1Eis uma das missões mais nobres das ciências históricas: lembrar o que alguns insistem em esquecer. Mais que um tópico intelectual, trata-se de agenda política da maior relevância para os praticantes de uma geografia comprometida com as lutas sociais. Nesse sentido, 2020 deverá ser lembrado como o ano em que o capitalismo foi parcialmente interrompido exatamente pelo fato de que os trabalhadores estavam confinados em casa ― aqueles que a possuem, ressalte-se. Quase dois séculos depois da publicação do Manifest der Kommunistischen Partei (1848) por Karl Marx e Friedrich Engels, a tese central do materialismo histórico-dialético continua vigente: não há lucro sem exploração do trabalho. A explosão e as metamorfoses do capitalismo alcançando os quatro cantos do globo não foram capazes nem de ultrapassar tal condição, nem de distribuir dignamente a astronômica (e, portanto, imoral) soma de recursos concentrada nas mãos de poucos (1% da população mais rica concentra mais riqueza que os 99% restantes da população mundial cf. Dowbor, 2019). Face à crise pandêmica, o contorcionismo retórico elaborado pelo neoliberalismo e vergonhosamente propagado pelo mass media curvou-se ― porém sem perder a pose ― em direção à intervenção do Estado na economia. A genialidade e o dinamismo, a sagacidade e o visionarismo de banqueiros, homens de negócios, empreendedores e CEO’s emudeceram e, confinados em suas mansões, casas de campo e ilhas paradisíacas, juntamente com setores expressivos das classes médias no mundo inteiro, continuaram a ser servidos por entregadores de toda sorte os quais arriscaram (e arriscam) suas vidas e de suas famílias em nome da diuturna e multissecular luta pela sobrevivência.
2Sustentar que 2020 jamais deve ser esquecido significa grifar que mudanças precisam acontecer. Elas podem começar pela tributação e eliminação das grandes fortunas e das transações internacionais do mercado financeiro, bem como pela diminuição significativa dos impostos sobre as classes populares e parte da classe média; pela progressiva eliminação da educação e da saúde privadas em um prazo de dez anos acompanhada pari passu de maciço investimento do Estado nessas áreas (incluindo a educação integral da creche ao Ensino Médio); pelo acesso à universidade pública, gratuita e de qualidade sem nenhum tipo de concurso; pela inviolabilidade dos territórios indígenas, quilombolas e das demais comunidades tradicionais; pela adoção do buen vivir como norte das atividades econômicas rumo a sociedades pós-extrativistas sustentáveis; pelo fim da exploração de classe e distribuição equitativa da riqueza; por uma reforma política capaz de impedir a reprodução de indivíduos no poder e pela inflexibilidade do rigor à corrupção envolvendo verbas públicas; pela paridade imediata de salários independente da opção sexual; por um projeto federativo de circulação reticular envolvendo pequenas, médias e grandes cidades priorizando transporte metroviário, ferroviário e hidroviário em substituição ao modelo rodoviário-automobilístico em curso; pela incremento imediato do valores do salário mínimo e das aposentadorias dos trabalhadores.
3Em que consiste a radicalidade da lista esboçada senão no imperativo de edificar uma sociedade mais justa, igualitária e sem a fatídica exploração das classes dominantes sobre a classe trabalhadora? Será mesmo que os neoliberais (aparentemente acima do bem e do mal) têm razão quando afirmam que a adoção de medidas dessa natureza arruinaria as finanças do Estado, a iniciativa privada, a economia global? Seria a concretização de tal plano mais danosa que as atuais condições de vida dos trabalhadores?
4Aparentemente utópica, aquelas medidas continuam a integrar as batalhas políticas da esquerda brasileira, vitoriosa nas eleições presidenciais por quatro vezes seguidas desde 2003 porém apeada do poder por causa de um golpe direitista travestido de impeachment em 2016. Sublinhe-se: este movimento foi um dos responsáveis por abrir o flanco ao surgimento de uma candidatura tão sui generis quanto a que ganharia o pleito máximo dois anos mais tarde. Sem desconsiderar os problemas de seus governos, é mister registrar que o Partido dos Trabalhadores deslocou o foco das políticas públicas e da própria auto-representação nacional das elites para as camadas populares, empoderando, assim, reivindicações (materiais e simbólicas) de negros, periféricos e minorias. A mobilização de sindicatos, intelectuais, artistas e sociedade civil pelo restabelecimento da democracia e de uma nova constituição durante a década de 1980 ganhavam concretude histórica e justificavam as lutas de toda uma geração contra a ditadura militar mais violenta da América Latina.
5Ocorre que o passado (no sentido, porém, da manutenção das tradições assimétricas e hierárquicas) também é objeto de disputa para a direita. Silenciosamente enlutada com o fim dos anos de chumbo, sub-repticiamente militares associam-se ao jogo do bicho e ao tráfico de drogas, organizam empresas de segurança privada de baixa qualidade e, reclamando das condições laborais e salariais, obtém cargos parlamentares. A escalada da violência nas grandes cidades vai, entretanto, amplificando as vozes que clamam exatamente por mais violência como resolução dos “problemas”. Sem conseguir alcançar que a fonte deles é a questão da desigualdade sócio-econômica, emerge das sombras uma pletora de discursos ideológicos cujas origens localizam-se no escravismo como ethos da sociedade brasileira e que, mutatis mutandis, foi reconfigurado no século vinte pelo autoritarismo dos regimes de Vargas e dos militares.
6Tais ideologias convergiram em direção a um nome e, representando o Partido Militar, as elites econômicas, as mídias e as inúmeras formas de organizações ilegais e alegais que se disseminaram pelo país, conformam o mais novo aspecto do modus operandi nacional. Jair Messias Bolsonaro e o Bolsonarismo são a reação histórica mais conservadora do Brasil desde o término do período militar. Lembrar o que alguns insistem em esquecer: o assassinato indescritível de Marielle Franco ocorreu no mesmo ano da eleição presidencial de Jair Bolsonaro. Nos rastros da tradição intelectual consagrada por Francisco de Oliveira, não temos dúvida alguma em assinalar que ambos os episódios são as duas faces da mesma moeda. Acrescente-se o neoliberalismo como fundamento econômico e o resultado é a ameaça às conquistas obtidas durante os governos progressistas do Partido dos Trabalhadores.
7Em agradecimento aos mais de trezentos mil visitantes nacionais e internacionais que nos honraram com seu interesse em 2020, e em reconhecimento a todos que confiaram em nós para a divulgação de suas pesquisas, nesses curtos, porém intensos, oito anos de história, a Espaço e Economia. Revista Brasileira de Geografia Econômica reitera seu compromisso com uma geografia inconformada com as desigualdades no Brasil e no mundo. Levantando a bandeira da educação, da ciência e dos movimentos sociais sob uma perspectiva inclusiva, esperamos que nosso modesto periódico continue a agregar textos críticos, originais e reflexivos no campo da geografia econômica em particular e das Humanidades em geral.
8Em nome de todos os que perderam familiares e amigos para a Covid-19, faremos de tudo para que 2020 seja marcado como o ano do qual nunca poderemos esquecer.