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Reseñas

Miscelânea Pereira de Foios. Edição crítica, introdução e notas de José Miguel Martínez Torrejón. Textos latinos editados e traduzidos por Inês de Ornellas e Castro e Maria do Rosário Laureano Santos. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2017. 848 p.

Isabel Almeida
p. 255-258
Referencia(s):

Miscelânea Pereira de Foios. Edição crítica, introdução e notas de José Miguel Martínez Torrejón. Textos latinos editados e traduzidos por Inês de Ornellas e Castro e Maria do Rosário Laureano Santos. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 848 p. (ISBN: 978-972-27-2406-7.)

Texto completo

1Professor de Queens College of the City University of New York e investigador da História e da Cultura Ibérica dos séculos xvi e xvii, José Miguel Martínez Torrejón soma agora ao seu abundante currículo a edição da Miscelânea Pereira de Foios —título que atribuiu ao códice 8920, extenso manuscrito de «403 fólios úteis» (p. 34), pertencente, desde 1914, à Biblioteca Nacional de Portugal. Conforme explica, a escolha deste nome justifica-se por ser o do «único possuidor conhecido»: António Pereira de Foios, «fidalgo da Casa de Sua Majestade», activo no início do século xviii (p. 11). Quanto à designação de «Miscelânea», Martínez Torrejón adverte que se a palavra é comum, o seu sentido é plural: às miscelâneas que, fundadas na matriz antiga das Noites Áticas de Aulo Gélio ou herdeiras desse modelo, acumulam materiais reescritos por um autor; às miscelâneas organizadas em função de uma voz e de um propósito narrativo, como a de Miguel Leitão de Andrade, acresce um terceiro tipo, composto de «fragmentos de autoria alheia, sem reelaboração» (p. 13). Assim é a Miscelânea Pereira de Foios, que —observa José Miguel Martínez—, cruzando poesia e prosa, géneros diversos e línguas múltiplas (português, castelhano, latim e, residualmente, italiano), assume características próximas das do «livro copiador» ou do «cancioneiro» (p. 13). Tal hibridismo —sempre segundo Martínez Torrejón— já a faria sobressair, mas outra qualidade vem ainda distingui-la: a coesão produzida por «um fio condutor» (p. 14) que, embora sem atravessar «de forma nítida e estável todo o códice», se desdobra em núcleos temáticos e liga textos de vária origem e idade, aos quais o novo contexto confere «significado novo» (p. 14).

2Para José Miguel Martínez, que data de ca. 1571-1577 a cópia dos primeiros 324 fólios («todos de uma mão, com raras excepções devidas a uma segunda mão», p. 12) e situa após Alcácer Quibir a dos últimos 79, onde «muda a tinta, muda a mão e sobretudo o propósito unificador» (p. 26), «uma leitura orgânica» do que foi preparado até 1577 permite obter «um retrato das circunstâncias políticas vigentes em Portugal durante os anos de governo efetivo de D. Sebastião» (p. 14).

3Um por um, são enumerados e expostos esses núcleos temáticos: «D. Sebastião», por vias óbvias ou dissimuladas «o protagonista indiscutível da Miscelânea» (p. 15); «os Câmaras», cujo ascendente sobre o rei motiva críticas abertas ou sibilinas; «África», assunto fulcral e polémico, quer pelos planos sebásticos quer pela crise que os precedia e que avultava em episódios como o abandono de Arzila; «D. João III, D. Catarina e seus amigos», enfatizando-se o duplo olhar sobre a rainha, vista geralmente como figura benigna e sofrida, mas acusada também de ser uma perigosa defensora de interesses espanhóis; «Castela», ameaça «omnipresente» (p. 20), e «Filipe II», seu rosto ou encarnação.

4A partir de dois tópicos mais —«uma selva de Silvas» e «muitos segredos, uma só leitura»— José Miguel Martínez propõe a identificação, não do compilador, mas do meio em que a Miscelânea foi levada a cabo: a «casa de D. Lourenço da Silva». D. Lourenço (ca. 1540-1578), que surge no livro como destinatário ou dedicatário de vários textos, era membro da família dos senhores de Vagos, «regedores das Justiças da Casa da Suplicação» (p. 22). Daí decerto, como sublinha o Editor, o cuidado de evocar a dignidade do seu passado (registando, por exemplo, o epitáfio do 1º senhor de Vagos ou transcrevendo o relato da justa conduta de Aires da Silva no condenável massacre de cristãos-novos em Lisboa, no ano de 1506); daí o cuidado de pôr em evidência a valia da geração presente, ilustrada tanto pela obra poética de Jorge da Silva como pelos muitos serviços prestados à coroa. Indo mais longe, José Miguel Martínez considera que a Miscelânea revela, por entre audíveis queixas e veladas insinuações tocando aspectos melindrosos (v.g. desgoverno, melancolia, homossexualidade de D. Sebastião), o mal-estar e o ressentimento da família Silva, provavelmente preterida a favor de outros, maxime D. Juan de Silva, que, descendente da facção pró-castelhana em Aljubarrota, se tornou, por volta de 1577, Conde de Portalegre mercê de um casamento urdido sob a pressão de Filipe II.

  • 1 Protestação que os embaixadores do emperador Maximiliano Segundo fizeram ao papa Pio Quinto quando (...)

5Por regra, o contacto com os textos convida a aceitar o entendimento do Editor, e se algumas interpretações parecem arriscadas (veja-se o comentário a «De pequena tomei amor» [35]), nem por isso deixam de ser verosímeis e estimulantes. Cada unidade é precedida e acompanhada de notas onde se indica, tão completa quanto possível, a sua tradição, quer manuscrita quer impressa, e se destacam traços genológicos e contextuais. Também em nota se proporciona, para os textos em latim, uma tradução, a cargo de Inês Ornellas e Castro e Maria do Rosário Laureano Santos. José Miguel Martínez, que trabalhou durante quase duas décadas na publicação da Miscelânea, tratou de garantir não só o discreto requinte da reprodução, na sobrecapa, de um desenho esparso no códice, mas condições para que o leitor curioso se mova, com proveito, nesta construção. Supre-se uma ou outra lacuna do manuscrito e nem faltam, no fecho do imponente volume, uma bibliografia e índices (onomástico e incipitário), o que suscita uma pergunta: será razoável excluir dois textos1 alegando a sua «excessiva extensão» (pp. 440, 573)?

6Até agora —recorda o Editor— o códice 8920 vinha sendo explorado de modo fragmentário, por historiadores que o usaram como fonte documental ou por bibliófilos e estudiosos da Literatura, que nele acharam uma mina poética. Sem dúvida, apreciar a totalidade, perscrutá-la, permite encontrar alguns fios de Ariadne e compreender que, mais do que uma soma de avulsos, a colecção tem um funcionamento complexo e reclama uma hermenêutica: a dispositio e a memória falam, definindo um horizonte e guias de orientação. No entanto, ao privilegiar «um retrato das circunstâncias políticas vigentes em Portugal durante os anos de governo efetivo de D. Sebastião» (p. 14), não se estará a dizer tudo. É que, com sua inegável dimensão política, a Miscelânea constitui igualmente um estupendo testemunho da sensibilidade cultural, poética e espiritual de meados do século xvi.

7Segundo José Miguel Martínez, da poesia coligida no códice 8920 estão arredados alguns dos grandes poetas da época. Com efeito, não há espaço amplo para Camões, mas repare-se no relevo concedido a D. Manuel de Portugal e a Jerónimo Corte-Real. Não surpreenderia que uma lógica nobiliárquica pesasse nesta opção. Seja como for, muitos textos estimados na aristocrática casa dos Silva —textos em prosa ou em verso— têm, com os de Luís Vaz e com os dos seus coevos, estreitas afinidades. Percorra-se o «Trelado dũa carta que um religioso escreveu aos do conselho, governando a rainha, nossa senhora», radicado no ciceroniano Sonho de Cipião que subjaz às derradeiras estrofes do canto VI d’Os Lusíadas. Mais, o obsidiante desengano, lapidarmente contido numa citação de Píndaro (a «mísera vida» é «sonho de sombra», p. 515); o escândalo e a «tristeza» perante o desconcerto; a denúncia da hipocrisia, indício de pessimismo antropológico; a aguda consciência do tempo e da fragilidade do «vermisculosinho da terra» (p. 190); o memento mori (porquê tantos epitáfios e letreiros?); o zelo em guardar meditações como a «Protestação do infante D. Luís que se achou escrita por seu falecimento» ou o «Colóquio de Fernão Cardoso que se achou de sua letra quando morreu e dizia que o fizera pera si», espelhos de uma inquietude que lavrou no quadro da Reforma ou da Contra-Reforma (o que é a graça e a predestinação?); o resignado encarecimento da aurea mediocritas como «negra liberdade» (p. 448), convergem na manifestação de uma mundividência maneirista. Não podiam ser mais eloquentes nem mais consistentes as escolhas que a Miscelânea patenteia.

8Empresa tão longa e árdua (quantos passos não custou a erudição filológica das notas? Quanta reflexão não foi necessária para gizar um rumo neste labirinto?) nunca está isenta de falhas. Teria valido a pena procurar um maior equilíbrio entre o que se promete nas «Normas de edição» (pp. 38-40) e o que se pratica de facto. Não se percebe porque é que, se «o critério geral consiste em modernizar a ortografia sempre que a original não seja reflexo da pronúncia antiga» (p. 37), se escreve «hora fizestes conde» (p. 458, por «ora»), «ouve por bem» (p. 617, por «houve por bem»), «omzeneiro» (p. 611, por «onzeneiro»); «pumares» (p. 476, por «pomares»), «dir-me-há» (p. 535) ou «contentar-se-há» (p. 540) por «dir-me-á» ou «contentar-se-á»; «achasse por conta» (p. 602, por «acha-se»); «seguir-mos» (p. 616, em vez de «seguirmos»); «põem-se tudo em direito» (p. 453, em lugar de «põe-se»). Seguindo a mesma regra, manter-se-ia não ditongada a 3ª pessoa do plural do presente do indicativo dos verbos ver ou vir: «vem», que flagrantemente rima com «bem» (p. 452).

9Não é correcta a grafia de «pois» reduzido a «Pos vossa senhoria tanta parte nisso e pos minhas cousas são vossas» (p. 520), como não o são algumas decisões que distorcem a «Carta do mestre dom Jorge a el-rei dom João o terceiro sobre estes apontamentos»: «envio Foão falar algũas cousas de meu negócio a Vossa Alteza, a quem beijarei as mãos. Quere-lo ouvir e crer no que de minha parte se dizer [...]» (p. 485), por «envio Foão [...] a Vossa Alteza, a quem beijarei as mãos querê-lo ouvir e crer no que de minha parte se disser [...]».

10Numa recensão não cabe uma errata, mas cumpre lembrar que a acentuação peca ora por excesso («ál» por «al») ora por míngua: «de» (p. 465, por «dê»), «mes» (p. 497, por «mês»), «da» (p. 487, por «dá»), «ai» (p. 543, por «aí»), «saia» (p. 611, por «saía»); «achara» (p. 613, por «achará»); «recebera» (p. 619, por «receberá»), «faze-la» (p. 456, por «fazê-la»). Lembremos ainda que, se convém escrever «amiúde» (p. 619, em lugar de «a miúde»), já não é de aglutinar palavras nas fórmulas «peracima» (p. 575, por «pera cima»), «defora» (p. 615, por «de fora»), «endiante» (p. 623, por «em diante»), «encima» (p. 487, por «em cima»).

11Importa, não menos, destrinçar a conjunção final «porque», que seria de aplicar em «por que a tempestade lhe não perjudique» (p. 514), e a sequência preposição+que relativo, que seria adequada em «o respeito porque o faço» (p. 490). Outrossim, importa separar, em «É bem que senão diga mais (p. 457), a partícula apassivante e o advérbio («se não»), tal como deverá ser apartada a conjunção condicional em «E senão o descobri» (p. 482).

12A interferência castelhana que resulta em formas como «pésame» (p. 615) ou «paseando» (p. 463) afecta a fixação do texto em «que não hay mal tamanho» (p. 777), onde o Editor supõe haver um castelhanismo, mas onde melhor seria ler «que não há i mal tamanho», até para evitar a hipometria. O mesmo acontece em versos para os quais não é difícil alvitrar diferente solução: em lugar de «Nem trazemos os olhos sãos, / e por vida minha / que he de ver estes vilãos / em casa da rainha!» (p. 454), seria preferível a ironia de «Nem trazem os olhos sãos, / e por vida minha / que é de ver estes vilãos /em casa da rainha».

13Se algum préstimo existir neste rol de pontos a rever, é o de sinalizar uma leitura atenta e o desejo partilhado de buscar a perfeição. Nada fere a obra de José Miguel Martínez Torrejón, merecedora de sincero e grato aplauso.

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Notas

1 Protestação que os embaixadores do emperador Maximiliano Segundo fizeram ao papa Pio Quinto quando fez ao duque de Florença grão-duque da Toscana no ano de 1570 (f. 192r-195v); Diploma Caesarum continens erectionem magni ducatus Etruriae «datum in civitate nostra Vienna die xxvi januarii anno domini mdlxxvi» (f. 267v-270v).

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Para citar este artículo

Referencia en papel

Isabel Almeida, «Miscelânea Pereira de Foios. Edição crítica, introdução e notas de José Miguel Martínez Torrejón. Textos latinos editados e traduzidos por Inês de Ornellas e Castro e Maria do Rosário Laureano Santos. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2017. 848 p.»Criticón, 134 | 2018, 255-258.

Referencia electrónica

Isabel Almeida, «Miscelânea Pereira de Foios. Edição crítica, introdução e notas de José Miguel Martínez Torrejón. Textos latinos editados e traduzidos por Inês de Ornellas e Castro e Maria do Rosário Laureano Santos. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2017. 848 p.»Criticón [En línea], 134 | 2018, Publicado el 20 diciembre 2018, consultado el 12 diciembre 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/criticon/5479; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/criticon.5479

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Autor

Isabel Almeida

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Centro de Estudos Clássicos

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