- 1 Ver Fukuyama (1992).
- 2 Ver Ohmae (1995).
1A globalização, como foi preconizada nos anos 1990, sofreu um solavanco desproporcional na aurora dos anos 2000, sobretudo a partir da emergência de novas potências até então adormecidas. A saída triunfal dos EUA da Guerra Fria, os processos de redemocratização em diversos países, a consolidação da União Europeia, a entrada de ex-repúblicas soviéticas na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o papel do Ocidente na mediação de conflitos regionais, a ideia de globalização utópica, das livres circulações, enfim, diferentes espectros de uma leitura generosa sobre a narrativa vitoriosa da civilização ocidental e da expansão do regime capitalista foram tônicas de análises sobre o porvir, ou melhor, daquilo que tornaria essa humanidade conectada, claramente sob a égide do Ocidente. Este quase conto de fadas, que contou com teorias estranhas como o fim da história1, do Estado-Nação2, viu suas bases ruírem a partir do início do Terceiro Milênio, com a reestruturação agressiva da Rússia, internamente e no seu entorno regional mais próximo, e das mudanças paradigmáticas na China. Destas, duas se destacam: o investimento maciço em inovação, alterando significativamente sua posição de ‘fábrica do mundo’; e a expansão de seu poder a partir de uma estratégia global sem precedentes, a Belt and Road Initiative (BRI), em português chamada de Nova Rota da Seda.
- 3 As humilhações sofridas pelo país durante o século XIX pelas mãos da Grã-Bretanha e de outras potên (...)
2A menção à Rússia serve apenas para ressaltar que a China não está sozinha no cenário recente e extremamente desafiador. Contudo, é o gigante asiático o grande protagonista do momento e aquele que este texto focará sob a luz de uma leitura geopolítica relacionada aos acontecimentos atuais, mais especificamente o advento do corona vírus, alguns de seus impactos globais e a forma como chegou no Brasil e proporcionou a maior crise diplomática da história de ambos os países. Para dar um pontapé inicial, será feita uma breve introdução de elementos da contemporaneidade chinesa, ilustrativos do seu gigantismo, sua capacidade de liderança e de defesa de seus interesses. A própria forma como a diplomacia chinesa se expressa em momentos de crise é salutar para tal compreensão. Sempre afirma os valores de seu povo, o respeito às diferenças, mas nunca abre mão de deixar manifestas suas insatisfações e potenciais retaliações3. As marcas deixadas pelas invasões do início do século XX parecem ser traduzidas na máxima de não permitir nenhuma ingerência em território chinês nem tampouco em áreas controversas de disputa, vide Tibet ou Taiwan, assim como em assuntos internos relativos a temas que consideram sensíveis, como por exemplo os diretos humanos ou a democracia. Em seguida, será feito um resgate de alguns elementos da relação sino-brasileira no período recente, enaltecendo a crescente interdependência econômica, o aprofundamento das relações geopolíticas que culminaram na formação do NDB, a conjuntura que se formou desde a eleição de Jair Bolsonaro e a guinada jamais imaginada para a diplomacia e nossos interesses geopolíticos. Feitas as contextualizações necessárias, as análises focalizarão os últimos acontecimentos relativos à chegada da pandemia no Brasil, algumas das controversas atitudes do governo federal, a ação de parte dos ‘estrategistas’ da presidência nas redes sociais, o imbróglio diplomático e suas possíveis consequências. Diante de uma crise de magnitude imprevisível, parece haver uma irresponsável condução, capaz de acarretar danos sensíveis para nossa economia, assim como para uma visão estratégica de longo prazo voltada para a Ásia, tão necessária e urgente.
- 4 Não à toa, autores como Peter Frankopan (2019) procuram reescrever a história a partir de marcos or (...)
- 5 Por ocasião das discussões sobre o 11º Plano Quinquenal chinês, em 2006, Joseph Stiglitz escreveu q (...)
3Nunca é demais lembrar que a China é uma civilização milenar, com uma história que perpassou grandes acontecimentos da civilização ocidental, como o florescimento da democracia grega, a expansão do Império Romano, as invasões bárbaras e o advento da Modernidade4. Este último grande período que a história ocidental tanto enfatiza como marco civilizatório da humanidade, com base na ciência, na consolidação dos Estados territoriais, foi para os chineses um dos mais duros momentos de desestruturação interna. Houve o fim do período dinástico, as invasões, com total ênfase à japonesa, que dominou parte significativa de seu território, e a reorganização interna, com períodos que variaram de fome extrema aos louros de conquistas econômicas e sociais sem precedentes na história humana, em tão curto espaço de tempo5. A complexidade que envolve qualquer digressão sobre esse país carece, portanto, de recorte expresso e ciente de que, ainda assim, será extremamente limitado. Como se trata de uma discussão tão premente quanto o COVID-19, é fundamental abrir a perspectiva para, especificamente, embasar o atual momento chinês com ênfase na capacidade cientifica e tecnológica desenvolvida nas últimas décadas e em sua mais recente empreitada geopolítica, a BRI.
- 6 Fiori (2014:90) relembra que os soviéticos foram considerados a principal “ameaça à segurança chine (...)
4A proeminência que o COVID-19 ganhou no debate mundial não seria possível caso o mesmo evento epidemiológico tivesse ocorrido na década de 1970. Ainda fechada para inúmeras relações diplomáticas, incluindo a brasileira, reestabelecida apenas em 1974, o impacto que uma virose desse tipo poderia ter causado, justo pelo isolamento, provavelmente seria menor, em termos globais. Inseridos em um contexto regional muito conflituoso em meio a embates centrais para os episódios da Guerra Fria, como a Guerra do Vietnã, o Khmer Vermelho, a Guerra das Coreias, os chineses procuraram, no isolamento, formar suas bases para uma efetiva reconstrução do país, incluindo seu rompimento mais radical com os soviéticos no final da década de 19606. Após dois grandes planos nacionais, o Grande Salto para Frente e a Revolução Cultural, é que tem início tanto a abertura paulatina para sua diplomacia, como as reformas estruturais na economia com consequências mundiais impensáveis para época.
5É muito comum associar a modernização da economia chinesa à figura de Deng Xiaoping, que efetivamente implantou o programa das “quatro modernizações”. Porém, essa política já havia sido desenvolvida, em 1975 pelo primeiro-ministro Chou En-Lai, como consequência de uma série de medidas que foram sendo implementadas desde o rompimento supracitado com os soviéticos (FIORI, 2014). A pesada industrialização foi uma de suas maiores marcas, fato que tornou o país conhecido como ‘fábrica do mundo’. É impossível afirmar que tenha sido um processo linear ou baseado em uma ou outra condução de política econômica. Arrighi (2008) talvez seja um dos autores que melhor expôs suas condicionantes, contrastando análises feitas por relevantes estudiosos, como Harvey, que reforçava uma perspectiva neoliberal no desenvolvimento chinês, e James Galbraith e Ramgopal Agarwala, para quem definitivamente a China não havia aplicado o receituário do Consenso de Washington, ao menos sem levar em conta suas especificidades e sua própria temporalidade.
6Seja como for, além de uma industrialização sem precedentes, da formação de poupança interna, do controle financeiro por bancos nacionais, incluindo os de desenvolvimento – que vem tendo papel cada vez mais ativo –, a China foi capaz de atingir um crescimento médio do PIB, de aproximadamente 9,5%, de 1978 até 2018, enquanto o do Brasil, no mesmo período, limitou-se a 2,6%. Essa marca poderia não significar muito, caso não fosse acompanhada de uma sensível ampliação de sua capacidade inovativa e tecnológica, algo que passou a marcar e suplantar o estigma de ser apenas a ‘fábrica’. Hoje já se constitui em um dos principais centros de difusão de inovações extremamente sensíveis, como se pode verificar pelo elevado número de patentes depositadas e pela expansão do chamado 5G, tão almejado no Ocidente. As implicações geopolíticas dessa tecnologia, por exemplo, já estavam na pauta do dia dos EUA, sobretudo por se tratar de um domínio sobre difusão, controle e uso de informação, visto como ameaça seríssima a seus interesses estratégicos.
7Tal proeminência tecnológica vem sendo discutida em inúmeros trabalhos acadêmicos sobre o desenvolvimento chinês. O próprio livro de Arrighi (idem), que não se debruça especificamente sobre essa temática, faz alusão ao número crescente de pesquisadores em comparação com os dos EUA, assim como a evolução dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, que na naquele momento crescia três a quatro vezes mais do que o americano, o da União Europeia e até mesmo o do Japão. Esses são dados apenas ilustrativos do esforço tecnológico chinês. Por trás deles, há substancial transformação institucional, engenharia financeira e planejamento voltado para diversas áreas sensíveis, ou seja, um mundo à parte que acompanha as suas necessidades e estabelece setores estratégicos. É nesse sentido que pesquisadores de diferentes localidades têm chamado a atenção para a relevância do fortalecimento do sistema nacional de inovação chinês para o seu desenvolvimento e a sua capacidade vez maior de execução de grandes investimentos ao redor do globo. Um deles, Tai Ming Cheung (2014), recorda que as lideranças chinesas veem a CTI como elemento estrutural do poder, da prosperidade e do prestígio. São esses investimentos que possibilitam suas conquistas econômicas, sociais e militares.
- 7 Para Ding; Le; Wang (2008:817) de 1978 até 2005 a China experimentou, entre outras coisas, uma estr (...)
8Mesmo que o desenvolvimento científico e tecnológico tenha sido a prioridade desde 1978, a partir dos anos 2000 ocorrem mudanças significativas7. A principal política que iniciou essa nova condução foi o Programa de Ciência e Tecnologia de Médio e Longo Prazo (MLP) com ênfase na "inovação endógena", tendo Wen Jibao como figura relevante. Antes disso, alguns analistas do Ministério da Ciência e Tecnologia (MOST, sigla em inglês) argumentaram que a China tentou se mover muito rápido e prematuramente para um sistema de inovação baseado em empresas, embora precisasse voltar para uma inovação mais orientada pelo governo. Depois disso, tomou uma direção clara na política de inovação baseada em consultor de estrutura, definições de especificações políticas (incluindo o papel das agências, ministérios e áreas estratégicas) e implementação de políticas. Mas como, de fato, isso funcionaria e quais elementos seriam interessantes para pensar a geopolítica chinesa contemporânea?
9Segundo Jaguaribe (2016), o sistema institucional que desenvolve a política de inovação tem na Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (NDRC, sigla em inglês) a articulação horizontal com ministérios, indústria, o próprio MOST e setores como o de tecnologia da informação. A autora chama a atenção para as seguintes políticas bem sucedidas: mudanças significativas nos institutos públicos de pesquisa, reorganizando o financiamento e alocando prioridades, incentivos e avaliações; integração da produção científica à comunidade internacional; estímulo à produção intelectual e registro de patentes; incentivos às academias e garantias de financiamento; transformação de instituições de tecnologia aplicada em empreendimentos e criação de parques tecnológicos e científicos ligados às universidades; P&D em empresas estatais; criação de uma fundação para financiar a inovação em pequenas e médias empresas; e, por fim, estímulo à criação de laboratórios de P&D em empresas multinacionais na China. Tal estrutura conduziu a China à fronteira da capacitação científica, bem como fortaleceu as empresas e o setor industrial, habilitando estatais, incluindo a criação de laboratórios de P&D nas empresas. Para Jaguaribe (idem:376): “fortificaram-se as estatais em áreas estratégicas e em seu posicionamento global, e trabalhou-se para interiorizar o valor das cadeias de produção, dando mais sustentabilidade a uma economia de inovação”. O fato permitiu que as importações com tecnologia se mantivessem estáveis, enquanto sua capacidade de operar fora de suas fronteiras passou a ser cada vez mais uma realidade, tanto ao exportar como também operando fusões e aquisições em diversos setores pelo mundo.
10A partir da década de 2010, as políticas de CTI mostraram-se claramente associadas a um novo paradigma externo chinês, qual seja, um posicionamento mais assertivo no cenário global. Li (2016) enfatiza como as políticas de CTI, em geral, e a política Innovation‑driven Development Strategy, em particular, estiveram presentes nos planos internacionais, sobretudo na BRI. Logo depois, foi lançada uma política ainda mais agressiva, o Made in China 2025, que como bem definiu Arbix et al. (2018:150), buscou e “procura responder aos desafios domésticos e preparar a China para as novas indústrias que se desenvolvem no plano internacional”. Ou seja, além de criar sinergias, ambiente próprio para o desenvolvimento tecnológico e setores globalmente competitivos, o país gerou condições efetivas de atuação em todos os continentes do planeta, com atuação estatal e empresarial conjunta e extremamente eficiente. O setor de energia, uma das maiores preocupações do governo central chinês, já opera em áreas sensíveis como o Norte do Paquistão, e em mercados tradicionalmente estruturados, como o brasileiro. Vale lembrar que a gigante State Grid é hoje a que mais investe no setor elétrico do Brasil e a que inaugurou a maior linha de transmissão de ultra-alta tensão do mundo, que começa em Anapu, no Pará, e termina em Paracambi, Baixada Fluminense, no estado que sedia esta revista, o Rio de Janeiro (Cohen, 2019).
11O feito supracitado é significativo, porém não se encontra inserido, ainda, na maior estratégia de expansão de poder de um só país de que se tem notícia na contemporaneidade, a Belt and Road Initiative. Além de ter estruturado a capacidade ímpar de atuação com base em um sistema de inovação extremamente sólido, o governo chinês lançou uma estratégia global de poder que desafia analistas internacionais no mundo inteiro, por sua velocidade e capacidade de ação em tão curto período de tempo, o que parece ser a tônica da atuação chinesa nos últimos anos, como exposto acima.
12Visando sistematizar as informações sobre a BRI, para Ibanez (2020) tal iniciativa é resultado da união de duas propostas lançadas no segundo semestre de 2013, pelo Presidente Xi Jinping: o Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século XXI. No início, era muito comum se referir a ela como One Belt, One Road. Tanto é verdade que a autora antes referida, Li (2018), utiliza ao longo de seu texto apenas o acronimo, OBOR. É interessante fazer esse adendo, pois até forma extremamente rápida com que o governo foi transformando o nome da proposta é uma evidência dessa efetividade, de maneira que hoje já não se utliza outro termo, senão BRI. De 2013 para cá, a iniciativa atingiu dimensões praticamente imensuráveis, estendendo-se a diversas áreas ao redor do mundo, que vão do Mar Ártico ao Suriame, na América do Sul.
13Ao longo de apenas sete anos, a proposta não apenas se formou, como saiu do papel. Atualmente, de acordo com o site oficial da iniciativa8, existem mais de 80 empresas associadas e vários projetos em andamento, incluindo o de cooperação CTI com o Paquistão, bem como a construção de centros culturais em países participantes, incluindo hotspots estratégicos como a Turquia, à porta da Europa, e o Egito, localizado no norte da África e com acesso ao Mar Mediterrâneo9. Segundo documento oficial lançado pela Xinhua no final de 2019, The Belt and Road Initiative. Progress, contributions and prospects, até o final de março de 2019, o governo chinês havia assinado 173 acordos de cooperação com 125 países e 29 organizações internacionais, expandindo-se da Ásia e Europa, seus primeiros focos, para incluir mais novos participantes na África, América Latina e Pacífico Sul. Vale ressaltar que o número de países que possuem acordo é impensavél para uma estratégia tão nova e centralizada em uma só nação. Isto desafia qualquer análise, pois além de sua breviedade, tem uma velocidade de extensão impressionante. Já em termos financeiros, de 2013 a 2018, os investimentos diretos chineses nos países da BRI ultrapassavam US$ 90 bilhões, cifra extremamente considerável se levado em conta o fato de se tratar de uma estratégia capitaneada por apenas um país. Além disso, trata-se exclusivamente de investimos relacionados à iniciativa. O caso do setor elétrico brasileiro não figura nesse montante.
14Em relação aos projetos, seguem alguns relativos à infraestrutura, disponíveis no último documento citado, segue a descrição dos corredores (ver Figura 1):
15New Eurasian Land Bridge para promoção da conexao entre Ásia e Euuropa. Com obras já iniciadas a partir de Belgrado - Stara Pazova, como parte da Hungary-Serbia Railway na Servia. A via expressa internacional da China-Europa Ocidental, que conecta a China ocidental, o Cazaquistão, a Rússia e a Europa Ocidental, está basicamente completa.
16China-Mongolia-Russia Economic Corridor. Uma rede de conectividade de infraestrutura transfronteiriça composta principalmente por ferrovias, estradas e portos de fronteira.
17China-Central Asia-West Asia Economic Corridor. Cooperação avançada em energia, conectividade de infraestrutura, economia e comércio e capacidade industrial na estrutura desse corredor. A China assinou acordos bilaterais sobre transporte rodoviário internacional com o Cazaquistão, Uzbequistão, Turquia e outros países. São exemplos, China-Paquistão-Cazaquistão-Quirguistão, China-Cazaquistão-Rússia, China-Quirguistão-Uzbequistão e alguns outros acordos multilaterais sobre comércio internacional. transporte rodoviário, melhorando constantemente a construção de infraestrutura na Ásia Central e no Oeste da Ásia. O Fórum de Cooperação China-Arábia Saudita promoveu a complementaridade industrial entre a BRI e a Arábia Saudita.
18China-Indochina Peninsula Economic Corridor. Conectividade das infraestruturas e construção de zonas transfronteiriças de cooperação econômica através desse corredor. A via expressa Kunming-Bangkok foi concluída, enquanto as ferrovias China-Laos e China-Tailândia e alguns outros projetos estão em andamento. A cooperação começou na construção do corredor econômico China-Laos e hoje se estende por Camboja, Mianmar, Vietnã e Tailândia. Ressalta-se o mecanismo de cooperação China-ASEAN (10 + 1), o Lancang-Mekong e a cooperação econômica na Grande Região do Mekong (GMS), o principal rio do Sudeste asiático.
19China-Pakistan Economic Corridor. Um plano de cooperação com foco em energia, infraestrutura de transporte, em parques industriais e na construção de um dos mais importantes portos para a China, o de Gwadar, que pode aliviar sensivelmente seus fluxos na medida em que evitaria que inúmeras embarcações passem pelo Estreito de Malaca. Talvez o mais importante projeto seja este corredor, pois congrega relevantes objetivos geopolíticos. Afinal, além do Paquistão ser um dos seus mais tradicionais parceiros, representa desafios como estruturar um programa dessas dimensões tratando de interesses tão delicados quantos os conflitos históricos com os indianos, áreas de extrema pobreza, carência de infraestrutura e zonas dominadas pelo terrorismo, sobretudo nas áreas próximas ao Afeganistão.
20Bangladesh-China-India-Myanmar Economic Corridor. Neste caso são projetos de desenvolvimento institucional, conectividade de infraestrutura, cooperação em parques comerciais e industriais, cooperação e abertura no mercado financeiro, intercâmbio cultural e cooperação e estudo de viabilidade para a Ferrovia Muse-Mandalay, além de acordo sobre o projeto do porto de alto mar na zona econômica especial de Kyauk Phyu.
21Chama a atenção a amplitude geográfica desses corredores, que não representam a totalidade dos empreendimentos e projetos da iniciativa, mas parte substancial em termos de infraestrutura e foco por parte do governo chinês. Na esteira da BRI, ao menos segundo relatos oficiais, tais corredores não fazem parte de uma estratégia geopolítica claramente militar. A ênfase no comércio, nos fluxos, no abastecimento, nas questões energéticas é efetivamente mais clara, mesmo que todos esses fixos possam servir, no futuro, para atividades de logística militar. O formato de uma estratégia dessa magnitude – pautada em cooperação, trocas culturais, desenvolvimento tecnológico e outros termos – constitui a tônica de uma geopolítica nova, com características desafiadoras para as análises tradicionais.
Figura 1: Principais Corredores da Belt and Road Initiative – 2018
Fonte: Soyres et. al. (2018).
22Ibanez (2020) defende que será necessária a construção de interpretações com base nas ações e particularidades da própria BRI, em vez de utilizar conceitos e teorias clássicas como fizeram alguns autores que se utilizaram do conceito de heartland ou compararam a inciativa a um novo Plano Marshall. Enfim, trata-se de um desproporcional esforço altamente integrado e efetivo de expansão do poder chinês, que já tem demonstrado resultados consistentes e coloca a China em uma fronteira mais avançada em relação à sua liderança na governança global. Esse é o país com o qual estamos lidando na atual crise do COVID-19 e que, além da proeminência que se tentou evidenciar neste item, acabou se tornando o pivô de uma crise diplomática em meio a uma das mais severas epidemias de nossos tempos.
23
A China, que se tornou um gigante global, não apenas asiático, tem no comércio uma das suas maiores armas. Fiori (2007) chamava a atenção para o crescimento da importância da Ásia no ciclo de crescimento econômico que se iniciava naquele momento na América do Sul, sobretudo a partir das importações, exportações e investimentos, especialmente nos setores mineral, energético e de grãos. A China era obviamente a grande liderança. Os dados ressaltados pelo autor eram emblemáticos da velocidade e amplitude da presença em nossa região. Em 2006, suas exportações para cá aumentaram 52%, enquanto as estadunidenses não ultrapassaram os 20%. Outro exemplo muito interessante foi dado pelo Chile. Em 1990, o Brasil exportava 10% das importações daquele país, enquanto a China somente 1%; 15 anos depois, o Brasil forneceria 13% e a China ultrapassou a marca dos 12%. Ou seja, enquanto a participação do Brasil cresceu 30%, a da China se expandiu 1200%, no mesmo período. Esta realidade se tornaria cada vez mais frequente e aprofundada para a quase totalidade dos países sul americanos, com grande impacto no Brasil.
24Os dados de comércio exterior brasileiro são representativos desse aumento da participação chinesa na região, se observada a evolução dos últimos 20 anos. O Gráfico 1 expressa exatamente como em relação às nossas exportações, a curva asiática e, em particular, a chinesa, é a que mais cresceu no período. A China é quase imperceptível no início do gráfico e tem uma ascensão impressionante, sobretudo após meados da primeira década dos anos 2000. Já tradicionais mercados, que eram nossas referências no final dos anos 1990, como os EUA e a União Europeia (UE), viram, no caso do primeiro, um leve crescimento durante todo esse tempo, enquanto no do segundo passa por um período de forte participação, mas depois não apenas estagna, como recua a partir de 2010. É uma pena observar que a América do Sul, que contou com esforços institucionais perpassando os governos tucanos e petistas, apresentou praticamente o mesmo comportamento da curva europeia. Por último, a África, que chegou a um pico em 2012, acabou mantendo-se estável ao longo do período, ainda que considerados os esforços dos governos Lula e Dilma no sentido de aumentar nossa presença no continente.
Figura 2: Exportações brasileiras por regiões e países selecionados 1999-2019
Fonte: MDIC – Séries Históricas
25Analisado o período como um todo, é na evolução do crescimento percentual absoluto de cada uma dessas regiões/países nas nossas exportações que o peso chinês mais fica expresso. Para o período tratado, a China simplesmente passou de pouco mais de um bilhão de dólares em importações brasileiras para mais de sessenta e cinco bilhões de dólares, um salto de basicamente 5900%. A evolução dos EUA, da UE ou da América no Sul não ultrapassou nem 300% e a da África, cerca de 566%. Ou seja, trata-se de uma trajetória de participação vertiginosa em nossa economia, também notada pelo percentual que o país ocupava no total das exportações em 1999, cerca de 2,3%, para 29,2% em 2019, configurando o maior exportador isolado dos produtos nacionais. Os EUA e a UE basicamente diminuíram pela metade suas participações, de 22,2% para 13,2% e 29,6% para 15,9%, respectivamente. Vale ressaltar que as importações seguiram trajetória similar, com menor ênfase, mas tendo como resultado a proeminência chinesa da mesma forma, ainda que a queda da composição americana tenha sido pequena em nas nossas importações. A ênfase nas exportações, contudo, é exatamente para demonstrar o grau de dependência que criamos ao longo das últimas décadas. Garcia (2019) qualificou esse processo analisando esses números de maneira mais detalhada. Utilizando-se dos dados do Ministério das Relações Exteriores, a autora ressalta que, em 2017, nossa pauta exportadora para a China concentrou-se 80% em produtos básicos, sobretudo, soja e minério de ferro. Já o movimento contrário, apresentou 90% de produtos manufaturados. Ou seja, uma enorme distorção em termos de complexidade das pautas exportadoras entre os países.
26Além do comércio propriamente dito, os interesses chineses cresceram no Brasil, em diferentes frentes. Em publicação editorada por Anna Jaguaribe, Direction of Chinese Global Investiments: implications for Brasil, diversos pesquisadores se dedicaram a aprofundar facetas dos investimentos chineses e de suas particularidades no Brasil, no período de 2010 a 2016. Jaguaribe (2018) recorda que na última década a China se tornou não apenas a maior parceira comercial como também a maior investidora em nosso território. Essa estratégia reflete os propósitos do próprio governo chinês, engajado em articular seus objetivos nacionais, incluindo a BRI, com a economia global. O foco em setores centrais, como os mencionados acima, é basilar nessa empreitada, assim como a construção de capacidades tecnológicas essenciais para a realização dessa tarefa. Kupfer e Rocha (2018) analisaram que, para o período da publicação, mesmo havendo uma modificação da composição dos investimentos, aumentando a participação na indústria de transformação e nos serviços, os maiores montantes empregados foram nas indústrias extrativistas e de energia. De qualquer forma, o Brasil manteve-se entre os maiores destinos dos investimentos chineses na última década, como bem demonstra a Figura 2 projetada por Scissor (2020).
Figura 3 – Maiores investimentos chineses, 2005-2019 (Bilhões de dólares)
Fonte: Scissor (2020)
27Outro ponto expresso pelo estudo de Garcia (2019) é o movimento de fusões e aquisições de empresas instaladas aqui por chinesas, algo que apenas no ano de 2016 representou mais da metade de todas essas operações. A autora também ressalta o papel do financiamento chinês na América Latina como um todo e, em especial no Brasil, que ficou com 26% do total da região de 2005 a 2016. Neste quesito, a modalidade loan-for-oil, os instrumentos de convênios de câmbio de divisas realizados pelo Banco Central e, o que é extremamente importante para nossas análises, os derivados das operações do New Development Bank (NDB), informalmente conhecido como Banco dos BRICS.
28Além da presença maciça no comércio, nos investimentos e nos financiamentos, as relações sino-brasileiras se aprofundaram de maneira substancial com a formação e desenvolvimento institucional dos BRICS. A acrônimo criado no artigo de Jim O’Nell, do Goldman Sachs, em 2001, ainda sem a África do Sul, foi a origem para um grupo que viria a se formalizar a partir de reuniões desde 2006, mas com ênfase em uma série histórica de encontros que ocorre desde 2009, com a Cúpula de Ecaterimburgo. Segundo o site do Ministério das Relações Exteriores do Brasil10, o
29objetivo do encontro foi reforçar a coordenação dos quatro países em temas relacionados à reforma da governança mundial, sobretudo no plano econômico-financeiro (G-20, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial). Defendeu-se maior representatividade das economias emergentes nas instituições financeiras internacionais, cujos diretores e executivos deveriam ser indicados por intermédio de processo aberto, transparente e com base no mérito.
30Nota-se que as palavras governança, finanças, representatividade e economias emergentes foram a tônica no momento em que havia um reestabelecimento de todas essas nações no tabuleiro global. Não se tratava apenas do crescimento econômico, mas de efetivas demandas e saídas alternativas ao mainstream global que se aceleraram ainda mais após a crise de 200811. Esses países continuariam a construir uma institucionalidade por anos, realizando cúpulas anuais até os dias de hoje. Não cabe aqui descrever cada uma delas. É relevante. Porém, ressaltar essa construção que perpassa até os dias de hoje. Foram onze cúpulas. A última no Brasil.
- 12 Medeiros e Benevenuto (2020) realizaram um relevante esforço de compreensão da importância dos BRIC (...)
31O peso que qualquer grupo desses pode exercer depende diretamente de condicionantes políticos internos a cada um de seus membros. Como lembra Stunkel (2015), nosso chanceler Celso Amorim, em 2015, escreveu um artigo em que defendia que os BRICS trariam uma reorganização mundial com base na multipolaridade. No caso brasileiro, até a derrubada da presidente Dilma Rousseff, o grupo mante-se em alta consideração institucional, chegando a formar, com forte participação brasileira na formulação institucional, um banco de desenvolvimento, o NDB. Como bem recorda Suchodolski e Demeleulemeester (2018), a ideia do banco foi apresentada na quarta cúpula em Nova Deli e seu estabelecimento, na sexta, em Fortaleza. Em sua declaração oficial, estavam presentes as máximas do multilateralismo e apontamentos para a necessidade de rearranjos de poder em direção a novos atores globais com proatividade. Havia uma expectativa de que seria uma transformação sensível do sistema estabelecido desde Bretton Woods. Portanto, além do apoio político, da força institucional, era uma verdadeira aposta que se estabelecia naquele momento, tanto que Suchodolski e Demeleulemeester (idem) definiram sua constituição como o ‘nascimento de um gigante banco multilateral de desenvolvimento’. As vastas demandas em infraestrutura e energia por seus sócios apontavam para um caminho realmente promissor, ainda que a assimetria entre os membros fosse, e continua sendo, patente, dada a maior participação chinesa em termos financeiros. O que não se contava era com a mudança radical na condução de nossa política externa, iniciada com o governo Temer e aprofundada ainda mais na atual gestão, a partir de um alinhamento aos EUA e ao governo Trump12,avesso à entrada de investimentos chineses por aqui (GARCIA, 2019:26).
32Para que se tenha uma ideia dessa ruptura, no ano passado, a última cúpula dos BRICS ocorreu no Brasil, no mês de novembro, sendo sua decima primeira edição. Se observadas as notícias sobre o encontro em um dos principais veículos de imprensa voltado para a área econômica, Valor, no período em que ocorreu, não passaram de dezesseis, sendo algumas sobre temas tangentes ou de pouca relevância. Já no jornal A Folha de São Paulo, não foi encontrada nenhuma análise de síntese mais ampla do evento como um todo, mas apenas uma sobre questões relacionadas ao multilateralismo e, na realidade, para afirmar que
33Apesar de manter na essência a defesa do multilateralismo, tradicional nesses documentos, a declaração incorporou menções à soberania e independência das nações em relação a organizações transnacionais, a pedido do Brasil. O governo brasileiro comemorou, pois viu como uma vitória mostrar na cúpula do Brics a visão de Bolsonaro sobre “soberania e antiglobalismo”, nas palavras de uma fonte do Planalto13.
34Ou seja, aquilo que era o cerne do grupo, sofreu ingerência brasileira exatamente no sentido oposto, com alinhamento aos EUA expresso desde discursos enaltecendo que o governo privilegiaria o Brasil primeiro, em alusão ao American First de Trump, até pedidos para acrescentar posicionamentos estadunidenses na declaração (leia-se mencionar a crise política na Venezuela em favor do posicionamento estaunidense, por exemplo)14. Outro ponto relevante pode ser observado pelas próprias prioridades da presidência brasileira no rotativo dos BRICSs, baseadas no mote, BRICS: crescimento econômico para um futuro inovador, definidas em apenas quatro pontos15:
35Fortalecimento da cooperação em ciência, tecnologia e inovação;
36Reforço da cooperação em economia digital;
37Adensamento da cooperação no combate aos ilícitos transnacionais, notadamente ao crime organizado, à lavagem de dinheiro e ao tráfico de entorpecentes;
38Incentivo à aproximação entre o Banco do BRICS e o Conselho Empresarial do agrupamento.
- 16 “Por fim, e não menos importante, um fator decisivo para a redução da relação P&D/PIB na economia b (...)
39O laconismo chama a atenção, assim como as proporias orientações homologadas pela declaração final. A inovação, no centro das prioridades, é outra questão que chega a ser intrigante dado que não há nenhuma evidência de investimentos e incentivos ao desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil do governo Bolsonaro. Ao contrário, há apontamentos de esvaziamento de instituições de fomento, como CAPES, CNPq e FINEP, diminuição de verbas e manutenção da tendência apontada por De Negri et al. (2020:7)16 de redução da proporção de P&D em relação ao PIB na economia brasileira. Até o momento a competitividade definitivamente não está na agenda do governo.
40Por fim, uma das coisas mais relevantes do encontro foram as desculpas que Bolsonaro acabou expressando ao presidente da China, Xi Jinping, pelas agressões que haviam sido direcionadas àquela nação no ano anterior, durante o período eleitoral o Brasil. Nesse contexto de aproximação, o governo brasileiro acabou recebendo o presidente da Huawei, gigante das telecomunicações chinesa, visando a negociação da entrada do 5G no país. Ainda que expressivo, esse encontro foi complemente descolado dos BRICS, mais um fato que corrobora a baixa centralidade que o grupo tem para o atual governo e, portanto, das prioridades que a China tem dado ao grupo.
41O final do item anterior expressa um ambiente extremamente confuso no qual as relações sino-brasileiras têm estado imersas. Será feito um breve relato contextual de alguns episódios para que então se chegue nos contenciosos desenvolvidos a partir da pandemia do COVID-19 e sua chegada no Brasil.
- 17 Rocha (2019:4) recorda que foi “no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), que se tem uma (...)
42O Brasil após passar por governos que enfatizaram com vigor às relações Sul-Sul, em diversas escalas, tem sua geopolítica abalada pelas condições políticas internas de destituição de mais de 13 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Foi um período em que por mais que houvesse críticas, havia também direcionamento claro e ambição de maior protagonismo no cenário internacional, sobretudo nas gestões Lula. A própria construção dos BRICS mencionada anteriormente é emblemática desse processo, assim como aproximação com diversos países africanos17. Esses fatos rederam muitas críticas, mas muito apoio e entendimento de que se tratava de uma diplomacia mais proativa. Para Gadelha (2017:108) ao “engajar-se em negociações globais e expandir sua participação diplomática em agendas como a ambiental e de desenvolvimento, a apolítica externa brasileira” vinha prestando uma enorme contribuição ao soft power brasileiro. Mesmo o autor considerando que havia o que ser corrigido, sobretudo na imagem ligada aos problemas internos (desigualdade e corrupção), era mister que havia direcionamento e pujança do Brasil no exterior.
43Nesse processo de expansão geopolítica e diplomática, houve um papel ativo dos financiamentos brasileiros para governos do Sul Global, com maior ênfase para América Latina e África. Com o estouro dos casos de corrupção envolvendo operações da Petrobras, e a tentativa de criminalizar os financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no exterior, não apenas uma empreitada midiática, mas também os próprios partidos de oposição passaram a denominar essa política externa de ideológica e corrupta. Com o golpe de 2016, a mudança na condução da política externa passou a ser uma marca de oposição ao projeto anterior, mesmo que destruindo importantes laços criados. O conluio entre PMDB e PSDB, que assumiu o Ministério das Relações Exteriores, deixa clara essa tentativa de criminalizar ou tornar ideológica a política externa anterior através do discurso de saída do então ministro Aloysio Nunes18:
44Por determinação do presidente Temer nossa política externa recuperou sua vocação universalista. Rejeitamos a estreiteza de vistas, o sectarismo partidário, o dogmatismo incompatível com a ação política exercida em ambiente democrático. Aqui não apregoamos ideologias, de direita ou de esquerda. Fizemos política, política externa atenta à realidade efetiva dos fatos, “la veritá effetuale delle cose”, na expressão de Maquiavel, na defesa dos interesses permanentes do Brasil. O Presidente Bolsonaro reafirmou ontem, perante o Congresso Nacional, os compromissos assumidos por ele na campanha eleitoral. Referiu-se às relações exteriores nos seguintes termos: “A política externa retomará seu papel na defesa da soberania, na construção da grandeza e no fomento ao desenvolvimento do Brasil. (grifos nossos)
45Sectarismo partidário, dogmatismo, ideologias e realidade afeita dos fatos, expressam bem a necessidade de marcar uma ruptura brusca, de desqualificar a política externa desenvolvida no período petista e de afirmar que houve uma volta a um período em que a política externa foi ‘correta’. A declaração de Bolsonaro, quando assume, também expressa bem a ideia de retomar algo que se perdeu naquele momento e que se tornaria ‘normal’ novamente. Porém, o que se verificou e se aprofundou com o atual presidente foram outras formas nada convencionais à tradição da diplomacia brasileira que, mesmo no período criticado, sempre foi extremamente respeitada e marcada pelo pragmatismo.
- 19 Tamanha é a importância dessa lei para o governo chinês, que foi realizada uma reunião formal no Co (...)
46No que tange à China, mesmo antes de assumir, Bolsonaro cometeu uma afronta difícil mesmo até para um candidato à presidência: não só realizou uma viagem a Taiwan, histórico conflito geopolítico chinês, como fez uma declaração perniciosa afirmando que a China tinha intenções de comprar o Brasil. O imbróglio entre China e Taiwan remonta ao final da invasão japonesa e ao período de reconstrução chinesa quando, em disputa política, os derrotados representados pelo Partido Kuomintang se refugiaram na ilha e se autoproclamaram República da China. Desde então mantém autonomia, mas o governo chinês sob hipótese alguma permite sua independência, vide promulgação de Lei Anti-Secessão de 200519, que prevê intervenção militar caso a separação efetivamente seja declarada. Ou seja, trata-se de um dos assuntos mais delicados, com marcas históricas profundas e que atenta diretamente à soberania territorial chinesa, que, como mencionado na primeira seção, é pauta indiscutível à sua geopolítica e à sua diplomacia. Quando eleito, o vice-presidente Mourão teve que realizar uma visita à China para tratar de amenizar tanto a visita em período eleitoral quanto as declarações.
47A partir de sua posse, as necessidades fizeram com que Bolsonaro tivesse que voltar atrás, mas não impediram que sua equipe criasse problemas diplomáticos sérios ao longo de mais de um ano de governo. A matéria publicada em 2019 pelo Valor20 talvez expresse melhor do que se trata essa equipe, segundo a publicação: Bolsonaro estaria tentando conciliar dois movimentos antagônicos dentro do governo, um do núcleo ideológico, que propõe alinhamento automático com os Estados Unidos, e outro pragmático, que reconhece a necessidade de intensificar relações com a China. Contudo, a palavra ‘conciliar’ talvez não seja a mais adequada referência a um presidente que é conhecido pelo fato de ter, em sua gestão, um gabinete paralelo denominado ‘do ódio’.
- 21 Para além da criação de bolhas, Am,aral e Pinho (2018) já apontavam para a crescente importância do (...)
48A ingerência desse gabinete na presidência da República é feita através das redes sociais, em especial no Twitter. O uso das redes na política já tem sido motivação de trabalhos acadêmicos há um bom tempo. No Brasil, por exemplo, Malini, Ciareli e Medeiros (2017) realizaram um estudo sobre a ideia de ‘análise de sentimento’ no Twitter quando da ebulição dos fatores que desencadearam no processo de impeachment de Dilma Rousseff. Para os autores, já havia a percepção de que a produção política discursiva dos sujeitos em rede poderia, cada vez mais, ser objeto de ‘algoritmos emocionais’, cujo principal objetivo seria identificar os sentimentos que permeiam o debate no espaço público virtualizado. O futuro guardava espapaço privilegiado para essa análise, assim como evidenciaram Mariani et. al. (2019). Dentre outros elementos, os autores chamaram a atenção para o fato de Trump e Bolsonaro, seguindo a tendência do primeiro, terem no Twitter a principal ferramenta de comunicação, auxiliada por análises de comportamento técnico de seus usuários. Ainda, o uso político passou a ser dado com a criação de ‘bolhas’ temáticas ou ideológicas impulsionadas pelo uso de perfis falsos ou os chamados robôs21. Não cabe aqui entrar no mérito do uso eleitoral das redes, em 2018, e que levou Bolsonaro à presidência, extremamente questionável acerca do uso das chamadas fake News, mas sim enaltecer sua potência política e a centralidade que as redes vêm tendo na sua forma de fazer política.
49Uma das questões mais desastrosas do atual governo brasileiro talvez seja esse gabinete do ódio e quem o opera: em grande parte, os filhos do presidente, que têm ingerência expressa em suas postagens, assim como discursos, difamações e destruição de reputações de desafetos da presidência. No caso da chegada da COVID-19, algo completamente inusitado tomou forma exatamente a partir do Twitter. Após ter sido chamado de ‘vírus chinês’ pelo presidente estadunidense, Donald Trump, um embate digital que acabou chegando até em narrativas de ter sido um vírus ‘criado’ pela China para desestabilizar a economia mundial, pelo lado ocidental, e de ter sido levado pelos americanos em jogos do exército que ocorreram em território chinês. De qualquer forma, Trump passou a ser criticado por inúmeras frentes, incluindo a diplomacia chinesa, sobretudo por ter sido xenófobo. No final do mês de março, o próprio presidente americano já havia ‘parado’ de chamar a pandemia de vírus chinês22.
50Essa desavença é apenas mais uma em relação à uma guerra comercial e geopolítica entre EUA e China, que vem se arrastando entre taxações, disputas de influência regional (por exemplo na área Indo-Pacífica) e acusações de parte a parte. O que exatamente o Brasil teria a ver com isso, só um alinhamento estapafúrdio com os americanos seria capaz de explicar. Ou seja, é exatamente disso que se trata. A despeito do tamanho em que a China se transformou e de sua interdependência com o Brasil, tendendo mais à dependência brasileira, como demonstrado nos primeiros itens, ao aderir à narrativa de Trump, um conflito sem precedentes se instalou entre China e Brasil.
51É importante que se diga que até o fatídico tuíte do deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, a diplomacia chinesa ainda não havia se expressado com tamanha agressividade contra o Brasil. A 18 de março de 2020, ou seja, apenas dois dias depois de Trump ter se pronunciado, o deputado asseverou, a partir de um tuíte de um dos fundadores de uma página chamada Spotniks, que a culpa era da China e que a liberdade seria a solução, comparando a situação ao funesto acidente de Chernobyl (ver Figura 3). Antes mesmo de amanhecer, na madrugada do dia 19 de março, Yang Wanming, embaixador da China no Brasil, soltou nota na mesma rede repudiando ‘veementemente’ as palavras do deputado, exigindo que fosses retirada do Twitter.
Figura 4 – Sequência de mensagens que geraram conflito diplomático entre China e Brasil - 2020
Fonte : Twitter
52A partir de então, uma série de declarações partindo da Embaixada chinesa começou a circular ressaltando a empatia do povo chinês ao Brasil e do respeito que a China mantém pela soberania alheia. Em uma delas, a Embaixada aconselha: “Que dê uma guinada o mais rapidamente possível, já que a história nos ensina que quem insiste em atacar e humilhar o povo chinês, acaba sempre dando um tiro no seu próprio pé”. A ameaça direta foi corroborada com uma nota oficial divulgada pelo site da Embaixada no Brasil23, que não havia aceito a forma como Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores havia se pronunciado24:
53opomo-nos às difamações e insultos contra a China impostos por qualquer um e sob qualquer forma. A parte chinesa não aceitou a gestão feita pelo chanceler Ernesto Araújo à noite do dia 18. O deputado Eduardo Bolsonaro tem que pedir desculpa ao povo chinês pela sua provocação flagrante. O lado chinês defende sempre e de forma resoluta os seus princípios e jamais será ambíguo e tolerante com qualquer prática que afronte os seus interesses fundamentais. Esperamos que alguns indivíduos do lado brasileiro, na sua minoria, abandonem as suas ilusões e muito menos subestimem a nossa resolução e capacidade de salvaguardar os nossos próprios interesses.
- 25 A produtora do artista soltou a seguinte nota: “A Mauricio de Sousa Produções tem uma relação de mu (...)
54Aquilo que parecia ser de uma estupidez sem precedentes e com possíveis consequências negativas para o Brasil, não apenas não foi resolvido, como ganhou um novo episódio: o ministro da Educação, Abraham Weintraub, postou, no dia 4 de março, um tuíte com uma piada de extremo mau gosto, utilizando personagem infantil clássico brasileiro do quadrinista Mauricio de Sousa25, para insultar e colocar em xeque as relações sino-brasileiras(ver Figura 4)
Figura 5 – Tuíte do ministro da educação considerado xenófobo - 2020
Fonte : Twitter
55A reação foi novamente radical. Além da nota abaixo (ver Figura 5), a Embaixada publicou uma serie de tuites sobre o ocorrido26. Em um deles, afirmou: “Deliberadamente elaboradas, tais declarações são completamente absurdas e desprezíveis, que têm cunho fortemente racista e objetivos indizíveis, tendo causado influências negativas no desenvolvimento saudável das relações bilaterais China-Brasil”. Destacam-se também nas passagens do texto palavras como: indignação, repúdio, xenofobia e o pedido de correção imediata. As reações do chanceler brasileiro nessa ocasião foram basicamente nulas. Porém, o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ligou para o embaixador chinês e além de pedir desculpas, procurou afirmar os laços de cooperação e amizade entre os países. O ministro também concentrou esforços no sentido de solucionar gargalos logísticos que o Brasil tem enfrentado no combate à Covid-19, sobretudo em relação ao abastecimento de equipamentos de proteção individual e ventiladores, ambos tão necessários ao combate da proliferação e dos sintomas da doença. Este é outro aspecto que beira o surrealismo nas declarações de pessoas tão próximas ou diretamente ligadas à presidência em um momento em que a China tem conhecimento sobre a doença e a formas de tratamento, além de produzir a maior parte dos insumos necessários para seu combate. Ou seja, sob quais justificativas estariam baseadas essas formas de agressão em um momento tão delicado da história mundial?
Figura 6 – Nota oficial de repúdio da Embaixada da China no Brasil -2020
Fonte : Embaixada da China no Brasil
56Do ponto de vista formal, as reações chinesas foram inéditas para as relações sino-brasileiras, ainda que sejam muito conhecidas em outros países. Reilly (2013) realizou um esforço demonstração de como os objetivos geopolíticos e diplomáticos chineses são acompanhados por movimentos econômicos. Dois casos citados pelo autor são muito emblemáticos. Em 2009, o governo chinês solicitou ao governo cambojano a extradição de vinte membros da etnia Uighurs que haviam participado de protestos na província de Xinjiang. Semanas depois, cerca de 1,2 bilhões de dólares foram destinados ao Camboja em forma de empréstimos e auxílios. Em outro caso, no mesmo ano, o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, teria um encontro com o Dalai Lama. A resposta chinesa foi o adiamento da 11ª Cúpula anual entre a China e a União Europeia, como também o congelamento da encomenda de 150 aviões da gigante francesa Airbus. A França não apenas recuou como emitiu nota reconhecendo o Tibet como parte integral do território chinês. Os autores recordam que essas práticas vêm sendo utilizada desde o estabelecimento da República Popular da China, em 1949, quando já se tem notícia de ajuda ou sanções econômicas visando seus objetivos ideológicos e estratégicos. Tanto que as noções de diplomacy by other means ou war by other means, ou seja, diplomacia ou guerra por outros meios, tornaram-se a tônica nas análises geopolíticas e de política externa chinesa.
57O segundo termo, War by other Means, é parte do título do livro de de Blackwill e Harris (2018), autores que cunharam o conceito de geoeconomics, mistura de geoeconomia e geopolítica. A ideia central nasceu de um número especial da Council on Foreing Relations, em que Blackwill e Tellis (2015) advogaram a necessidade de estruturação de questões estratégicas dos Estados Unidos em relação à China. É interessante notar que esses analistas chamavam a atenção sobre o crescimento das políticas chinesas de fortalecimento de seu nacionalismo e de cuidado com a expansão dos valores democráticos americanos em seus domínios. Novamente, a questão da soberania é apresentada como central para os chineses, em uma espécie de ‘não interferimos em assuntos nacionais, não interfiram nos nossos’. Para Balcwill e Tellis (idem: 19), dentre alguns pontos levantados, era o momento de os Estados Unidos manterem o balanço de equilíbrio de poder na Europa e na Ásia liderados por eles, não permitindo um deslocamento em favor da China. Para tanto, o uso de artifícios econômicos com base em antigos aliados na região era fundamental para consecução desse objetivo.
- 27 A definição assumida por Blackwill e Harris (2016:20) é: “O uso de instrumentos econômicos para pro (...)
58Com o aprofundamento desse estudo sobre o crescimento da influência global chinesa, Balckwil e Harris (2018) sustentam a tese da geoeconomics27 com muita ênfase nas ações chinesas tanto no seu entorno estratégico, quanto em regiões outrora muito desconectadas com suas necessidades. Exemplos perpassam de negociações com a histórica parceira americana, Coreia do Norte, visando desestabilizar a construção do Terminal High-Altitude Area Defense (THAAD) para mísseis, até a própria constituição dos BRICS, dos bancos de desenvolvimento regionais e suas capacidades de criar amarras com diversos países.
59Essa potência econômica traduzida em objetivos geopolíticos que se tornou a China, definitivamente não tem suas operações de ‘guerra’ em favor de seus interesses montadas há dois ou três anos. O que esses autores têm demonstrado é que existe um planejamento sólido, baseado em claras estratégias regionais e globais, e que tem sido muito bem executado. A interdependência que o gigante asiático conseguiu construir no mundo inteiro desafia enormemente os interesses ocidentais, e, em grande escala, os estadunidenses. Se essa preocupação é expressa pelos analistas americanos, é porque se trata de uma realidade muito delicada e de uma ferramenta que vem sendo utilizada de forma extremamente profícua. Trata-se, portanto, dessa nação, que é hoje nossa maior parceira comercial, em meio a uma pandemia nova e cheia de questões radicalmente desafiadoras aos sistemas nacionais de saúde, que nossa burocracia tratou de afrontar recebendo como resposta comunicados altamente agressivos. O histórico chinês aponta para ações seriamente restritivas, quando o assunto é a defesa de seus interesses. O estado brasileiro parece nunca ter sido tão mal assessorado e tão arrogante em não ter clara sua dimensão no cenário internacional e da desproporcional mudança do centro de gravidade da economia mundial em direção à Ásia, fato que implica manter as melhores relações possíveis com sua principal potência.
60A chegada da covid-19 ao Brasil trouxe uma série de desafios difíceis até de serem elencados por sua complexidade sanitária e pela natureza inédita de seus condicionantes. A falsa dicotomia entre questões econômicas e salvar vidas, como tem sido posta pelo alto escalão do executivo federal, mascara o urgente e ágil planejamento para mitigação de seus impactos. As desigualdades socioterritoriais brasileiras tornam esse momento ainda mais delicado. Apenas para ficar em uma delas, nosso frágil pacto federativo tem sido colocado à prova em embates estaduais e municipais, a favor do isolamento, e propostas presidenciais de afrouxamento, o que tem produzido crises políticas eleitorais completamente desnecessárias em um contexto de imperativa união e contingenciamento dos efeitos maléficos da pandemia. A produção de crises tomou proporções ainda maiores com o embate ideológico que se estabeleceu a partir das redes sociais, em especial o Twitter, em relação ao nosso maior parceiro comercial e epicentro da pandemia, a China. Neste sentido, o presente artigo procurou posicionar o leitor sobre o tamanho que a China contemporânea tem, que se expressa pelo seu desenvolvimento tecnológico e pela execução de uma estratégia global, a BRI. Em um segundo momento, foram estabelecidas análises setoriais sobre a crescente presença chinesa em território nacional, enfatizando o gigantismo que não apenas as relações comerciais assumiram, como também os investimentos e as ações institucionais inovadoras, a exemplo da formação dos BRICS.
61Esse cenário positivo de grandes parcerias seria o contexto ideal para execução de um plano nacional para contenção da pandemia baseado na própria experiencia chinesa, assim como na provisão de recursos quase que exclusivamente produzidos por lá. É sempre bom recordar que a China possui um dos mais renomados centros de contenção de doenças do mundo, o Chinese Center for Disease Control and Prevention, com vasta experiência e desenvolvimento de pesquisas sanitárias importantíssimas. Um alinhamento estapafúrdio e inédito com os EUA para a diplomacia e geopolítica brasileira tomou conta da cena, produzindo uma reação por parte do governo chinês nada acalentadora e que aponta para possíveis retaliações, tendo em vista o histórico de suas abordagens quando afrontada em sua soberania ou vilipendiada em sua honra. A publicação de material ofensivo à dignidade da cultura chinesa por parte de alto executivo federal foi um dos acontecimentos mais incrédulos desta passagem, tendo ainda o ministro se recusado a pedir desculpas formais. Este fato demonstra que ainda há um preconceito enorme em relação à civilização chinesa, o que não contribui em nada para o Brasil e o torna alvo de descrédito internacional. O ocorrido também exacerba a péssima gestão federal, incapaz de produzir claras soluções mas altamente hábil em engendrar crises. Há quem considere que se trate de estratégia claramente definida com ambições político-eleitorais. Contudo, é difícil aceitar qualquer alternativa que não seja um esforço hercúleo para tornar as consequências dessa pandemia as mais reduzidas possíveis. Se já são impensáveis as tratativas entre governos estaduais e federal que se digladiam constantemente, o que se apresentou em relação à China beira o surrealismo e uma falta de senso de sobrevivência de uma economia que vem se arrastando a baixos índices de crescimento econômico por anos.