Um ano de lutas e de defesa da Universidade livre e autônoma: nossa contribuição ao debate.
Texto integral
1O ano de 2019, no Brasil, começou com muitas incertezas e terminou deixando um rastro de destruição sobre os direitos sociais, sobre as bases da soberania econômica no País e, principalmente, sobre as conquistas relacionadas às lutas por maior respeito e igualdade na sociedade. Com a posse do novo governo, foram encaminhadas reformas trabalhistas que retiraram a estabilidade dos trabalhadores no emprego e submeteram a força de trabalho ao que está sendo denominado “uberização” nas formas de contratação; uma reforma da previdência que deixa os trabalhadores sem garantias previdenciárias; mudanças drásticas e de caráter autoritário nos serviços públicos, principalmente na área de educação básica e superior. Simultaneamente, variadas medidas conduziram um expressivo desmonte dos órgãos fiscalizadores de proteção ambiental e do trabalho, bem como cortes acentuados nas políticas distributivas e de combate à pobreza etc. No campo da Economia, foi feito um ataque sem precedentes às empresas públicas, sobretudo nas bases de produção e distribuição de energia, entregando-se para o capital estrangeiro o controle de toda a produção energética brasileira. A privatização dos ativos públicos nacionais foi feita sob um silêncio abissal a respeito do fato de que essas privatizações e o controle estratégico da produção energética estão sendo realizados para entregar as empresas correspondentes para fundos internacionais altamente especulativos. Muito graves também, e até mesmo desesperadores, estão sendo os ataques às políticas de combate à desigualdade e à discriminação social, assim como às políticas de proteção dos direitos da mulher, de proteção e demarcação das terras indígenas, das garantia e respeitos às diferenças étnicas e da livre opção da identidade sexual. Todas essas trágicas mudanças atingem, primeiro, a população pobre, e, surpreendentemente, contam com a complacência e o silêncio de amplas camadas de classe média e dos empresários, além do apoio entusiástico da grande mídia, enquanto os sinais da deterioração da coesão social já começam a se manifestar.
2Nesse contexto, o espaço acadêmico deve ser reconhecido como um campo privilegiado de resistência, por ter autonomia suficiente para organizar debates e produzir reflexões capazes de municiar análises que ajudem a ampliar as formas de resistência e fortalecer os movimentos sociais por direitos. Trata-se, afinal, de um âmbito portador de meios que favorecem tanto a elaboração de estudos capazes de ampliarem a compreensão sobre os processos relacionados aos ataques em curso, quanto o desenvolvimento de práticas que favoreçam o uso desses estudos e de seus espaços de debate a favor das inúmeras formas de saber, de organização e de ação social necessárias para confrontar as perdas e construir novos caminhos. Não é por outro motivo que o governo ataca frontalmente as universidades públicas, tentando quebrar-lhe as pernas para que não possam andar. Demonstrações inequívocas dessa estratégia estão presentes nas declarações do Ministro da Educação que, por diferentes meios, busca desqualificar a Universidade como espaço coletivo, o conhecimento que nela se produz e os sujeitos – professores, alunos, servidores técnicos, sociedade - que nela atuam.
3Mas, ao definir a Universidade como “inimigo”, submetendo-a a ataques que visam enfraquecer sua potência de produção de críticas e resistências, essa estratégia pode obter efeitos contrários aos esperados, favorecendo a emergência de respostas que a reafirmem como espaço estratégico de uma guerra das ideias capaz de opor, às tentativas de controle e silêncio, novas experiências de afirmação e reconstrução das possibilidades democráticas.
4Em um cenário no qual a Democracia agoniza, a resistência da Universidade, em seu sentido profundo, não está na preservação de seus meios, mas, passos além, está no uso de seus meios a favor da reconstrução das possibilidades democráticas.
5Pensando nessa direção, o Grupo de Pesquisa Espaço e Economia, que reúne pesquisadores de quatro universidades no estado do Rio de Janeiro e conta com a colaboração de pesquisadores em todo o País, iniciou o ano de 2019 empenhado na organização do III Colóquio Espaço e Economia, fazendo, da organização desse evento, um meio de ativação de um fórum regular de discussão e participação nas atividades realizadas nas universidades, particularmente as associadas ao movimento UERJ Resiste. A mobilização para o evento, as reuniões preparatórias e o encontro em si demonstraram a importância de termos a Universidade ativa. Foram cinco meses de reflexões e debates que influíram na produção de muitos dos trabalhos apresentados que, ao mesmo tempo, foram certamente influenciados pela conjuntura política adversa. Nosso empenho em entender mais os processos e as consequências das ações de diversos níveis governamentais que influíram no cenário de perdas sociais, econômicas e políticas em curso no País deu forma ao tema do III Colóquio – “Transformações no capitalismo mundial e a produção social do espaço: novos arranjos territoriais e a economia política do desenvolvimento” e impulsionou o expressivo resultado obtido, em termos tanto do número e qualidade dos trabalhos apresentados, quanto dos debates nele realizados. Os 44 trabalhos apresentados e debatidos durante três dias, em quatro Grupos de Trabalhos organizados no evento, nos permitiram uma tão profícua discussão nos grupos, que nos motivou a publicar na Revista Espaço e Economia 41 artigos do Colóquio, distribuídos em sucessivas edições.
6É importante lembrar que, nos três dias do Colóquio, foram realizadas 4 mesas de debate, além das conferências de abertura e de fechamento. O resultado dessas reflexões foi registrado no livro “Espaço e Economia: Geografia Econômica e Economia Política”, editado pela Editora Consequência e lançado na primeira semana de setembro no ENANPEGE, realizado em São Paulo. Tal como ocorre com os artigos debatidos e publicados agora na Revista, muitos dos artigos do livro refletiram sobre as mudanças em curso nas políticas públicas e sociais, na economia e no País como um todo. Assim, aliados às diferentes formas de presença e participação das universidades públicas nas lutas sociais, os produtos acima referidos deixam registrada nossa contribuição no campo das ideias.
7Outra contribuição do Colóquio foi a formação da Rede Latino Americana Espaço e Economia (ReLAEE) e, mais recentemente, a criação do canal youtube para a disseminação de trabalhos deste campo de investigação.
8Essas, dentre outras realizações, possibilitaram que o ano de 2019 não ficasse marcado em nós apenas pelos traços negativos das perdas ocorridas. Foi um ano que permitiu ao Grupo de Pesquisa trabalhar ativamente e produzir resultados que nos possibilitam pensar e organizar nossa prática, nos próximos anos, mais dedicada à produção acadêmica crítica e ao compromisso de oferecer contribuições para as ações e práticas de lutas contra o corrosivo modelo econômico e social em que o País está mergulhado.
9Assim, terminamos o ano com uma edição da Revista que mantém presentes os sentimentos e forças que motivaram as resistências acima lembradas. É uma edição composta, em parte, por textos enviados regularmente, escritos por geógrafos, economistas e arquitetos preocupados com a abordagem multidisciplinar do campo de estudo que envolve o espaço social e a economia. Nesta mesma edição também publicamos a última parte dos textos apresentados e debatidos no Colóquio, além de artigos inéditos nas seções de Ensaios e de Trilhas de Pesquisa.
10Na seção Ensaios, a revista tem o privilégio de apresentar uma reflexão elaborada pelo Professor Guilherme Ribeiro, e na seção Trilhas de Pesquisa são apresentados três artigos registrando trabalhos que estão na base de pesquisas de jovens em formação acadêmica.
11Por último, na seção Livros, registramos o lançamento da coletânea organizada por um dos pesquisadores que participa da ReLAEE, Professor Dr. Pierre Costa, em co-autoria com a Professora Drª Sandra Lúcia Videira Góis.
12Queremos registar nossa perspectiva de continuidade de nossos trabalhos comprometidos com as lutas e transformações políticas alinhadas com o enfrentamento das desigualdades no País. Dentre outras ações, pretendemos ampliar nossa participação nos fóruns acadêmicos no Brasil e no Mundo e apoiar publicações temáticas por meio de dossiês que reúnam os trabalhos de colegas pesquisadores do Brasil e de outros países ou regiões. Nessa perspectiva, destacamos nossa participação no III Encontro de Economia Política, que se realizará no mês de janeiro/fevereiro na cidade do Porto, Portugal, e cujas discussões poderão ser difundidas por meio da publicação de artigos vinculados ao Encontro em edições futuras desta revista. Também estamos trabalhando na produção do dossiê “Estudos e reflexões sobre o Oeste metropolitano do Rio de Janeiro”, que reúne trabalhos de pesquisadores e pós-graduandos de várias universidades brasileiras. E estamos dialogando com o colega Leonid Rudenko, da Shevchenko University (Kiev, UA) Department of Social Sciences, e membro da Association of Young Scientists of Russia and Kazakhstan, para realizarmos publicações de trabalhos produzidos em países associados.
13Por fim, agradecendo a todos e todas que prestigiaram nossa revista e fortaleceram nosso Grupo de Pesquisa, expressamos nosso desejo de que consigamos seguir colaborando coma a produção científica crítica neste importante campo de conhecimento.
Para citar este artigo
Referência eletrónica
Floriano José Godinho de Oliveira, Leandro Dias de Oliveira e Regina Tunes e Roberto Moraes Pessanha, «Um ano de lutas e de defesa da Universidade livre e autônoma: nossa contribuição ao debate.», Espaço e Economia [Online], 16 | 2019, posto online no dia 08 janeiro 2020, consultado o 11 outubro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/espacoeconomia/10059; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/espacoeconomia.10059
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