Nos últimos vinte anos, tenho tido a chance de aprender de perto com interlocutores do porte e da generosidade de Floriano Godinho de Oliveira (PPFH/UERJ) e Leandro Dias de Oliveira (PPGGEO/UFRRJ). Mais recentemente, o convívio com Pablo Ibañez (DG/UFRRJ) redirecionou meu olhar para as particularidades da política brasileira. Colegas como Leonardo Chagas de Brito, João Alves de Souza Neto, Zilmar Luiz dos Reis Agostinho, Rafael Wionoscky Garcia, Fábio Moreira Barcellos e Ismael Lauria fizeram leituras substanciais de versões iniciais desse texto e pude beneficiar-me de várias de suas observações. Separo, notadamente, as lições sobre política compartilhadas pela inteligência sensível de Isabô Lauria.
1A leitura da excelente reportagem da piauí sobre o impeachment de Dilma Roussef entre 2015 e 2016 1desnuda a trama indigesta costurada pela principal mentora da idéia, Janaina Paschoal, e posta em prática pelo grupo político responsável por toda a transação, liderado pelo fenomenal Eduardo Cunha instalado na Presidência da Câmara dos Deputados. Sob incipiente alegação das pedaladas fiscais, a direita foi premiada com o álibi oportunista da vez e retornou ao poder por meio da indescritível figura de Michel Temer.
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2Abria-se, assim, não só oportunidade para a efetivação de reformas neoliberais como a trabalhista e a PEC do “Fim do Mundo” 2, mas também para a prisão política do principal nome da esquerda brasileira sob a chancela “legal” da Operação Lava-Jato. Perseguido até às últimas consequências pelo juiz de primeira instância Sergio Moro, Lula esteve longe de receber julgamento imparcial. Tal como ocorrera com a destituição de Roussef, tratou-se de inescrupulosa prestidigitação político-jurídica de ampla repercussão midiática visando a retirada do maior nome da esquerda brasileira do pleito presidencial.
3Eis montado o cenário para o ovo da serpente que estava por vir: Jair Bolsonaro, o espectro da ditadura militar, sairia dos bastidores para o centro do palco vociferando em carne e osso contra partidos, instituições e mídia hegemônica em nome de Deus, da Pátria e da Família. O apoio maciço do neopentecostalismo revestiu a tragédia de dimensões irracionais e a difusão pelas redes sociais de fake news sem precedentes contra o Partido dos Trabalhadores consagrou a era da pós-verdade em um país não por acaso caracterizado por rarefeita consciência política. Não há como interpretar isso senão como um verdadeiro retrocesso, pois tanto a educação, a pesquisa científica e a universidade passam a ser menosprezadas quanto os próprios partidos são deslocados às custas de afinidades esotéricas — e, portanto, “inquestionáveis”. Da “defesa” do terraplanismo à rejeição do darwinismo e à tentativa inquisitorial de proibição de determinados livros, o corolário é a atrofia da esfera pública. A aliança entre política e religião no Brasil atual não exprime o quanto ambas estão degradadas?
4Nas últimas semanas, os jornais noticiaram a iniciativa da agora deputada estadual Janaina Paschoal pelo PSL paulista— cuja votação para tal cargo tornou-se a maior da história do país — de reclamar o impeachment daquele que outrora fora seu candidato inquestionável à Presidência da República. Motivo aparente: em tempos de pandemia do Covid-19, atentado à saúde pública ao cumprimentar correligionários em Brasília durante manifestação em prol de seu governo. Dias depois, texto de reconhecido jornalista ligado ao Partido dos Trabalhadores caminha em direção similar à de Paschoal clamando pela renúncia do presidente. Na sequência, parte considerável de meus vizinhos de bairro aderiu ao “panelaço” convocado pelas redes bradando “Fora, Bolsonaro”. Aqui, lembrar que tal estratégia foi adotada pela direita brasileira como pressão pelo impeachment de Dilma Roussef não é mero detalhe. Quando a esquerda compartilha a mesma prática da direita, ainda que motivada por um inconsciente desejo de vingança, estamos diante de um sinal de alerta.
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5Movimentos superficiais não devem confundir a compreensão de processos estruturais mais amplos. A defesa da democracia, da ampliação do espaço público e da própria História em uma formação sócio-espacial há séculos dominada pela elite do atraso 3não podem ser submetidas ao presentismo, ao revanchismo e, tampouco, ao oportunismo político-partidário.
6Embora parta de algo que não existe e que pode mesmo nunca acontecer, nem por isso a reflexão em tela perde seu valor. O impeachment como maquiavelismo de uma fração da direita visando permanecer no poder e cinco desdobramentos negativos para a esquerda e para a democracia brasileiras: eis o conteúdo das linhas a seguir.
7Ao levantar a bandeira do impeachment de Bolsonaro, o efeito mais imediato é o conduzir à Presidência um general da reserva incapaz de proferir uma sílaba contra os anos de chumbo. Correção: incapaz de admitir a existência da ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985. Aceitar a posição de vice não foi decisão ingênua, evidentemente — nem de sua parte, nem da de Bolsonaro. Embora algumas declarações iniciais tenham contrariado seu superior, Hamilton Mourão alimenta-se diariamente do mesmo fruto que Bolsonaro e seus asseclas. Ele pertence a um segmento da sociedade para quem o período dos militares no poder trouxe mais benefícios que malefícios — sobretudo no que se refere à narrativa segundo a qual uma “ameaça comunista” rondava o país naquela ocasião. Assinada pelo general do Exército e ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, a ordem do dia publicada no site do Ministério da Defesa por ocasião dos cinquenta e seis anos do Movimento de 1964 — sim, eles não usam a palavra golpe neste caso, mas não temos dúvidas de que o farão caso Bolsonaro seja destituído do poder — continua a reproduzir tal versão, sustentando literalmente tratar-se de um “marco para a democracia brasileira”, além de definir a Lei da Anistia de 1979 como um “pacto de pacificação” (Azevedo e Silva 2020). No Twitter, o próprio Mourão não se faz de rogado e anota que a intervenção militar sobreveio para “enfrentar a desordem, subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população”. Neste contexto, empossá-lo significará reforçar no imaginário popular o papel “salvífico” dos militares em meio ao “caos” da vida política nacional, contribuindo não só para garantir espaço aos mesmos na esfera democrática quanto para perpetuar a nostalgia dos saudosos do AI-5 4.
8Levando adiante este raciocínio, partindo dos pressupostos segundo os quais valores militares e valores democráticos são incompatíveis e a direita brasileira não tem compromisso algum com a democracia, devemos levantar a voz mesmo diante de interrogação tão sombria: quem garantirá que Mourão, o general Augusto Heleno, o presidente do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, Sergio Moro, deputados do PSL e boa parte do Parlamento não darão um golpe à la 1964? Pior: receberiam aval incondicional de quase sessenta milhões de patriotas, à espera da solução mais autoritária possível desde que confiaram seus votos a Jair Bolsonaro. A esquerda não pode se iludir quanto a isto: parte considerável da sociedade brasileira está em sentinela por um golpe militar.
9Por fim, os que não se incomodam com o livre pensamento avistarão mais que contrafactualidade na pergunta em tela: seria o impeachment aventado como opção política pela direita se ao invés de Mourão o vice-presidente fosse alguém de esquerda?
- 5 Ver o clássico e profundo texto de Benjamin Sobre o conceito de história (Benjamin 1944 [1940]).
10Os dois próximos efeitos operam no nível da consciência histórica 5e, embora inicialmente possam parecer contraditórios, uma observação mais atenta constatará que estão dialeticamente entrelaçados.
11O segundo efeito terá o papel de reforçar, com o passar do tempo, a dimensão mítica imputada a Bolsonaro por seu séquito tão agressivo quanto infantil. Supondo a consecução do impeachment acompanhado porém da manutenção de seus direitos políticos, ele, seus filhos e netos serão eleitos pelos próximos cem anos sob a justificativa de que o “mito” fora apeado do poder por forças retrógadas que o impediram de realizar todas as transformações de que o Brasil precisava. À maneira de uma prece, seu sobrenome e sua imagem serão evocados como o homem que, eleito pelo povo com ampla margem de votos em ambos os turnos, fora retirado da Presidência sem provas, sem motivo, sem razão de ser. Melhor dizendo, isto tudo aconteceu porque ele estava de fato mudando o Brasil. Se num primeiro momento o impeachment cessará seu mandato, a consequência a médio e longo prazos é a de que Bolsonaro entrará fortalecido para a história dos vencedores e da pior forma possível: como ilusão. E, contra a ilusão, a ciência, a verdade e a realidade são pura miragem.
12O terceiro efeito incide notadamente sobre a forma como a democracia é representada e acionada entre nós. Se a raison d’être das mobilizações à direita e à esquerda em torno do impeachment de Bolsonaro jaz na insatisfação para com os rumos governamentais após um ano e dois meses de mandato, então automaticamente estaremos autenticando o impeachment de Roussef e, assim, não será mais possível interpretá-lo como o que ele indubitavelmente foi: um golpe da direita contra a esquerda e contra a democracia em geral. A “ilusão de Paschoal” terá triunfado e, como abutres à espreita da caça, conquistado lugar cativo no imaginário político da nação.
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- 7 Termo cunhado por Guillermo O’Donnell (1994). Acerca da crise da democracia em uma sociedade digita (...)
13Em um país sem memória, partidos, empresas, mídia, evangélicos, católicos, professores, empreendedores, todos encontrarão no impeachment o álibi perfeito para a ignorância política e para o surto de amnésia a emergir muito em breve nos próximos anos. Em ambos os casos não haverá vacina disponível, pois tais organismos são incompatíveis com o saber, a cultura, a história e, no limite, não se interessam em nada pela Política já que inaptos para reconhecê-la. A educação segundo Abraham Weintraub, o neoliberalismo servil de Paulo Guedes 6, a inesquecível ostentação nazi-fascista de Roberto Alvim, a teocracia medieval de Damares Alves e a realidade paralela de Jair Bolsonaro não podem ser olvidadas, minimizadas ou tidas como excepcionais. Os mais de cinquenta e sete milhões de votos confiados ao mito não podem virar pó; à maneira de seu profundo engajamento como cabos eleitorais incansáveis nas redes sociais disseminando fake news, eles precisam ser co-responsáveis pelos ministros, pelo modus operandi do governo e pelo Brasil como um todo, pois é assim que eleitores formam sua memória política, a democracia amadurece e ensaia romper com o abismo entre sociedade e Estado — ou, em termos conceituais, com a perniciosa atitude que restringe o jogo democrático à conjuntura eleitoral, a chamada democracia delegativa 7.
- 8 A passagem em questão foi deliberadamente redigida a fim de mostrar que a parcela da esquerda a qua (...)
14O quarto efeito assemelha-se a um jogo de cena. Todavia, há que se deixar a ingenuidade de lado e ter clareza meridiana de que tanto o apoio ao impeachment de Roussef quanto ao projeto de morte sustentado por Bolsonaro desde a gênese de sua candidatura não têm nada que ver com a insatisfação popular em relação à economia no segundo governo Dilma ou com a corrupção envolvendo o Partido dos Trabalhadores e o capital privado nacional 8. Tal discurso não passa de cortina de fumaça a tentar dissimular que as raízes estruturais de tão propagada insatisfação residem no profundo conservadorismo das elites nacionais e que esta ideologia dominante, propagada com toda força pela mass media, igrejas e escolas, atinge a classe média e dramaticamente a classe trabalhadora.
- 9 Em reflexão anterior sobre o emprego do termo mito associado a Bolsonaro, lemos que “ (...) nunca u (...)
15Logo, precisamos enxergar a ilusão de Paschoal sob a perspectiva de uma manobra estratégica capitaneada pela direita a qual, envolvida em disputas intestinas devido à incapacidade política de Bolsonaro em negociar autoridade e legitimidade para o Executivo junto ao Congresso Nacional, se vê na obrigação não só de pensar em um novo nome apto a representá-la como de apresentar-se à população como se inconformada estivesse com a atual situação — eximindo-se, assim, aparentemente, de sua participação ativa em todas as tramas que contribuíram para que as coisas estejam exatamente como estão. Assumindo a condição de traída pelo mito 9, o passo seguinte da direita será a encenação do papel de vítima como parte de um processo de expiação e de purificação de todos os que venderam suas almas sem nenhum conhecimento de causa...
- 10 Embora nossa predileção pela democracia grega não seja propriamente a mesma que a de Hannah Arendt, (...)
16Verdadeiramente, Bolsonaro nunca está e nunca estará à vontade no cargo de Presidente da República pelo simples fato de que nada o convence de que a natureza de um regime democrático consiste em dialogar, escutar, aguardar, retroceder. Suas reações estapafúrdias a tudo aquilo que minimamente lhe desagrada — imprensa livre, pesquisas de órgãos científicos reconhecidos no Brasil e no mundo, educação laica e distante do militarismo — deitam raízes não apenas no solo militar que o nutriu, mas em um período da história ocidental no qual estruturas como o pátrio poder, o rei e a igreja eram incontestáveis 10. Ele não aproximou-se da religião por acaso: ao evocar repetidas vezes João 8:32 em toda e qualquer circunstância, é como se ele próprio fosse a personificação da verdade encarnada na política. Sua palavra quer ter a força da lei. Sua eleição foi divina e, por conseguinte, irrefutável.
17Preso por indisciplina quando capitão do Exército por publicar artigo em semanário de ampla circulação reclamando de perdas salariais logo após a redemocratização em 1986 11e culpado pelo Conselho de Justificação porém absolvido pelo Supremo Tribunal Militar de um processo interno até hoje polêmico referente à elaboração e detonação de bombas-relógio em 1988 12, ao optar pela vida política mostrou comportamento errático até mesmo para os padrões partidários nacionais. Bolsonaro já passou por nove siglas desde 1988 e não está filiado a nenhuma delas desde novembro de 2019.
- 13 Um bom resumo político desde o golpe contra Roussef à eleição de Bolsonaro pode ser visto no docume (...)
18Tais ocorrências servem não apenas para manifestar nosso espanto diante da ingenuidade dos que esperavam atitudes comedidas e diplomáticas da parte dele ao assumir a Presidência, mas para argumentar que a direita brasileira vinha enfrentando uma crise com as quatro eleições presidenciais vencidas pelo PT a partir de 2003. Muito embora o segundo êxito de Roussef viesse acompanhado de evidente reação conservadora por causa do disputado pleito contra Aécio Neves (51,64% ou 54.501.118 votos para ela e 48,36% ou 51.041.155 votos para ele), a subsequente incapacidade de renovação do PSDB e da direita em geral fazem do golpe contra ela e da prisão de Lula via Lava Jato componentes essenciais do assalto ao poder pela elite do atraso. Ocorre que Temer (ele próprio livrado pelo Parlamento de duas denúncias relacionadas à organização criminosa e obstrução de Justiça), diversos integrantes de seu partido (MDB) e de outras agremiações (como o DEM) não foram hábeis o suficiente para costurar um pacto na escala nacional seja porque tornaram-se progressivamente alvos de processos jurídicos de toda sorte — gente da estirpe de Moreira Franco, Romero Jucá, Eliseu Padilha, Eunício Oliveira, Geddel Vieira Lima, Renan Calheiros, Henrique Eduardo Alves, Edison Lobão, Eduardo Cunha, Sergio Cabral... — minando, assim, pretensões mais amplas junto à opinião pública, seja porque parte significativa da elite nacional estava confortavelmente representada por congressistas e ministros participantes dos governos do PT 13. Insípido e histriônico deputado do baixo clero parlamentar e dono de alcance político irrisório, gostaríamos de sugerir que o advento da candidatura Bolsonaro pode ser analisado como um vácuo de poder no interior da própria direita, e seus métodos políticos, suas redes de baixa capilaridade junto ao empresariado e as conexões com milicianos são sinais reveladores a expressar a visível diferença entre os emergentes Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Daniel Silveira, Rodrigo Amorim, Helio Bolsonaro, Kim Kataguiri, Fernando Holiday, Janaina Paschoal e o grupo acima listado. Em suma, talvez esteja em curso uma mudança na configuração de um segmento da direita no Brasil em termos de origem social, linguagem e comunicação com o povo. A pauta, no entanto, é a mais retrógada possível.
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- 15 Uma crítica contundente ao papel do Direito na estruturação política das sociedades modernas foi el (...)
19O quinto e último efeito aponta para a sinistra 14. Sendo pauta oriunda da direita visando exclusivamente sua manutenção no poder, o impeachment não favorecerá a esquerda nem agora, nem tão cedo. A cassação do mandato de Bolsonaro será não só mais uma prova cabal da volatilidade dos partidos como estimulará o argumento de que ambos os impeachments foram reações legítimas do parlamento e da sociedade civil “conscientes de seus deveres”... O impeachment isenta a todos e, ao invés de abrir o debate democrático, encerra-o ao projetá-lo no terreno das brechas e das manobras jurídicas. O fundamento e a intenção políticos são sufocados. Professora de Direito da Universidade de São Paulo, Janaina Paschoal finge ignorar isto 15.
20Em linhas gerais, e a título de hipótese, aventa-se que a crise teórica e prática decorrente do fim do Socialismo Real no final do século XX foi ignorada pelas históricas e sucessivas vitórias do Partido dos Trabalhadores no início do século XXI. Elas anestesiaram a esquerda nacional. Talvez a quarentena imposta pelo Covid-19 possa simbolizar uma espécie de chamamento e de pausa a fim de avaliarmos com a devida profundidade porquê perdemos a eleição passada e como podemos construir um projeto alternativo. Sem minimizar a Lava Jato e todo o fervor midiático ao seu redor, preferimos optar por uma interpretação que considere com a devida gravidade o fato de que mesmo em uma sociedade estruturalmente conservadora como a nossa o êxito de Bolsonaro foi uma falha da esquerda, cujas quatro vitórias nacionais consecutivas aguçaram a sempre sensível percepção da direita de que qualquer mudança resultará em ameaça aos seus privilégios e ao seu ethos. Em um país como o Brasil, não é preciso muito para que o precedente do autoritarismo seja aberto. Ele já o foi — e o campo progressista não deve minimizar isto.
- 16 Vide Francisco de Oliveira (2006, 2012).
21Igualmente, não é prudente postergar a devida auto-crítica em relação aos quatorze anos do Partido dos Trabalhadores no poder 16. Do matrimônio com o MDB tanto na escala nacional quanto no Rio de Janeiro ao diálogo com a sociedade civil durante e após as Jornadas de Junho de 2013, passando pela consórcio com empreiteiras nacionais promotoras de obras onerosíssimas demandadas pela Copa do Mundo de 2014 e pelos Jogos Olímpicos de 2016 porém contestadas pela população até chegar à opção pela candidatura de Fernando Haddad em detrimento da de Ciro Gomes em 2018, não existe desenho político progressista no Brasil sem o PT. Logo, cabe assumir tal responsabilidade e reconhecer que as gerações mais jovens não têm o mesmo vínculo com a sigla do que aquelas crescidas no ambiente da redemocratização, por exemplo. No mesmo diapasão, o carisma incontornável da figura de Lula deve servir para impulsionar e não para asfixiar a renovação democrática. Estamos cientes de que a política não se resolve no papel, mas também de que fora dele, ou seja, sem uma profunda leitura analítica da conjuntura política (indo do presente ao passado e do passado ao presente tantas vezes quanto necessário) a direita vencerá novamente o pleito de 2022. Enquanto a esquerda ainda aparenta viver a ressaca da celebração dos bons tempos e aguarda um deus ex machina que nunca virá, a direita está reposicionada desde o golpe contra Dilma Roussef e já saiu na frente: os comportamentos de João Doria em São Paulo, Wilson Witzel no Rio de Janeiro e Rodrigo Maia à frente da Câmara dos Deputados não escondem suas intenções.
22Seria muita ingenuidade confiar que pouco mais de dez anos no poder bastaria para varrer a mentalidade racista, colonial e autoritária forjada da escravidão à ditadura no decorrer de cinquentos e vinte anos de história dos vencedores 17. Foi-se o tempo em que a equação demografia e democracia era vista como perigosa (Aguiar 2011). Embora desestabilizada pelo dinheiro, a democracia nos moldes burgueses acaba por conferir ares de normalidade e de naturalidade tanto à esfera do político quanto à do econômico. Embora parte da agenda socialista ainda esteja presente nos partidos de esquerda (e, decerto, moldou as reformas mais substantivas em prol da classe trabalhadora no âmbito da social-democracia capitalista (cf. Przeworski 1989 [1985]; ver, também, Hobsbawm 1995 [1994]), uma revolução societária parece não despontar no horizonte do século XXI. Dialeticamente, entretanto, o desejo de mudança continua vivo em vários lugares e entre diversos segmentos sociais.
- 18 O conhecimento de longo alcance da realidade histórica e política brasileira levou Leandro Konder a (...)
23Em suma, a tarefa da esquerda não é nada fácil. A rigor, ela jamais poderia ter errado ao assumir o poder, pois o preço a ser cobrado por isto em um país tão conservador quanto reacionário certamente será alto demais 18.
- 19 Em entrevista cujas vísceras do cinismo são expostas sem qualquer pudor, Candido Bracher, president (...)
24Contudo, no exato momento em que a pandemia do Covid-19 esgarçou a guerra civil cotidiana travada nas sombras da ideologia entre trabalhadores e patrões e que o silêncio dos bancos é tão vexaminoso quanto suas declarações 19, haverá ocasião mais favorável para a esquerda brasileira agregar forças rumo a um projeto popular de justiça social, ambiental e econômica oposto ao neoliberalismo, ao neofascismo e ao neoimperialismo?
25A hora é de mobilização e de conscientização. De perceber que o impeachment de Bolsonaro criará mais celeuma em torno dele e de sua família, não resolverá nenhum dos problemas do país e poderá liberar um monstro ainda pior.
26As periferias metropolitanas, as populações rurais indígenas e quilombolas, a potência urgente do mulherismo, a inquietude da juventude universitária proveniente das classes trabalhadoras, a denúncia social presente nas letras de funk, rap e hip hop, as associações em defesa das minorias e contra o racismo, a agenda ambientalista, a mídia independente.... Quantos exemplos de novas linguagens serão necessários para abandonarmos velhos vícios e reconstruirmos o pensamento e a atuação dos partidos políticos de esquerda? Do contrário, a ilusão de Paschoal continuará a nos imobilizar por tempo indeterminado.