- 1 Cf. Comitê Científico do Consórcio Nordeste. Disponível em: <https://www.comitecientifico-ne.com.br (...)
- 2 Trata-se de uma declaração formal da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre um evento extraordiná (...)
- 3 Termo usado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para descrever situações em que uma doença infe (...)
1A Covid-19, doença causada pelo coronavírus SRA-CoV-2, teve o primeiro caso identificado na China em 12 novembro de 2019, tendo se disseminado pelo mundo em rapidamente, acometendo cerca de 2,4 milhões de pessoas e causando pelo menos 164 mil mortes1 em pouco mais de 5 meses, considerando-se apenas aqueles confirmados por testes laboratoriais. Trata-se de uma doença altamente contagiosa, o que justificou, em 30 de janeiro de 2020, sua definição como uma emergência global2, atingindo também o status de pandemia3 em 11 de março de 2020.
2Um dos principais desafios governamentais, neste contexto, é evitar o colapso dos sistemas de saúde, face ao rápido crescimento de pacientes em estado grave que precisam ser internados em unidades de tratamento intensivo (UTIs) com respiradores, já que nos casos mais críticos os pacientes desenvolvem síndrome respiratória aguda.
3Nesse panorama, é de extrema relevância analisarmos como o Brasil vem enfrentando a pandemia, tarefa que exige esforços científicos multidisciplinares, nos quais a Geografia pode contribuir com perspectivas multidimensionais e multiescalares. Dessa maneira, a partir de análise documental e bibliográfica, buscaremos contribuir no entendimento desta crise no Brasil, abordando a atuação do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (Consórcio Nordeste) e questões concernentes ao federalismo brasileiro, destacando embates políticos recentes entre os governos estaduais e o Governo Federal, que apesar de antecederem a pandemia da Covid-19, foram acirrados nesse contexto.
- 4 O Fórum de Governadores do Nordeste realizou 8 reuniões: Sergipe (2005), Alagoas (2006), Rio Grande (...)
4A aproximação entre governadores do Nordeste (NE) e a elaboração de políticas públicas comuns vêm sendo fortalecida nas duas últimas décadas, especialmente no âmbito do Fórum de Governadores do Nordeste, que teve seu primeiro encontro em 20054. O objetivo inicial deste Fórum era coordenar a atuação dos estados em pautas relativas à Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), instituição recriada na Administração Pública Federal em 2007. Em certo sentido, o Fórum recebeu amparo do governo federal quando este estava sob a gestão do Partidos dos Trabalhadores (PT), favorecendo parcerias institucionais e políticas entre os governos da região que o tornaram um grupo de interlocução eficiente com o governo federal.
5Ainda que, oficialmente, o Fórum de Governadores do Nordeste tenha se dedicado às questões de ordem administrativa e institucional, o ano de 2015 trouxe uma novidade, quando passa a atuar como mecanismo de articulação e posicionamento político. O marco inicial é a resposta do Fórum ao início do processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, admitido pela Câmara dos Deputados em 02 de dezembro de 2015. Logo no dia seguinte, o Fórum lançou uma carta de repúdio ao processo, acirrando, em alguma medida, o posicionamento político da região frente ao cenário, desenhado por setores políticos e econômicos influentes no país.
- 5 Jair Bolsonaro não obteve votação superior a 41% em nenhum Estado da região, sendo que quatro dos n (...)
6A partir da eleição presidencial de 2018, o acirramento entre a região NE e o Governo Federal foi ampliado em virtude da possibilidade de represálias por parte do presidente recém-eleito, Jair Bolsonaro, eleito pelo Partido Social Liberal (PSL), mas no momento sem nenhuma filiação partidária, em decorrência do baixo apoio político obtido na região durante o pleito5. A eleição do presidente Jair Bolsonaro foi marcada por um discurso fortemente anti-petista, ou seja, de oposição ao Partido dos Trabalhadores (PT), que havia governado o país entre 2003 e 2014 através dos presidentes Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Jair Bolsonaro também foi acusado diversas vezes de realizar comentários e piadas de caráter preconceituoso e pejorativo contra nordestinos e grupos sociais marginalizados, o que acirrou os embates entre movimentos sociais, governos estaduais do Nordeste e o Governo Federal.
7Esse contexto favoreceu uma intensa articulação entre os governadores dos estados do NE, não apenas no escopo institucional, mas sobretudo no âmbito político. Note-se que o Fórum de Governadores do Nordeste tornou público alguns de seus posicionamentos contrários ao Governo Federal. Apenas para citar dois exemplos: a Carta do Encontro dos Governadores do Nordeste, publicada em 06 de julho de 2019, rejeita parte da proposta de reforma da previdência do Governo Federal e a Carta do Encontro dos Governadores do Nordeste, publicada em 19 de julho de 2019, solicita explicações oficiais sobre declarações do presidente da República a respeito dos nordestinos, consideradas preconceituosas e pejorativas pelo Fórum.
- 6 A Lei Federal nº 11.107/2005 regulamentou a criação de consórcios entre entes federados como um mec (...)
8Esse contexto teria influenciado a formação do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (Consórcio Nordeste), que teve seu protocolo de intenções assinado em 14 de março de 2019, ratificado em julho pelos 9 estados que compõe a região Nordeste. A organização foi definida como um “instrumento político e jurídico para o fortalecimento” do Nordeste visando “melhorar a prestação de serviços públicos aos cidadãos e cidadãs” e prover “proteção e promoção dos direitos do povo do Nordeste” (FÓRUM DO NORDESTE, [14 mar.] 2019)6.
9O Consórcio elegeu como áreas prioritárias para atuação a saúde, a segurança pública e a educação, além da adoção de compras coletivas como estratégia de aprimoramento da gestão pública, incluindo bens importados do exterior, o incentivo a cooperação interestadual, principalmente no que se refere à ajuda de um estado para outro em casos de emergência, dentre outros pontos. Os aspectos supracitados serão cruciais para a atuação do Consórcio Nordeste nas ações de combate à pandemia da Covid-19, sobretudo em virtude das grandes disparidades socioeconômicas e administrativas entre os estados da região, o que interfere na aptidão de cada governo em dar respostas a crise geral desencadeada pela pandemia em seus territórios.
10Ao analisar o Consórcio Nordeste, Clementino (2019) aponta que esta ferramenta atua, não apenas em uma dimensão administrativa, mas também possui um sentido político estratégico, ainda que a modalidade implique limites políticos:
A iniciativa dos governadores nordestinos numa associação em consórcio revela, portanto, as dificuldades em estabelecer um projeto para a região. Acredito que a aposta no êxito do Consórcio Nordeste está ancorada: i) na existência de uma identidade regional solidamente construída; ii) em uma crise econômica e política no país, forçando saídas conjuntas de gestão governamental pelas lideranças políticas regionais, hoje potencializadas por interesses de bloco político-partidário em oposição ao governo central; iii) em um discurso técnico presente em instituições de fomento ao desenvolvimento como a Sudene e o Banco do Nordeste; iv) em um fundo constitucional com a finalidade específica de promoção do desenvolvimento; e v) em lideranças políticas, nesse momento, bem articuladas em torno de arranjos institucionais de gestão pública, como o Fórum dos Governadores e, agora, o Consórcio Nordeste (Ibid., p. 170).
- 7 Levando em consideração que a origem do Consórcio Nordeste, em 2019, está ligada a atuação do Fórum (...)
11É importante destacar que divergências do conjunto dos governos estaduais para com o Governo Federal foram explicitadas na ocasião de criação do Consórcio Nordeste, dentre as quais destacamos: (i) críticas às desvinculações de receitas federais que impactam os setores de educação e de saúde; (ii) discordâncias acerca da proposta de Reforma da Previdência; (iii) contestações no tocante à flexibilização do Estatuto do Desarmamento (FÓRUM DO NORDESTE, [19 jul.] 2019)7.
12A Carta de Teresina, publicada em 21 de agosto de 2019, cumpre papel importante, nela os governadores apontaram novas diretrizes para a cooperação regional e se declaram “preocupados” com a privatização de empresas públicas federais face à possíveis consequências negativas para a soberania nacional e para a integração regional, marcando seu posicionamento em relação a uma das principais promessas de campanha de Jair Bolsonaro (CONSÓRCIO NORDESTE, [21 ago.] 2019).
13Notemos que a defesa do setor público, em especial dos serviços de saúde e do sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação – que compreende universidades e institutos de pesquisa públicos –, será uma das bandeiras políticas levantadas por diversos atores sociais em meio a pandemia da Covid-19 e que também encontrará respaldo no Consórcio Nordeste, até porque os cortes em bolsas de pesquisa e benefícios sociais já vinham sendo alvo de duras críticas pelos governadores do Nordeste por conta dos significativos impactos dessas medidas na região.
14No âmbito da assistência social, a emergência do Consórcio Nordeste estimulou a iniciativa de criação do Fórum de Secretários Estaduais de Assistência Social do Nordeste, que teve sua primeira reunião em 10 de setembro de 2019, definindo como seu principal objetivo a construção de um Pacto Social pelo Nordeste. O trabalho de diagnóstico deste Fórum embasou um importante embate do Consórcio com o Governo Federal, quando, em janeiro de 2020, este foi responsável por um corte de mais de 1 milhão de novas concessões do Programa Bolsa Família, sendo destes mais de 400 mil na região Nordeste, que teve apenas 3% dos pedidos contemplados, enquanto as regiões Sul e Sudeste tiveram 75% das novas concessões (ENCONTRO DOS SECRETÁRIOS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DA REGIÃO NORDESTE, [07 fev.] 2020). Com base nos dados apresentados pelo Consórcio e levantados pela imprensa, o Ministério Público Federal exigiu explicações do Ministério da Cidadania sobre os critérios utilizados para o corte, por meio de ofício no dia 06 de março de 2020.
15Por fim, destacamos a realização, no dia 11 de fevereiro de 2020, de um encontro de planejamento anual do Consórcio Nordeste e de uma sessão de apresentação da instituição a parlamentares brasileiros e embaixadores estrangeiros. Cabe destacar que um dos principais objetivos do Consórcio é estabelecer uma agenda internacional buscando parcerias institucionais e financiamentos de projetos com outros países, o que se tornou essencial na atuação do Consórcio no combate ao Covid-19, sobretudo a importação de equipamentos hospitalares.
16Ainda que o enfrentamento à pandemia não estivesse nas previsões do Consórcio, avaliamos que a gravidade da crise imposta pela pandemia da Covid-10, somada à notável displicência do Governo Federal na articulação dos demais entes federados neste contexto – exceto do Ministério da Saúde –, incitou a instituição a elaborar e implementar ações de combate à doença, expressas em diversas medidas de cooperação, analisadas a seguir.
- 8 É importante fazer uma observação sobre os dados apresentados na Figura 1 e 2: visto que cada país (...)
17 A primeira infecção conhecida da Covid-19, a doença causada pelo coronavírus SRA-CoV-2, teria ocorrido em dezembro de 2019 na província de Hubei na China. No Brasil, o primeiro caso confirmado ocorreu em 26 de fevereiro de 2020 no estado de São Paulo. É inegável que a rápida proliferação da doença tem causado perdas irreparáveis e grandes desafios ao redor do mundo. As figuras a seguir apresentam dados recentes sobre a pandemia no mundo e no Brasil8.
Figura 1 – COVID-19 no mundo
Fonte: Comitê Científico do Consórcio Nordeste. Disponível em: <https://www.comitecientifico-ne.com.br/c4ne>. Última atualização dos dados: 19/04/2020. * Os valores totais abarcam a todos os países do mundo que registraram casos da doença.
Figura 2 - COVID-19 no Nordeste brasileiro
* Os valores totais indicados na tabela abarcam todos estados brasileiros que registraram casos da doença
- 9 A recente demissão, em 16 de abril de 2020, do ministro Henrique Mandetta e sua substituição por Ne (...)
18Um dos principais impasses políticos sobre o combate à proliferação da doença no Brasil, que tem se estendido até o presente momento, é qual estratégia deve ser adotada. No Governo Federal há divergências: o Planalto, ou seja, a Presidência da República, defende o distanciamento social vertical, onde apenas os grupos de risco – idosos e pessoas com doenças pré-existenes, sobretudo hipertensos, diabéticos e doenças respiratórias – deveriam se manter isolados; até o presente momento, o Ministério da Saúde9, amparado em dados técnicos e nas recomendações da OMS, tem defendido o isolamento horizontal, onde todos os grupos sociais devem seguir regras rígidas de distanciamento social, com flexibilidade apenas para os que trabalham em serviços essenciais. A segunda estratégia parece ter se tornado hegemônica no Brasil, mormente em virtude de decisões adotadas por diversos governadores e prefeitos.
19Conforme consta na Nota Técnica 1. As Políticas para Enfrentamento do COVID-19 nos Estados Brasileiros com Distanciamento Social (BARBERIA et al, 2020), os estados reagiram de modo diverso em intensidade e rapidez em relação à pandemia no país. A figura 3 exibe o Índice de Rigidez do Distanciamento Social (RDS) dos estados brasileiros na segunda quinzena do mês de março de 2020.
Figura 3 – Índice de Rigidez do Distanciamento Social (RDS) – Brasil, março de 2020
Fonte: BARBERIA et al (2020). Organização: Rossi & Silva (2020).
20O Índice de Rigidez do Distanciamento Social (RDS) abriga quatro componentes: (i) suspensão das aulas presenciais em escolas e universidades; (ii) suspensão das atividades não-essenciais de comércio e serviços; (iii) suspensão da atividade industrial não-essencial; e (iv) proibição de aglomerações e grandes eventos.
21O RDS incorpora, além disso, a abrangência das medidas em vigor, isto é, se valem para todo o território estadual, o escore fica mais alto, o que não ocorre caso restrinjam-se a municípios ou regiões específicas do estado.
22Conforme exposto, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás foram os primeiros a tomarem medidas de promoção do distanciamento social, no dia 13 de março. Na semana seguinte, no dia 20 de março, todos os estados já haviam implementado alguma medida de restrição de atividades com vistas a aumentar o distanciamento social.
23De acordo com a Nota Técnica 1, supracitada, alguns estados, como a Bahia, reagiram adotando uma abrangência de medidas em um só decreto. Outros foram além das medidas adotadas pela média dos estados e decretaram também o fechamento de indústrias, como é o caso de Alagoas, Ceará e Goiás, ainda que praticamente todos os estados tenham adotado, para o setor industrial, medidas sanitárias e recomendações de alternância de turnos. Importante ressaltar que os estados que atingem um RDS superior ao de São Paulo foram aqueles que decretaram o fechamento de indústrias não-essenciais, adverte o documento (BARBERIA et al, 2020).
Figura 4 – O Fechamento de Escolas, Comércio, Indústrias, e Aglomerações nos estados brasileiros
Fonte: BARBERIA et al (2020).
24Como demonstram os dados apresentados por Barberia et al (2020), os estados da região Nordeste, em sua ampla maioria, apresentaram Índice de Rigidez do Distanciamento Social (RDS) elevado no dia 27 de março de 2020.
25A esse respeito, cabe ressaltar a Carta dos Governadores do Nordeste divulgada no dia 25 de março de 2020, onde o Consórcio Nordeste reconhece a gravidade do problema com uma defesa irrestrita das recomendações de base científica a favor da adoção de rígidas medidas preventivas, sobretudo o isolamento dos infectados e o distanciamento social para o restante da população, advogadas também pela OMS e pelo Ministério da Saúde. Os três últimos pontos da referida Carta manifestam também um afrontamento direto às declarações do Presidente da República Jair Bolsonaro de menosprezo à gravidade da Covid-19 e de ataques a estados e municípios que adotaram estratégias mais rígidas de distanciamento social:
5 – Entendemos que cabe ao Governo Federal ação urgente voltada aos trabalhadores informais e autônomos. Agressões e brigas não salvarão o País. O Brasil precisa de responsabilidade e serenidade para encontrar soluções equilibradas;
6 – Ao mesmo tempo, solicitamos a necessidade urgente de uma coordenação e cooperação nacional para proteger empregos e a sobrevivência dos mais pobres;
7 - Ficamos frustrados com o posicionamento agressivo da Presidência da República, que deveria exercer o seu papel de liderança e coalizão em nome do Brasil (CONSÓRCIO NORDESTE, [25 mar.] 2020).
26Um dos aspectos apresentados nesta carta, que ganhou relevância na imprensa e nos discursos individuais dos governadores nordestinos, é o apelo à criação de uma coordenação nacional de enfrentamento à Covid-19, revelando um dos principais problemas relacionados a esta crise no Brasil: a falta protagonismo da Presidência da República na articulação dos entes federados.
27Em carta subsequente, publicada no dia 27 de março de 2020, o Consórcio Nordeste repudia a posição do Presidente da República Jair Bolsonaro contrária ao distanciamento social, afirmando que ela “representa um verdadeiro atentado à vida”. A carta prossegue, indicando que:
Na ausência de efetiva coordenação nacional, que deveria ser assumida pelo Governo Federal, em articulação com os demais entes federativos, buscaremos avançar na integração regional e com as demais regiões, mobilizados pelo objetivo de salvar vidas e amenizar os impactos negativos sobre a economia dos estados (CONSÓRCIO NORDESTE, [27 mar.] 2020).
- 10 Em 24 de março de 2020, o Fórum de Secretários Estaduais de Saúde do Nordeste criticou o pronunciam (...)
- 11 Auxílio financeiro instituído pela Lei Federal nº 13.982/2020 para atender pessoas em vulnerabilida (...)
28Essas duas últimas cartas publicadas pelo Consórcio Nordeste são marcos da organização regional para contenção da proliferação da Covid-19 que tem favorecido, direta ou indiretamente, a manutenção de fóruns entre as Secretarias Estaduais de Saúde e de Assistência Social dos estados envolvidos. No âmbito da saúde, os servidores dos estados têm fornecido informações para interlocutores regionais para construir ações conjuntas, especialmente no tocante à infraestrutura e logística para o enfrentamento à contaminação, chegando até a enviar uma carta ao Governo Federal10. Em relação aos dirigentes do Sistema Único de Assistência Social (Suas) no Nordeste, foi demandado pelo Consórcio a construção de um Plano de Contingência regional, a ser aprovado pelos Secretários Estaduais de Desenvolvimento Social em 22 de abril de 2020, visando orquestrar as ações dos Estados e mapear problemas relativos ao auxílio emergencial na pandemia11.
29Em termos de relações internacionais, no dia 18 de março de 2020, o Consórcio Nordeste enviou um ofício ao embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, em meio a uma crise diplomática criada pelas declarações do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do Presidente da República, que culpabilizava a China pela pandemia do novo coronavírus. Em tal ofício, assinado pelo governador da Bahia, Rui Costa (PT), o Consórcio Nordeste se contrapõe às declarações do parlamentar e solicita auxílio mediante a importação de bens para o combate da pandemia na região:
O Consórcio Nordeste, formado por nove Estados e que representa cerca de 57 milhões de habitantes do Brasil, e o Governo do Estado da Bahia, consultam o Governo da República Popular da China, do qual saiu vitorioso por meio de uma guerra do povo contra o vírus, para a possibilidade de seu apoio e sua colaboração por meio de envio de materiais médicos, de insumos e de equipamentos […]
[…] queremos, desde já, reafirmar nossa admiração pela forma como o povo chinês enfrentou a epidemia e pela imensa amizade que une nossos povos (CONSÓRCIO NORDESTE, [18 mar.] 2020).
30A aproximação do Consórcio com a China mostrou-se útil nas semanas seguintes, já que em 04 de Abril de 2020 equipamentos hospitalares chineses comprados pelo Governo Federal foram confiscados pelo governo dos Estados Unidos da América, durante conexão em um aeroporto norte-americano, e em resposta o Consórcio Nordeste e seus estados passaram a fazer compras optando por rotas aéreas alternativas, como a utilizada pelo Governo do Maranhão para obter, em 14 de abril, 107 respiradores e 200 mil máscaras chinesas, através de conexão pela Etiópia. Isso demostra que o Consórcio Nordeste tem buscado soluções próprias para a crise desencadeada pelo novo coronavírus face à incipiência da atuação do Governo Federal.
- 12 O Decreto nº 10.277, de 16 de março de 2020, institui o Comitê de Crise para Supervisão e Monitoram (...)
31O apelo não atendido dos governadores nordestinos acerca da necessidade de o Governo Federal criar uma ampla coordenação nacional12, articulando os diferentes entes federados e seus órgãos, motivou a criação, no âmbito do Consórcio, do Comitê Científico do Consórcio Nordeste (CCCN), visando assessorar os governadores nas tomadas de decisão para o enfrentamento à pandemia e suas consequências. A partir de uma solicitação do Consórcio, o novo ministro da saúde Nelson Teich, atendeu a uma reunião com os governadores da região no dia 20 de abril de 2020.
- 13 Engenheiro eletrônico pela PUC-Rio e doutor em física pelo MIT-EUA, atuou como professor e pesquisa (...)
- 14 Médico pela USP e doutor em ciências pela USP, atuou como professor e pesquisador de universidades (...)
32Anunciado oficialmente em 30 de março de 2020, o Comitê Científico do Consórcio Nordeste (CCCN) foi apresentado como um mecanismo de aproximação entre as decisões políticas tomadas na região e os diagnósticos científicos no contexto da Covid-19. Trata-se de uma equipe de cientistas indicados por cada um dos Estados e coordenados por Sérgio Rezende13 e Miguel Nicolelis14.
33Até a presente data, o CCCN já publicou quatro boletins e tem participado de reuniões assessorando governadores, secretários e outros servidores estaduais do Nordeste. A nosso ver, além de cumprir um papel de fortalecimento da capacidade técnica regional, o CCCN implica também uma projeção política do Consórcio que busca reverberar sua atuação num panorama mais amplo da federação brasileira.
Figura 5 – Boletins do Comitê Científico do Consórcio Nordeste
Fonte: Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a Covid-19.
34Podemos inferir que o CCCN tem ampliado o seu papel no enfrentamento à proliferação e aos impactos da Covid-19 na região, buscando alinhar a atuação de todos os estados a partir de alguns pontos-chave. Como exemplo teríamos: (i) a promoção de campanhas de doações e estímulo ao uso de máscaras; (ii) o uso do aplicativo Monitora Covid-19 como subsídio aos órgãos estaduais de vigilância sanitária; (iii) fechamento de rodovias; (iv) programa para aquisição de equipamentos de saúde.
- 15 A eficácia de medicamentos com base na cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 tor (...)
35Não obstante, as medidas sugeridas a nível estadual estão alicerçadas em diretrizes estratégicas que são analisadas à luz de diagnósticos nacionais, como demonstram os Boletins. Nesse sentido o CCCN se posicionou contrário até o momento a qualquer flexibilização do distanciamento social e opinou sobre temas que estão em franco debate nacional, como o uso de medicamentos à base de Cloroquina15.
36Além disso, destaca-se o Boletim 4 do CCCN defendendo a criação de uma Brigada Emergencial de Saúde, com a convalidação provisória, durante a crise, do diploma de pelo menos 15.000 médicos formados no exterior para que possam atuar em todo o território nacional, posição que tem sido amplamente defendida pelos governadores da região, o que a tornou tema de debate nacional, pontuando como mais uma reivindicação do Consórcio para com o Governo Federal.
37Concluímos que o momento atual está marcado não apenas pela corrida para conter o rápido avanço da Covid-19 e assim evitar o colapso dos sistemas de saúde locais e regionais e reduzir as taxas mortalidade no Brasil, mas também por sérios embates políticos no âmbito do federalismo brasileiro no tocante à gravidade da pandemia, às estratégias a serem adotadas e ao papel dos entes federados face aos desafios impostos à sociedade.
38Embora as disputas políticas entre os entes federados sejam intrínsecas ao modelo federalista, as tensões que emergiram nas eleições de 2018 evidenciaram a fragilidade política em que o país se encontra. O enfrentamento direto entre os governadores da região Nordeste e a Presidência da República no contexto da pandemia da Covid-19 explicitam a profundidade da cisão político-partidária que o país tem vivenciado nos últimos anos.
39Note que o conflito federativo ganhou contornos judiciais após a União editar a Medida Provisória (MP) nº 926, de 20 de março 2020, estabelecendo parâmetros de funcionamento das atividades econômicas durante a pandemia e confrontando diretamente a autonomia dos entes federados em suas medidas de distanciamento social. Sendo muito criticada pelos governadores, não apenas do NE, a medida foi alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341, acatada pelo Supremo Tribunal Federal que, por unanimidade, no dia 15 de abril de 2020, decidiu revogar a MP.
40Apesar deste artigo analisar o papel do Consórcio Nordeste no contexto da pandemia, fica evidente que há conflitos entre outros Estados e a União entorno das estratégias de enfrentamento à crise, o que ficou evidente com os embates públicos do Presidente da República com o governador paulista João Doria e com a carta assinada por 18 governadores, em 18 de abril de 2020, que definiu as declarações presidenciais contrárias às medidas de contenção da pandemia e à ação das instituições públicas como afrontas aos “princípios democráticos” (FÓRUM NACIONAL DE GOVERNADORES [18 abr.] 2020).
41Nesse sentido, admite-se que a pandemia da Covid-19 tem explicitado tensões latentes nas relações federativas no Brasil, aprofundadas nos últimos anos, nos permitindo elucidar importantes desafios e alternativas para o aperfeiçoamento de nosso sistema político, tanto para esta conjuntura de crise, como para o pós-crise, aspetos fundamentais para que possamos avançar no sentido da construção de uma sociedade mais democrática, justa e igualitária.