setores modernos presentes no sistema capitalista e que se espacializam na cidade.
87Essa condição seria suficiente para responder pelo processo da obsolescência espacial urbana? Entendemos que não. Os ambientes construídos e seus respectivos usos, pretéritos e presentes, só podem ser compreendidos na medida em que consideramos os propósitos dos diversos agentes que formam a sociedade. Os agentes econômicos privados e o Estado, historicamente em ações combinadas e contraditórias, constroem, destroem e reconstroem diferentes ambientes ou territórios na cidade de São Paulo, o que implicou na determinação e alteração dos valores de uso ligados à terra urbana, sobretudo, ao redimensionar valores de troca.
- 23 Sobre o ambiente construído e sua relação com a realidade urbana consultar também Harvey (2014).
88Em que pese a repetição, trata-se o ambiente construído na sua totalidade constituído por objetos geográficos, como nos diz Milton Santos (1999), ou pelos mais elementos diversos como nos assevera David Harvey (2013, p. 315), uma longa e infinita lista composta por fábricas, casas, prédios, lojas, armazéns, rodovias, ruas, avenidas, hidrelétricas, sistemas de fornecimento de água e coleta de esgoto, escolas, cinemas, teatros, parques, hospitais, autarquias e órgãos públicos e privados das mais diversas ordens; em suma, uma listagem interminável23.
89Porém, o ambiente construído vai além de uma listagem ou de características apontadas até aqui, isto é, para que possamos articulá-lo ao fator preço devemos considerá-lo ainda como um capital fixo imóvel, o qual, nos dizeres de Harvey, funciona como um vasto recurso que compreende valores de uso incorporados no ambiente construído e utilizados pelo capital conforme suas necessidades para a produção, a troca e o consumo.
90Além disso, deve-se anotar que os valores de uso do ambiente construído a partir da ótica da produção podem ser considerados tanto do ponto de vista das condições gerais de produção quanto das forças diretas da produção. Isso implica, quando se considera o ambiente construído como capital fixo, que melhorias e renovações na terra urbana são necessárias sob a ótica do processo de ampliação do capital.
91Essa realidade não pode ser outra, afinal as forças produtivas no sistema capitalista, bem como a terra urbana e tudo o que ela contém, demandam de constantes ações revolucionárias e ressignificações que potencializam a produção propriamente dita no sentido de, pelas mãos do sistema financeiro, intensificar a troca e o consumo dos valores de uso.
92Os elementos ou objetos do ambiente construído e todas as partes que o constitui, na medida em que ele vai sendo formado, de acordo com Harvey24 “têm uma posição ou localização espacial como atributo mais fundamental do que incidental”. Desse modo, os elementos que são alocados ou produzidos (valor de uso) devem ser ou ficar reunidos de forma integrada ao conjunto espacial de um dado lugar, de tal maneira que garantam aos seus proprietários um retorno significativo a partir do arrendamento a terceiros dos valores de uso que esses elementos possuem ou uma valorização de suas propriedades.
93Os elementos que compõem o ambiente construído se dão em diferentes tempos e espaços, considerando aqui a escala de um bairro ou localidade. A produção, o modo como são dispostos, suas manutenções, renovações, alterações, possuem dilemas como nos assevera Harvey, pois os elementos individuais que pertencem aos seus proprietários devem nessas ações fazer com que suas mercadorias assumam uma configuração apropriada onde estão localizadas. Caso isso não ocorra a contento sob a lógica do mercado fundiário, as interferências nos preços praticados (compra, venda e locação) podem ser séria e negativamente afetados e quadros de obsolescência espacial podem se instalar no ambiente.
94A regulação do ambiente construído vai além dos proprietários individuais. Tanto o Estado quanto o mercado fundiário (esse cada vez mais controlado pela esfera financeira) também desempenham ações significativas nesse processo, sobretudo no que diz respeito ao planejamento do uso do solo e na constituição de novos valores de uso, sejam eles constituídos de bens privados ou públicos.
95Caso nenhum dos três agentes envolvidos nos processos de construção do ambiente façam os investimentos necessários ao longo do tempo, o ambiente ou suas parcelas acabam por ter seus preços depreciados face a outros ambientes que foram alvos de investimentos. A consequência disso é a formação de áreas e setores obsoletos fisicamente, tecnicamente e economicamente.
96Tanto os ambientes construídos que se mantém geograficamente satisfatórios sob a lógica do mercado de terras, quanto aqueles que caminham ou possuem realidade inversa aos primeiros, imprimem aos elementos ou objetos constituintes desses ambientes um preço, sejam eles relativos aos aluguéis praticados dos antigos elementos (comercial, residencial, industrial e outros), sejam eles relativos ao preço de produção de novos ambientes.
97Por tratar-se de um capital fixo imóvel, o ambiente construído não difere da lógica pertinente de outros capitais fixos, em especial aqueles da esfera da produção industrial, ou seja, de acordo com Harvey25, quanto maior o tempo de durabilidade desse capital, maior a probabilidade em incorrer sua desvalorização por meio de alterações tecnológicas.
98No caso do ambiente construído, além do fator tecnológico das edificações, temos também a posição econômica no qual esse ambiente está localizado. Se essa posição ou localização para o conjunto dos agentes econômicos (e isso inclui os do setor imobiliário) consegue atender as demandas das remunerações do capital, ele tende sempre a cada vez mais se valorizar; caso contrário ocorre a desvalorização e, associado a essa condição, o processo da obsolescência espacial.