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Pandemia do Coronavírus e (des)coordenação federativa: evidências de um conflito político-territorial

The Covid-19 pandemic and (dis) agreement federation: evidences of a political and territorial conflict
Pandemia del covid-19 y (des) cordenación federativa: evidéncias de un conflicto político y territorial
Pandémie de la covid-19 et (dé-) coordination fédérative : évidences d’un conflit politico-territorial
Juliana Nunes Rodrigues e Daniel Abreu de Azevedo

Resumos

Após quatro meses desde o primeiro caso do novo coronavírus (COVID-19) detectado no Brasil, governos municipais, estaduais e a União ainda travam embates sobre as responsabilidades de cada ente da federação na busca de soluções para o maior problema sanitário do século XXI. Este artigo tem como objetivo destacar os entraves político-institucionais existentes em nosso Pacto Federativo, ancorados no funcionamento do federalismo cooperativo brasileiro. Argumenta-se que um combate eficaz à pandemia se faz, necessariamente, pela articulação entre os entes federativos norteada pela União, com planos de atuação e de implementação definidos pelos gestores nas escalas locais.

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Texto integral

Introdução

1 Diante de milhares de mortes em decorrência da difusão da pandemia de coronavírus no Brasil, a crise social que se instalou no país é algo que poucos poderiam imaginar que ocorreria, e as consequências são sentidas não apenas no combalido sistema de saúde brasileiro, mas também no cotidiano das pessoas, na economia e, de forma bastante evidente, na instauração de uma crise federativa. Nesse contexto, cientistas sociais das diversas matrizes disciplinares e teóricas têm procurado extrair reflexões a partir de seus campos de pesquisa, e é esta a modesta pretensão deste texto.

2A partir do olhar de dois geógrafos políticos que se preocupam com os dilemas da engenharia político-institucional e territorial brasileira, procura-se contribuir para o debate sobre a complexa trama de implicações federativas que têm acompanhado a propagação territorial do vírus. Nosso objetivo é destacar que a crise da pandemia do coronavírus no Brasil expôs entraves para a articulação entre os entes federativos decorrentes da confusão de seus papeis, colocando em risco as medidas de enfrentamento. Trata-se, pois, de enfocar o debate sobre as relações entre as escalas decisórias que definem decisões e ações válidas para recortes político-administrativos precisos (LEVY, 1991). Pontuamos que a atuação coordenada entre os entes federativos, com destaque para a premência de ações nas escalas locais em um território profundamente desigual, é o caminho seguro para o enfrentamento da crise.

  • 1 Sobre isso, ver Rodrigues, 2010.

3Pode-se dizer que o federalismo brasileiro passou por fases que se alternaram pelo maior grau de centralização ou descentralização política. Em alguns períodos, como no caso dos dois governos ditatoriais (1937-1945 e 1964-1985), o grau de centralização era tamanho que “estados e governos locais quase se transformam em agentes administrativos de um governo nacional com grande envolvimento em assuntos subnacionais, predomínio nos processos de decisão e no controle dos recursos financeiros” (ALMEIDA, 2005, p.31). Porém, dado o fim da ditadura militar na década de 1980, o progressivo processo de descentralização foi posto em marcha como um modo de democratizar o sistema político brasileiro. Não vamos aqui nos ater aos equívocos já largamente explorados acerca das leituras apressadas que aproximam descentralização e democracia1. No entanto, foi efetivamente com a promulgação da Carta Magna de 1988 que o Brasil experimentou uma nova onda de valorização das escalas subnacionais, a qual garantiu aos municípios a posição de ente federativo. Importa destacar que esse status não é conferido às estruturas de gestão local em nenhum outro Estado federal, ainda que o processo de descentralização, no Brasil, não tenha se completado - as efetivas capacidades administrativa, financeira e a autonomia política nessas escalas são profundamente afetadas por constrangimentos de diversas ordens, inclusive constitucionais, como se verá mais adiante. Somem-se a esses constrangimentos mediações demográficas, políticas, econômicas e territoriais, marcas das desigualdades que se expressam nas múltiplas escalas e recortes subnacionais do País.

4São justamente a fragilidade e as contradições dessa relativa descentralização política que a crise político-institucional do coronavírus expõe de forma cristalina. Desde o processo de redemocratização do Brasil na década de 1980, novas competências foram atribuídas ao Município. Com efeito, a nova Constituição confere uma gama de novas responsabilidades, que vão desde criar divisões distritais até a responsabilidade sobre a definição de políticas de educação, de saúde, de saneamento básico e de mobilidade, entre outras (ABRUCIO, 1998). No entanto, as capacidades financeiras não acompanharam esse processo de incremento de atribuições, e permaneceram bastante concentradas na União, gerando-se contradições de difícil solução; isto é, houve a obrigação constitucional de um leque de atribuições, mas sem, necessariamente, que ficassem garantidos recursos necessários para executá-las. Isso explica a forte dependência dos municípios em relação às transferências (constitucionais ou não) da União e dos estados aos seus orçamentos (RODRIGUES, 2006).

5Indo mais além, a Constituição de 1988 estabeleceu um conjunto de competências compartilhadas entre as três escalas decisórias – a saber, União, estados e municípios –, notadamente nos setores mais fundamentais das políticas sociais, como os de saúde, de educação e de assistência social. Entretanto, a concorrência de atribuições nesses setores, pouco claro na letra da lei e propenso a barganhas federativas - foi frequentemente caracterizado por sobreposições, incoerências e - o que é ainda pior -, lacunas significativas na oferta de bens e serviços públicos os mais essenciais. Acrescente-se que o desenho político-institucional firmado em 1988 possibilitou que, por meio da aprovação de emendas parlamentares, uma progressiva recentralização do papel da União tenha ocorrido ao longo dos anos (ARRETCHE, 2012).

6Em síntese, está-se diante de um problema de coordenação político-territorial que se manifesta em três dimensões políticas: i) na dimensão institucional e da ordem do sistema político que, no Brasil, caracteriza-se por um pacto federativo bastante centralizado e pouco claro na definição dos limites de competências; ii) nos conflitos político-partidários que afetam a governabilidade e a governança do sistema; e iii) no desenho das ações e nas escolhas políticas adotadas. Há, portanto, uma constante tensão político-institucional que resulta em arranjos e acomodações para a gestão de conflitos.

7 Diante da proliferação do vírus, essas tensões se exacerbam em uma permanente e inconsequente politização da saúde pública – assiste-se a um despudorado cenário em que governadores, prefeitos e governo federal se valem das falhas e oportunidades facultadas pelo desenho político-institucional para arriscarem suas apostas. Para fins de contribuição com o debate público, buscamos sintetizar alguns dos gargalos que dificultam a gestão territorial da crise.

O avanço do vírus expõe nossos problemas político-institucionais

  • 2 Para uma breve síntese, ver Miriam Leitão, Política de Governadores, Jornal O Globo, 26/03/2020.

8 Se recuperarmos algumas reportagens divulgadas no último mês sobre as dificuldades para enfrentamento da crise, percebemos que um dos grandes entraves para um combate eficaz está a falta de clareza sobre as atribuições de cada escala decisória e a falta de coordenação federativa. Desde o começo do governo, o presidente Jair Bolsonaro tem mantido notável distanciamento dos governadores, além de ter gerado conflitos com alguns deles, discriminando grupos regionais supostamente opositores e/ou concorrentes. Os governadores, por outro lado, escreveram cartas públicas, criaram consórcios regionais, escolheram porta-vozes, e têm intensificado, publicamente, menções a adversidades e mesmo feito declarações de repúdio a pronunciamentos do Presidente da República. Temos, assistido, portanto, semana após semana, à elevação da temperatura entre prefeitos, governadores e presidente em relação às ações de enfrentamento à pandemia em território nacional2.

9 Para exemplificar, em reportagem do dia 25 de março de 2020, o jornal O Globo3 questionou qual representante do Poder Executivo teria a atribuição constitucional de mandar reabrir o comércio durante a pandemia de coronavírus no município do Rio de Janeiro - se Jair Bolsonaro, Wilson Witzel ou Marcelo Crivella, respectivamente Presidente da República, Governador de estado e Prefeito. A jornalista que a subscreve apontou que na mesma data em que o Presidente da República concedeu uma declaração contra decretos estaduais em prol das medidas de isolamento e do fechamento do comércio, o prefeito do Rio permitiu a sua reabertura, mas, logo em seguida, o governador interveio e a revogou. O caos político-institucional se instalou e a população não sabia não apenas a qual autoridade seguir, mas, tampouco, a qual instância caberia o poder de decisão. A reportagem afirma:

A Carta não é clara sobre os papéis da União, dos estados e dos municípios. O artigo 30 diz que compete aos municípios “legislar sobre assuntos de interesse local” - o que, na prática, é bastante amplo. O artigo 25, que os estados têm “as competências que não lhes sejam vedadas pela Constituição”. E o artigo 21 dá à União a atribuição de “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações.

10Importa assinalar que o artigo 30 da Constituição define como atribuições municipais muitas das competências citadas no artigo 23 na forma de competências compartilhadas; ou seja, espera-se que os municípios assumam responsabilidades sobre as políticas públicas de proximidade (RODRIGUES e MOSCARELLI, 2016). No entanto, na ausência de atuação local, os estados e a União podem intervir nas atribuições citadas no artigo 23 na forma de “gestão compartilhada”. Ademais, a Constituição manteve a tradição de concentrar grande parte da capacidade de legislar na escala federal, o que limitou a autonomia dos governos de estados e municípios para se lançarem em iniciativas próprias (ABRUCIO; SOARES, 2001; SOUZA, 2003).

11 Na semana anterior, a contenda girou em torno do fechamento de aeroportos e de estradas, visto que muitos governadores intentavam isolar seus respectivos estados e impedir a circulação de pessoas oriundas de locais com alto nível de contágio. A reportagem do Uol4 do dia 20 de março de 2020 informou que “a Bahia foi à Justiça para conseguir fazer uma barreira sanitária de viajantes de São Paulo e Rio, o Maranhão também vai entrar com ação judicial e Goiás pretende fechar aeroportos”. Antes disso, o governador fluminense já havia determinado o fechamento das divisas do estado e o presidente Jair Bolsonaro teria afirmado que não caberia aos governos estaduais essa decisão, mas sim à União a partir das agências, como a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres, no caso de transporte interestadual de ônibus) e da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil, para o transporte aeroviário). Em nota divulgada pela ANAC, o órgão respondeu ao governador do Rio de Janeiro da seguinte maneira:

Segundo a Constituição Federal, aeroportos são bens públicos da União Federal, atendendo a interesse de toda a nação, além das localidades imediatamente servidas. Visando o interesse público, cabe à União determinar o fechamento de aeroportos e de fronteiras. No que diz respeito a questões fitossanitárias, esta determinação segue as orientações do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

12O conflito em torno do fechamento do comércio, de estradas e de aeroportos chegou à instância do Supremo Tribunal Federal, cuja decisão tomada por dois ministros em caráter liminar determinou que, para o caso de bares, restaurantes e outros tipos de estabelecimentos comerciais, não restaria dúvida de que a decisão sobre o fechamento ou a abertura caberia aos governos locais, e não ao Governo Federal. Por outro lado, “Marco Aurélio Mello decidiu na terça-feira que não apenas a União, mas estados e municípios também têm poderes para definir a locomoção por estradas, portos e aeroportos - seja em surto de coronavírus ou não” (O Globo, 25/03/2020).

13Na região metropolitana do Rio de Janeiro, em Niterói, o prefeito decidiu, desde o dia 4 de abril, restringir o acesso ao município. Criaram-se então 28 pontos de bloqueio, que incluíram a construção de barricadas de concreto para impedir a passagem de ônibus e carros provenientes de municípios vizinhos. Ao site R7 Notícias5, o secretário municipal de Urbanismo e Mobilidade de Niterói afirmou que

O trânsito será totalmente bloqueado em 21 ruas e estradas vicinais da cidade que se conectam com Maricá e São Gonçalo. Nesse primeiro momento, nos sete pontos possíveis de acesso a Niterói será feito o controle de entrada de veículos, e os táxis de outras cidades serão orientados a voltar daquele ponto, pois não poderão mais entrar na cidade a partir do sábado.

14Bem distante da contenda entre Presidente, governadores e prefeitos da região Sudeste, em Manaus, o prefeito Arthur Virgílio, diante do colapso não apenas do sistema de saúde, mas também das funerárias, declarou, em entrevista à CNN Brasil:

  • 6 Conforme reportagem da Folha de São Paulo publicada no dia 11/04/2020. Acessível em: https://www1.f (...)

É um apelo de um mero prefeito. O presidente Bolsonaro não pode mais dar esses exemplos. Ele não pode dar. Desmobiliza. Essas atitudes do presidente, que sai tranquilamente às ruas e mostra, segundo o ponto de vista dele, que não há perigo de nada... Isso desmobiliza. Para desmobilizar, basta um passeio numa feira.6

15Segundo o prefeito, teria havido uma queda da adesão às medidas de isolamento depois que o presidente começou a sair ostensivamente às ruas, desencadeando uma campanha contrária à dos gestores locais.

16Essas incompatibilidades de ações e de discursos culminou em uma nova decisão do STF, que no dia 15 de abril de 2020, definiu por unanimidade que estados e municípios têm autonomia para a determinar medidas de isolamento social7. Na sessão, os ministros destacaram que “prefeitos e governadores têm competência concorrente em matéria de saúde pública”, além do fato de não ter havido, até aquele momento, um posicionamento geral da União quanto à maneira de regulamentar e coordenar as ações com base em “um tratamento técnico científico de uma epidemia gravíssima”8.

17Posto isso, os conflitos expostos no último mês iluminam pontos cegos do nosso assim chamado “federalismo cooperativo”. A concepção de federalismo cooperativo, tal como valorizado e instituído pela Carta Magna de 1988, define um conjunto de competências compartilhadas entre a União, os estados federados e os municípios. Esse desenho buscou estimular a cooperação e a coordenação entre os entes federados, que desse modo nem sempre desempenham funções exclusivas, como é o caso da saúde. Para universalizar o acesso à saúde, por exemplo, o desenho do SUS promoveu a articulação e a divisão de responsabilidades e recursos entre os três entes da Federação, que devem estar coordenados para prover serviços e equipamentos de saúde de graus de complexidade distintos – atenção básica, equipamentos e serviços para atendimento de média e de alta complexidade.

18No entanto, as diretrizes sobre como a coordenação de decisões e ações deve se estabelecer, assim como os diferentes papéis dos entes federativos na “partilha” ficariam a cargo de legislações complementares, que até o presente não foram regulamentadas a contento para diversos setores de políticas públicas. Ou seja, efetivamente, a assunção de responsabilidades sobre um conjunto de políticas públicas pode se alterar ao sabor de um jogo político muitas vezes circunstancial, em que pesam o ônus ou os retornos políticos que a aceitação de determinada responsabilidade pode significar para cada governante. Ou ainda, conforme demonstrou cuidadosamente Marta Arretche em sua pesquisa sobre os condicionantes da descentralização de políticas sociais no Brasil, a assunção de responsabilidade sobre políticas não claramente definidas pela Constituição é resultado ora da iniciativa própria de cada ente federado, ora de incentivos e estímulos à adesão a algum programa proposto por uma escala de governo (ARRETCHE, 2000).

19Nesse quadro, as prefeituras têm autonomia para assumir ou não determinados serviços, assim como para aderir a programas ou políticas adotadas pelos estados e pelo Governo Federal. Em suma, quaisquer discussões acerca de políticas públicas compartilhadas entre escalas de poder político têm necessariamente como ponto de partida negociações e acordos que se dão em arenas políticas distintas. No contexto atual, a competição político-eleitoral precoce parece orientar os discursos, as decisões e ações políticas mais do que a propalada “cooperação federativa”.

20É esse embate e problema político-institucional que a pandemia de coronavírus ilumina. Em se tratando da política pública de saúde, de grande impacto orçamentário, a concentração de recursos na União dificulta a autonomia do município para atuar de modo eficaz no combate à pandemia e em outros setores públicos correlacionados.

21 Segundo levantamento de dados da Frente Nacional de Prefeitos, entre 2002 a 2018 houve um decréscimo de participação da União no aporte financeiro para custear a saúde, mesmo sendo esse o ente federativo que detêm mais da metade de todos os recursos públicos do País. O quadro abaixo revela que a União era responsável por 52,4% em 2002, e em 2018 esse número caiu para 43,9%, o que aumentou a pressão nos municípios para investimento nesse setor de política pública.

Quadro 1. Despesa de cada ente federado com ações e serviços públicos de saúde

Ano

União

Estados

Municípios

2002

52,4%

22,1%

25,5%

2003

50,5%

24%

25,6%

2004

49,3%

26%

24,7%

2005

48,2%

25,5%

26,3%

2006

46,7%

26,3%

27%

2007

45,8%

26,9%

27,3%

2008

43,4%

27,6%

29%

2009

46,6%

25,8%

27,6%

2010

44,7%

26,9%

28,4%

2011

45,3%

26%

28,8%

2012

45,3%

25,3%

29,4%

2013

42,6%

26,7%

30,7%

2014

42,4%

26,5%

31,1%

2015

43%

26%

31%

2016

42,8%

25,5%

31,6%

2017

43,2%

25,7%

31,3%

2018

43,9%

24,9%

31,2%

22Sobre esse quadro, o presidente da Associação Mineira de Municípios afirmou em entrevista que “a gente vive em uma federação capenga, às avessas. Isso porque o dinheiro está todo concentrado nas mãos de quem não presta serviço, que é a União. Enquanto a gente, município que presta o serviço, que tem maior contato com a população e sabe onde está precisando mais, não tem o dinheiro”10.

23O quadro acima expõe, porém, que o padrão de alocação de recursos está orientado de forma a destacar o papel de regulação que a União deve desempenhar no nosso desenho federativo atual. A mais ampla capacidade de gasto da União significa que é essa a escala que conta com “recursos institucionais para coordenar as ações dos governos subnacionais em torno de objetivos comuns” (ARRECTCHE, 2012, p.22).

  • 11 A PEC 188/2019, denominada “PEC do Pacto Federativo”, proposta pelo atual governo, estabelece diret (...)

24Sobre o grau de centralização e descentralização de recursos, que compreendem inclusive vinculações e condicionalidades constitucionais que orientam transferências e reafirmam papel redistributivo da União, diversas proposições e agendas de reformas são postas em debate11. No entanto, definir em qual escala, como e onde executar as políticas públicas e clarificar os marcos regulatórios dos limites de atribuições entre os entes federativos não é uma tarefa trivial. Talvez os modos de enfrentamento da crise consolidem, porém, uma oportunidade para enfrentá-la.

Nós vivemos no município, mas quem deve coordenar as ações é a União

25A declaração do presidente da Associação Mineira de Municípios, se lida de forma apressada, poderia nos levar a alegar que caberia ao Município, como escala de proximidade, o papel de traçar estratégias para enfrentamento da crise. Trata-se de uma “meia” verdade, pois é efetivamente no município que todos habitamos e exercemos direitos e deveres, é onde votamos e onde candidatos são votados; e é nele que são acessadas as políticas públicas mais relacionadas às características socio-territoriais particulares de onde vivemos (CASTRO, 2005).

26No entanto, é oportuno acrescentarmos ao debate uma precisão conceitual, bastante cara a análises sobre nosso pacto federativo – entre as escalas do policy making e aquela do policy decision making (ARRETCHE, 2012). Essa distinção analítica se refere à capacidade de decidir sobre a forma de implementar (policy making) e à capacidade de regular e de coordenar as decisões (policy decision making). A partir dessa discriminação, entende-se que, em se tratando de políticas sociais que se quer universalizadas em território nacional, o papel da União de regulação e de coordenação de ações é indelegável. Isso quer dizer, por um lado, que na escala federal se detém a capacidade de policy decision making, devendo-se definir os princípios, desenhar as políticas e programas de ação, as metas, além de, por meio da maior capacidade de gasto, supervisionar as ações a serem implementadas. Por outro lado, no que se refere à capacidade decisória sobre as estratégias e ações de enfrentamento de proximidade, as responsabilidades se voltam para as escalas subnacionais. Desse modo, a regulação federal afeta decisivamente as agendas dos governos subnacionais. Porém, na fase de implementação, há margens de discordâncias que interferem no desempenho das políticas (ARRETCHE, 2012, p.24). Sobre isso, Arretche afirma que:

Ainda que os poderes regulatórios da União exerçam forte influência sobre a agenda e as políticas das unidades constituintes, seria equivocado concluir que as unidades constituintes não são atores relevantes na formulação e implementação de políticas públicas (ARRETCHE, 2012, p. 22).

27As escalas de atuação política são, portanto, complementares. É na escala do cotidiano, em que gestores e agentes públicos se deparam com as particularidades de seus espaços de adensamento e de complexidades intraurbanas, que encontramos condições a serem valorizadas para o enfrentamento da pandemia. O espaço intraurbano, com todas as suas particularidades sociodemográficas, é de maior conhecimento pelos gestores municipais, na sua capacidade de identificação de áreas com maiores chances de contágio em relação às suas diferenças de adensamento, às condições de saneamento básico, de moradia e, sobretudo, em relação às suas capacidades de atendimento em saúde instaladas. Além disso, prefeitos e vereadores possuem conexões com líderes de associações de moradores e outros movimentos sociais e agentes urbanos passíveis de apoiar ações, inclusive no que se refere à comunicação e ao acesso à própria população. Acrescentem-se as modalidades de cooperações intermunicipais entre entes federativos, como os Consórcios Intermunicipais (RODRIGUES, 2011; 2010) e os espaços políticos municipais representativos, como a ideia dos Conselhos Municipais (AZEVEDO, 2018), que poderiam ser mais bem mobilizados como instrumentos e canais para a elaboração de estratégias voltadas para a ampliação de políticas de saneamento, da rede de prevenção, do atendimento básico em saúde e, também, de combate a epidemias.

28Por fim, diante dos acontecimentos e da gravidade da crise federativa instalada, são patentes a descoordenação no próprio âmbito federal e a inapetência do Governo Federal para unificar os princípios que devem nortear as ações nas escalas subnacionais. A tônica tem sido, pelo contrário, a incongruência de discursos e de ações. Esse quadro se agrava de forma ainda mais dramática se consideramos o problema da (des) coordenação em uma sociedade e em um território extremamente complexos e desiguais.

29Em síntese, se a difusão do coronavírus expõe números e estatísticas que caracterizam um fenômeno de disseminação global, é nos marcos das contradições e das fragilidades políticas e institucionais da Federação e dos governos brasileiros que vivenciamos o enfrentamento da pandemia. Nesse quadro, as lacunas do nosso pacto federativo, associadas aos conflitos de interesses político-partidários que se ancoram em diferentes escalas de poder, parecem nublar os processos de tomada de decisões e de ações republicanas para o enfrentamento do vírus.

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Bibliografia

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Notas

1 Sobre isso, ver Rodrigues, 2010.

2 Para uma breve síntese, ver Miriam Leitão, Política de Governadores, Jornal O Globo, 26/03/2020.

3 Retirado da página https://oglobo.globo.com/analitico/bolsonaro-witzel-ou-crivella-quem-pode-mandar-reabrir-comercio-durante-pandemia-de-coronavirus-24327828 no dia 09 de abril de 2020.

4 Extraído da página https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/fechamento-de-estradas-preocupa-governo-e-auxiliares-pedem-que-bolsonaro-planeje-acoes-com-governadores.shtml?origin=folha no dia 09 de abril de 2020.

5 Retirado da página https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/com-28-pontos-de-bloqueio-niteroi-restringe-acesso-ao-municipio-04042020 no dia 09 de abril de 2020.

6 Conforme reportagem da Folha de São Paulo publicada no dia 11/04/2020. Acessível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/bolsonaro-desmobiliza-combate-ao-novo-coronavirus-diz-prefeito-de-manaus.shtml, em16 de abril de 2020.

7 Folha de São Paulo, 15/04/2020. Acessível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/com-recados-a-bolsonaro-stf-forma-maioria-para-permitir-estados-a-regulamentarem-isolamento-social.shtml. Data de acesso: 16/04/2020.

8 Ministro Alexandre de Moraes em seu discurso de fundamentação do voto que referendou a decisão do Ministro Marco Aurélio Melo do dia 24 de março de 2020. Cf. Reportagem da Folha de São Paulo indicada acima.

9 Retirado da página https://www.otempo.com.br/politica/subscription-required-7.5927739?aId=1.2257412 no dia 09 de abril de 2020.

10 Retirado da página https://www.conjur.com.br/2018-abr-25/cesar-caula-dru-concentracao-recursos-poder-uniao no dia 09 de abril de 2020

11 A PEC 188/2019, denominada “PEC do Pacto Federativo”, proposta pelo atual governo, estabelece diretrizes para promover uma maior descentralização e desvinculação de gastos. Porém, o texto possui incoerências e imprecisões internas, sendo bastante controverso em seu conteúdo.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Juliana Nunes Rodrigues e Daniel Abreu de Azevedo, «Pandemia do Coronavírus e (des)coordenação federativa: evidências de um conflito político-territorial»Espaço e Economia [Online], 18 | 2020, posto online no dia 23 abril 2020, consultado o 09 dezembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/espacoeconomia/12282; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/espacoeconomia.12282

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Autores

Juliana Nunes Rodrigues

Professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Doutora em Geografia pela Université Jean Moulin Lyon 3, França, tendo realizado estágio em pesquisa no Instituto de Sciences-Po, Paris. Desenvolve pesquisas na área de Geografia Política, com ênfase nos seguintes temas: federalismo brasileiro e território, escalas políticas, políticas públicas, participação política, governança e cooperação territorial. É coordenadora do Núcleo de Pesquisas sobre Pactos Político-Territoriais e Desenvolvimento (www.nupact.com.br). E-mail: juliananunes@id.uff.br

Daniel Abreu de Azevedo

O autor trabalha desde sua tese de doutorado com a relação entre espaço político e democracia, com especial interesse na América Latina. Tem estágio em doutorado no Centro de Estudos sobre América Latina da American University (Washington D.C.) e pós-doutorado na Universidad Nacional Autónoma de México. Atualmente é Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília, onde desenvolve pesquisas que lidam com a estrutura político-territorial brasileira e a democracia. Suas pesquisas buscam conciliar a Geografia Política e reflexões metodológicas quantitativas e qualitativas. É vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Política e Território (GEOPPOL-UFRJ). Email: dan_abreudeazevedo@hotmail.com

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