O tiro sai pelo ânus
da ONU.
O mundo cheira mal.
Capetão
manda em general.
O esgoto a céu fechado
para reformas
é Universal.
(José Cavalcanti)
1“Mascaramento insincero” é uma expressão presente na obra de Vladimir Safatle, a saber: Cinismo e falência da crítica (2008). Tal expressão – usada aqui livremente – servirá de bússola para a compreensão do discurso do presidente Jair Bolsonaro para a Assembleia da ONU, em 22 de setembro de 2020. A instituição comemorava seu 75º aniversário (El País, 22 set. 2020). O discurso foi gravado em razão das limitações estabelecidas pela Covid-19. Um pronunciamento equiparável a “de um vereador em caçamba de caminhão”, como registrou Elio Gaspari (Folha de São Paulo, 22 set. 2020b). Alternativamente, um conjunto de palavras que constituiu uma Sinfonia do Horror, para lembrar Nosferatu (1922), clássica película do expressionismo alemão, de Friedrich Wilhelm Murnau. Nela, a figura do vampiro apareceu pela primeira vez na tela grande. Nós achávamos que Michel Temer era a versão tropical do Drácula. Estávamos errados. O príncipe dos mortos-vivos é Jair Bolsonaro, representação maior da escória que se transformou boa parte da política nacional.
2 Temos todos máscaras. Estas são usadas de acordo com as normatizações que o tecido social nos impõe. No dia 22, Bolsonaro pôs a sua: a mascarilha do cinismo. Não recorreu ao mascaramento da ironia. A narrativa irônica pressupõe dizer algo, cujo intuito é fazer provocativamente a audiência entender o oposto. O presidente do Brasil performou noutra direção. Apostou na desfaçatez diante do público internacional. Graças a Lacan, sabemos das limitações da linguagem, este “Grande Outro”, caracterizado pela incompletude porque incapaz de retratar plenamente as subjetividades e o mundo exterior (1985). Não é isso que está em jogo. Não estou preocupado aqui com as limitações semânticas com as quais os homens e mulheres têm que lidar na vida social. Sublinho o uso do despudor como mecanismo de reprodução do poder.
3O líder brasileiro acusou a imprensa de ter politizado o vírus e de ter difundido o pânico na população (Folha de São Paulo, 22 set. 2020a). Sabe-se que isso não ocorreu. Os jornalistas cumpriram o papel nevrálgico de informar a sociedade qual o comportamento a ser adotado – seguindo os protocolos internacionais – diante da pandemia. Aliás, coube aos profissionais da imprensa a denúncia de práticas corruptas que se exacerbaram em face ao avanço do coronavírus – superfaturamento dos respiradores, desvio de dinheiro etc.. E o mais importante: se não fosse o consórcio organizado pelos meios de comunicação, não teríamos clareza acerca do número de mortos e infectados - enquanto escrevo estas linhas já são quase 172 mil óbitos (Folha de São Paulo, 27 nov. 2020). Na verdade, o tom inquisitorial em relação à imprensa tem a ver com a própria personalidade autoritária de Jair Bolsonaro, como nos ensinou Theodor Adorno (2019). E as mentiras do Zorro diabólico não pararam por aí.
4 Vamos a três delas (Folha de São Paulo, 22 set. 2020a):
5Bolsonaro disse que pagou US$ 1000 para 65 milhões de pessoas (o governo pagou cinco parcelas de R$ 600, portanto, um total de R$ 3000; muito menos do que os US$ 1000 mencionados; é verdade que se comprometeu a pagar mais quatro parcelas de R$ 300, o que ampliará o valor final para R$ 4200; ainda assim inferior aos US$ 1000 – aproximadamente R$ 5480);
6afirmou também que houve um aumento do insumo da produção de hidroxicloroquina em 500% (Jair Bolsonaro não disse, entretanto, que prescreveu o medicamento mesmo não havendo comprovação científica de sua eficácia contra a Covid-19);
7rompendo os diques de moralidade que ainda restavam, asseverou que indígenas e caboclos foram os responsáveis pelas queimadas em “nossa floresta”. Estes agiriam assim para que pudessem assentar as bases para a produção do roçado (foi amplamente noticiado, entretanto, que as chamas que destruíram o Pantanal, parte da Amazônia, foram impulsionadas por fazendeiros. De acordo com levantamento da Polícia Federal, quatro deles destruíram 33 mil hectares do Pantanal).
8Os pontos destacados até aqui já seriam escandalosos. Porém, o arsenal de mentiras apresentado pelo chefe da nação foi maior (Folha de São Paulo, 22 set. 2020a). Bolsonaro culpabilizou – sem provas – a Venezuela pelo derramamento de óleo no mar. Defendeu a liberdade religiosa, quando seu vocabulário notoriamente privilegia o cristianismo de matriz neopentecostal. Além disso, o presidente ignora as outras vertentes religiosas, sobretudo as manifestações de transcendência afro e indígena.
9Seu discurso foi antecedido pela fala do general Augusto Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. O general teve a pachorra de dizer que “nações, entidades e personalidades estrangeiras”, às escondidas, teriam por objetivo “derrubar o governo Bolsonaro” (Folha de São Paulo, 22 set. 2020b). Afora a simpatia pela teoria conspiratória da história, o velho general – saudosista da ditadura empresarial-militar - também goza aparentemente com o assassinato de pretos e pretas, incluindo-se crianças. Segundo o filósofo Paulo Ghiraldelli, o militar esteve a frente de uma operação no Haiti, em que foram disparados, na comunidade de Cité Soleil, aproximadamente vinte mil projéteis em 7 horas. O resultado foi uma matança. A crer na intervenção do filósofo, e se o Brasil não fosse a Terra do Faz de Conta, Heleno devia estar no xadrez.
10 Em seu livro, Safatle diz que, certa feita, o imperador Juliano se viu diante de um paroxismo (2008): era um ateu convicto, mas, com a condição imperial, era igualmente chefe da religião pagã de Estado. Independente da contradição, era importante para o rei preservar o paganismo em face à “sedição cristã”. Juliano teria dito: ‘não podemos tudo dizer; e mesmo sobre aquilo que podemos dizer, faz-se necessário esconder algumas coisas da grande massa’ (SAFATLE, 2008).
11 Bolsonaro, com olhos postos nas eleições de 2022, não se contentou em trabalhar no campo das omissões. É pouco. É preciso produzir inverdades, falsificações, contranarrativas. A estratégia não é nova. Contudo, com a falta de escrúpulos que lhe é peculiar, o presidente tornou esse estratagema discursivo a característica principal de sua maneira de fazer política. Já seria vergonhoso se Jair Bolsonaro proferisse esse discurso no interior do país, do alto da caçamba de um caminhão. Tê-lo feito irresponsavelmente perante a Assembleia da ONU – comprovando sua ridícula tirania - foi ainda mais grave. Apequenou o Brasil no concerto das nações. A história não costuma poupar políticos desta estirpe. E espero mesmo que Clio não lhe perdoe.
12Quando ficou claro que Donald Trump seria derrotado no pleito presidencial de 2020, o staff do republicano recorreu a sórdidas estratégias políticas. O chefe da Casa Branca insistiu na narrativa de fraude eleitoral. Donald Trump Jr., filho do presidente, invocou o conceito de “guerra total”. O jovem escreveu no twitter: “A melhor coisa para o futuro da América é Donald Trump ir para a guerra total nesta eleição para expor toda a fraude, enganação, eleitores mortos... É hora de limpar essa bagunça e parar de parecer uma república de bananas” (Folha de São Paulo, 6 nov. 2020). O rebento referia-se à expressão propalada por Joseph Goebbles, ministro da propaganda de Hitler. A categoria prestava-se a mobilizar a sociedade alemã, dos anos de 1940, em pelo menos três direções: i) destruição das cidades inimigas, ignorando-se a divisão entre civis e militares; ii) eliminação física e simbólica dos judeus; iii) valorização do autossacrifício. Trump Jr. ao usar a noção de Totaler Krieg dava uma perigosa cartada, cujo intuito era acionar a extrema-direita dos Estados Unidos. Remover a coleira dos cães raivosos do neofascismo para que produzissem novos cadáveres e gerassem um impasse político.
13 O discurso trumpista surtiu pouco efeito. Os estadunidenses sérios não engoliram a narrativa da fraude. Onde estavam as provas? O presidente das madeixas alaranjadas transformou-se em um capitão a afundar melancolicamente em seu navio cargueiro (os integrantes do Partido Republicano que ainda prezavam por sua dignidade, clamaram para que Trump reconhecesse a vitória de Joe Biden e Kamala Harris). E o governo Bolsonaro? Ao invés de descolar sua imagem de Donald Trump e iniciar a costura (já atrasada) de uma aliança com os Democratas, Jair Messias Bolsonaro apostou na paralisia política. Enquanto líderes mundiais logo reconheceram a vitória de Biden, o chefe de Estado brasileiro optou pelo silêncio. As poucas vezes que abriu a boca durante a corrida à Casa Branca, foi para lançar bravatas. A mais célebre e risível delas foi a sugestão de que o Brasil tinha “pólvora” suficiente para defender os interesses da Amazônia. Era uma ameaça velada a Biden que, no primeiro debate presidencial com Trump, disse que estava disposto a levar a cabo sanções comerciais contra o Brasil, caso o governo Bolsonaro seguisse a tratar com desleixo as florestas (lembremos que, naquela altura, as pessoas no exterior assistiam chocadas as cenas de onças pintadas, macacos-prego e tuiuiús, serem tragados por incêndios no Pantanal).
14 O jornalista Ruy Castro deu-se ao trabalho de comparar, com seu indisfarçável sarcasmo, o orçamento militar brasileiro com o estadunidense. Sua pena:
O orçamento militar americano é de 750 bilhões de dólares; o do Brasil, de 27 bilhões. Eles contam com 1,4 milhões de militares no ativo; nós, com 334 mil (a maioria, sofrendo de pés chatos). Em matéria de tanques, eles dispõem de 5884; nós, de 469. Com os blindados, a mesma coisa: 38.822 para eles, 1707 para nós. Lançadores de foguetes: 1197 contra 180. Aviões de ataque: 2830 contra 125 (Diário de Notícias, 21 nov. 2020).
15Castro sublinhou ainda os 20 porta-aviões, 91 destroyers e as 6800 armas nucleares norte-americanas (Diário de Notícias, 21 nov. 2020). E o Brasil? Quantos porta-aviões? Destroyers? Armamentos nucleares? Zero. Vejam a gravidade. A política externa brasileira praticamente abdicou da construção de acordos multilaterais e de uma boa relação com a institucionalidade internacional, em favor da subserviência aos Estados Unidos. Embora mostre, de vez em quando, interesse na ampliação dos negócios com outros países e instituições, na prática, a governança bolsonariana adota um comportamento arrogante e autoritário. A subordinação nacional supera muito o governo Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). Este experienciava um horizonte incerto, visto que o mundo havia saído de uma guerra absolutamente brutal e, ato contínuo, ingressara na geopolítica bipolar (EUA x URSS). Por ocasião da gravíssima crise sanitária, Jair Bolsonaro também navega por mares políticos bravios, mas porta-se como um bêbado, sem bússola e sem fé.
16 O chefe da nação já devia ter demitido Ernesto Araújo (ministro das relações exteriores) e Ricardo Salles (ministro do meio ambiente), de sorte a sinalizar para os americanos uma reorientação da política externa. Mais ainda: o Brasil deveria parar de votar em comissões da ONU ao lado de países que ignoram os direitos humanos – em especial, os direitos sexuais das mulheres – como Arábia Saudita e Paquistão. Além disso, o Palácio do Planalto deveria buscar novos parceiros, de modo a impulsionar a indústria, e parar de atacar seus vizinhos – o que enfraquece sobremaneira o Mercosul. Para tal mudança, Bolsonaro precisaria ter sensibilidade e grandeza, dois ingredientes que, para nosso infortúnio, não fazem parte de seu perfil político.
17 Em 1953, Joseph Stalin faleceu após agonizar mais de dez horas em razão de um acidente vascular cerebral (MONTEFIORE, 2006). Sua morte abriu espaço para que Nikita Krushchev assumisse o poder na União Soviética, na condição de secretário-geral (gensek). Coube a Krushchev denunciar os crimes de Stalin, em 1956, no XX Congresso do Partido Comunista. As atrocidades cometidas pelo “timoneiro” durante seus anos a frente do Kremlin vieram a lume. A perseguição e morte aos oposicionistas, os Julgamentos de Moscou, o culto à personalidade, etc.. Mao Zedong, líder chinês desde a vitória da Revolução, jamais ignorou os excessos de Stalin. Fosse como fosse, julgou que o novo gensek superdimensionou as atitudes criminosas do bigodudo da Geórgia. Afirmou para Nikita: ‘Eu sempre disse... que criticar os erros de Stalin [era] justificado. Só discordamos quanto à falta de limites definidos para a crítica. Acreditamos que, dos dez dedos de Stalin, três estavam podres’ (KISSINGER, 2011).
18 Por conta da insatisfação com a Coexistência Pacífica apregoada por Krushchev, em 1957, Mao proferiu um discurso perturbador:
Não devemos ter medo de bombas e mísseis atômicos. Não importa o tipo de guerra que possa vir – convencional ou termonuclear -, vamos vencer. Quanto à China, se os imperialistas deflagrarem a guerra contra nós, podemos perder mais de 300 milhões. E daí? Guerra é guerra. Os anos vão passar, e vamos trabalhar para produzir mais bebês do que nunca (2011).
19O pronunciamento, para além das questões morais, descortina a alma do povo chinês. Uma disposição invejável para a luta e para a sobrevida no caos social. Os chineses enfrentaram guerras, revoluções e massacres (SHENG, 2012). E souberam se reinventar. O período que vai da Guerra do Ópio (1839) até a Revolução de Mao (1949) é chamado pela historiografia chinesa de “O século das humilhações”. Noutras palavras, um ciclo de explorações e mortes orquestrado pelos imperialistas europeus e japoneses na China que jamais deve ser esquecido. E não apenas isso: uma experiência que deve ser assimilada em termos de irrepetibilidade. Com isso quero dizer que os chineses tem clareza de que aqueles anos em que o império celeste esteve de joelhos diante das nações estrangeiras nunca retornarão.
20 Por que essas poucas reflexões sobre a China? Para frisar a irresponsabilidade de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) em relação ao principal parceiro comercial do Brasil - o império celeste responde por 33% das exportações do país (IBAÑEZ, 2020; Folha de São Paulo, 26 nov. 2020). Eduardo, que provavelmente jamais leu um livro sério sobre a China, mais uma vez abalou as relações sino-brasileiras. Na condição de presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, asseverou – via twitter - que o Brasil daria apoio ao programa Clean Network (Folha de São Paulo, 26 nov. 2020). Os princípios do Clean Network implicam na proteção às redes 5G. Eduardo Bolsonaro, que entende de diplomacia internacional tanto quanto seu progenitor compreende as ciências econômicas, lançou a seguinte pérola: a filiação ao programa norte-americano seria uma forma de conter a espionagem chinesa e excluir os interesses da Huawei (empresa da China igualmente interessada em obter espaço no mercado para a tecnologia 5G). Como se não bastasse o ato rocambolesco do deputado, o terraplanista e adulador Ernesto Araújo saiu em defesa do pesselista em face à reação dos chineses. Estes usaram as mídias sociais e os canais formais para rebater as calúnias do deputado neofascista.
21 O governo brasileiro hipocritamente disse que Pequim não deveria usar as mídias sociais para tratar de assuntos diplomáticos. Ora, os próceres da gang bolsonariana no poder agem como? Não foram as plataformas digitais que levaram um parvo como Jair Messias Bolsonaro ao Palácio do Planalto, em 2018? Outras indagações: qual a garantia de que os americanos não espionarão personalidades políticas e instituições brasileiras com o 5G? Quem espionou a Petrobras? Quem espionou a presidenta Dilma Rousseff? Não foi o governo do sorridente Barak Obama? Mais ainda: se a China, diante das agressões discursivas dos ‘Hitlerzinhos” tupiniquins, invocar o espírito de resiliência que marca sua história, e reduzir pela metade a compra de comodities nacionais, quem vai pagar a conta?
22Esse é o preço do voto com o fígado, irrefletido, que abriu caminho para que Brasília fosse sitiada por aventureiros e escroques de colarinho branco. Eles consomem lagosta e vinhos das melhores safras francesas. Gargalham e disseminam seu hálito fétido. Não choram. Neofascistas e ultraliberais não derramam lágrimas. Fazem conta. Enquanto isso, os cadáveres se avolumam nos dois Brasis: no urbano e no profundo. São corpos de seres esquecidos. Números vis tragados pela fome, violência policial e pela pandemia. Aqui é inevitável lembrar da célebre frase do capitão Willard – imortalizado por Martin Sheen – em Apocalipse Now (Francis Ford Coppola/1979), o mais importante filme sobre a Guerra do Vietnã: “quem está no comando?”.