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Escrita en español por un autor portugués, la Felicissima Victoria, un poema épico (1575-1578) de Jerónimo Corte-Real, ha sido generalmente leído, por los pocos que lo han hecho en los últimos tiempos, como alabanza directa, sólida y monofónica del Imperio Español de Felipe II en su auge triunfal (la batalla de Lepanto). Cada detalle textual y contextual parece haberlo avalado. Introducimos en el presente artículo otro elemento que corrobora la visión predominante: la demostración de una temprana (en términos ibéricos) búsqueda deliberada de la unidad poemática de la trama, de plenitud neoclásica y totalidad armoniosa, que involucra a dioses y hombres. Sin embargo, como nuestro trabajo espera mostrar, la Felicissima también envuelve otras formas de representación, lo que sugiere un trasfondo de duda y ansiedad incontenidas sobre sus héroes y acciones. Esto puede aparecer igual de bien reflejado en discursos heroicos, en sueños fantasmales y visiones, en voces anónimas y en el sarcasmo sin respuesta de las palabras de un general musulmán. El aspecto más perturbador de este trasfondo puede efectivamente ser la forma en que parece planearse y articularse también como una unidad narrativa, en lugar de como episodios aislados o historias extemporáneas. Esto sugiere que la unidad y el cierre narrativos, por más estrictos y triunfantes que sean, pueden ser inestables y turbados en sí mismos, sin necesidad de deambulaciones paratácticas. Los vencedores de la épica también pueden ser sus vencidos.

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Notas de la redacción

Article reçu pour publication le 04/07/2018; accepté le 05/11/2018.

Texto completo

  • 1 O Canto IX da Felicissima Victoria divide-se fundamentalmente em duas cenas: em primeiro lugar, o c (...)

1Deve haver poucas passagens de poesia narrativa renascentista tão intrigantes quanto a cena que se segue ao principal conselho de guerra da Santa Liga no Canto Nono da Felicissima Victoria de Lepanto (Corte-Real, 1578)1. Caiu a noite e os soldados dormiam tranquilamente nos navios da armada. Em breve, porém, o ambiente de sossego nocturno alterou-se, e a descrição adquire imediatamente uma tensão especial (f. 123v):

En la callada, muda, escura noche,
La gente alli entregada al dulce sueño,
Olvidada se muestra del peligro.
Varias ficciones veen, y tal se acierta
Que el braço mueve aqui y alli con furia,
Parescendiole andar en la batalla,
Y al trance peligroso, va offrescido:
En vano dâ mil golpes, y con bâxa
No bien distincta voz, habla entre dientes.
La frente de sudor bañada, muestra
Intrinseco furor, y ravia vana,
Ora menea un pie, ora otro mueve,
Ora junta la ceja, ora se olvida.

2Cena semelhante fora criada na epopeia anterior do mesmo poeta, o Segundo Cerco de Diu (Corte-Real, 1574), e colocada subsequentemente ao massacre de Ançote, uma aldeia da costa ocidental indiana que os portugueses haviam devastado nesse mesmo dia. Essa cena anterior foi enaltecida por Sismonde de Sismondi nos inícios do século xix. Escreveu ele então que Corte-Real «représente admirablement le sommeil convulsif des Portugais victorieux, et le souvenir de ces scènes de carnage que se représentent à eux dans leurs songes» (Sismondi, 1813, p. 486). O historiador literário suíço não buscava uma interpretação, se bem que a posição da vinheta na narração apoiava uma bastante simples: os soldados portugueses não se conseguiram libertar psicologicamente dos horrores que tinham acabado de perpetrar. A força do passo residia na capacidade mimética de comentar as acções descritas imediatamente antes. A violência perturba as esquinas mais recônditas da mente; não se acalma dentro de nós e regressa, como um assombramento, no silêncio da noite.

3Mas se é seguro chegar a tais conclusões em relação à cena que Sismondi admirava, que pensar dos sonhos igualmente convulsivos na posterior Felicissima? Contrariamente às tropas portuguesas no Segundo Cerco, os soldados-marinheiros da frota, maioritariamente espanhóis e italianos, não tinham ainda entrado em combate, não tinham sequer visto qualquer acção bélica. Como podiam ter sonhado acerca dum passado que nunca foi?

4Com efeito, o acto poético de auto-imitação nesta cena é patente mas parece deslocado. Um trecho que, no poema mais antigo, fazia fácil e poderoso sentido como epílogo de um massacre, parece esvaziado do mesmo sentido como epílogo dum conselho de guerra. Talvez o propósito agora fosse o oposto: os soldados da frota cristã sonhavam, não como reacção à violência, mas por antecipação dela. O conselho de guerra teria gerado um sentimento de expectativa que estimularia sonhos e a sua manifestação física, o sonambulismo. Mas se o conselho de guerra do dia anterior tinha certamente a ver com a certeza de que as forças navais da Liga cristã iriam enfrentar-se com os turcos otomanos, os preparativos para o combate tinham levado meses e vários conselhos, incluindo dias e noites em que os soldados navegaram completamente armados. A Santa Liga formara-se a 15 de Maio de 1571 e o próprio poema menciona o facto de que a frota esteve em Génova entre inícios e meados de Agosto (Canto 7, f. 95r), zarpando dali, enquanto o sol passava do signo do Leão ao da Virgem, para Nápoles, onde Juan de Austria recebeu o estandarte e as insígnias do Papa. A 25 de Agosto, a armada deixou a antiga Parténope por Messina, onde aguardou enquanto o comandante presidia ao conselho e ia sugerindo que todo o tempo desperdiçado até então não fora culpa do seu rei, Filipe II de Espanha (ibidem, f. 98v). A partir daí, a frota da Liga procurou, com muitas dificuldades de mar e vento, tomar a rota de Táranto, navegar até ao Cabo de Santa Maria (de Leuca), atravessar o Golfo de Veneza, aportando nas regiões costeiras da Albânia, e desde ali prosseguir até Corfú e Cefalónia, na Grécia. Tudo isto é contado nos Cantos 8, 9 e 10, intercalado por episódios. Os atrasos continuaram depois do referido conselho de guerra, até que as frotas se encontraram para a batalha de Lepanto a 7 de Outubro. Então, porquê agora? Porquê pôr os soldados a dormir com os mais incómodos sonhos, ao fim de tantos dias, e quatro Cantos antes de a batalha naval ter lugar?

5O conselho de guerra que precede o sono dos soldados inclui o maior, mais eloquente e mais importante discurso do comandante da armada, Juan de Austria. O discurso é, naturalmente, uma chamada às armas, um incitamento ao combate. Mas não é apenas isso. O discurso do meio-irmão de Filipe II de Espanha recorda, quer aos oficiais da marinha, quer aos leitores do poema, os motivos de toda esta acção militar (Canto 9, f. 122r):

Que verguença sera, ó fuertes hombres,
Si dexamos a Cipro entregue a Turcos?
Y que las Islas sean saqueadas
Con muertes y con daños tan sangrientos?
Y de tales affrentas olvidados,
A tantos gritos, sordos nos mostremos,
Bolviendose ellos todos sin peligro,
Culpando la impiedad de los Christianos?

6Assim como faz em outros lugares do poema, Corte-Real segue aqui a Relación de Fernando de Herrera (Herrera, 1572). O passo pertinente acontece no capítulo 22:

Mas con que verguença se podía sufrir, que delante de los ojos de la Christiandad, sin encenderse los animos a la vengança, ganassen los Turcos a Cipre, y saqueassen las islas, y se bolviessen sin peligro, culpando justamente la impiedad y la cobardía de los Christianos. Para quando esperavan sentirse de su afrenta?

7Em certa medida, aqueles versos são apenas uma recreatio ritmada desta prosa. Mas Corte-Real intromete-se no texto de Herrera para o modificar de algumas formas essenciais que não são, estritamente falando, poéticas. Primeiro, mudando o impessoal do reflexivo para a primeira pessoa: Herrera referia-se a vozes anónimas; Corte-Real põe-nas na boca do próprio comandante supremo da Liga, no momento em que se dirige aos seus capitães. O compromisso com as palavras torna-se, assim, íntimo: somos «nós», os soldados cristãos, que sentimos o peso de Chipre ensanguentado nas «nossas» consciências. Em segundo lugar, Corte-Real substitui a imagem a fornecer pelas tropas cristãs aos seus (delante de los ojos de la Christiandad) e o natural desejo de retaliação (encenderse los animos a la vengança), pelos brados de socorro dos cipriotas e um mais lato sentido moral de salvação dos aflitos. Duma mera imagem para efeitos de propaganda política passamos a um efeito mais puramente psíquico e ético. Os hendecassílabos a tantos gritos, sordos nos mostremos e con muertes e con daños tan sangrientos, bem como a personalização das acções através da gramática da primeira pessoa, nos, não possuem qualquer correspondência no texto de Herrera. Parecem, contudo, pertencer a um só objectivo coerente: Corte-Real enfatiza, mediante a personagem de Juan de Austria, o sentido do dever em relação aos residentes cristãos de Chipre que se acham sujeitos, no preciso momento em que discursa, ao mais horrendo sofrimento e atrocidades. Este sentido de dever moral, que exclui a vingança, encontra-se centrado numa única palavra: impiedad.

8Numa importante análise da noção de pietas na epopeia de Virgílio e nas suas imitações renascentistas, Burrow chamou a atenção para o modo como a piedade está fundada em justiça moral, com uma componente emotiva que complexifica, para não dizer que divide, a personagem de Eneias. A piedade-pietas teoricamente considerada consiste num dever moral em relação a obrigações pessoais perante a religião, a pátria, a família e os laços de amizade, bem como um sentimento de desgosto pelo sofrimento dos outros (1993, pp. 38-51, 80-84 e ss.). Com o Cristianismo, representado desde os textos gregos do Novo Testamento até aos romances medievais de cavalaria, a piedade envolve um alto grau de responsabilidade na protecção dos desfavorecidos, associada a um desejo de lhes proporcionar alívio. No Renascimento, pela confluência dos factores em causa, a piedade desenvolve essa dupla natureza, reforçando o seu carácter simultaneamente afectivo e ético-político. Para além disso, não deve, ainda, descurar-se o sentido trágico-poético do conceito. Com efeito, a piedade, éleos, tem uma função capital, na concepção aristotélica, quanto à relação pragmática estabelecida entre o poema e o público. A piedade é suscitada nos homens quando se deparam com aqueles que não merecem o infortúnio que lhes sucedeu. Na Poética, progressivamente mais e melhor conhecida na segunda metade do século xvi, o enredo é a fonte preferencial de piedade e a catarse desta um objectivo primacial da tragédia. Como se vê, o co-envolvimento de tais definições éticas, sentimentais e de tekhne poética atinge, na época de Corte-Real, um grau significativamente elevado.

9A palavra impiedad chega à Felicissima, portanto, investida duma forte carga semântica de grande amplitude. Juan de Austria assinala a suspeita e a ameaça dum vício iminente, enquanto afirma e ordena o dever político de exercer a piedade. Como podem heróis militares cristãos ser «surdos» a tantos «gritos» oriundos dos cipriotas, vítimas inocentes das crueldades que o próprio poema lembra abundantemente? O comandante supremo da Liga, enquanto personagem do poema (e, aparentemente, só nesta condição), sente que a sua obrigação ética, a sua missão e a dos seus subordinados, é salvar Chipre dos horrores que está a sofrer sem qualquer culpa. O filho de Carlos V tem, pois, uma missão pia.

10A estrutura narrativa do poema complementa, e reforça em muito, esta caracterização da acção e motivos do herói principal. As duas faces mais centrais da narrativa, a histórica e a mitológica, apontam na mesma direcção, sublinhando o propósito simultaneamente poético e ético-político.

11O aspecto histórico é a invasão otomana de Chipre. Esta é a acção que justifica tudo o resto que sucede diegeticamente. O desejo do sultão Selim II de conquistar a ilha cipriota, e o próprio ataque, são as acções centrais dos primeiros três Cantos. Ali, Chipre constitui o núcleo de interesse e a localização central de toda a acção. É a invasão otomana da ilha que, na economia do poema, faz despoletar a acção heróica cristã. Desde que a frota da Santa Liga aparece referida em primeiro lugar (no final do Canto 5, e por uma boca otomana), Corte-Real investe todos os recursos de carácter (ethos) do seu herói no desenvolvimento de medidas preventivas em relação aos ataques turcos e, desde logo, em compromisso com o resgate cipriota, pela correlação imediata da entrada na narração do comandante supremo da aliança cristã com a entrada de Vénus como personagem do poema (Canto 6).

  • 2 A íntima ligação entre o episódio e a presença de Vénus no poema foi já perspicazmente observada: « (...)

12Ora, ao nível da mitologia, o poeta apresenta Vénus como a agente divina que apoia Juan de Austria. A razão é directa: Chipre, mitologicamente falando, é a ilha de Vénus, a ilha do amor por excelência, o lugar que, mais do que qualquer outro, não suporta violência. Por isso, a deusa não tem armas, ou melhor, pode agir em sua defesa apenas através das «armas» que possui, aquelas que provocam o amor-paixão. Assim, Vénus age primeiro indirectamente através de ninfas e duma «Casa do Amor» na sua ilha para criar ciúmes autodestrutivos nos generais turcos (Cantos 2 e 3)2. Em acção de certo modo paralela, no final do poema, age directamente através de Marte, seu amante, para que este intervenha de maneira decisiva sobre o comandante da esquadra otomana em Lepanto (Cantos 13 e 14), pois o deus da guerra afirma que al que pudo enojarte, por tu vida / Juro por la mi mano darle muerte (f. 182v). Mas se a deusa favorece o herói, ela sabe também que a armada e o capitão-mor, por sua vez, estão presentes para a ajudarem (Don Juan é aquele que en su favor y ayuda se apareja, Canto 6, f. 80r; viene para ayudarme un moço hermoso, Canto 6, f. 81v; os soldados cristãos da Liga são los que vienen ayudarme, Canto 13, f. 182r). Todas as acções directas de Vénus dizem respeito a procurar ayuda ou socorro para o seu reino, quer convencendo o marido Vulcano a forjar um escudo protector para quanta gente / aora en tu favor viene ayudarte, como diz o deus (Canto 6, f. 82v), quer informando o irmão Neptuno acerca dos males que assolam a ilha, de modo a que acalme as ondas e deixe passar os navios da Liga (por que’l fuerte hijo de Carlo / por socorrerme con tus ondas lucha, Canto 8, f. 112r), quer ainda solicitando a Éolo que contenha os ventos bravios que impedem a navegação, substituindo-os pelos ventos brandos (Canto 8, f. 115v):

¿Que ganas, dime, ô Rey a quien los vientos
Sañudos y sobervios obedescen,
En que mi triste Reyno y gente mia
Por no tener socorro assi perezcan?

13A missão que Vénus proclama para a grande frota cristã, e a íntima associação de benefício mútuo que o poema cria entre deusa e herói, estão concentradas na defesa e salvação de Chipre. É a missão de a ajudar e socorrer que Vénus proclama para Juan de Austria e a razão da protecção que, por sua vez, lhe oferece.

  • 3 Importa lembrar, neste ponto, que os episódios da Felicissima em torno do escudo de Vulcano foram c (...)

14Desta forma, a piedade do herói na Felicissima define-se moral, política e, sobretudo, militarmente. Será através da acção militar de intervenção sobre os males em curso na ilha do Mediterrâneo que se cumprirá ou não a virtude heróica que, sem descurar a coragem, a prudência e a destreza no manejo das armas, será a mais substantiva do poema. O novo valor simbólico do escudo que Vénus oferece ao seu herói (forjado por Vulcano no Canto 6, e entregue no Canto 9, na mesma noite do sono inquieto dos soldados), em evidente imitação da Eneida, está todo aqui, pois a virtude reside, sobretudo, no tipo de emprego que o herói dará à força militar3. Daí o relevo do sentido de justiça, quando Juan de Austria recorda, no conselho de guerra, os sofrimentos de Chipre, ilha habitada por cristãos. Perguntar-se, como faz o comandante no poema de Corte-Real, se a acção da Liga pode permitir-se uma falta na virtude da piedade é levantar uma questão central à própria estrutura narrativa da Felicissima.

15Regressemos então ao discurso do comandante no Canto 9 e ao excerto dele citado anteriormente:

Que verguença sera, ó fuertes hombres,
Si dexamos a Cipro entregue a Turcos?
Y que las Islas sean saqueadas
Con muertes y con daños tan sangrientos?
Y de tales affrentas olvidados,
A tantos gritos, sordos nos mostremos,
Bolviendose ellos todos sin peligro,
Culpando la impiedad de los Christianos?

16Um dos termos pelos quais o texto de Corte-Real difere verbalmente da fonte herreriana é a palavra olvidados. Esquecer o que aconteceu, e continua a acontecer, em Chipre, enquanto o herói fala, é sugerir impiedade. Ora, o verbo olvidar regressa na cena que se segue imediatamente ao conselho de guerra, ainda no Canto 9, a extraordinária cena de sonambulismo com a qual este estudo começou:

La gente alli entregada al dulce sueño,
Olvidada se muestra del peligro.
Varias ficciones veen, y tal se acierta
Que el braço mueve aqui y alli con furia,
Parescendiole andar en la batalla,
Y al trance peligroso, va offrescido:
En vano dâ mil golpes, y con bâxa
No bien distincta voz, habla entre dientes.
La frente de sudor bañada, muestra
Intrinseco furor, y ravia vana,
Ora menea un pie, ora otro mueve,
Ora junta la ceja, ora se olvida.

  • 4 O incómodo que a ausência de ajuda a Famagusta causou está bem patente, por exemplo, na crónica de (...)

17O esquecimento inicia e termina o episódio. A gente dos navios adormeceu olvidada e terminou os seus sonhos também em estado de distracção (se olvida). Mas a força do seu sonhar entre esses dois momentos de esquecimento, a força que afectou os seus corpos e os fez mover-se, reside inteiramente na acção militar e nas suas incertas motivações e finalidades. Inútil do puro ponto de vista da narração, uma vez que não adianta nem retarda a acção, a cena dos soldados adormecidos torna-se agora mais clara como produtora de significado. A batalha não se realizou em Chipre, nem significou a reconquista da ilha. Pelo contrário, Chipre acabou por ser entregue ao Império Otomano por tratado assinado com a República de Veneza em 1573. Os repetidos apelos de Vénus, pedindo socorro, não resultaram no plano da História: o reino da deusa foi mesmo abandonado à sua sorte4. Os militares de Juan de Austria posicionam-se entre uma acção que virá a acontecer (a batalha naval de Lepanto) e outra que, embora crucial para a missão em que participam, não chegará a acontecer (o resgate de Chipre). A cena concebida por Corte-Real torna-se então na mimese duma interiorização mental que é tão ambivalente quanto perturbadora. Oscilando entre ansiedade e frustração, estes sonhos de guerra, no seu mesmo carácter imotivado e desobjectivado, produzem uma lição acerca do ethos militar do poema. Uma lição que nada tem a ver com encómio ou vitupério, mas tudo que ver com uma séria advertência sobre aquilo que corre o risco de ser totalmente esquecido e todavia não pode ser senão lembrado.

  • 5 Os estudos aludidos são, por ordem cronológica, Murrin, 1994, pp.138-143, 179-186 e ss. (além das i (...)
  • 6 A carta de Filipe II, endereçada «Al magnifico, y amado nuestro, Hieronymo Corte Real», foi incluíd (...)

18A Felicissima, ou o poema «mais feliz» de Corte-Real, tem sido interpretada, mais ou menos universalmente, como enaltecimento directo, sólido e monofónico do Cristianismo tal como aparece supremamente representado e protegido pelo Império Espanhol de Filipe II no seu momento máximo de vitória, mediante o comando delegado no meio-irmão D. João de Áustria. Todos aqueles que, em estudos literários hispânicos, ibéricos ou comparados, se debruçaram sobre o poema, admitiram isto mesmo explícita ou tacitamente, sem excepção do redactor destas linhas5. Aquilo que venho agora sugerir é que podemos estar aqui na presença de alguma cegueira crítica. Tratar-se-á duma cegueira até certo ponto natural, graças a mais do que um factor que a promove. Com efeito, Corte-Real não esconde o emprego aparentemente fiel, e quase exclusivo, da Relación de Herrera, um produto incontroverso de propaganda filipina, como fonte histórica dos acontecimentos. Também a escolha do tema, uma enorme vitória militar, de grande significado político e religioso para a Europa, coloca o poema, numa expressão já famosa, do lado da «épica dos vencedores» (Quint, 1993). A teleologia irrestrita da narração, sem qualquer epílogo que levante dúvidas acerca das vantagens políticas efectivas do triunfo da Liga em Lepanto, vantagens essas que já pareciam bem frágeis na altura em que o poema ia sendo composto, parece calar voluntariamente qualquer sugestão de dúvida. No plano contextual, sabe-se que Corte-Real procurou a aprovação directa de Filipe II para a Felicissima, aprovação confirmada pela carta, rara nas circunstâncias, em que o rei respondeu ao autor, louvando-lhe a escrita e o talento6. Acrescentaria a todas estas razões uma última, que creio nova e parece corroborar as anteriores: o tipo deliberadamente unificado de acção que, duma maneira neo-aristotélica, o poema procura construir e estabelecer.

19Efectivamente, o felicíssimo poema de Corte-Real parece conceber-se como uma estreita malha narrativa de espécie desconhecida até então nas epopeias ibéricas, fosse quem fosse o autor. Há nele uma experimentação com a «unidade da fábula» que é fundadora, pelo menos em Espanha e Portugal, e que se torna tanto mais notável quanto precede em alguns anos a influência da Gerusalemme Liberata e dos Discorsi sobre poesia de Torquato Tasso, enquanto a epopeia de Corte-Real foi terminada, num manuscrito magnificamente caligrafado e iluminado, no ano de 1575, vindo a ser impressa em 1578, a epopeia de Tasso foi copiada à mão também em 1575, mas foi impressa pela primeira vez apenas em 1581; os Discorsi chegaram aos prelos somente uns anos depois. Assim sendo, a obra de Corte-Real é o exemplo ibérico anterior a Tasso duma importante mudança em teorização poético-narrativa, uma mudança epitomizada na primeira tentativa autêntica, no género épico tal como se praticava aquém-Pirenéus, de adoptar uma unidade de acção neo-aristotélica.

20Talvez nada torne o fenómeno mais evidente do que a comparação da Felicissima com a primeira epopeia do mesmo autor, o Sucesso do Segundo Cerco de Diu, sobretudo pela facilidade com que começamos por encontrar as semelhanças de conteúdo. Ambos os inícios de narração partem de antecedentes idênticos: o monarca inimigo tem um sonho em que uma visita infernal (a Discórdia no Segundo Cerco, a Guerra na Felicissima) o censura pela inacção. A visão espectral nocturna serve, em ambos os casos, de despoletador da acção principal. Corte-Real imita-se a si mesmo. No entanto, as modificações a que procede depois, independentemente das que se tornavam obrigatórias pela mudança do tema histórico, diferem da primeira epopeia para a segunda sobretudo pela vontade de evitar digressões e aumentar a coesão do relato. Assim, ao sonho do Segundo Cerco seguem-se transcrições de cartas encorajando o monarca a agir, descrevem-se os seus capitães, as relações que tinham com o sultão e as riquezas do reino, especificam-se motivos vários para iniciar a guerra, enumeram-se os detalhes de aprovisionamento e preparação das armas e mantimentos, a Fama que corria acerca destas movimentações, as cartas que o monarca escreveu para obter mais apoios e as embaixadas que enviou, a apresentação do primeiro herói português e seus primeiros contactos com um capitão do sultão inimigo, os avisos que recebeu de planos de ataque a Diu etc. Tudo isto nos dois primeiros Cantos. Na Felicissima, a lista é muito mais breve: ao sonho do imperador sucede-se o conselho dos seus generais, com a decisão do ataque a Chipre, e o Canto 1.º acaba com uma passagem paralela à da Fama no poema anterior, com a frota otomana a preparar-se para a invasão da ilha. Nada mais. Na passagem para o Canto 2, a seguir a uma cena de esfolamento e martírio de cristãos —que serve de introdução ao ataque a Chipre e vai ecoar no triunfo final dos turcos no Canto 11, como veremos— temos logo iniciada a primeira viagem marítima e o cerco de Nicósia.

21Tal mudança, com materiais, afinal, não muito dissemelhantes, é totalmente estratégica e intencional, como um olhar à proposição dos poemas tornará imediatamente evidente. O Segundo Cerco possui uma prótase predominantemente enumerativa:

As forças, a destreza, a valentia,
Opiniam, valor, o esforço grande
Dos Portugueses canto, e o trabalho
De h
ũ perigoso, estreito, duro cerco.
A batalha tambem canto daquelle
Insigne Visorey dom Ioão de Castro,
Na qual os capitães do gram Mamude
Forão todos vencidos, e a cidade
Populosa de Diu toda entregue
Ao furor dos soldados, cobiçosos
Da honrada fama mais que de riquezas.

22Deste modo, o Segundo Cerco edifica-se como um poema de múltiplas acções, sobre várias virtudes (fortaleza, destreza, prudência etc.) de homens combatendo por Cristo e Portugal, não somente num cerco, mas igualmente numa outra batalha, e sem esquecer ainda a fúria destrutiva de soldados sobre uma cidade. Nada, a não ser a inclusão na proposição, sugere que estas qualidades e acções estejam interligadas, muito menos por causalidade: as copulativas (e; também) acentuam uma parataxe sintáctica facilmente transponível para a forma narrativa global.

23Pelo contrário, o proémio da Felicissima manifesta a procura da acção singular e unificada ideal:

Un caso famosissimo admirable,
Una victoria al mundo estraña y nueva,
Un succeso felice jamas visto
En trances arriscados y sangrientos,
Canto con alta voz; canto la fuerça
El impetu furioso, osado y fiero
De la Christiana gente, el vencimiento
De la armada Othomana, aqui rendida.

24Sem deixar de ser amplificatória, à boa maneira da retórica laudativa, esta é uma prótase curta —equivale a uma só oitava num poema rimado— e tão destituída quanto possível de indicações acerca das virtudes e acções particulares dos protagonistas. A Felicissima insiste sobre a unidade do seu objecto, e o autor concebe o poema todo como um só enredo montado sobre uma guerra entre dois impérios, iniciada com ataques otomanos a Chipre e concluída com a vitória do Papa, de Espanha e dos seus aliados cristãos no golfo de Lepanto. Tudo o que significa desvio desta estrutura básica é remetido para sonhos e profecias. Tal não acontecia no Segundo Cerco de Diu. Aí, os sonhos e vozes de personagens quase não possuíam conteúdo narrativo (não contavam histórias) e não serviam, em rigor, para criar «episódios», isto é, núcleos narrativos destacados e autónomos em relação à acção principal que, ao mesmo tempo, a desenvolvessem. A grande excepção era o longo sonho de D. João de Castro, que só por efeito de epílogo nos dois últimos Cantos —tal como a ilha amorosa de Camões— podia fazer figura de conjunto com o resto do poema. O aproveitamento que o poeta faz na Felicissima da sua experiência épica anterior depende, portanto, duma ideia de maior coesão, concentração e causalidade das acções. Desde o início, pois, a Felicissima oferece um conjunto muito mais concatenado e cerrado do que o Segundo Cerco de Diu. O que confirma, em meu entender, o objectivo indicado na prótase e a construção, sob influência neo-aristotélica, duma só acção completa neste segundo poema narrativo de Corte-Real.

25A nova tendência para reduzir a narração a uma única acção principal sente-se igualmente, como seria natural, quando se comparam os dois episódios de sonambulismo. Enquanto no Segundo Cerco de Diu o sono dos soldados portugueses se refere à carnificina que haviam acabado de perpetrar e se torna numa sua conclusão lógica, na Felicissima o regresso do tema, antes de pertencer a um acontecimento particular, abrange toda a estrutura narrativa do poema, referindo-se ao conflito global entre os dois impérios. Este significado do passo tinha-se-nos escapado até agora: os soldados dos navios que sonham no Canto 9 da Felicissima sonham acerca de toda a acção do poema, desde a primeira batalha por Nicósia em Chipre (Cantos 2 e 3) até à batalha de Lepanto que há-de vir (Cantos 13 e 14), isto é, exactamente desde os mesmos Cantos da primeira intervenção da paixão e beleza cipriotas, pelas ninfas da ilha de Vénus (Cantos 2 e 3), até aos Cantos (13 e 14) referentes à última intervenção de Vénus no poema. Os soldados da Santa Liga sonham verdadeiramente com o enredo da epopeia, e aquilo que sonham é não só uma maneira de lembrar, mas também uma maneira de esquecer, a acção singular, una e completa do poema de que fazem parte.

26Atingida ou meramente procurada, a unidade fabular da Felicissima, entre o ataque a Chipre e a batalha de Lepanto, configura-se através de relatos de cinco assédios otomanos a cidades muralhadas: Nicósia, Cefalónia, Cátaro, Corfú e Famagusta. Uma vez que todas essas cidades se situam em ilhas ou na costa mediterrânica, a primeira consequência da opção narrativa do poeta foi a possibilidade de descrever a deslocação de forças navais, sem descurar os combates entre sitiantes e cercados. Surgia assim a oportunidade para realizar a ambição totalizante do poeta épico: recolher e interligar as duas grandes tradições heróicas clássicas, a iliádica (dos combates por uma cidade) e a odisseica (das viagens por mar); num só poema e numa só acção, acções militares em terra e frequente interesse náutico. Contrariamente à Eneida, cujas metades seguem, cada uma, o respectivo modelo homérico, as duas tradições pretendem convergir na Felicissima, de modo a que guerra e viagem, combate e navegação, feitos em terra e histórias no mar, se articulem e entrelacem, formando um todo. Corte-Real procurava a epopeia classicista completa, a epopeia perfeita.

27Dentre os cinco cercos, o de Nicósia e o de Famagusta (as duas maiores cidades de Chipre) são, de longe, os mais importantes do poema. Entre começo e término, o assédio de Nicósia ocupa os Cantos 2 e 3, enquanto o cerco de Famagusta, que é o segundo a iniciar-se (também no Canto 3), é também o último a concluir-se no poema (Canto 11). O principal protagonista dos dois grandes cercos é o mesmo: o general Mustafá Paxá. São estes dois cercos o móbil da acção opositora da Liga cristã, segundo o argumento do poema. Aos outros esforços sitiantes, portanto, a Felicissima dedica muito menos espaço. O assédio a Cefalónia (ilha do mar Jónico, então sob domínio veneziano) é descrito, completo, pelo narrador principal, do início ao meio do Canto 5. O cerco à cidade de Cátaro (actual Kotor, na costa de Montenegro), que era então um bastião da Sereníssima, é relatado do meio para o final do Canto 5, mas é interrompido, por ser levantado nesse mesmo Canto (o levantamento do cerco é mencionado de novo no Canto 8, f. 109v). O penúltimo cerco tratado no poema é o de Corfú (outra ilha do mar Jónico, então sob domínio de Veneza) no Canto 8. Outros assédios são mencionados de passagem e aparecem com estatuto de marginalidade face à acção principal do poema.

  • 7 Mercedes Blanco chamou a atenção, julgo que pela primeira vez, para a disposição especial dos eleme (...)

28Todos os cinco cercos são descritos pelo narrador principal, aquele que parece confundir-se com o autor, a não ser em dois casos: os assaltos a Famagusta e Corfú, ambos relatados por narradores secundários, um famagustano anónimo e o capitão Gil de Andrada respectivamente. A utilização de narradores delegados permite interrupções no relato de cada cerco e a dispersão deste por mais do que um Canto7. Já se notou a interrupção no relato do assédio de Famagusta. O mesmo sucede, em menor escala, no que tange ao cerco de Corfú: iniciado no Canto 5, o resumo do seu relato é adiado até ao Canto 8, por outro núncio, o capitão Andrada. No entanto, o cerco de Famagusta constitui, de facto, a grande narração do poema construída por um native informant ficcional; trata-se, assim, duma instância particularmente importante da sintaxe narrativa. Mas a sua importância é também política e psicológica: a perda de Famagusta representa a conquista total de Chipre pelo Império Otomano. Daí o relevo poético-narrativo do assédio: na concepção do poema, o nó do enredo encontra-se na relação entre a invasão de Chipre e a libertação da ilha pelas forças armadas da Liga cristã, libertação essa que, como vimos já, nunca aconteceu. Resta saber como este condicionalismo histórico aparece concebido num poema que nada relata para além de 1571 e que faz girar a guerra de Chipre e a batalha de Lepanto em torno dum só eixo composto por cercos e navegações.

  • 8 A sugestão principal da deslocação narrativa do cerco de Famagusta para o final da narração, imedia (...)

29Nada representa melhor a articulação coesa das acções narrativas na segunda epopeia de Corte-Real, bem como o papel fundamental que nela ocupa a cena dos soldados adormecidos, do que o cerco de Famagusta. Quando a cidade cipriota finalmente regressa ao poema, ao fim de sete Cantos inteiros (do 4 ao 10) em que a população sofria o assédio, ela regressa por via dum narrador delegado, um refugiado anónimo que conta a história do cerco, em primeira pessoa, aos capitães da frota cristã8. O relato do famagustano corresponde em pormenor à destruição, mortes e gritos de ajuda que Juan de Austria havia imaginado no seu discurso do Canto 9. O comandante não errara. Com efeito, para além das descrições da violência exercida pelas tropas otomanas, o relato do Canto 11 forma uma lista angustiante de expectativas de ajuda militar aos sitiados. Após sofrer o primeiro grande bombardeamento por parte da recém-reforçada artilharia otomana, a 19 de Maio de 1571 (f. 139v), o núncio diz a Juan de Austria que um navio chegou a Famagusta, passados dez dias, assegurando que ajuda vinha a caminho (f. 141r). No entanto, três semanas depois desta garantia, a 20 de Junho, ainda não havia sinais de auxílio (f. 142r). Decorridos mais vinte dias, Corte-Real lembra-nos, através da voz do informador nativo, que a 9 de Julho voltavam a não vislumbrar-se tropas cristãs no horizonte (f. 145r). Umas quatro páginas adiante (f. 147v), Marco Antonio Bragadino, o regente da cidade pela República veneziana, promete aos seus concidadãos a chegada de socorro, e envia uma fragata a Creta para avisar a armada da Liga. Mesmo assim, quando chega o dia 29 de Julho, exactamente dois meses depois da primeira promessa de ajuda militar, continua a não se ver sombra dela (f. 148r). Estas cinco referências ao possível socorro a Famagusta nos últimos três meses do cerco comparam-se com as únicas duas (29 de Maio e a promessa do regente) mencionadas na fonte principal, o capítulo 13 da Relación de Herrera. Falhadas todas as promessas e esperanças, no dia 1 de Agosto o Bragadino mandou içar a bandeira branca.

30As últimas páginas do Canto 11, onde Corte-Real, através da perspectiva restrita do narrador secundário, descreve os acontecimentos imediatamente seguintes à rendição, constituem parte fundamental da dialéctica do poema entre socorrer e olvidar, entre uma aliança histórico-providencial —fundada na virtude da piedade— que articula o todo narrativo da Felicissima, e a sua mesma derrogação.

31As negociações de paz correram inicialmente muito bem. No entanto, passados poucos dias, quando Mustafá, o general turco, recebeu o Bragadino e os outros líderes cipriotas na sua tenda, aconteceu, diz a generalidade dos cronistas, uma espécie de mal-entendido. Mustafá acusou as autoridades venezianas da cidade de terem assassinado enviados otomanos numa fase anterior do cerco, Bragadino e os outros rejeitaram tais acusações, e o resultado foi uma escalada da violência armada. Além do governador militar, Astorre Baglioni, e doutros soldados, mortos pelos turcos ali mesmo, o regente Bragadino acabou ferido, preso e condenado à morte. Este último acontecimento, a tortura e desaparecimento do mais importante dignitário de Famagusta, que conclui a história do narrador delegado, assume um relevo extraordinário. Corte-Real torna o conjunto dos versos destinados ao regente veneziano de Chipre numa apoteose trágica do enredo na fractura principal deste.

  • 9 Toda a parte final do Canto 11 mostra que Corte-Real conheceu e utilizou outras fontes históricas p (...)

32Os grandes momentos distintos dessa apoteose são quatro: o gesto de ameaça de decapitação, as palavras proferidas pelo general Mustafá, a voz do pregão e o esfolamento do Bragadino (1578, f. 150v-151v). Pelo menos três deles possuem fundamento histórico, mas todos são sujeitos a reconversão épica9.

  • 10 É o caso de Martinengo 1572: fl s/n: «al Clariss.Bragadino dopo l'hauerli fatto porger il collo in (...)

33Logo no primeiro momento, a Felicissima abandona o rigor histórico em favor da imitação poética. Alguns testemunhos afirmavam que o comandante veneziano havia sido obrigado a expor o pescoço «duas ou três vezes como se [Mustafá] quisesse cortar-lhe a cabeça»10. Corte-Real opta por concentrar o dado cronístico no número três, atribuindo ao trecho uma eloquência nova. O emprego do signo épico duma acção tripla associada à morte —Aquiles arrastando o cadáver de Heitor três vezes em torno do túmulo de Pátroclo na Ilíada, as três tentativas de Ulisses na Odisseia para abraçar o espectro da mãe, os três fracassos de Dido para se reerguer antes de morrer na Eneida etc.— regressa sob nova feição, numa audaz reescrita do modelo clássico. A tripla tentativa realmente incapaz de consolar, como em Aquiles, Ulisses e Dido, torna-se aqui fraudulenta. O pescoço do Bragadino é exposto ao carrasco, e o fracasso involuntário duma satisfação, característico dos poemas clássicos, transforma-se em engano deliberado:

Hazen al Bragadino que tendiendo
La garganta’l cuchillo se turbase,
Tres vezes el verdugo el braço alçando:
Al misero señala el impio golpe.

34Veremos que o gesto do verdugo será objecto de réplica retardada, duma espécie de anáfora de longo alcance, após a morte efectiva do Bragadino, reforçando assim o carácter épico do episódio.

35Mas antes que tal aconteça, o poeta coloca-o a ouvir de joelhos uma curta fala de Mustafá Paxá em quatro versos que não podiam ser mais relevantes para a estrutura narrativa da Felicissima e que, contudo, não poderiam ser tampouco menos do que perturbadores para ela:

Con tan gran sobresalto, con tal pena
Aquel varon estava arrodillado
En tierra; el gran Baxa del escarnece
Con blasphemia, y por burla asi le dize:
«¿A donde estâ el tu Christo que no viene
En passo tan estrecho aqui a librarte?
¿Por ventura estara de ti olvidado?
¿O pienso que no puede socorrerte?»

  • 11 Na versão contemporânea de Riccoboni (1843: 62), as palavras de Mustafá («Ubi est Christus tuus, qu (...)
  • 12 «& distesolo in terra ragionaua seco Mustafà, bestemmiando il nostro Saluatore, & dicendogli; doue (...)

36Não obstante o fundamento cronístico, Corte-Real escolhe denunciar aqui o seu argumento ético e poético-narrativo central. Estas não são apenas as palavras dum herege ou dum homem sem fé11. Nem são tão-somente as palavras constantes dos relatos a que o poeta teve acesso12. Se o Cristo de que o general turco realçava a ausência nas crónicas já era em parte, por metonímia, a Santa Liga do Papa e dos potentados europeus, o escárnio de Mustafá no poema, reportado pelo famagustano a Juan de Austria e aos leitores, agride o próprio coração do enredo, abrindo nele uma ferida no preciso momento em que já não é possível corrigir ou redimir condutas e acções erróneas. Recorde-se que o meio-irmão de Filipe II tinha apontado, no Canto 9, para o que seria a maior injúria à virtude heróica dos cristãos: os turcos voltarem de Chipre vitoriosos, «culpando la impiedad de los Christianos». Vemos agora que os piores receios se confirmaram: as palavras de Mustafá ressoam como acusações sem réplica possível. Ademais, os conceitos olvidar e socorrer dos dois últimos versos, inexistentes nas fontes históricas, entram no discurso do turco vitorioso como reproduções exactas dos princípios ético-políticos que norteiam a fábula, expondo-os e lesando-os desmedidamente.

37O Bragadino é então atado a uma coluna em frente de todos. E tão perturbador quanto foi o discurso sarcástico de Mustafá, agora o eco retardado da tripla tentativa surge sob a forma dum pregão anónimo, como se foram as três pronúncias da palavra vale tradicionais nos rituais fúnebres latinos:

Una voz espantosa suena ‘l punto
Que a todos nos turbô, alto diziendo
Por tres vezes «¡justicia!», y acabando
El ultimo pregon, la gente corre
Por ver la crueldad en el constante
Animoso varon executada.

  • 13 Não encontrei fonte histórica para esta cena. É de notar, en passant, que Corte-Real não associa o (...)

38De novo, o verbo turbar; de novo, a inquietação nas mentes de todos os espectadores. O grito e a reivindicação de justiça ribombam por toda a parte com ominosa ambivalência, uma ambivalência que o poeta nada faz para resolver13. É certo que o pregão poderia referir-se a retaliação pelos crimes que o Bragadino supostamente haveria cometido contra muçulmanos. Mas esta é mera suposição: o poema não vai por aí. Na verdade, Corte-Real introduz recursos reescritos a partir da tradição épica —a tripla tentativa associada a morte, o seu eco retardado, e o discurso directo do inimigo—, sem autoridade nas crónicas e relatórios sobre a perda de Famagusta, de maneira a pôr em foco as fragilidades da acção política e moral dos líderes cristãos em guerra e a abalar profundamente a base lógico-narrativa em que assenta a estrutura do próprio poema.

39A Felicissima produz, assim, os seus mesmos fantasmas. O Bragadino torna-se em mais um, o último e mais assustador, pois Corte-Real não deixa que o histórico esfolamento do regente cipriota fique sem a sua marca poética. A pele inerte do herói é o símbolo espectral do sacrifício de Chipre:

Como le acontescio al que matando
Bravo leon, o fiero Cocodrilo,
Por memoria d’aquel hecho hazañoso,
La piel dexa colgada en algun templo
Porque notorio sea y divulgado
El passado peligro, y visto a todos,
La figura espantosa, aunque estâ falta
De fuerça y vida, assombra al que la mira,
Assi aquel general nuestro famoso
En horrendo spectaculo puesto al ayre,
Qualquiera pecho turba, y sobresalta
Las orillas del mar donde fue visto.

  • 14 Vale a pena assinalar o tremendo contraste semântico e ideológico entre a conclusão do poema de Cor (...)

40A conclusão fantasmática do canto de Famagusta assegura que a perturbação aterradora de tudo aquilo —reflexo estrutural de igual martírio, já aqui referido, na introdução ao cerco de Nicósia no Canto 2— não se apagará da memória e ficará a assombrar las orillas del mar onde decorre toda a acção do poema14.

41Um poema que assenta numa forte estrutura unificada de ataque e resposta militares defronta-se com um problema sério, no cerne do enredo, quando a resposta não existe, ou quando esta é representada como um desvio ou um afastamento em relação ao objecto devido. É isto o que sucede com a Felicissima de Corte-Real. O canto do sacrifício final de Famagusta e de toda a ilha de Chipre torna-se na lembrança potente duma fractura central à unidade da fábula épica, uma vez que expõe deliberadamente a dor, o sofrimento e os fracassos resultantes do incumprimento da missão heróica e da virtude que a move. Essa fractura perturba (turbar é verbo favorito de Corte-Real), mas impõe-se de tal forma no seu propósito mimético que parece, paradoxalmente, integrar-se em, e trabalhar com, o argumento do poema. No final da história, ganha-se a batalha de Lepanto, enquanto Juan de Austria e os outros capitães cristãos são glorificados. Mas a Felicissima deixa de pé, como um assombramento, a contraface dessa glória e dessa vitória, uma contraface imiscuída na própria malha unitária e teleológica que parece recusá-la. Onde menos se espera, os vencedores são também os vencidos. Por conseguinte, quando os soldados cristãos sonham naquela noite com ficções (ficciones), com uma ira vã contra fantasmas (ravia vana), quando sonham com golpes que só dão no vazio, esquecidos (olvidados) de si mesmos, parecem interpretar bastante bem o poema do qual fazem parte.

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Notas

1 O Canto IX da Felicissima Victoria divide-se fundamentalmente em duas cenas: em primeiro lugar, o conselho de guerra da Santa Liga, onde predomina o discurso de Juan de Austria aos seus capitães; depois, o aparecimento de Vénus em sonhos ao mesmo comandante, entregando-lhe o escudo forjado por Vulcano e contando-lhe feitos em armas. A vinheta citada a seguir encontra-se intercalada entre esses dois momentos maiores do Canto, depois de terminado o conselho de guerra e na mesma noite do sonho.

2 A íntima ligação entre o episódio e a presença de Vénus no poema foi já perspicazmente observada: «los do generales enviados por el gran Turco para conquistar Nicosia [...] son castigados por las ninfas que habitan la isla en venganza por la conquista y destrucción de la patria de Citerea [...]. Dicho episodio enlaza con la centralidad concedida, en el ámbito mitológico de la acción, a la diosa Venus» (Vilà, 2011, p. 72, n.).

3 Importa lembrar, neste ponto, que os episódios da Felicissima em torno do escudo de Vulcano foram censurados pelo notável crítico neoclassicista espanhol Ignacio de Luzán, por constituirem uma imitação servil de Virgílio que não teria lugar num poema cristão (Luzán, 2008, p. 661). Em relação à questão do servilismo imitativo, B. Pozuelo observou o seguinte: «Hay que advertir que Corte Real no reproduce sin más el episodio de Virgilio; por el contrario le da una notable variedad, alargando unas partes e introduciendo nuevos temas» (Pozuelo Calero, 2014, p. 176). Quanto à suposta mescla religiosa, deve realçar-se o facto de que o poeta não permite o reconhecimento de Vénus pelo herói cristão, nem a este é permitido saber que o escudo foi forjado por um deus pagão. Aliás, Vénus tem o cuidado de não se identificar, nem sequer pelo seu interesse particular por Chipre, quando fala em sonhos ao cristão Juan de Austria no Canto 9.

4 O incómodo que a ausência de ajuda a Famagusta causou está bem patente, por exemplo, na crónica de Contarini (1572, f. 30r), que a tenta justificar: «& lodare si puo Iddio d’ogni impedimento fin quì occorso che tutto è stato a beneficio de Christiani non essendo dubbio che sel soccorso era guidato da venticinque ouer trenta galere in Famagosta come fu concluso larmata della Lega senza esse non combatteua nè cercaua giornata si che mettasi silé[n]tio a tutti & lodisi Idio di quanto fin qui ci ha donato».

5 Os estudos aludidos são, por ordem cronológica, Murrin, 1994, pp.138-143, 179-186 e ss. (além das importantes notas nas pp. 303-304, 318-321 e 324); Martínez Torrejón, 2005; Vilà, 2006 (na introdução à edição da Felicissima em DVD); Cicchetti, 2011, passim (pela comparação textual rigorosa com a epopeia posterior de Juan Rufo, Austriada); Vilà, 2011; Cacheda Barreiro, 2012; Plagnard, 2012; Blanco, 2014; Pozuelo Calero, 2014. A estes, devem ainda acrescentar-se as importantes teses doutorais de Vilà, 2001 e Plagnard, 2015, nos sectores onde tratam da Felicissima. Em tempos sugeri que, não obstante várias inovações profundas, a Felicissima representava sobretudo um reaproveitamento precoce e apressado de material do mesmo poeta presente no Sucesso do Segundo Cerco de Diu (Alves, 2005, pp. 181-183). Boa parte deste artigo está dedicado a corrigir essa opinião, ela sim, apressada.

6 A carta de Filipe II, endereçada «Al magnifico, y amado nuestro, Hieronymo Corte Real», foi incluída, entre o prólogo do autor e os versos preambulares de outros poetas, na versão impressa do poema.

7 Mercedes Blanco chamou a atenção, julgo que pela primeira vez, para a disposição especial dos elementos da ordo narrativa na Felicissima através da introdução do narrador secundário famagustano: «Jerónimo Corte-Real [...] cuenta en el canto 10 la progresión de la armada hasta el 5 de octubre; en el canto 11, la lacrimosa historia del asedio de Famagusta entre mayo y agosto; y en los cantos 12, 13 y 14, la gran victoria cristiana del 7 de octubre a vista de las Curzolares. Esta alteración del orden cronológico permite una yuxtaposición estéticamente satisfactoria entre infortunio y felicidad. Sin demasiada distorsión de los datos cronísticos, Corte-Real adapta un procedimiento común de la épica (y también de la tragedia), el relato diferido puesto en boca de un mensajero o “nuncio que fue testigo y víctima en las desdichas que narra. En este caso se trata de un pobre ciudadano de Famagusta [...]» (Blanco, 2014, p. 40).

8 A sugestão principal da deslocação narrativa do cerco de Famagusta para o final da narração, imediatamente antes da batalha de Lepanto, volta a ser Herrera (1572), o qual escreve, no capítulo 23 da sua Relación, o seguinte (sublinhados meus): «A los cinco [de octubre] fondo al armada en el puerto de la Higuera en el canal de la Chafalonia, donde llego una fragata de Candia con aviso de la perdida de Famagosta. Que a todos dolio en estremo pero sintieronlo mas gravemente los Venecianos, que tenian en aquella ciudad sus deudos y amigos. Y vian que ya no tenian algun passo en la isla de Cipre. Porque toda su [i. e. de los Venecianos] esperança estava pendiente de la seguridad de Famagosta. La qual no se perdiera, si le entrara algun socorro».

9 Toda a parte final do Canto 11 mostra que Corte-Real conheceu e utilizou outras fontes históricas para além da Relación de Herrera.

10 É o caso de Martinengo 1572: fl s/n: «al Clariss.Bragadino dopo l'hauerli fatto porger il collo in fuori due & tre uolte, come sé uolesse farli tagliar la testa...». Contarini 1572, Manolesso 1572 (que diz «due, ò tre volte»), Lusignan 1573 e Sereno 1845 afirmam exactamente o mesmo. Tudo indica que o primeiro foi a fonte de todos os outros, especialmente respeitada por derivar duma testemunha de visu, o próprio Nestor Martinengo. Somente um pouco mais tarde, já com a retórica novilatina dum erudito, se escreveu apenas o número três: «...cui ter collum porrigere jusso, quasi caput esset abscindendum» (Riccoboni 1843: 62).

11 Na versão contemporânea de Riccoboni (1843: 62), as palavras de Mustafá («Ubi est Christus tuus, qui te a manibus meis liberet?») recordam, estou em crer, Nabucodonosor contra os judeus (Daniel, 3, 15). A meu juízo, a versão da Felicissima não pretende ser biblicamente alusiva, antes referindo-se sobretudo (como se verá a seguir) à própria estrutura poemática.

12 «& distesolo in terra ragionaua seco Mustafà, bestemmiando il nostro Saluatore, & dicendogli; doue è hora il tuo Christo che non ti aita» (Martinengo 1572: fl. s/n). Contarini 1572 e Lusignan 1573 têm o mesmo texto ipsis verbis.

13 Não encontrei fonte histórica para esta cena. É de notar, en passant, que Corte-Real não associa o Bragadino ao martírio cristão, como fez logo, por exemplo, Manolesso (1572: fl. 58v), nem atribui ao nobre veneziano qualquer discurso de condenação moral de Mustafá, como fazem Martinengo (1572), Riccoboni (1843) e mesmo Juan Rufo, no seu poema épico La Austriada de 1584 (Canto XXI: 109-111), apesar de seguir a Felicissima (cf. Cichetti 2011: 706-07).

14 Vale a pena assinalar o tremendo contraste semântico e ideológico entre a conclusão do poema de Corte-Real sobre Famagusta (e a perda de Chipre), com o símile transcrito, e a conclusão equivalente da crónica de Herrera: «[...] a cabo de doze dias [Mustafa] lo mãdo dessollar vivo [...] dando singular exemplo a toda la Christiãndad, para nõ confiar en la fe y promessa de gente infiel, y que nunca guardo las condiciones prometidas, sino atendiendo solo a su provecho» (Herrera, 1572, final do cap. 13).

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Para citar este artículo

Referencia en papel

Hélio J. S. Alves, «A Felicissima Victoria de Corte-Real: enredo e esquecimento»Criticón, 134 | 2018, 97-114.

Referencia electrónica

Hélio J. S. Alves, «A Felicissima Victoria de Corte-Real: enredo e esquecimento»Criticón [En línea], 134 | 2018, Publicado el 20 diciembre 2018, consultado el 08 diciembre 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/criticon/5006; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/criticon.5006

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Autor

Hélio J. S. Alves

Hélio S. Alves es profesor de Literatura en la Universidade de Évora. Ha sido, además, docente en las Universidades de Coímbra, Lisboa, París-Sorbona, Oxford, Berlín (Freie), Yale y Nueva York (Graduate Center), entre otras. Publicó los libros Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista (Coimbra, Universidade, 2001), Tempo para Entender. História Comparada da Literatura Portuguesa (Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2006) y Jerónimo Corte-Real. Sepúlveda e Lianor. Canto Primeiro (Coimbra, CIEC, 2014). Asimismo, ha colaborado en volúmenes y revistas académicas de Portugal, España, Francia, Suiza, Italia, Gran Bretaña, Brasil, México y Estados Unidos. Es el Presidente de la Associação Portuguesa de Literatura Comparada desde 2013.
halves@uevora.pt
Dep. Linguística e Literaturas, Escola de Ciências Sociais, Universidade de Évora, Largo dos Colegiais, 2, 7000 Évora

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