1Tempos indescritíveis — mas não inexplicáveis. Sustentados por quase sessenta milhões de patriotas, Bolsonaro e Bolsonarismo são a mais nova expressão do que há de mais antigo em nossa sociedade: autoritarismo e genocídio, violência e desmatamento, racismo e discriminação. Parido em ambiente dos mais torpes da vida nacional, o militarismo, Jair Messias Bolsonaro conseguiu entrar para a História exatamente como gostaria. No momento em que escrevemos (julho de 2021), o Brasil contabiliza mais de quinhentos mil mortos pela Covid-19. Mesmo em um país acostumado com tantas crises, as vísceras da sociedade brasileira não só estão expostas como vêm sendo celebradas. Envolvendo grupos midiáticos, bancos, agronegócio, partidos políticos, igrejas neopentecostais e frações do Judiciário, o projeto neocolonial e neoliberal da burguesia na periferia do capitalismo exibe suas contradições sem nenhum tipo de pudor, culpa, arrependimento. Pelo contrário. O tom da marcha é o deboche, o escárnio, a cizânia. A tragédia da ampliação da pobreza e da miséria nas grandes cidades brasileiras contrasta com o aumento dos lucros dos mais ricos. E o que dizer, em um dos momentos mais críticos da história, da imobilidade e do silêncio do empreendedor dos empreeendedores, do mais competente dos competentes, do mais apto entre os aptos, os bancos?
2Tempos indizíveis — mas não impassíveis. Resistência contra o nazi-fascismo e todas as suas modulações, esse editorial quer fazer coro às vozes dissonantes e sustentar em alto e bom som que a história brasileira não terá presente nem futuro enquanto não reconhecer, problematizar e superar sua genealogia escravocrata, autoritária e elitista. De Canudos a Marielle Franco, da ditadura militar aos milicianos cariocas, o que temos é uma nação incapaz de se edificar como sociedade à luz do respeito ao espaço público, da universalização da saúde e da educação, do direito à vida e à cidade. Ao dar as costas à coisa pública, o resultado é a escandalosa concentração da renda e da terra, a perpetuação braudeliana de poucas famílias no poder, o circuito inferior da economia, a mobilidade social sufocada, a naturalização da violência policial estatal, a emergência das milícias, a hipocrisia da guerra ao tráfico de drogas, o negacionismo revestido de misticismo pré-moderno, a discriminação contra as minorias em nome da família e das crianças, a coisificação do corpo negro feminino... Todos esses elementos, porém, não são fenômenos excepcionais, isolados ou circunstanciais; eles estão amalgamados em uma grande rede em que uns explicam os outros. Afinal, nossos melhores intérpretes — Josué de Castro, Lélia Gonzalez, Milton Santos, Francisco de Oliveira, Sueli Carneiro, Jessé de Souza, para citar apenas alguns — evidenciaram como lição de método que o estudo das contradições sociais passa longe de fórmulas dicotômicas, simplificadoras, deterministas.
3Tempos inexprimíveis — mas não indolentes. Afinal, que dizer de um país que é capaz de conceber um romance da grandeza de Torto Arado em pleno Bolsonarismo? Obra-prima das letras e, se nos permitem, do pensamento social, Torto Arado é uma expressão poética, literária e histórica cujo alcance integral só será reconhecido quando o povo brasileiro for capaz de lê-lo e debatê-lo em casa, nas escolas, em praça pública. Publicado em 2019, como esconder nosso orgulho diante do fato de que Itamar Vieira Junior, seu autor, é geógrafo e funcionário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária? Engendradas no interior do Brasil rural, as comoventes vozes femininas e descendentes de escravas representadas por Bibiana e Belonísia são uma das reações mais poderosas que poderiam ter aparecido exatamente em nossos dias e, desde a Bahia (Vieira Junior é baiano), onde começou a conquista, a posse e o genocídio em 1500, elas nos convidam a repensar o pensamento, a aprender a reaprender, a praticar outras praxis. Espaços, territórios, paisagens, lugares, fronteiras: historicamente ideologizados pelo status quo — a perseguição governamental às Ciências Humanas e Sociais é absolutamente deliberada, ressalte-se —, os conceitos geográficos têm a capacidade de revelar as desigualdades indisfarçáveis as quais indígenas, negros, quilombolas, migrantes, trabalhadores sem terra e sem teto, mulheres e minorias vêm sendo submetidas no transcorrer de cinco séculos. Nesse sentido, no processo ainda embrionário de descolonização do currículo de geografia, a potência espacial (no sentido lato do termo) de Torto Arado faz dele bibliografia primordial (Vieira Junior 2019).
4Em nome dos demais editores e de todos que contribuem com Espaço e Economia: Revista Brasileira de Geografia Econômica, é com muita emoção que encerramos esse editorial desejando prestar singela homenagem à memória da geógrafa Neli Aparecida de Mello-Théry (EACH/USP), cujo passamento ocorreu em abril de 2021 em decorrência de um câncer. Militante e intelectual da causa ambiental, professora generosa e acolhedora, trabalhadora incansável em várias frentes, ao ter como práticas a cooperação em detrimento da competição e a coletividade em oposição ao individualismo, Neli deixa como herança a urgência de construirmos uma universidade e uma sociedade democráticas, transparentes e horizontais. Apoiadora da Espaço & Economia desde as primeiras horas ao lado de seu marido Hervé Théry (a Confins por eles fundada sempre foi modelo para nós), dela tivemos a chance de publicar Mapeamento do trabalho escravo contemporâneo no Brasil: dinâmicas recentes (Girardi, Mello-Théry, Théry e Hato 2014) e A geopolítica do Covid-19 (Mello-Théry e Théry 2020), sendo aquele o artigo mais acessado de nosso periódico. Agora, mais uma vez, temos a honra e a alegria de editar Iniciativas para mitigação das ilhas de calor em cidades médias: o caso de Jacareí-São Paulo (Mello-Théry, Cavicchioli e Caldas 2021). A ela dedicamos essa edição.
5Que os valores éticos cultivados por Neli estejam sempre entre nós.