1Sob a ótica da corrente realista, as relações internacionais se caracterizam através de uma visão pessimista no que tange os laços cooperativos, e seus historiadores partilham o pensamento de que um sistema anárquico favorece o egoísmo entre os Estados. Em meio ao cenário caótico da Guerra Fria (1947-1991), o neorrealista Kenneth Waltz lança seu livro em 1959 intitulado “O Homem, o Estado e a Guerra” (WALTZ, 1959), no qual é defendido pelo autor que os Estados atuam de acordo com o próprio interesse, e de que a guerra é uma ferramenta eficiente de poder coercitivo para o benefício dos Estados, que buscam sempre obter vantagens na então “balança de poder”; ou seja, o equilíbrio de poder em meio à um sistema anárquico. Em seu livro, Waltz se referia a guerra como uma ação bélica, no entanto, em meio à pandemia provocada pela disseminação em larga escala do Corona vírus, a disputa estatal por meios de controle e vantagem perante os outros Estados afim de proteger a si mesmo torna sua obra presente em pleno século XXI.
2É evidente que, apesar da existência de instituições internacionais pacificadoras – como a Organização das Nações Unidas –, os Estados ainda buscam sua sobrevivência e agem conforme seus próprios interesses. Mas, diferentemente das guerras bélicas onde há o conflito direto, atualmente os “ataques” são realizados através da busca imprudente e inconsciente por vantagens individuais em meio a uma crise sanitária global, como têm feito os Estados Unidos, que o fizeram ser acusados de “pirataria moderna”1, por impedirem que suprimentos essenciais nesse momento de sensibilidade cheguem aos seus destinos ao reforçar seu padrão liberal recorrendo cinicamente à antiga lei da “oferta e da demanda”. Fica a dúvida: estariam os Estados Unidos reafirmando seu imperialismo hegemônico através de “boicotes” sanitários em meio a uma epidemia, ou é um pouco desse nacionalismo exacerbado que está em falta nos países latino-americanos, que continuam deixando suas fronteiras abertas e sua população exposta com medo da estagnação econômica? Neste artigo, são dois estudantes brasileiros morando na cidade do México e uma mexicana a tentar responder tal questionamento2.
3Importante ressaltar que na América Latina e Caribe, até abril de 2020, o número de infectados pelo novo coronavírus já ultrapassou a casa dos 50 mil casos. No Brasil, cuja população é de 209,5 milhões de pessoas, 23.430 casos já foram registrados e 1.328 mortes já foram calculadas. No México, a população supera 126,2 milhões de pessoas, e são 4.661 casos e 296 mortes3. O Brasil lidera o ranking de países na América Latina com o maior número de infectados, enquanto o México ocupa a terceira posição, atrás da Bolívia. Apesar de ambos Brasil e México contarem com um sistema de saúde pública, os números são extremamente alarmantes, superando a capacidade dos espaços de saúde. Há superlotação e os respiradores disponíveis nos dois países já não suprem a demanda, além dos números de testes serem insuficientes e gerarem subnotificações.
4A Cidade do México é uma das cidades mais populosas do mundo. Seu ar é pesado para aqueles que não estão acostumados devido a mescla de altitude e contaminação. Mas em abril, o ar da cidade já não está mais tão intragável como estava em meio ao frio do inverno mexicano em janeiro. Nota-se que o ar está mais limpo, afinal, com a pandemia enfrentada a nível mundial, muitas pessoas estão fazendo suas atividades através de plataformas digitais.
5Mas o céu não parece tão limpo para os vendedores autônomos. É possível ver o desespero no semblante desses vendedores, que juntos somam mais de 56 milhões de pessoas, representando 56,3% da população total do México, segundo o jornal mexicano El Economista4. Apesar de ainda haver um grande fluxo de pessoas nas ruas, o movimento já não é mais o mesmo, o que impacta diretamente em suas economias. Todos estão, de forma justa, preocupados5.
6Segundo uma pesquisa realizada em 2018 pelo Organisation for Economic Cooperation and Development (Organização de Cooperação Econômica e Desenvolvimento)6, os mexicanos são o povo que mais tem carga horária de trabalho por ano no mundo, superando as 2000 horas. Para piorar um pouco, o salário é recebido de acordo com o dia trabalhado. Ou seja: sem trabalho, sem dinheiro. Mas, qual é a relação entre o mercado laboral mexicano e o coronavírus? A maioria das pessoas que estão nas ruas são pessoas em situação de vulnerabilidade; caso não trabalhem, não terão dinheiro para comprar o próprio sustento. É uma escolha difícil, mas previsível: sair e correr o risco de ser contagiado e contagiar pessoas ou ficar em casa e não ter dinheiro para comer. Entre uma possibilidade e um fato, as pessoas acabam se arriscando. E como resultado, poucas pessoas estão, de fato, fazendo quarentena em casa.
7A quarentena no México ainda não é obrigatória. Está no estágio dois, no qual não é permitido apenas lugares fechados com mais de 50 pessoas. Transitar nas ruas ainda é um exercício comum. As fronteiras ainda estão abertas para serviços essenciais, como por exemplo para as relações bilaterais de comércio (ou melhor dizendo, dependência) dos Estados Unidos e México. As crianças ainda brincam na rua. Mas as faculdades e empresas estão atuando através do “home office” (trabalho em casa). Um grupo está “protegido”, enquanto o outro segue sua rotina buscando sua sobrevivência.
8Para estimular as pessoas a permanecerem em casa, criaram propagandas com o lema “Quedate em casa” (“Fique em casa”). A intenção é compreensível, mas ficar em casa sem trabalhar não é uma opção para todos, tornando a frase um pouco problemática devido a sua estrutura elitizada. Ficar em casa, em tais condições, infelizmente e tragicamente não é uma opção para todos. Infelizmente, para recebermos nossas comidas em aplicativos como “Uber Eats”, “Sin Delantal” e “DiDi Food” no conforto e segurança de nossas casas, algumas pessoas precisam sair e ir trabalhar. O cenário é de angústia, principalmente entre os diversos estrangeiros que estão confinados no país sem saber quando poderão regressar para casa.
9Mas, sair do México não é simples, e se o seu destino for o Brasil torna-se ainda mais complexo, já que o país apresenta números ainda mais alarmantes. Afinal, embora grande parte da população tente agir com sensatez respeitando as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e as demais autoridades locais, muitos subestimam o potencial destrutivo do vírus e continuam fazendo suas atividades normalmente. Não somente as essenciais, mas também as dispensáveis e mundialmente repreendidas, como sair para passear ou ir na academia. Todos se preocupam, mas pouco é feito. O humor atua como uma válvula de escape nos meios digitais, mas o medo é real e constante. E, ironicamente, o que mais preocupa para quem está acompanhando as notícias no país são as falas do chefe de Estado brasileiro – aquele que foi eleito para solidificar a soberania nacional e proteger sua população, mas, que no momento, age de forma pejorativa perante às medidas de segurança.
10A sensação de negligência à população e submissão perante a economia nunca foi tão forte nos dois países. É plausível dizer que uma crise nacional devido a estagnação econômica é factualmente grave. Mas, é absurdo não perceber que uma população dizimada por um vírus devido a negligência de líderes políticos e falta de políticas públicas direcionadas à população seja algo muito mais sério, e muito mais caótico. O isolamento nunca foi tão necessário, e concomitantemente, tão difícil.
11Tanto no Brasil, quanto no México, a desigualdade social é uma realidade expressa em índices alarmantemente maiores do que em países desenvolvidos. Isso significa que a falta de suporte científico somada a deficiência de aparatos tecnológicos para enfrentar a pandemia se agrava de maneira exorbitante entre os países latino-americanos. Para agravar um pouco mais a situação brasileira, os centros responsáveis pelo desenvolvimento e pela pesquisa nacional do país sofreram vários cortes do governo, tornando o Estado brasileiro um epicentro de desmonte educacional, científico e tecnológico, enfraquecendo ainda mais a sua população no combate à COVID-19, provocando o regresso do Brasil enquanto país geoestratégico no sistema internacional.
12No México, devido ao histórico de incessantes corrupções políticas em meios televisivos, a população atualmente é desconfiada de qualquer tipo de informação oriunda de meios midiáticos, muitas vezes reagindo de maneira áspera a elas, sendo consequência da perda de credibilidade das televisoras locais devido ao seu partidarismo. Mesmo que menos atingidos por “fake news” como estratégia de líderes políticos, a descrença mexicana sobre toda e qualquer informação tem cegado seus habitantes perante à atual crise sanitária mundial, os expondo a graves riscos.
- 7 Banco Mundial. Afrodescendentes na América Latina: Rumo a um Marco de Inclusão. Washington, DC: Wor (...)
13Como resultado, temos todo um continente despreparado para enfrentar esse fenômeno que tem assolado todo o mundo e que invisibiliza as graves diferenças sociais existentes, como o caso das pessoas que habitam as favelas brasileiras e as tribos indígenas do México e Brasil. São áreas cada vez mais marginalizadas economicamente e esquecidas perante as políticas públicas das administrações governamentais. Os que mais sofrem são as populações carentes, que em sua maioria são afrodescendentes e indígenas, segundo o relatório “Afrodescendientes en Latinoamérica: hacia um marco de inclusión”, realizado pelo Banco Mundial em 20187.
14Segundo a ONU-Habitat, “favelas” são espaços onde não há a presença dos serviços públicos básicos, como água, eletricidade e saneamento básico – condições essenciais para uma vida digna e saudável8. Esses espaços predominantemente ocupados pela população afrodescendente, principalmente no Brasil, são consequências vivas de uma história marcada pela colonização e precariedade para essa população, sendo um drama também presente na realidade dos indígenas. No México, a população indígena também se encontra em situação de vulnerabilidade, estando mais exposta que o restante do país devido a barreira linguística existente no país: o espanhol não é a língua oficial de algumas comunidades que possuem seu próprio idioma9. A falta de acessibilidade para essa população é, indiscutivelmente, uma falha do poder público mexicano vigente.
- 10 Termo cunhado pelo camaronês Achile Mebembe (Necropolítica, São Paulo: n-1 edições, 2018).
15É importante ressaltar que esse cenário pode agravar ainda mais o risco das comunidades negras e indígenas, visando que tanto no México quanto no Brasil, o racismo ambiental, estrutural, cultural e institucional está presentes em sua rotina. A pandemia pode impulsionar ainda mais a marginalização dessas populações. Nesse panorama, a realidade em que vivemos é de uma política altamente letal, também conhecida como necropolítica10, que com o advento do capitalismo e das novas formas da ideia de “fazer morrer” ou “deixar morrer”, as tecnologias de destruição evoluem e não dão importância aos corpos das vítimas letais, uma vez que estão mais preocupados com a evolução da ferramenta que será a causadora do “fazer morrer” e com o retorno econômico causado por esta evolução tecnológica.
16Os relatos brasileiros e mexicanos em relação ao que tange o coronavírus são similares, com diferenças pontuais “adaptadas” de acordo com cada território, assim como seus interesses e necessidades.
17No que se refere ao cotidiano dos estudantes, as aulas permanecem sendo ministradas através de plataformas online. Foi a maneira proporcionada pelas universidades locais, principalmente no México, para darem continuidade ao seu trabalho sem arriscarem os estudantes à exposição. No entanto, isso é problemático: as universidades brasileiras não adotaram até então essa medida pela consciência das dificuldades de grupos mais vulneráveis ao acesso remoto que possibilitaria o acompanhamento das atividades. Novamente, questões socioeconômicas vêm à tona.
18Uma diferença considerável é em relação a postura dos presidentes dos dois países, já que o presidente mexicano se preocupa com a situação enquanto o presidente brasileiro trata a pandemia de forma pejorativa. Todavia, ambos têm menor protagonismo em relação ao combate da doença ao serem comparados com os governantes das unidades federativas – os governadores do Brasil e os “jefes de governo” mexicanos –, que vêm se destacando mais incisivamente na promoção dos cuidados de prevenção para a população.
- 11 Doutrina Monroe: proferida no dia 02/11/1823 pelo presidente James Monroe, a doutrina tinha como ba (...)
19Esse momento de sensibilidade expôs para o mundo as fragilidades de todos os países. Se a China, país em que se iniciou a propagação do vírus, atualmente apresenta dados mais positivos em relação à mortalidade e à quarentena, a América Latina sofre as consequências de ter tomado medidas insuficientes e, muitas vezes, negligentes perante o combate do vírus. A América Latina continua carregando as marcas da colonização e permanece submissa às vontades e necessidades americanas. Nota-se isto ao permitir suas fronteiras abertas e pela pauta da economia se sobressaindo sobre as necessidades da saúde. São necessárias medidas mais rigorosas de isolamento e medidas de auxílio econômico a todos os públicos, a fim de proteger a população de maneira plural, sem distinção de classe social ou empecilhos linguísticos. A balança de poder é, realmente, fluída. Enquanto a China – pertencente ao chamado BRICS, grupo de países emergentes que o Brasil faz parte – vem se fortificando principalmente devido aos seus avanços tecnológicos, o Brasil e a América Latina parecem continuar presos em uma colonização invisível e viciosa, já enraizada em sua história, mas desta vez, tendo como dominador o próprio criador da Doutrina Monroe11.