1A análise dos dados1 relativos à pandemia de COVID-19 e a construção de cenários estimando os números de infectados e de óbitos têm se revelado tarefas árduas2 mesmo para os maiores especialistas das mais consagradas instituições de pesquisa em diversas partes do mundo. Este problema se apresenta de forma particularmente grave na Baixada Fluminense, que padece historicamente de uma profunda carência de dados e indicadores específicos para subsidiar a formulação de políticas para o enfrentamento da sua dramática realidade social.
- 3 Torna-se oportuno destacar que a UFRRJ, além de manter as atividades de pesquisa e extensão de form (...)
2Como pesquisadores vinculados a esse contexto regional, entendemos que é nosso dever colaborar no processamento de informações que possam trazer alguma contribuição para a análise de tendências em relação a esse fenômeno de dimensões inéditas. Mesmo sem formação específica na análise de fenômenos epidemiológicos, utilizamos nossa experiência na análise de fontes variadas de informação para contribuir na complexa tarefa de geração de conhecimentos que possam contribuir para a compreensão da profundidade e complexidade dos desafios decorrentes da presente pandemia, cumprindo também um dever institucional de contribuir cientificamente com o enfrentamento dessa pandemia3.
3Desta maneira, no momento em que escrevemos, as estatísticas globais4 registram mais de dois milhões e duzentos mil infectados e mais de cento e quarenta e oito mil mortes provocadas pela COVID-19. No Brasil5, ultrapassamos os trinta mil casos e nos aproximamos de 2000 mortos. No estado do Rio de Janeiro, são 3.944 casos e 300 mortos. Na Baixada Fluminense, até o dia 16 de abril, registravam-se 540 casos confirmados e 49 mortes (Ver: mapa 1). Esses números, num primeiro momento, podem parecer pouco expressivos – principalmente numa área onde a vida é comumente desvalorizada pelas autoridades governamentais6 –, mas constituem apenas a ponta de um iceberg que, ao que tudo indica, atingirá a região de forma desastrosa.
Mapa 1: Número de casos da COVID-19 na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Fonte: Mapa desenvolvido pelo Laboratório Integrado de Geografia Física Aplicada (LiGA-UFRRJ), disponível em: https://www.ppgihd-open-lab.com/dados-baixada.
4É importante ressaltar que projeções referentes à evolução da pandemia de COVID-19 em diversas partes do mundo vêm sendo atualizadas diariamente com base na análise de uma série de fatores e no refinamento dos modelos estatísticos utilizados. No Brasil, a fragilidade dos dados, resultante da baixa aplicação de testes e da subnotificação, tem criado uma falsa percepção tanto da dimensão do problema quanto do ponto da curva epidêmica em que nos localizamos no momento. Certos segmentos políticos e sociais chegam a afirmar, na contramão do consenso da comunidade científica, que o pico da epidemia está prestes a ser atingido e que é necessário planejar a retomada das atividades normais.
5Considerando as tendências internacionais, é inimaginável que os atuais números mensurados no país representem algo remotamente próximo ao auge da pandemia no Brasil. Na verdade, estima-se que o número real de casos atuais já seja de doze a quinze vezes maior do que o oficialmente registrado7. O número de mortos pela COVID-19, por sua vez, só será avaliado adequadamente a posteriori, quando for possível comparar os óbitos de cada mês deste ano com as médias históricas do país, já que não está sendo possível testar e/ou processar os exames referentes a as mortes suspeitas. Entretanto, por mais incompletos e imprecisos que sejam os dados disponíveis, eles podem servir como indicadores preciosos de tendências, particularmente quando são desagregados e analisados levando em consideração a expressão territorial das desigualdades sociais.
6Assim, o objetivo deste artigo é realizar uma reflexão sobre a pandemia no contexto da Baixada Fluminense. Com base em análises realizadas no âmbito do OpenLab do PPGIHD-UFRRJ, são objetivos específicos: [1] entender o contexto da dispersão da pandemia para além da metrópole fluminense; [2] atentar para o impacto da COVID-19 em uma área historicamente segregada como a Baixada Fluminense e com condições precárias de saúde e moradia para grande parte de sua população.
- 8 Após a construção de Brasília e consequente transferência da capital federal na década de 1960, a c (...)
- 9 A fusão, conforme realizada, não impediu que se consolidasse a ausência de integração e identidade (...)
7O estado do Rio de Janeiro apresenta uma condição histórica cuja análise é fundamental em tempos de pandemia. Trata-se de um estado cuja capital – a cidade do Rio de Janeiro, durante muito tempo uma cidade autônoma e capital federal8 – concentra historicamente os investimentos econômicos, produtivos, logísticos e sociais e apresenta integração ainda restrita com interior9. Mesmo com o crescimento produtivo-industrial de certas áreas do interior, como os novos empreendimentos localizados na região do Médio Vale do Paraíba Fluminense (OLIVEIRA, 2008) ou da consolidação da economia do petróleo no Norte Fluminense (PESSANHA, 2017), a cidade do Rio de Janeiro permanece, por meio de suas periferias imediatas e com os eixos de contato logístico, como catalizador metropolitano, especialmente no que se refere ao atendimento das necessidades de educação e saúde.
8A região metropolitana, da mesma maneira, também pode ser dividida geograficamente: além da capital, há uma nítida dissociação entre as cidades do Leste Fluminense – sendo a antiga capital do estado do Rio de Janeiro, Niterói, a mais importante – e Baixada Fluminense, com destaque para as cidades de Nova Iguaçu e Duque de Caxias. A própria Baixada Fluminense também apresenta diferenças, especialmente entre a baixada histórica, de origem iguaçuana e com urbanização mais densificada – que passa por uma reestruturação urbano-econômica (ROCHA, 2015), e a porção do extremo oeste metropolitano formado pelas cidades de Seropédica, Itaguaí, Paracambi, Japeri e Queimados10 (OLIVEIRA, 2014), além de Magé e Guapimirim, que compõem uma transição Baixada-Leste Metropolitano (OLIVEIRA, 2020) (Ver: mapa 2). O extremo oeste metropolitano apresenta características menos “urbanas” e um processo de reestruturação apoiado nos investimentos significativos que recebeu nos últimos anos por conta de novos empreendimentos logísticos e industriais. Assim, se por um lado, emergiu uma economia de “borda metropolitana” – a construção do Arco Rodoviário Metropolitano Fluminense é a evidência mais importante desse processo de construção de uma economia para além da capital e cujos aportes ocorrem especialmente nas franjas metropolitanas –, o acesso a serviços permanece centrado na capital. Tais diferenças histórico-geográficas implicam no adensamento populacional das cidades da “Baixada Iguaçuana”, tornando-as mais suscetíveis ao aumento dos casos11; todavia, tais cidades de urbanização mais consolidada possuem – mesmo com precariedade em termos de leitos hospitalares e vagas em UTI – mais equipamentos médicos e leitos disponíveis, conforme nos apresenta André Rocha (2020)12.
Mapa 2: A Região Metropolitana do Rio de Janeiro: capital, Leste Metropolitano e Baixada Fluminense, subdividida, além da Baixada “Histórica-Iguaçuana”, em “Transição Baixada-Leste Metropolitano” e Extremo Oeste Metropolitano.
Organização e Elaboração: Laboratório Integrado de Geografia Física Aplicada (LiGA-UFRRJ) e Laboratório de Geografia Econômica e Política (LAGEP-UFRRJ) [2020].
9Assim, os limites da região metropolitana do Rio de Janeiro se tornam fluídos, fazendo com que suas fronteiras se tornem verdadeiro propagadores do desenvolvimento econômico. Nesta mesma seara, as rodovias principais do estado se tornam eixos geográficos de expansão metropolitana, conectando-a com a Região do Médio Vale Paraíba Fluminense, com destaque econômico para a cidade de Volta Redonda; a Região dos Lagos (ou Baixadas Litorâneas), onde se sobressai Cabo Frio; e mesmo o Norte Fluminense, com destaque para a cidade de Campos dos Goytacazes. Expressando características metropolitanas a partir da influência e força da capital, na realidade existem diferentes graus de integração a metrópole por todo o estado do Rio de Janeiro.
10Neste sentido, a dispersão do coronavírus na realidade não deixa de ser uma lição de geografia econômica da metrópole, afinal, os mesmos sentidos de metropolização em quaisquer atividades econômicas tradicionais também parecem reverberar nos processos de espraiamento geográfico de contaminação da COVID-19 no estado. O mapa a seguir (mapa 3), produzido pelo Laboratório Integrado de Geografia Física Aplicada (LiGA) da UFRRJ, apresenta os números de contaminação do estado do Rio de Janeiro expostos sobre a malha rodoviária federal, portanto, destacando as principais estradas federais no estado do Rio de Janeiro.
Mapa 3: Número de contaminados e eixos rodoviários e de dispersão do coronavírus, em 16 de abril de 2020.
Organização e Elaboração: Laboratório Integrado de Geografia Física Aplicada (LiGA-UFRRJ), 2020.
11De maneira geral, os eixos rodoviários – federais, mas também os estaduais – revelam as vias de propagação da COVID-19 no estado do Rio de Janeiro (OLIVEIRA, 2020)13. As cidades que polarizam as atividades regionais – que também são aquelas com maior população e centros urbanos mais robustos – também devem apresentar maiores casos de contaminação e de óbitos no interior do estado. Volta Redonda (com 121 casos oficiais, sempre destacando as expressivas subnotificações), Cabo Frio (8), Campos dos Goytacazes (6), Macaé (20), Angra dos Reis (8), entre outras, se tornam progressivamente polos propagadores do coronavírus.
- 14 Consultar a contribuição de Fabio Rossi, “Volta Redonda: Números da pandemia de COVID-19”, disponív (...)
12O caso de Volta Redonda é emblemático: além de ser uma cidade de classe média substantiva, com o centro comercial regionalmente mais importante, de abarcar muitos trabalhadores da cidades vizinhas – especialmente pelo papel histórico da companhia Siderúrgica Nacional (MOREIRA, 2003) –, e ainda apresentar número bastante elevado de pessoas com problemas respiratórios, devido à presença da própria Usina Presidente Vargas (nome da planta industrial da CSN na cidade)14, a cidade se situa justamente no eixo Rio-São Paulo, no caminho da Rodovia Presidente Dutra (BR-116)
13O contato metropolitano entre as mais importantes cidades do país, Rio de Janeiro e São Paulo, é algo de maior relevo desde que Getúlio Vargas, então Presidente da República, decidiu pela construção da CSN no então oitavo distrito de Barra Mansa, Santo Antônio de Volta Redonda, ainda na década de 1940 (OLIVEIRA, 2006). A Rodovia Presidente Dutra, construída apenas em 1951, se consolidou como a mais importante economicamente da Brasil e é por onde circula grande parte das mercadorias produzidas entre as duas metrópoles nacionais. Essa grande configuração metropolitana constitui uma potente economia macrorregional, cujas densidades técnicas, produtivas, logísticas e estratégicas formam, nas palavras Sandra Lencioni (2014), uma verdadeira “nebulosa metropolitana”, que permanece em expansão geográfica. Volta Redonda, em meio a este cenário, continua até o presente momento atrás somente da capital e de Niterói em número de contaminados.
14Com tamanha centralidade na capital, as preocupações acerca da disponibilidade de equipamentos médicos, da logística hospitalar, da estrutura de acolhimento e mesmo da capacidade de triagem e atendimento nos casos mais graves da COVID-19 são muito significativas, tanto nas periferias imediatas da metrópole quanto no interior. É tradição no estado do Rio de Janeiro procurar a capital para resolução que casos mais graves de saúde; portanto, é justamente no momento em que se necessita de maior espraiamento dos serviços públicos médico-hospitalares é que se revelam as graves diferenças e a imensa segregação entre capital e interior, e mesmo entre capital e seu entorno imediato.
15No caso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, os painéis de dados atualizados pelas secretarias de saúde do estado e do município do Rio de Janeiro oferecem informações sobre a distribuição dos casos e óbitos por municípios, bairros e regiões administrativas.
16Os casos confirmados na capital até esta semana ainda se concentram na Área de Planejamento 2, que congrega a Zona Sul e Grande Tijuca, particularmente na AP 2.1, composta pelos bairros oceânicos como Leblon, Ipanema e Copacabana. Em segundo lugar, vem a AP 4, que inclui Barra e Jacarepaguá. A disparidade entre o índice de casos confirmados por 100 mil habitantes nas várias APs é impressionante, variando de 85,61 na AP 2 para apenas 12,14 na populosa AP 5 (Campo Grande, Bangu, Santa Cruz, etc.), cujo perfil socioeconômico se assemelha em muito ao dos municípios da Baixada.
Tabela 1: Número de contaminados nas Áreas de Planejamento da cidade do Rio de Janeiro
Organização: Prof. Dr. Alexandre Fortes, com dados da Secretaria de Saúde da cidade do Rio de Janeiro.
17Há duas explicações possíveis para a persistência dessas disparidades: 1) os índices de subnotificação são maiores nos bairros mais pobres; 2) o isolamento mais efetivo nos bairros de elite está retardando o avanço da pandemia na periferia. Ou seja, é possível que a redução do contato da classe média alta que concentra o maior percentual de infectados com os trabalhadores dos setores de comércio e serviços que residem nos bairros e municípios periféricos esteja reduzindo a velocidade de difusão do vírus no conjunto da Região Metropolitana. Entretanto, qualquer que seja a proporção na combinação desses dois fatores (subnotificação e isolamento social), a multiplicação exponencial do número de contaminados das áreas com condições de vida mais precárias da Região Metropolitana é apenas uma questão de tempo.
18Tempo, na verdade, é um elemento de altíssimo valor nas estratégias de combate à COVID-19. Ampliar a capacidade de testagem e atendimento e diluir o número de casos graves num período mais longo para evitar o colapso do sistema de saúde são, no momento, os principais objetivos dos gestores do sistema de saúde em todo o mundo. Resta saber o quanto a Baixada Fluminense terá condições de aproveitar esse tempo (FORTES, 2020).
- 15 Em recente reflexão intitulada “‘Nada é tão ruim que não possa piorar’: A COVID-19 e as políticas d (...)
19A Baixada Fluminense pode ser atingida por um verdadeiro tsunami de contaminados com a expansão metropolitana da pandemia da COVID-19. Essa dura previsão se deve a vários fatores: 1) A dinâmica da pandemia tem levado, em todo mundo, a uma dificuldade em acompanhar o número de infectados, e até mesmo de óbitos; 2) O Brasil deve presenciar, nas próximas semanas, o crescimento exponencial do número de infectados; 3) A COVID-19 se difundiu no Rio de Janeiro inicialmente entre segmentos com condições mais favoráveis, e tudo indica que ganhará uma dinâmica muito mais agressiva nas periferias urbanas; 4) A alta densidade demográfica, a precariedade das condições de vida e das unidades de saúde15, assim como a influência de lideranças negacionistas tendem a agravar o impacto da doença na região (FORTES, OLIVEIRA, 2020). Examinemos brevemente cada um desses aspectos.
20A rápida difusão global da COVID-19 pegou de surpresa mesmo os melhores sistemas de saúde do mundo. Na grande maioria dos países, a escassez de testes seguros disponíveis para aplicação em larga escala gerou estatísticas falhas e incompletas. Matéria recente da revista The Economist aponta que tanto no norte da Itália quanto no centro da Espanha o número de óbitos acima da média histórica durante os momentos de pico da epidemia foi duas a três vezes superior ao de mortes oficialmente associadas ao novo coronavírus16. O New York Times prevê que o número real de mortos pela pandemia nos EUA não será conhecido até 202117.
21No Brasil, um grupo de especialistas de diversas instituições avalia que o número real de infectados deveria estar na casa dos 82 mil18 no dia 07 de abril, quando o registro oficial contabilizava cerca de 12 mil. Ou seja, o número real deve ser cerca de sete vezes maior do que indicam as estatísticas19. Em São Paulo, o número de enterros realizados nos cemitérios já cresceu numa proporção muito superior à dos casos confirmados de COVID-1920.
22Esses números, por um lado, podem gerar uma percepção de uma letalidade muito superior à real, já que apenas pacientes graves e mortos são testados. De outro lado, porém, eles indicam que o número de infectados sem sintomas ou com sintomas leves em circulação é muito mais alto do que se supõe, o que torna provável uma explosão de casos em breve, como indica a figura (Figura 1) abaixo, gerada pelo Painel Coronavírus Brasil, no dia 17 de abril21.
Figura 1: Número acumulado e predição de casos confirmados no Brasil
Fonte: http://painel.covid19br.org/. Acesso em: 17 de abril de 2020.
23O conjunto de fatores comentados acima fundamenta a hipótese de que o Brasil deve se defrontar em breve com um salto que hoje parece quase inimaginável na dimensão do problema. Instituições especializadas trabalham com projeções que estabelecem como cenário mais otimista um número total de 200 mil mortos no país, chegando, num cenário pessimista, a 2 milhões de óbitos22.
24A instalação da pandemia como um fenômeno de massas na Baixada e nas demais áreas periféricas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, entretanto, vem sendo em certa medida retardada pelas características da difusão da doença no estado. Tudo indica que o principal vetor da introdução do vírus no Rio de Janeiro foi a elite globalizada (pessoas que viajam ao exterior ou tem contato com quem viaja), à qual se somaram, possivelmente, grupos de turistas em visita à capital. Isso explica por que os casos se concentram inicialmente em locais turísticos e de renda elevada.
25Essa característica socioeconômica da primeira fase da instalação da pandemia no estado pode ser percebida até mesmo na disparidade dos dados sobre os diferentes bairros da capital. No dia 07 de abril, a Barra, com 650 mil habitantes, tinha 102 casos confirmados. Já Campo Grande e Bangu, que somados, tem quase a mesma população, registravam apenas 10 casos. Leblon, Copacabana, Ipanema, Botafogo, Lagoa, Tijuca, Centro, Flamengo e São Conrado, vários deles com populações relativamente pequenas, completavam a lista dos dez bairros que mais concentravam casos e óbitos.
26Esses bairros de classe média alta certamente oferecem melhores condições para isolamento social e maior acesso à rede de saúde. A notificação tende a ser mais alta, mas a curva vai achatar mais rapidamente e o tratamento dos casos graves será melhor, até porque estão chegando mais cedo a bons hospitais e às UTIs. Nas próximas semanas, ao que tudo indica, a epidemia vai explodir nas favelas, assim como nas partes mais pobres das Zonas Norte e Oeste e na Baixada Fluminense, com taxas de transmissão muito mais aceleradas e letalidade muito mais alta.
27A dinâmica da pandemia em contextos de extrema desigualdade social e precariedade de condições de vida ainda não é plenamente conhecida, mas tudo indica que será avassaladora. Nos Estados Unidos, os dados já demonstram que a doença atinge de forma desproporcionalmente alta e de maneira muito mais agressiva a população afro-americana, cuja vulnerabilidade no que diz respeito a saúde, ocupação, renda, habitação e saneamento predispõe ao contágio e ao agravamento do quadro23. Conforme argumenta um colunista do New York Times, nesses cenários não se pode ignorar que a possibilidade de desfrutar de um efetivo distanciamento social é um privilégio24. O portal UOL, em matéria recente25, alerta para a combinação explosiva entre a persistência ou ressurgência de doenças negligenciadas como a Tuberculose e a COVID-19 em favelas cariocas. A realidade da Baixada certamente não é diferente.
28Trata-se de uma região onde a mortalidade infantil média nos treze municípios é de 15%, acima da média nacional de 12,4% e do índice da capital, de 11,2%. Em Nilópolis, ele chega a 21%. Tais dados revelam a precariedade das condições de habitação, acesso a água corrente e saneamento, que devem ter forte influência na dificuldade de conter a circulação do coronavírus. Da mesma maneira, os 95 casos de tuberculose por 100.000 habitantes da Baixada no ano de 2018 representam 2,5 vezes a média nacional (FORTES, 2020).
29Entretanto, a população e muitas das lideranças sociais, políticas26 e religiosas locais parecem não compreender a gravidade da situação. Apesar da estrutura de atendimento em saúde da região estar completamente desaparelhadas para enfrentar um tsunami como o que se aproxima, os relatos indicam a persistência de atividades frontalmente contrárias a qualquer diretriz visando reduzir o potencial de multiplicação do número de infectados27. Há que se temer, por outro lado, que uma vez instaurado um cenário de grande número de mortos e infectados, o estigma que historicamente já torna a população da Baixada Fluminense vítima de preconceito seja reforçado, e as políticas de contenção adotadas tenham forte conteúdo repressivo e de desrespeito aos direitos humanos.
30É fundamental que todos atores sociais com melhor acesso a informações científicas consistentes e confiáveis contribuam para alertar a população e as autoridades sobre os riscos que se abatem sobre o Brasil em geral e sobre a Baixada Fluminense em particular.
31Em linhas gerais, podemos assim sintetizar as reflexões aqui empreendidas: [1] mesmo sabendo que os dados oficiais atuais são subestimados, está claro que, até o momento, a COVID-19 na Região Metropolitana do Rio de Janeiro se concentra em áreas de melhor renda e maior acesso a serviços de saúde; [2] o isolamento social razoavelmente efetivo da classe média carioca pode estar contribuindo para proporcionar um tempo precioso aos gestores públicos na preparação para enfrentar o pico da pandemia; [3] os índices relativos a condições sanitárias na Baixada Fluminense (e, provavelmente, na parte do município do Rio de Janeiro ainda pouco atingida pelo contágio) apontam para um cenário de imensa gravidade à medida que se estabeleça a dinâmica de "expansão acelerada" nesses locais.
32Mike Davis (2006 [2005], p. 198), em sua obra “O monstro bate a nossa porta: a ameaça global da gripe aviária” faz uma importante indagação : como reagiriam as cidades quase indefesas do terceiro mundo a uma pandemia? Comungamos desta preocupação, afinal, a Baixada Fluminense se revela um espaço onde a pandemia de coronavírus pode se revelar profundamente mais agressiva. Com uma população adensada, em grande parte com precárias condições de vida, com instalações e equipamentos médicos insuficientes em seu território e grande dificuldade de promover distanciamento social – seja pelas necessidades de constituir renda, seja pelas próprias limitações das habitações –, a Baixada Fluminense pode se tornar um triste laboratório capaz de responder as preocupações de Mike Davis.
33Por sua vez, o geógrafo brasileiro Ruy Moreira (1987), em “O Discurso do Avesso: para a crítica da geografia que se ensina” define como “homem estatístico” o exato momento que o indivíduo se torna número na reflexão geográfica. Com a primazia da estatística, perde-se o sentido socioemocional da vida. Convictos de que o número de contaminados pela COVID-19 é superior ao divulgado pelas instâncias governamentais, entendemos que a subnotificação de casos corresponde hoje ao maior desafio para a compreensão das curvas de contágio. Com um número tão pequeno de testes, somos incapazes de saber exatamente o estágio de contaminação, o número de pessoas recuperadas e mesmo o quantitativo de óbitos oriundos da pandemia. Entretanto, acima do interesse de traçar um perfil correto do momento da pandemia, reforçamos que toda a vida humana é muito importante. O valor de uma vida é imensurável e o impacto de um óbito para seus amigos e familiares não pode ser visto com um número frio.
34Devemos, portanto, enfrentar os atuais discursos de desvalorização da vida por parte de lideranças políticas nacionais. A relativização para com o número anunciado de óbitos pelas estruturas governamentais e a supremacia das preocupações econômicas sobre as próprias estratégias de contenção do vírus reforçam o desprezo pela vida – especialmente dos mais pobres, negros e segregados territorialmente – de certas autoridades. Assim como mundialmente a COVID-19 tem sido frequentemente atribuída às práticas culturais “impuras” dos chineses pobres de Wuhan (COLETIVO CHUANG, 2020), em tempos de individualismo, concorrência mercadológica, preconceitos exacerbados e intolerância política, há a sincera preocupação que se culpabilize, na Baixada Fluminense, as próprias vítimas.