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Resúmenes

Concebidos y representados en la mitad de una larga carrera, los tres autos que Gil Vicente dedicó a la Salvación de las almas son muchas veces entendidos como resumen imperfecto de su vasta obra. Además de reconocer la centralidad de estas piezas en el conjunto de la producción vicentina, el presente estudio constituye sobre todo un balance crítico de la recepción de las Barcas en los planos literario y teatral.

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Notas de la redacción

Article reçu pour publication le 05/07/2018; accepté le 05/11/2018.

Texto completo

As Barcas na criação vicentina

1As três peças que designamos por Barcas foram sequencialmente representadas, entre 1516 ou 1517 (Auto da Barca do Inferno) e 1519 (Auto da Embarcação da Glória), e constituem, porventura, a síntese menos incompleta de toda a vasta obra vicentina. As peças situam-se a meio do trajeto criador de Gil Vicente, compreendido entre 1502 (Auto da Visitação) e 1536 (Floresta de Enganos). Embora não seja fácil falar de «fases» na criação vicentina, pode admitir-se que os autos em apreço se situam perto do fim de um ciclo, assinalado pelo serviço ao Rei D. Manuel e a sua irmã D. Leonor (o primeiro morre em 1521 e a segunda em 1525), caracterizado pela vigência de modelos mais vincadamente medievais: o auto pastoril, em boa parte imitado do teatro castelhano-leonês de Juan del Encina e Lucas Fernández, a farsa e a moralidade, dois géneros correntes no teatro europeu que se representou entre os séculos xiv e xvi. Após as Barcas, haveriam de manifestar-se em Gil Vicente outras orientações, que vão da comédia, de fundo cavaleiresco e idealizante, à «tragicomédia», de tom fantasioso e celebrativo, ainda parcialmente devedora da técnica dos momos, espetáculos onde a dimensão verbal se combinava com o aparato do som e a visualidade festiva.

2O lugar especial que estas peças ocupam no Livro das Obras deve-se ainda ao facto de nelas confluírem algumas das vertentes estéticas mais importantes de toda a criação do autor. Ali comparecem, desde logo, personagens que parecem transpostas de outras obras (em especial nos dois primeiros autos) e, mais do que em nenhum outro auto, ali se estabelece a oposição entre o Bem e o Mal, entre o que permite a Salvação e o que conduz à Perdição. Nas três peças confluem ainda as duas tónicas centrais em que parece assentar o teatro de Gil Vicente, quando o consideramos como um todo: a sátira, dirigida aos males sociais e morais e o lirismo que enaltece o Bem.

3Pela centralidade cronológica e artística de que desfrutam na obra do autor mas também pela amplitude do leque de personagens e de temas que acolhem, as Barcas passam por ser um retrato de época, abrangendo diferentes tipos sociais e a atitude mental que carateriza cada um deles. Num outro plano, e uma vez que se trata de identificar o que condena e o que resgata, pode haver a tentação de pensar que, no seu conjunto, as peças traduzem o pensamento moral de Gil Vicente. Mais do que a um auto ou, como é o caso, a um conjunto articulado de autos esse mesmo registo de leitura deve aplicar-se à globalidade da obra, que revela um grau de coesão e de coerência bem maior do que à primeira vista parece. É verdade, designadamente, que a hipotética reconstituição do pensamento moral de Gil Vicente não pode prescindir das Barcas; mas é preciso ter em conta que as três peças se encontram em correlação com as restantes que se dispõem ao longo de todo o Livro. O pensamento de Gil Vicente exprime-se através de um jogo velado de vozes que é o próprio teatro, dependendo de muitas convenções de natureza retórica e estética.

As circunstâncias

  • 1 Como quinto e último elo deste conjunto pode ainda identificar-se o Breve Sumário da História de De (...)

4Foi por finais de 1516 ou inícios do ano seguinte, que o dramaturgo de D. Manuel fez representar o Auto da Barca do Inferno na câmara de uma rainha doente. D. Maria de Aragão, segunda mulher de D. Manuel, havia dado à luz pela décima vez, em Outubro de 1516, vindo a falecer, talvez, de sequelas do parto, em Março do ano seguinte. Tudo leva a crer que a peça tenha colhido imediatamente os favores do público. Só assim se explica que, decorrido cerca de um ano (Natal de 1518), tivesse vindo a público a Barca do Purgatório e logo a seguir (Páscoa de 1519) a Barca da Glória. Só assim se compreende, sobretudo, que o primeiro auto tenha sido impresso logo em 1519, situação que era de todo invulgar. Muito provavelmente, de resto, a Barca do Inferno foi a primeira peça de teatro editada em Portugal. Mas, embora a contiguidade temática e cronológica leve muitos estudiosos a referirem a existência de uma trilogia, é necessário ter em conta que entre os dois primeiros autos se situa ainda o Auto da Alma (representado na Páscoa de 1518). Embora aparentemente diverso, trata-se de uma peça que dialoga clara e vivamente com as Barcas. Poderia assim falar-se de tetralogia, considerando as quatro peças que Gil Vicente fez representar de forma sequencial e manifestamente articulada1. O motivo de coesão deveria ser visível para os espetadores da época: se as Barcas colocavam em cena a derradeira consumação, Alma trazia a lume as respetivas causas. Cedendo ao Diabo, a Alma mais não faz do que fretar o navio do Mal; seguindo os conselhos do Anjo, encaminhava-se, desde logo, para o Paraíso. Consideradas no seu conjunto, as quatro peças constituem, de facto, uma espécie de grande moralidade que interliga a Vida e a Morte e que condiciona inclusivamente a leitura da restante obra do dramaturgo.

5Os motivos para um sucesso deste tipo parecem claros: a teatralidade de cada auto é rica e variada, em termos de movimento e de combinação interartística (para além dos diálogos, que podem envolver várias figuras, existe ainda música, dança e uma invulgar profusão de adereços) o leque de personagens é amplo e diverso, cobrindo a realidade social da época. Um último factor de impacto é constituído pelos temas da Condenação e da Salvação, horizonte certo para os espetadores da época, para quem o destino post-mortem constituía uma preocupação fundamental.

Inferno

6Ainda que não existam certezas, é muito provável que Gil Vicente tenha concebido a primeira Barca de forma isolada, sem um verdadeiro projeto de complementaridade ou articulação. O primeiro indício de que assim pode ter sido é o facto de neste texto estarem expressamente previstos os três destinos finais: o Paraíso, ao qual acedem diretamente os quatro cavaleiros de Cristo que morrem no norte de África, e o Inferno, destino inexorável de todas as outras personagens. Poderá ainda pensar-se no Purgatório se considerarmos a espera (ainda que muito breve) a que o Anjo vota o Parvo Joane, depois de lhe assegurar o Céu.

Tu passarás, se quiseres
Porque em todos teus fazeres
Per malícia nam erraste.
Tua simpreza t’ abaste
Pera gozar dos prazeres. (I, 225)

7Em boa verdade, confrontados com o destino final das diferentes personagens, os espetadores verificavam que o destino do Joane seria o dos cavaleiros mártires. Mas eram igualmente convidados a distinguir entre o destino diferido do Parvo (expresso no futuro simples) e o destino imediato dos mártires, a quem o Anjo confessa estar esperando. Nessa medida, e mesmo sem que se refira expressamente o Purgatório, pode dizer-se que, para além da Perdição e da Salvação diretas se prevê uma solução intermédia, destinada a essa personagem invulgar que é o Parvo Joane.

8O outro sinal de abrangência é o espectro social das personagens. Temos um fidalgo de solar, criticado por tirania, um frade concupiscente e ainda magistrados venais; do lado inferior da pirâmide, surge um sapateiro desonesto e uma alcoviteira. Os outros dois autos hão de centrar-se respetivamente nos simples (Purgatório) e nos poderosos (Glória). Sob este ponto de vista, a primeira Barca é, de todos os autos em causa, o mais abrangente. Os restantes constituem derivações especializadas do primeiro e podem ter sido inclusivamente ditados pelo seu sucesso.

Purgatório

9Se a designação de Barca do Inferno se explica em função da larga preponderância do pecado, Purgatório surge como eco do primeiro auto e não necessariamente como sua continuação premeditada. É essa a explicação para o facto de na peça comparecerem, em larga maioria, personagens de condição social humilde. O Menino e o Taful são exceções no quadro deste mesmo estatuto: um encarna a inocência e o outro o vício, valores que se situam para além de qualquer plano social. Com ressalva destas duas personagens, nenhuma das outras figuras é objeto de Redenção ou de Condenação definitivas.

10Com os seus pecados veniais, qualquer um deles tem necessidade de purgar, o que, no caso vertente, pressupõe duas etapas conjugadas: a renúncia aos valores materiais, consubstanciados em objetos e à própria linguagem, indiciadora de excessivo apego ao mundo. Podem ver-se sinais disso mesmo em personagens como a Pastora ou o Lavrador. A primeira procura o cão que em vida lhe servira de companhia e não entende que morreu. Falta-lhe designadamente o discernimento necessário para ser resgatada, evidenciando a permanência de laços que a afastam do Paraíso. Já o Lavrador, surge em cena com o arado, instrumento do seu trabalho. O Diabo lembra-lhe que foi desonesto, mudando os marcos das propriedades. O mais importante, contudo, é que a personagem não revela o grau de consciência que se requer para entrar no Céu. O que tem para dizer em seu favor relaciona-se, tão-só, com a particular dureza da sua profissão e com o lugar que ocupa no ordenamento social:

Nós somos vida das gentes
e morte de nossas vidas. (I, 249)

11O Diabo, porém, não se deixa impressionar e desfaz a validade desses argumentos, contrapondo uma lógica fria:

Pois pera que é o vilão? (I, 248)

12Deste modo e ao contrário do que algumas leituras anacrónicas podem levar a supor, o sofrimento social do Lavrador não constitui atenuante dos seus pecados nem constitui argumento que o conduza à Salvação direta. No teatro de Gil Vicente (e no teatro medieval, em sentido amplo) a estratificação social surge como ordem natural e necessária ao bem comum.

13A tudo isto acresce o peso de uma circunstância especial: concebida para ser representada em época de Natal, a segunda peça é favorável aos simples. Por isso, logo no início, o Diabo nota a ausência de vento que faça andar a sua barca. De resto, não é a única vez que a circunstância do Natal condiciona o desfecho da ação no teatro vicentino. Para além de Purgatório, também em Quatro Tempos, Mofina Mendes, Sibila Cassandra e Feira o Presépio constitui o contraponto de todos os desconcertos, suspendendo o tempo e contribuindo para um reinício purificado.

Glória

14Uma vez que deu seguimento ao primeiro auto, o dramaturgo tinha ainda um último desafio pela frente: construir uma peça assente no resgate supremo. Em suma: faltava-lhe a prova mais corajosa, que foi a Barca da Glória. Por isso, e embora na Barca do Purgatório possam identificar-se algumas alusões à peça anterior, o vínculo entre Glória e os autos anteriores é mais claro. Logo no início, a Morte, que não tinha aparecido em nenhuma das outras peças, é interrogada pelo Diabo sobre os motivos pelos quais «tardan grandes y ricos». Reportando-se abertamente ao que tinha sucedido nas duas peças anteriores, o Diabo explica a situação:

En el viaje primeiro
M’enviaste oficiales.
No fue más de un caballero
Y lo ál pueblo grosseiro;
dexaste los principales.
Y villanage
en el segundo viage,
Siendo mi barco ensecado.
Ah, pesar de mi linage!
Los grandes de alto estado,
Cómo tardan en mi passage! (I, 270)

15Perante este acicate, depois de justificar a demora dos grandes: «Tienen más guaridas éssos / que lagartos de arenal» (I, 270) a Morte promete que, desta vez, alargará a sua ação aos poderosos:

Voyme allá de soticapa
A mi estrada seguida.
Verás como no m’ escapa
Desde el Conde hasta el Papa. (I, 270)

16Embora se possa admitir que ao escrever a primeira peça não tivesse em mente um plano de criação articulado, quando concebe as restantes peças, o autor não pôde deixar de ter em consideração o que tinha já trazido à Corte. Nessa medida e só nessa medida se pode falar numa trilogia das Barcas. E também deve ser essa a explicação invocada para o facto de Gil Vicente não ter repetido o modelo ao longo do percurso (ainda extenso) que viria a cumprir. Tudo leva a crer que as três peças tenham começado como experiência pontual e se tenham depois convertido em criação articulada e conclusa.

17O público de Gil Vicente terá retido memória das três peças, para além da sua representação concreta. Por mais do que uma vez, o dramaturgo voltou a trazer ao palco clérigos venais, alcoviteiras astutas, pastores sem pecados graves, cavaleiros idealistas ou até mesmo o Papa, como haveria de suceder no Auto da Feira. Independentemente das diferenças de integração teatral, Gil Vicente invocou, por várias vezes, a memória das suas Barcas, sabendo que o público reconheceria esse lastro com facilidade.

Os modelos

18A circunstância de antes de Gil Vicente não se encontrar um modelo direto e acabado que pudesse ter-lhe servido de inspiração direta contrasta com o que ocorre a propósito de outros autos. Com maior ou menor nitidez, é possível reconstituir alguns substratos do teatro vicentino: para além da égloga pastoril em castelhano e do teatro medieval francês (este constituindo uma tradição já perfeitamente configurada sob o ponto de vista morfológico) há ainda a influência menos notada da comédia pré-renascentista, que foi sobretudo divulgada por Bartolomé de Torres Naharro, outro grande nome do teatro ibérico, de inícios de Quinhentos.

19A todas estas influências, já notadas com razoável consenso, há que juntar um outro tipo de fontes, não menos importante. Refiro-me, concretamente, ao rasto temático que comparece em boa parte do teatro vicentino. De facto, enquanto o teatro renascentista foi objeto de uma codificação rigorosa, quer sob o ponto de vista da forma quer do ponto de vista dos conteúdos, o teatro medieval gozava de uma maior flexibilidade sob qualquer um dos ângulos em que o consideremos. Havia naturalmente uma gramática implícita da farsa, da moralidade ou do mistério (três dos géneros que Gil Vicente cultivou com mais perseverança) mas nada obstava a que qualquer um desses géneros fosse contaminado pela presença de outros. Num outro plano, deve ainda lembrar-se que o teatro medieval incorporava fortes sugestões de artes como a música e as artes plásticas.

20Sem essa noção, não poderemos compreender bem o problema das fontes das Barcas. Isoladamente, de facto, nenhuma das muitas influências que têm sido apontadas explica as três peças, na sua estrutura e na sua temática. Podem encontrar-se analogias mais ou menos convincentes: existem textos antigos que referem o julgamento dos mortos (Os Diálogos, de Luciano de Samósata, escritos no século iv), oposições entre uma Barca boa e outra perigosa (D. Duarte refere-se a estas imagens no Leal Conselheiro, escrito no século xv); mas nenhuma destas bases se afigura suficiente para que possam admitir-se vínculos diretos.

  • 2 São estas as palavras de Everyman: «O Death, thou comest when I had thee least in mind / In thy pow (...)

21Mais operante parece ser a influência de dois substratos interligados, tanto sob o ponto de vista da sugestão temática como no que respeita à própria organização formal. Falo, em primeiro lugar de Everyman, uma das moralidades europeias mais conhecidas, escrita pela primeira vez em holandês, com o título Elckerlijc (em finais do século xv) e logo traduzida para inglês. Aí encontramos designadamente um confronto desenvolvido entre várias personagens e a Morte. A forma como a personagem central tenta escapar ao seu destino faz lembrar a maioria das personagens da Barca do Inferno, nas quais a alienação é mais intensa e para quem a passagem para o Inferno representa verdadeiramente a aniquilação espiritual. Bastaria mencionar o expediente com que, na moralidade holandesa, a figura principal tenta evitar a Morte, com recurso a bens materiais acumulados em vida (no caso, trata-se da imensa soma de mil libras), à semelhança do que sucede com o nosso bem conhecido Onzeneiro, que se propõe regressar à vida para recolher a fortuna que supostamente lhe garantiria a Salvação2.

  • 3 As artes de morrer que encontramos na Europa parecem remeter, de forma mais ou menos direta, para o (...)

22Tem sido sublinhado, de resto, que esta moralidade reflete a atitude mental que subjaz às artes moriendi, livros que circulavam então, sob forma manuscrita ou impressa e cujo propósito central era o de ensinarem a morrer3.

  • 4 Veja-se Cardoso Bernardes (2003). Para uma visão de conjunto da temática escatológica na arte tardo (...)

23Ainda no mesmo plano se pode encarar a influência da Dança da Morte. Trata-se de uma sugestão temática localizável por toda a Europa, em finais do século xiv, que deu origem a figurações de vário tipo: frescos murais, gravuras impressas e também textos dialogados (o mais antigo que hoje se conhece foi editado em Sevilha, em 1513, mas é certo que existiam versões anteriores, pelo menos manuscritas). De acordo com essa tradição, a Morte, que chegava sempre de surpresa, irmanava várias figuras, de condição social e idades diferenciadas, ilustrando o seu poder sobre todos os vivos4.

24Independentemente de outras sugestões pontuais, podem ter sido estas as bases mais fortes que estiveram na génese das Barcas vicentinas. No caso da Dança, este juízo é ainda comprovado com a coincidência parcial das personagens que comparecem nos textos vicentinos e na Dança da Morte (tanto na versão figurativa como no texto de que tenho vindo a falar): num e noutro existem, por exemplo, eclesiásticos, sapateiros, magistrados, etc.

25Para reforçar o alcance moral das suas peças, Gil Vicente acrescentou apenas (ou reforçou) a dimensão do julgamento. De facto, enquanto na Dança, a Morte é a figura suprema, nas Barcas essa presença é implícita nos dois primeiros autos e apenas surge, de forma presencial, na Barca da Glória, com efeitos de sentido que haverei de explorar mais à frente. Com efeito, nos autos vicentinos, mais do que a Morte, concebida como transe igualitário para todas as personagens, contam o Diabo e o Anjo, condutores das barcas que conduzem ao Inferno e ao Paraíso. A sua função é a de evidenciar a lógica que preside à Condenação e à Salvação e o seu discurso é de natureza estritamente certificadora. Naquelas circunstâncias, os representantes do Bem e do Mal não podem já influenciar o destino de nenhuma das personagens, resgatando ou condenando quem quer que seja. Resta-lhes dar execução a uma sentença que as próprias personagens humanas foram construindo ao longo da sua vida. Nesse ponto, a sua ação difere da que é atribuível ao Anjo e ao Diabo do Auto da Alma, a peça que se situa num plano de manifesta contiguidade com as Barcas. De facto, é em Alma que Diabo e Anjo atuam, investidos, um e outro, de uma dinâmica interventiva, persuadindo o ser humano a encarar a vida como passagem transitória, a caminho da eternidade (Anjo) ou como fim que justifica fruição em si mesmo (Diabo). No caso das Barcas, pelo contrário, a capacidade de atuar não existe, sendo substituída pela tendência para evidenciar os fundamentos que explicam o destino final de cada personagem. Anjo e Diabo são meros perscrutadores dos sinais que cada personagem instituiu em vida, limitando-se depois a devolver a memória que daí resultou. Nesse sentido, pode dizer-se que o Diabo impõe a lembrança que os condenados rejeitam; por sua vez, o Anjo limita-se a confirmar o rasto de vida dos remidos.

Pressupostos da Salvação e da Condenação

26Para além da centralidade cronológica de que desfrutam, bem pode dizer-se que as Barcas são também, de algum modo, decisivas no plano temático, estético e estrutural. No plano temático constituem uma pregação completa sobre os caminhos da perdição e da salvação. Assistindo aos três autos, o espetador fica em condições de reconstituir os pressupostos de uma e de outra via: o despojamento e a assunção da Fé até às últimas consequências representa o caminho seguro para o Paraíso. É isso que sucede com os cavaleiros mártires e, como vimos, é isso que é prometido ao Parvo Joane, embora usando de um processo dilatório que pode assemelhar-se ao destino purgatorial. Para o Céu vai ainda o Menino (que, na sua contenda com o Diabo, chega a invocar o Parvo da Barca anterior) e vão depois as personagens da Barca da Glória, numa solução surpreendente, à qual haveremos de regressar.

27O facto de os simples de Purgatório não terem acesso desimpedido ao Paraíso quer apenas dizer que a ele não se chega sem «bens guiantes», como diz o Anjo na própria Barca do Inferno. Não basta estar desprovido de pecados graves para se alcançar a Redenção. Para além de cumprir esse requisito prévio, torna-se ainda necessário que exista um compromisso firme com a causa da Fé. É por poderem fazer prova desse compromisso que os cavaleiros de Cristo conseguem furtar-se ao contacto com o Diabo. Pode supor-se que este tivesse alguns pecados a lembrar-lhes, uma vez que faz menção de os interceptar, à chegada. Mas o discurso deles (cantado) é já de Glória e, em consonância com isso, a resposta que dirigem ao Diabo é taxativa, vinda pela voz do primeiro cavaleiro:

E vós que nos demandais?
Siquer conhecei-nos bem?
Morremos nas partes de Além
E nam queirais saber mais. (I, 242)

Problemas em aberto

28Representadas há mais de quinhentos anos, as três peças em análise colocam ainda problemas de compreensão a vários níveis. Alguns existiam já na altura da sua primeira representação; outros foram sendo criados pela distância temporal a que nos encontramos do ato criador. Sem que seja possível resolver todos com segurança suficiente, a maneira mais eficaz de nos aproximarmos deles é ter em conta o contexto, não deixando de convocar, ao mesmo tempo, outras peças vicentinas.

A solução final de Glória

29No contexto desta Pregação tripartida causou sempre estranheza e polémica a solução que surge no final do terceiro auto. Se aos grandes do mundo são apontadas infrações tão graves, se o Anjo, em função disso, se recusa a dar-lhes guarida na sua Barca, como se explica então o seu resgate final? A primeira explicação que pode acudir à mente dos leitores ou espetadores prende-se com uma concessão do dramaturgo. Mesmo tendo dado sinais de grande coragem noutros autos, Gil Vicente não teria tido, desta vez, ousadia suficiente para enviar diretamente para o Inferno, os mais altos dignitários do mundo. A explicação, porém, não é tão linear. Há que atentar, desde logo, nos elementos que distinguem este auto dos dois que o precedem: o primeiro desses elementos é o idioma castelhano, que, por ser mais prestigiado, contribui para a nobilitação do estilo. Estamos agora, de facto, perante personagens de alta condição, fazendo sentido que se expressem numa língua mais qualificada. Esta marca diferenciadora ganha ainda mais relevo se tivermos em consideração que boa parte do discurso pronunciado por essas mesmas figuras é constituído por uma tónica de contrição e outra de prece, visando obter misericórdia (circunstância que não se verifica em nenhum dos autos precedentes).

30Uma outra diferença importante consiste na presença da Morte enquanto personagem. Ao contrário do que possa parecer, não se trata de uma adição irrelevante. Para além dos efeitos teatrais inerentes, o aparecimento da alegoria (em Gil Vicente, só temos notícia dela uma outra vez: no Breve Sumário da História de Deus) faz dissipar a atitude de alienação ou inconsciência que havia vigorado na grande maioria das personagens dos autos anteriores (que se comportam como se estivessem vivas). Na Barca da Glória, não existe lugar para esse estado de inconsciência. Bem pelo contrário: é a Morte quem, desde o início, recebe e conduz as personagens de alto estado. É o confronto consciente que travam com ela (confronto visual, desde logo, significando uma consciência plena dos seus efeitos) que permite aos condenados a experiência de uma outra fase: a do arrependimento. É desse estádio de reconhecimento interior que todas partem para a prece dirigida à Virgem, a Cristo e a Deus. E sabe-se como estes procedimentos são enfaticamente recomendados nas artes moriendi.

31São estas as diferenças essenciais que se verificam entre este auto e aqueles que o precedem. Qualquer delas, em si mesma ou em articulação, contribui para explicar um desfecho imprevisto. Com efeito, mesmo sendo apontados como pecadores (pelo Diabo e pelo Anjo, que aqui atuam à semelhança do que sucede nos outros autos) e sendo-lhes inclusivamente lembrado que as funções sociais que exerciam os obrigavam a um maior afastamento do pecado, os dignitários do poder político e eclesiástico são objeto de um golpe de redenção constituído pelo aparecimento de um Cristo misericordioso. É realmente a figura do Salvador que, abrindo os braços, permite que das suas chagas saiam remos e que os pecadores, já embarcados a caminho da perdição, possam ser resgatados.

  • 5 Assim surge referido nomeadamente em Lucas, 2, 8-16.

32Para além de todas estas diferenças, resta ainda assinalar uma outra, relacionada com as circunstâncias de representação: refiro-me ao tempo pascal em que o auto é representado. Nestes três autos, como em muitos outros, o tempo de representação tem repercussões no respetivo desfecho. Não sabemos exatamente até que ponto assim é na Barca do Inferno, representada perante a rainha D. Maria, estando doente do mal de que faleceu. Mas esta informação permite supor que, à semelhança do que sucedia com as artes moriendi da época, a peça que termina com a consagração dos cavaleiros mártires, pudesse ter funcionado nesse mesmo registo perante a rainha a quem era necessário consolar, garantindo que a dádiva da vida por uma causa suprema funcionava como garantia de salvação. Também no Purgatório a relação entre o tempo de Natal e a ação dramática se torna decisiva: é por ser dia do nascimento de Cristo que o batel infernal não beneficia de vento favorável e é ainda por ser noite de Natal que o cais é predominantemente visitado pelos simples, uma vez que só eles acodem ao chamamento do Anjo5. Com exceção do Menino, em nenhum se refere um compromisso radical que garanta o acesso ao Paraíso; mas todos surgem isentos de pecados graves e as pequenas faltas que cometeram não os afastarão das bem-aventuranças celestes.

33Faltava ilustrar a outra via da Salvação: as obras, que nada garantiam aos grandes do mundo e a Misericórdia divina que, de acordo com a doutrina estabelecida, tinha o condão de rasurar todos os pecados, franqueando o acesso à Barca da Glória. Ao contrário do que possa parecer, a remissão dos grandes não fica a dever-se a uma suposta pusilanimidade do autor. Pelo contrário: mais do que a quaisquer outras personagens, Gil Vicente insiste em punir personagens como Rei, o Imperador, o Cardeal ou o Papa, através do inventário de pecados gravíssimos. Pode assim admitir-se que estes não são salvos pelo autor mas pelas circunstâncias inerentes à peça. Torna-se assim claro que essas circunstâncias não são externas a ela. São de carácter interno e relacionam-se com a tonalidade pascal da obra em apreço.

O Parvo Joane

34Um outro problema é suscitado pela personagem Joane (Inferno). A sua caracterização parece saída da sottie, género do teatro medieval justamente centrado na figura do sot (parvo). Num primeiro momento, tudo nos remete para o âmbito do sem-sentido: a linguagem obscena, a desfocagem das réplicas que dirige ao Diabo («de pulo ou de voo?») a indicação da maleita de que morreu, etc. Neste contexto particular, existem, porém, bons motivos para descobrir na personagem outro tipo de significados.

35A primeira nota a reter relaciona-se com a sua integração no campo dos simples. Por essa via, afiniza-se com o Anjo e incompatibiliza-se com o Diabo. Na dialética que se estabelece entre Condenação e Salvação, o Parvo Joane situa-se do segundo lado. Ainda assim, haverá que distinguir o seu destino do fim reservado aos quatro cavaleiros mártires. Com estes últimos, o Diabo não consegue sequer dialogar. A eles estava o Anjo esperando, desde que, dirigindo-se ao Parvo, antecipa a vinda de alguém:

Espera entanto per i
Veremos se vem alguém
Merecedor de tal bem. (I, 225)

36Podemos então concluir que, embora partilhando com os cavaleiros o destino final, o Parvo de Barca do Inferno define-se pelo contraste que através dele se institui em relação às personagens condenadas. Não representa nenhum estrato social e, por isso, não lhe podem ser assacados incumprimentos a esse nível (como sucede com a desonestidade do sapateiro, a venalidade dos homens de leis, a tirania do fidalgo, a impiedade enganosa da alcoviteira, todos eles participando numa espécie de pecado social); não é portador de nenhum objeto que indicie o seu apego ao mundo. Pelo contrário: mesmo a linguagem anti-convencional e espontânea significa o desalinhamento em relação a um mundo que o excluiu.

37Essa exclusão institui-o, de algum modo, como representante de uma minoria e de um estado intermédio: indica-se a renúncia ao mundo, o que constitui passo essencial para evitar a condenação. Falta porém abraçar uma causa que abra, de imediato, as portas do Céu.

A teatralidade das Barcas

38Ao longo dos séculos, as peças de Gil Vicente têm sido objeto de encenações muito diversas. Independentemente do uso cénico que delas possa vir a ser feito, contudo, os autos têm uma teatralidade implícita, que varia de género para género, em primeiro lugar. Assim, se a teatralidade das farsas assenta nas diferentes personagens (os ingénuos encontram-se em flagrante contraste com os ardilosos, dando azo a cenas de oposição tipificada), na moralidade, em geral, as personagens valem pelo que representam. O Diabo ou o Anjo são portadores de uma representatividade fixa e com ligeiras cambiantes: o Diabo pode ser agente de tentação, como em Alma, ou mero executor de uma lógica pré-estabelecida, como nas Barcas. A sua força teatral encontra-se assim condicionada. O mesmo não sucede com personagens que não se situam no domínio da alegoria. No caso dos autos de que agora falo, isso acontece com as figuras que se apresentam no cais da morte como se estivessem vivas, prontas a representar uma última cena. Qualquer uma dessas personagens está, por isso, encarregada de desempenhar o seu papel em registo de síntese, de modo a que se percebam as causas do seu destino.

39Na primeira Barca, o frade exercita dotes de esgrimista e faz-se acompanhar da sua dama Florência; por sua vez, a Alcoviteira demonstra toda a sua capacidade persuasiva junto do Anjo. Já os cavaleiros que não podem mostrar os seus pecados, surgem envoltos em música e eles mesmo a cantar um romance de efeito catequético: aquele que o dramaturgo pretende que fique nos ouvidos de quem assiste ao auto. Do ponto de vista do puro teatro, porém, o Parvo afirma-se como a personagem mais versátil: detém um histrionismo próprio, feito de uma linguagem transgressora, mas a sua atitude é ajustada aos interlocutores: o tom com que responde ao Diabo não difere muito daquele que usa para se dirigir ao Judeu. Revela-se, contudo, bastante diferente quando fala com o Anjo. Enquanto o seu diálogo com o Diabo e com os pecadores se afigura caudaloso, perante o Anjo apresenta-se despido de palavras: na versão de 1562 (porventura revista por Gil Vicente) pronuncia apenas a palavra «Ninguém», quando o Anjo lhe dirige uma pergunta que, de resto, não tem necessidade de dirigir a outros:

Quem és tu? (I, 225)

40Bastou essa resposta para que o representante do Bem emitisse o seu juízo benévolo. A possibilidade de Gil Vicente ter substituído por essa única palavra a resposta que figura na primeira edição do Auto («Samicas alguém!») não altera substancialmente o sentido da resposta mas estabelece uma ligação direta com uma outra personagem alegórica: o Ninguém que surge no Prólogo do Auto da Lusitânia (1531), em oposição a Todo-o-Mundo. A humildade, o discernimento e o sentido de renúncia da primeira (em tudo oposta à segunda) poderiam fazer lembrar melhor ao leitor contínuo do Livro das Obras a contiguidade que efetivamente existe entre duas personagens vicentinas aparentemente afastadas na cronologia e no papel que desempenham nas peças em que se integram.

41Em Purgatório, as marcas de teatralidade que mais sobressaem são a serenidade do Natal e o confronto dos simples com o Além. Logo no início do auto, encontramos duas atitudes opostas: os Anjos que cantam e celebram o nascimento do Salvador do mundo e os Diabos contrariados com a falta de vento que nessa noite especial lhes dificultará a viagem em direção ao Inferno. Cada personagem que chega ao cais manifesta surpresa pelo lugar a que veio parar, não conseguindo alcançar a diferença essencial que se verifica em relação ao mundo que acaba de deixar. Assim sucede com o Lavrador («Cá chega o mar?»), com a moça pastora ou as regateiras, cujas faltas parecem bem releváveis. Um outro nível de espanto surge quando os falecidos se dão conta de que, apesar de não terem cometido pecados graves, serão obrigados a purgar ao longo da ribeira. É o caso do Lavrador, como tivemos já oportunidade de ver; mas o mesmo sucede com todos os outros que, tendo-se dado conta da morte, esperavam visivelmente alcançar o Paraíso de imediato.

42O espanto perante a situação em que se encontram parece assim constituir uma marca de teatralidade especialmente produtiva, que os encenadores e os atores não podem deixar de explorar num sentido mais ou menos transfigurador.

43Em Glória, a teatralidade não é apenas de outro tipo. Parece ser, desde logo, mais intensa. A primeira diferença que cumpre notar relaciona-se com o tipo de diálogo que prevalece. Do diálogo vivo da primeira Barca (muito próximo do da farsa) tínhamos passado para discursos mais longos. Logo a abrir, deparamos com as lamentações do Diabo e com o pregão do Anjo, que ocupa 50 versos exatos. O caso mais saliente é interpretado pela figura do Lavrador. Em resposta às acusações do Anjo, a personagem inicia com as palavras «Bofá meu Senhor» uma tirada que se estende por 35 versos, mais extensa do que qualquer uma das falas presentes em Inferno. No último auto acentua-se ainda mais o efeito do que poderia chamar-se a «teatralidade retórica». De facto, sem que exista verdadeiro antagonismo entre os grandes do mundo com as personagens fixas do Bem e do Mal (contrariamente ao que sucede nos autos anteriores), o discurso assume agora a tónica da contrição e da prece.

44A presença figural da Morte completa o imaginário do Além que, nos outros autos, era apenas integrado pelas representações angélicas e demoníacas. Por se tratar de uma alegoria facilmente reconhecível, a Morte institui uma componente nova de realismo. Por outro lado, as personagens apresentam-se como possuidoras de um dinamismo acrescido, se tivermos em conta aquelas que comparecem nos outros autos. Começam por aparecer investidos das dignidades seculares; mas cedo se desprendem delas, reagindo, com lucidez, às acusações que lhes são lançadas. A partir daí, em vez de negarem essas mesmas acusações, os grandes assumem-nas e elaboram uma contrição que vai aumentando gradativamente de tom. Por fim, a solução final é enquadrada no aparecimento meramente cénico da figura do Cristo pascal.

45O desfecho é inclusivamente remetido para uma didascália, configurando uma intensa apoteose teatral:

Nam fazendo os Anjos menção destas preces, começaram a botar o batel às varas, e as almas fizeram em roda ua música a modo de pranto, com grandes admirações de dor; e veo Cristo da ressurreição e repartiu por elas os remos das chagas e os levou consigo.

46A apoteose consuma-se através de um clímax feito de música, pranto e grandes admirações de dor. Só depois é sugerida a aparição de Cristo, enquanto efeito cénico supremo e final que dissolve toda a angústia, fazendo com que o auto constitua uma impressionante demonstração da misericórdia divina, envolvendo espetáculo e substância teológica.

Bibliografia sobre as Barcas

47De entre os cerca de 50 autos que constituem o corpus vicentino, as Barcas são, seguramente, aqueles que mais atenção têm suscitado aos vicentistas de todos os tempos, no seu conjunto ou separadamente. Existem várias razões para que assim venha sendo. Em primeiro lugar, estamos perante um conjunto enlaçado de peças que justifica análise conjunta. Na sua ampla diversidade, as três peças são ainda, muitas vezes, tomadas como um repositório documental do Portugal da época, envolvendo os diferentes estados sociais. Examinadas sob um outro ângulo, as peças parecem conduzir, de forma direta, ao pensamento de Gil Vicente. Servindo-se de uma lógica clara, colocada na boca do Anjo e do Diabo, o dramaturgo parece querer dizer o que considera bom e o que se apresenta como reprovável, separando aquilo que, em outras peças, não surge tão destrinçado. Finalmente, as questões do Bem e do Mal sofreram evolução no pensamento coletivo mas não perderam atualidade. De facto, independentemente das transformações morais que vêm atravessando os séculos, Vida e Morte permanecem como fronteiras de mistério que a Razão mais apurada e as próprias descobertas da Ciência não explicam por inteiro.

48Dessa forma, tomar esses temas como base de um espetáculo teatral ou de qualquer outra manifestação artística constitui garantia segura de interpelação da sensibilidade de qualquer época.

49Ao longo dos estudos vicentinos (o campo mais fértil de todos os que compõem a investigação da literatura portuguesa, com exceção dos estudos camonianos) as Barcas funcionam como indicador das diversas tendências em presença. A questão das fontes foi, durante muitos anos, objeto de atenção central. E não admira que assim tenha sido. Talvez mais do que qualquer outra realização vicentina, as Barcas suscitam a questão da originalidade do autor. Seria possível que Gil Vicente tivesse criado a sugestão temática que atravessa as três peças, sem recurso a nenhum lastro anterior? A essa questão se dedicaram vicentistas como Paulo Quintela (1946), Albin Eduard Beau (1959), Eugenio Asensio (1974) ou Mário Martins (1969). Numa perspetiva já mais textual, António José Saraiva (1981), Paul Teyssier (2000) e Idalina Resina Rodrigues (1999) ocuparam-se da estrutura, do estilo e dos pressupostos ideológicos que sustentam a lógica da Condenação e da Salvação. Stephen Reckert (1983), por último, submeteu o texto das Barcas a uma fina análise subtextual, com recurso a instrumentos da psicanálise e da mitocrítica.

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Bibliografía

Asensio, Eugenio, «Las fuentes de las Barcas de Gil Vicente. Lógica intelectual e imaginación dramática», en Id., Estudios portugueses, Paris, Centre Culturel Portugais/Fundação Calouste Gulbenkian, 1974, pp. 59-77.

Beau, Albin Eduard, «As Barcas de Gil Vicente», en Id., Estudos, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1959, vol. I, pp. 59-218.

Cardoso Bernardes, José Augusto, «Danças da vida e da morte: as Barcas de Gil Vicente», en Id., Revisões de Gil Vicente, Coimbra/Braga, Angelus Novus, 2003, pp. 133-152.

Cardoso Bernardes, José Augusto, «A história de Deos na Corte e no Livro das Obras», en Gil Vicente, Breve sumário da história de Deus, eds. José Camões e Helena Reis Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp. 97-109.

Homo, Memento Finis: The Iconography of Just Judgement in Medieval Art and Drama, Western Michigan University, Medieval Institute Publications, 1985.

Maguin, Jean-Marie, «Everyman» ou la question de l’au-delà au Moyen Âge, Paris, PUF, 2008.

Martins, Mário, «O Tempo e a Morte nos autos vicentinos», en Id., Introdução histórica à vidência do Tempo e da Morte, Braga, Livraria Cruz, 1969, pp. 213-236.

Martins, Mário, «Gil Vicente e as figuras da dança macabra nos Livros de Horas», en Id., Introdução histórica à vidência do Tempo e da Morte, Braga, Livraria Cruz, 1969, pp. 237-295.

Quintela, Paulo, «Introdução» à ed. de Gil Vicente, Auto de Moralidade da Embarcação do Inferno, com textos das duas primeiras edições avulsas e das duas Compilações (Inclui ainda, em apêndice, a Tragicomedia del Parayso y del Infierno), Coimbra, Livraria Atlântida, 1946, pp. xv-xxxvi.

Reckert, Stephen, «Forma interior do drama vicentino: as Barcas», en Id., Gil Vicente. Espírito e Letra, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983, pp. 61-104.

Rodrigues, Maria Idalina Resina, «A Barca gloriosa do quarto novíssimo», en Id., De Gil Vicente a Lope de Vega. Vozes cruzadas no teatro ibérico, Lisboa, Teorema, 1999, pp. 109-145.

Saraiva, António José, Gil Vicente e o fim do teatro medieval, Lisboa, Bertrand, 1981.

Teyssier, Paul, «Introduction» à ed. e trad. de Gil Vicente, La Barque de l’Enfer, Paris, Chandeigne, 2000, pp. 7-13.

Vicente, Gil, «As Barcas», en As Obras, coord. José Camões, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2002, vol. I, pp. 215-294.

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Notas

1 Como quinto e último elo deste conjunto pode ainda identificar-se o Breve Sumário da História de Deus. Enquanto Alma evoca a peregrinação terrena da criatura humana e as Barcas o resultado escatológico dessa peregrinação, o Breve Sumário (representado em 1525) evoca as origens da Criação, envolvendo o drama do Éden e a subsequente Queda. Sobre o lugar do Breve Sumário no conjunto da produção vicentina, tive já ocasião de me pronunciar em outro lugar (Cardoso Bernardes, 2009).

2 São estas as palavras de Everyman: «O Death, thou comest when I had thee least in mind / In thy power it liteth me to save, / Yet of my good wiel I give thee, if you wiel be kind, / yaea, a thousand pound shalt ye have, / And defer this matter tiel another day» («Oh Morte, vens quando menos pensava em ti. / Tens poder para me salvar / Faço-te dom dos meus bens se te mostrares boa. / Sim, um milhar de libras será teu / e deixa o assunto para outro dia»).

3 As artes de morrer que encontramos na Europa parecem remeter, de forma mais ou menos direta, para o texto latino anónimo, redigido em finais do século xv, sob o título Speculum de arte moriendi, pequeno tratado que, para além de uma meditação sobre a morte, menciona procedimentos concretos que conduzem à Salvação (arrependimento dos pecados, distribuição de esmolas, oração). Sobre a influência deste tipo de subtexto na moralidade a que me venho referindo, veja-se Jean-Marie Maguin (2008). Para o caso português, continuam a ser imprescindíveis os trabalhos do Padre Mário Martins (1969).

4 Veja-se Cardoso Bernardes (2003). Para uma visão de conjunto da temática escatológica na arte tardomedieval, veja-se Homo, Memento Finis (1985).

5 Assim surge referido nomeadamente em Lucas, 2, 8-16.

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Para citar este artículo

Referencia en papel

José Augusto Cardoso Bernardes, «As Barcas, de Gil Vicente, cinco séculos depois»Criticón, 134 | 2018, 35-49.

Referencia electrónica

José Augusto Cardoso Bernardes, «As Barcas, de Gil Vicente, cinco séculos depois»Criticón [En línea], 134 | 2018, Publicado el 20 diciembre 2018, consultado el 11 diciembre 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/criticon/4831; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/criticon.4831

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Autor

José Augusto Cardoso Bernardes

José Augusto Cardoso Bernardes, profesor de la Universidade de Coimbra y miembro del Centro de Literatura Portuguesa, ha publicado estudios sobre autores canónicos de la literatura portuguesa, como Gil Vicente y Luís de Camões, y se ha dedicado asimismo a los problemas de la investigación y de la enseñanza de las Humanidades. Entre sus publicaciones, pueden destacarse: O Bucolismo Português (1988), Sátira e Lirismo em Gil Vicente (1996), História Crítica da Literatura Portuguesa: Humanismo e Renascimento (1999), Revisões de Gil Vicente (2003), A Literatura no Ensino Secundário (2004), Miguel Torga e a melancolia de Portugal (2006), Gil Vicente (2008), A Literatura e o Ensino de Português (2013), A Biblioteca da Universidade. Permanência e metamorfoses (2015) y Camões nos prelos de Portugal e da Europa, 1563-2000 (2015).
augusto@ci.uc.pt
Departamento de Linguas, Literaturas e Culturas, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Largo da Porta Férrea, 3004-530, Coimbra (Portugal)

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