1A própria paisagem das grandes aglomerações do mundo manifesta o compasso ou o descompasso dos lugares em relação ao momento histórico do presente. A necessidade de se estar em dia com o processo histórico geral (mundial) faz com que vejamos hoje, nas grandes aglomerações urbanas, grandes projetos de reestruturação de lugares, com um movimento da paisagem que podemos indicar como um ajustamento contínuo dos lugares em relação às determinações gerais da sociedade. A reprodução (reestruturação contínua) de uma economia ao mesmo tempo crítica e com necessidade de expansão contínua exige da sociedade como um todo novas racionalizações do processo produtivo, incorporando novas esferas da vida social. A produção do espaço, dimensão essencial da reprodução social, é tomada como uma esfera cada vez mais central da acumulação, o que exige contínuas reestruturações de lugares, de modo a torná-los atrativos de capital e produtivos no sentido econômico.
2A metrópole é um lugar em transformação contínua, de maneira que de tempos em tempos é objeto de ações de reestruturação promovidas pelo Estado com o propósito de se acertar o passo da região com as dinâmicas do presente. Na segunda metade do século XIX, com Haussman, Paris era a vanguarda da transformação urbana; na década de 50 do século XX, procurava dar conta das contradições geradas na sua periferia em razão do crescimento econômico dos 30 gloriosos após a Segunda Guerra Mundial, com Delouvrier, produzia as cidades novas; e na década de 1970 os grandes conjuntos para moradia social, buscando lidar com o déficit habitacional e tentando desconcentrar a capital intramuros (MARCHAND, 1993); e hoje corre atrás para não perder o posto entre as metrópoles mundiais, através de amplos projetos de reestruturação da sua região, pois, segundo os rankings das cidades mundiais, Paris não estaria no primeiro patamar onde figuram Nova Iorque, Londres e Tóquio.
3Uma característica une esses distintos momentos de transformação da metrópole parisiense, que é a contínua expansão de Paris para a sua periferia, sobretudo a mais imediata, contígua ao primeiro anel periférico, mas também a mais distante (com a construção do Aeroporto Roissy-Charles De Gaulle e de pólos tecnológicos). Esses momentos de transformação decisivos produziram e redefiniram a periferia e agora a periferia se transforma com as transformações de Paris e se sobressai como o objeto preferencial para as políticas de espaço que envolvem toda a região parisiense. Nesse contexto, a periferia é o lugar da expansão de Paris, o que já foi desde o século XIX na reestruturação de Haussman, assim como na produção das cidades novas ou dos grandes conjuntos no século XX, mas hoje ganha novos horizontes, ampliando a envergadura das políticas de espaço no sentido de uma nova reestruturação que se pretende global para toda a região parisiense. A escala do planejamento estatal envolve, portanto, toda a região parisiense, em estratégias que perpassam diferentes unidades de governo, buscando articular toda a região ao dinamismo próprio da capital.
4A Europa hoje apresenta uma grande diversidade de espaços de desindustrialização, ou “friches industrielles”, como são chamados esses lugares na França, ou ainda terrenos de antigo uso portuário ou ferroviário desativados, ou ainda terrenos de antigo uso militar ou religioso. No entanto, o que importa mais no momento atual é a reflexão sobre como avança a urbanização contemporânea nesses espaços. Não é mais a reprodução da indústria que explica as transformações dos lugares outrora industriais, mas é a reprodução do espaço que toma a dianteira explicativa do processo, na qual está inserida a problemática industrial. Não devemos esquecer, no entanto, que a reestruturação desses espaços geralmente amplos, inseridos em aglomerações urbanas densas, está condicionada necessariamente à história industrial do lugar, que representa muitas vezes a própria urbanização do lugar. A morfologia dos lugares, com a qual os processos de transformação terão necessariamente que lidar, foi constituída pela história da indústria nos lugares. Mesmo que a reestruturação dos espaços de desindustrialização represente uma ruptura com o passado industrial, a história do espaço nesses lugares é fundamental para o entendimento da produção dos novos usos nos lugares.
Foto 1
Obras de renovação urbana no Porto de Colônia, Alemanha.
Foto do autor, 2010
Foto 2
Em primeiro plano a região das Docklands e ao fundo os grandes
Foto do autor, 2010.
edifícios de Canary Warf, regiões portuárias do leste de Londres que vêm sendo
objeto de projetos de renovação desde a década de 1970.
Foto 3
um outlet em Roubaix, norte da França.
Foto do autor, 2010.
Foto 4
Edifício de arquitetura futurista e envidraçada no centro de Tourcoing,
Foto do autor, 2010.
no norte da França. Nas aglomerações industriais os centros das cidades
também são objetos de transformações, mostrando na paisagem construções de diferentes momentos históricos.
- 1 Esse texto consiste nos resultados de uma pesquisa realizada durante estágio de doutorado sanduíche (...)
5Nas últimas décadas a periferia parisiense é foco de inúmeros projetos que buscam, através da reestruturação do espaço, propor alternativas para combater o grande desemprego gerado pela saída massiva de indústrias, atraindo novas atividades econômicas que incorporem, ao menos em tese, os trabalhadores sem trabalho após a queda do emprego industrial. Um exemplo mais profundo e atual é o projeto do governo francês chamado “Grand Paris”, que se apresenta como um grande plano de “aménagement du territoire” [ordenamento territorial] da região parisiense, enfocado sobretudo em ações de reestruturação da periferia de Paris1
6O caso da Plaine Saint-Denis é paradigmático nesse sentido da reestruturação da periferia parisiense. Localizada imediatamente ao norte de Paris, próxima às colinas de Montmartre e Belleville, essa região se situa entre o centro antigo da cidade de Saint-Denis ao norte e o Boulevard Péripherique ao sul, abarcando porções das communas (municípios) de Saint-Denis, Aubervilliers e Saint-Ouen. Sua industrialização foi intensificada no século XIX com a desconcentração das indústrias parisienses, que migravam preferencialmente para áreas periféricas próximas à capital e com a instalação de uma densa rede ferroviária e a presença do Canal de Saint-Denis. Esse processo configurou uma extensa área industrial (a maior área industrial contínua da França e uma das maiores da Europa), produzindo um espaço excessivamente fragmentado, com muitas interrupções de trajetos em razão da rede de vias férreas, rodoviárias e o canal. Configurou-se também como um espaço de moradia operária, com uma grande população formada em sua maioria por imigrantes, sobretudo espanhóis (imigração iniciada no início do século XX), que, seja por razões políticas ou econômicas, vinham atraídos pelo emprego industrial disponível. Nesse contexto, estruturou-se uma classe operária fortemente engajada às lutas sociais, com grande consciência política ligada às idéias comunistas e anarquistas.
7No período de 1955-1985, com o processo de reestruturação industrial da região parisiense, grande parte das indústrias da Plaine Saint-Denis encerra as suas atividades ou se transfere para outras regiões, provocando um grande desemprego e uma degradação da própria paisagem do lugar. Esse período representa a formação de uma grande “friche industrielle” [espaço de desindustrialização], contígua a Paris. A partir de meados da década de 1980, a Plaine Saint-Denis passa a ser um dos lugares prioritários para projetos de reestruturação urbana na aglomeração parisiense pelos órgãos do poder público, buscando uma redinamização econômica do lugar como forma de recuperar os empregos perdidos.
8É com esse propósito que em 1985 é criado um consórcio entre as communas de Saint-Denis, Aubervilliers e Saint-Ouen, chamado “Plaine Renaissance”, tendo como primeira estratégia a tentativa de atrair novas indústrias (reindustrialização da área), o que não apresentou resultados. Com a indicação da Plaine Saint-Denis como o lugar de instalação do principal estádio para a Copa do Mundo de Futebol de 1998 (Stade de France), os projetos de reestruturação do espaço se encaminham na direção da atração de empresas estatais e privadas ligadas às atividades do setor terciário para o lugar, e também para a construção de condomínios residenciais.
9Assim, a partir do começo da década de 90 há uma transformação da perspectiva de redinamização do lugar que rompe radicalmente com a história desse lugar como um espaço industrial e de moradia operária na periferia de Paris. A partir do começo da década de 1990, o processo passa a ser coordenado por uma intercomunalidade de aglomeração, reunindo outras comunas do Departamento Seine Saint-Denis sob o nome de “Plaine Commune”, que se apresenta como uma nova governança capaz de lidar com as estratégias estabelecidas para o lugar.
Foto 5
Stade de France, grande equipamento construído para a Copa do Mundo de Futebol de 1998 e que se revelou um equipamento de eventos de grande importância para as estratégias de reestruturação da Plaine Saint-Denis.
Foto do autor, 2010.
10Podemos observar em campo um intenso movimento da paisagem, com a demolição de quarteirões residenciais e/ou industriais (grandes galpões desativados), com muitas placas de permissão de demolição em galpões e casas com as janelas e portas fechadas com tijolo e cimento, e um movimento intenso de gruas em grandes terrenos de galpões demolidos ou em processo de demolição. Em determinados lugares de onde se tem um horizonte mais amplo, pode-se construir uma idéia de um lugar em plena transformação, um grande canteiro de obras, com áreas onde o processo já está mais consolidado, como na área adjacente ao Stade de France e áreas onde há uma grande quantidade de grandes canteiros de obras. Ou seja, o processo se encaminha da área do Stade de France, ao norte, para o sul e para o oeste, onde se produz uma outra centralidade de negócios nas proximidades da Tour Pleyel, grande edifício voltado para as atividades de gestão.
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Paisagem da Plaine Saint-Denis, à direita casas e sobrados que guardam as características da paisagem tradicional do lugar, à esquerda um grande terreno sendo preparado para novas construções e, no horizonte, várias gruas indicando outras obras de construção civil na região.
Foto 7
11Foto do autor, 2010.
Foto do autor, 2010.
12A área central da Plaine conhecida como “Pequena Espanha”, constituída historicamente pela concentração de imigrantes espanhóis vindos a partir do final do séc. XIX, nas proximidades da Rua do Landy (importante eixo da transformação atual) ainda guarda vestígios da antiga ocupação operária, com quarteirões formados por pequenas ruas ou “impasses”, com pequenas casas operárias conjugadas, com pequenos comércios, bares e restaurantes, alguns desses fechados, contíguos a quarteirões de galpões industriais desativados e muitos deles em processo de demolição. A transformação da paisagem vai criando uma nova paisagem, com fachadas modernas de metal e vidro dos edifícios de empresas, com um novo movimento, muito distinto do anterior. É um movimento que vai destituindo o conteúdo de bairro operário do lugar, ainda presente nos nomes de ruas (Avenida da Metalurgia, Rua Paul Lafargue, Rua Cristino Garcia, etc.) e no nome do próprio lugar, “Pequena Espanha”.
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Pequena rua na Plaine Saint-Denis, que ainda apresenta os traços de um lugar de moradia da classe operária.
Foto do autor, 2010.
Foto 9
Área onde a paisagem do lugar industrial já deu lugar aos novos edifícios de escritórios, nas proximidades do Stade de France.
Foto do autor, 2010.
13Esse processo em curso não resolveu o problema do desemprego, pois cria outro tipo de emprego, especializado do setor terciário de gestão e serviços, e propiciou um processo abrupto e vertiginoso de valorização do solo, o que produz uma gradativa expulsão da população antiga do lugar, pressionada pelos novos empreendimentos que avançam aceleradamente. Esse processo representa também uma destruição de práticas e formas de sociabilidade tradicionais do lugar, como a destruição dos jardins da Plaine Saint-Denis, que eram hortas onde a população produzia parte de sua própria alimentação.
14Com uma idéia de “território doente”, e com o discurso da promoção de um “desenvolvimento local”, que apresenta o crescimento econômico da área como um desenvolvimento social, esse processo de reestruturação conduz a uma potente gentrificação do lugar, que expropria do lugar tanto a sua população mais antiga, como a população imigrante mais recente (mais empobrecida), formada, sobretudo, por populações provenientes de países do Magreb (Argélia, Tunísia e Marrocos) e da África negra.
15Nessa região da “Pequena Espanha” e da Rua do Landy, nas comunas de Saint-Denis e Aubervilliers, que se apresenta como a fronteira de expansão da transformação da Plaine Saint-Denis, temos ao norte a área mais consolidada como uma nova centralidade de eventos (Stade de France, cinemas), comércio (grandes lojas, restaurantes), edifícios voltados para a gestão de empresas (a própria sede da “Plaine Commune” se situa aí) e uma área residencial com edifícios baixos. Aí percebemos um movimento característico de uma centralidade de negócios, com um pequeno movimento de pedestres na rua, que aumenta no horário de almoço. É uma região onde se percebe claramente a presença do Estado na produção de novas centralidades, não só através da construção do estádio, mas também através da presença ali de sedes de empresas estatais para dinamizar aquela região (há uma grande presença de organismos ligados à saúde) e atrair empresas privadas para o lugar. Nesse sentido, atualmente está em discussão a construção de um grande campus universitário no sul da Plaine Saint-Denis, transferindo para lá muitas atividades que hoje são desenvolvidas no centro de Paris, o que atuaria no mesmo sentido de dinamização de novas atividades.
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Arredores do Stade de France, com grandes lojas, restaurantes, edifícios de escritórios e edifícios residenciais.
Foto do autor, 2010.
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Grandes equipamentos de comércio e entretenimento nos arredores do Stade de France, na Plaine Saint-Denis.
Foto do autor, 2010.
16Não só o caso da região da Plaine Saint-Denis é indicativo de uma profunda reestruturação do espaço na região parisiense, poderíamos também citar o caso do amplo processo de reestruturação do enorme terreno da Renault em Boulogne-Billancourt, onde se encontrava uma das maiores plantas industriais da França, desativada em 1992, e que hoje também se revela como um grande canteiro de obras, com a construção de edifícios de escritórios e edifícios residenciais.
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Obras na Operação Urbana Ile Seguin-Rives de Seine, no terreno ocupado até 1992 pela indústria automobilística Renault, em Boulogne-Billancourt, nas proximidades de Paris. Trata-se hoje de uma grande operação urbana, que pretende produzir um bairro novo às margens do Rio Sena, misturando edifícios residenciais e de escritórios, com comércio de proximidade.
Foto do autor, 2010.
17Nesse sentido, podemos indicar dois encaminhamentos (ou duas hipóteses) a partir dessa realidade, observada diretamente em campo na Plaine Saint-Denis. Primeiramente podemos dizer que há uma passagem da problemática industrial para uma problemática urbana, na reflexão sobre a urbanização contemporânea e para a compreensão da realidade atual; em segundo lugar podemos dizer que há uma dimensão de mundialidade nos processos observados, seja pela crise urbana que manifesta e que é observada em outras partes do mundo (é muito evidente em São Paulo, por exemplo) e como o Estado (seja ele governado por partidos de direita ou de esquerda), articulado aos setores privados, busca, em diferentes lugares do mundo, a mesma saída para a resolução das crises de acumulação, que é a produção de determinado tipo de espaço, voltado para o consumo produtivo. Nesse sentido, os exemplos que poderíamos citar de Paris seriam muito parecidos aos que podemos observar em São Paulo, apesar das imensas particularidades que cada metrópole apresenta.
18Ressaltamos que o processo de reestruturação de lugares é evidente nas grandes aglomerações industriais do mundo, onde, diante da reestruturação produtiva, que se acelerou no final do século XX, grandes lugares industriais se tornam obsoletos do ponto de vista econômico, restando uma paisagem degradada, com alta taxa de desemprego e crescentes problemas sociais a serem resolvidos. Em função de sua localização em relação às áreas centrais da aglomeração, podem vir a se tornar áreas prioritárias para reestruturações urbanas, visto que muitas vezes já possuem uma infraestrutura instalada e apresentam uma desvalorização simbólica (a própria paisagem mostra isso) e uma desvalorização fundiária concreta, os terrenos se desvalorizam, apesar da localização no contexto da aglomeração.
19Esse é o caso da Plaine Saint-Denis, situada imediatamente ao norte de Paris, entre a capital e o Aeroporto Roissy-Charles de Gaulle, e também não muito distante do distrito de negócios de La Défense, contando com uma boa disponibilidade de transportes públicos (RER B, RER D, Metrô linha 13), além de uma boa acessibilidade por via rodoviária (Rodovias A-1 e A-86, além de estar contígua ao anel rodoviário que envolve Paris) e uma grande disponibilidade de terrenos (grandes terrenos de antigo uso industrial e grandes terrenos de propriedade de empresas estatais – RFF [Réseau Ferré de France] e SNCF [Société Nationale des Chemins de Fer Français] subutilizados). Assim, para as estratégias estatais, essa região se torna prioritária para a conformação de uma nova centralidade de negócios e serviços na metrópole parisiense.
20Mesmo quando passamos por essa região no percurso do Aeroporto Roissy-Charles de Gaulle em direção à Paris pelo RER B, percebemos a transformação da paisagem. Antes de chegarmos às proximidades do Stade de France, observamos uma homogeneidade na paisagem, percorrendo sucessivas comunas (municípios) da periferia parisiense (com bairros de casas e sobrados, eventualmente pequenos prédios e galpões de usos diversos). Quando o trem se aproxima da região da Plaine Saint-Denis, já se aproximando de Paris, é evidente a transformação da paisagem. Como os trilhos do trem são elevados em relação ao solo, podemos ter uma visão geral do lugar. Primeiro nota-se construções mais novas, algumas com características muito comuns da arquitetura contemporânea, com edifícios de pequeno porte envidraçados e o próprio Stade de France, visto no horizonte um pouco encoberto pela rodovia A86 e por edifícios, chama a atenção por sua arquitetura arrojada. Se do lado direito do trem vemos uma área mais homogênea de arquitetura contemporânea (região do Stade de France que descrevemos acima), do lado esquerdo (ao sul da Plaine) vemos uma paisagem em franco processo de transformação. Aqui as construções mais antigas (pequenos edifícios e conjuntos de casas e sobrados) se misturam com as construções novas (pequenos edifícios residenciais e de escritórios) e no horizonte nos deparamos com uma grande quantidade de gruas em grandes canteiros de obras. Continuando o percurso do trem (RER B), que percorre a Plaine inicialmente de leste para oeste e depois faz uma curva em direção ao sul, após a região do Stade de France, onde predominam as construções mais novas, de um lado e do outro observamos uma mistura de construções novas com construções mais antigas. Encaminhando-nos ao sul, percorremos uma área onde predomina ainda o aspecto tradicional do lugar (de uma época quando a indústria estava em plena atividade), com pequenos edifícios antigos (área próxima à Avenida Presidente Wilson, que percorre a Plaine de norte a sul) e após essa área, imediatamente antes de entrar na cidade de Paris, passamos por imensos terrenos desocupados de antigo uso industrial e ferroviário.
21Ao percorrermos à pé a região da Plaine Saint-Denis, confirmamos algumas impressões que já do trem pudemos construir sobre a região, de que estamos em um lugar que passa por um forte processo de transformação da paisagem, dos usos, do movimento habitual das pessoas, das relações sociais, enfim, um lugar que passa por uma transformação geral da forma e do conteúdo. O primeiro aspecto que chama a atenção é a paisagem. Se chegarmos diretamente ao entorno do Stade de France, estamos em uma área consolidada de edifícios novos, tanto comerciais (escritórios, serviços, grandes lojas, restaurantes, hotéis, cinemas, etc.), quanto residenciais.
22Quando nos encaminhamos em direção ao sul, percebemos uma área em que as novas construções vão tomando o lugar das construções mais antigas. Aqui podemos ver a vitalidade do processo de transformação e o descompasso das construções mais antigas em relação ao avanço das construções mais novas, os diferentes momentos da produção do espaço ainda representados na paisagem.
23Nessas áreas onde se evidenciam as fronteiras econômicas no urbano, de avanço das novas formas, fica evidente o caráter transitório da paisagem quando formas arquitetônicas de outra época vão sendo destruídas para dar lugar aos novos edifícios com arquitetura contemporânea. Muitas construções antigas têm suas portas e janelas emparedadas, geralmente com placas de permissão de demolição nas fachadas. No entanto, em muitas outras construções antigas, apesar da degradação de todo o ambiente construído, reside uma população empobrecida, com seus espaços residuais de sociabilidade, os pequenos comércios, os pequenos estabelecimentos com cabines telefônicas com anúncios de tarifas de ligação internacional para vários países, pequenos hotéis e pensões, bares e restaurantes. Todos esses espaços voltados para a reprodução dessa população que permanece mostram ainda, em seus nomes e produtos, o passado do lugar (as referências à colônia espanhola e portuguesa) e também o seu presente, através dos produtos específicos dos países do Magreb e da África Ocidental (antigas colônias francesas), origem de grande parte da população local. Mas é evidente a decadência de todo esse conjunto de elementos que restaram no lugar e que vão se reproduzindo segundo suas possibilidades no movimento de transformação atual. Fica claro que rapidamente o novo substituirá o antigo.
24Podemos indicar que o processo de transformação do lugar avança, a partir do núcleo do Stade de France, para oeste, em direção à margem direita do Sena, passando pela região da Tour Pleyel (área em consolidação como setor de gestão e serviços, assim como espaço residencial) e para o sul, em direção ao Boulevard Périphérique (o anel rodoviário que envolve Paris intramuros, a fronteira da cidade de Paris com sua periferia imediata). Devemos ressaltar que algumas regiões da cidade de Paris (intramuros) também passam por amplos projetos de renovação, como podemos observar na região norte da cidade, justamente a zona de contato com a Plaine Saint-Denis, por se tratar de uma região abundante em terrenos desocupados ou degradados. Outras grandes operações urbanas e grandes obras públicas se realizam em alguns distritos parisienses, nas franjas da cidade com a periferia próxima: Clichy-Batingnoles, no noroeste (distrito 17), novas instalações governamentais (distrito 15, ao sul), entre outras.
Foto 13
Operação Urbana Clichy-Batignoles, no 17ème Arrondissement, em terreno de grandes dimensões de antigo uso ferroviário.
Paris. Foto do autor, 2012.
25Segundo Claude Chaline (2007), a periferia das grandes aglomerações é o lugar prioritário para os grandes projetos de reestruturação do espaço. No caso de Paris, isso se dá pela densidade e escassez de espaço para novas construções, além de um rígido controle urbanístico da capital intramuros, o que a faz se expandir para além de sua fronteira municipal. Historicamente, a lógica da produção da periferia está ligada às dinâmicas da cidade central. Hoje (nos últimos 30 anos), essa lógica ainda é verdadeira, mas o processo se complexifica, com a produção de novas centralidades na periferia (La Défense, Issy-les-Molineaux, La Plaine Saint-Denis, Roissy-Pôle, Marne-la-Valée...), revelando novas dinâmicas territoriais na escala regional, envolvendo todo o espaço da aglomeração metropolitana. Novas necessidades se apresentam no sentido da dinamização do território, como a mobilidade interna na periferia, sobretudo a ligação entre os pólos econômicos principais, ou como a formação de quadros (a instalação de campus universitário e centros de pesquisa) para suprir a demanda de mão-de-obra qualificada das empresas. Busca-se dar uma fluidez ao território, ao mesmo tempo em que se procura criar um ambiente e um contexto propícios à realização das atividades mais dinâmicas da economia atual.
26Tomando como exemplo o caso da Plaine Saint-Denis, esse dinamismo almejado avança em direção à periferia de Paris, o que é demonstrado pelas novas infraestruturas que vem se somar às já existentes, e pela elaboração de novos projetos de ampliação da rede de transportes, que se colocam no horizonte (o projeto Grand Paris, do Estado francês). Isso está ligado à preocupação com a posição de Paris como uma metrópole mundial. Trata-se de um rearranjo metropolitano que recoloque Paris no patamar mais elevado no ranking das cidades mundiais.
Imagem 1 – Rede de transportes e projetos de expansão dessa rede no perímetro da Comunidade de Aglomeração Plaine Commune
O destaque para a região da Plaine Saint-Denis com o círculo em lilás foi inserido por nós nesta representação cartográfica. É importante notarmos nessa representação a centralidade da região da Plaine Saint-Denis nos projetos de expansão da rede de transportes na porção norte da região parisiense.
Fonte: https://www.cadredeville.com/cadredeville/Images_cdv/plaine-commune-saint-ouen-accord-cadre-cdt-territoire-culture-creation-volet-transports-carte-synthese, consultado em 08/12/2013
Imagem 2 Detalhamento dos projetos de expansão da rede de transportes no território da Plaine Commune
http://ville-saint-denis.fr/jcms/upload/docs/image/jpeg/2013-06/2013-05_carto_transports_projets.jpg27O outro lado do mesmo processo é a realidade dos grandes conjuntos habitacionais (as chamadas cités), onde o desemprego é alto, a perspectiva para os jovens é restrita, onde há carências de várias ordens, inclusive de equipamentos urbanos. Essa realidade aparece periodicamente aos olhos da sociedade como violência, revoltas de jovens de origem estrangeira, delinqüência juvenil, tráfico e consumo de drogas, etc., escancarando as contradições dos processos atuais de metropolização. Ao mesmo tempo em que a região parisiense se coloca entre as mais dinâmicas do mundo em termos econômicos, apresenta também carências gritantes (e crescentes) para uma grande parcela de sua população, que habita, sobretudo, a periferia que é tomada agora por estratégias de reestruturação.
28Diante desse quadro, a questão da gestão (do governo) desse processo de metropolização se coloca na ordem do dia. Embora a problemática se referir a toda região Ile-de-France, as diferentes coletividades territoriais (municípios e consórcios de municípios que compõem a região) tem seus limites de ação. Uma discussão mais direta dos órgãos oficiais sobre uma governança metropolitana encontra empecilhos no peso (e poder) da cidade de Paris frente às comunas (municípios) e departamentos que a envolvem, assim como nos interesses divergentes entre as inúmeras unidades territoriais, somadas à queda de braço (em 2010) entre o Estado e a municipalidade de Paris, quando nos respectivos governos se opunham forças políticas contrárias. Outro problema nesse sentido é a dificuldade do conjunto das instâncias de governo francesas em realizar mudanças nas estruturas territoriais. Essas questões que envolvem o debate sobre a governança estão presentes na discussão sobre possíveis novas formas de gestão articulada entre as coletividades territoriais da região Ile-de-France presentes tanto no projeto do Grand Paris (proposto pelo Estado), como no Sindicato de Comunas Paris Metrópole (liderado pela Prefeitura de Paris). Enquanto isso, essas duas formas de lidar com a questão se realizam paralelamente, convergindo apenas quando mostram com clareza que deve haver uma articulação de Paris com as demais coletividades territoriais da Região Ile-de-France para uma ampla reestruturação do espaço da região, congregando os esforços das diferentes unidades territoriais.
- 2 Traduzindo livremente essa expressão: ordenamento territorial, ou ainda planejamento territorial.
29O processo de reestruturação da Plaine Saint-Denis está diretamente ligado à constituição e consolidação de uma nova coletividade territorial, a Comunidade de Aglomeração Plaine Commune, que reúne vários setores da administração municipal das 9 cidades envolvidas (Saint-Denis, Aubervilliers, La Courneuve, Stains, L’Ilê Saint-Denis, Pierrefitte-sur-Seine, Villetaneuse, Épinay-sur-Seine, Saint-Ouen) entre eles o setor do “Aménagement du territoire”2. A criação dessa comunidade de aglomeração está intimamente ligada ao processo de crise industrial e deterioração da Plaine Saint-Denis, num processo encabeçado por Saint-Denis e Aubervilliers (que com Saint-Ouen são as comunas que a Plaine Saint-Denis abarca), aparece como uma nova governança mais apropriada para lidar com os problemas urbanos produzidos pelo declínio industrial do lugar.
30A região da Plaine Saint-Denis faz parte da região que ficou conhecida como “banlieue rouge” (o subúrbio vermelho), onde o partido comunista francês dominava politicamente, entrando em conflitos periódicos com o Estado e com o patronato (BERTHO, 2008). Hoje, apesar da intercomunalidade ser ainda dominada por políticos de esquerda, havia um alinhamento maior ao Estado francês, governado até 2011 pela direita, do que com a Região Ile-de-France, governada pelo Partido Socialista. Isso se explica primeiro pelo poder que o Estado central tem frente à fragilidade institucional da Região, e em segundo lugar, e mais importante, devemos lembrar o fato de que essa articulação entre a intercomunalidade e o Estado se dá pelas ótimas perspectivas de inserção do território da Plaine Commune no projeto estatal do Grand Paris e no conjunto da reestruturação da região parisiense.
31Isso evidencia que, diante das necessidades atuais de setores econômicos que se apresentam como importantes produtores de uma nova dinâmica aos lugares (o financeiro, o setor imobiliário, a gestão), as políticas públicas são em grande parte convergentes, independente da coloração ideológica dos políticos eleitos (governantes). O chamado “desenvolvimento local”, proposto como uma importante ferramenta para as ações das coletividades locais, pode ser visto como o desenvolvimento econômico dos lugares (coletividades territoriais), em um contexto de concorrência entre coletividades territoriais, cada uma procurando ser mais atrativa a investimentos. Com isso a aliança das intercomunalidades com o Estado (Governo central da França), no caso francês, passa a ser fundamental para a construção de infra-estruturas no território das intercomunalidades, tendo em vista que é o Estado o grande provedor e executor de grandes obras de infra-estrutura.
32Essa “descoloração” ideológica das políticas públicas se realiza em um contexto de reestruturação econômica e de saída acelerada das indústrias do outrora chamado “banlieue rouge”, em que os sindicatos e os movimentos sociais operários perdem força. Diante desse quadro de proletarização que se reflete nos lugares, inclusive na degradação da paisagem, assim como nas altas taxas de desemprego, os governos das coletividades territoriais propõem como única saída induzir o desenvolvimento econômico dos lugares, como agentes de um mercado de localizações. Nesse sentido, a reestruturação dos lugares, o seu aparelhamento como lugares atrativos para novas atividades econômicas passa a ser fundamental.
33Isso evidencia que o espaço, a produção do espaço, se torna um setor central, uma nova fronteira para a valorização de capitais, restringindo as alternativas políticas de re-desenvolvimento dos lugares. O desenvolvimento (que se realiza concretamente como crescimento) econômico totaliza e resume as possibilidades de desenvolvimento, reduzindo as políticas de cunho social às brechas do desenvolvimento econômico. Dessa maneira, mesmo os governos de evidente direcionamento social se vêem atados diante das necessidades da valorização, da acumulação ampliada do capital, que no momento atual demanda profundas transformações espaciais.
34Depois de um longo período de decadência em termos de perda de empregos e perda de população, a partir do final da década de 90 e começo da década dos 2000, o território da Plaine Commune volta a ter um aumento no número de empregos e de população, com a expansão do setor terciário entre as atividades econômicas presentes no território da Comunidade de Aglomeração.
35“Le secteur le plus dynamique est celui du tertiaire et plus spécifiquement celui des services. Les services aux entreprises, l’éducation-santé-action sociale, l’administration et les activités financières sont les secteurs qui ont généré le plus fort volume d’emplois.(...) La tertiarisation de l’économie, plus lente dans les années 90 à Plaine Commune qu’ailleurs, s’est accélerée après 1999. Elle a favorisé le développement de nouveaux quartiers d’affaires, en particulier au sein des quartiers de La Plaine et de Pleyel” (INSEE, 2010).
- 3 A “Cidade do Cinema”, grande empreendimento do produtor e cineasta Luc Besson, transformou um grand (...)
36Assim, devemos apresentar uma questão central: do ponto de vista da criação de empregos e mesmo da renovação da produção residencial, o projeto urbano pode ser considerado como muito bem sucedido. Fica claro que a Comunidade de Aglomeração conseguiu consideráveis conquistas, ultrapassando nos anos 2000 o número de empregos que havia ali na década de 70, devido, sobretudo, ao movimento de instalação de empresas na região da Plaine Saint-Denis e Pleyel, onde estão os maiores empregadores. No entanto, no plano do social, o processo indica uma segregação de uma parte considerável da população local, que não tem acesso aos empregos produzidos no território da comunidade de aglomeração assim como não tem uma renda suficiente para aceder à habitação social. Cerca de 30% da população da Comunidade de Aglomeração é considerada de baixa renda, e destes cerca de 60% vivem com a ajuda de RMI [Revenu Minimum Individuel] (INSEE, 2010). Uma tentativa de lidar com esse problema da inserção da população aos empregos é o projeto de criação de um cluster ligado às atividades cinematográficas e tudo que a ela está relacionado, o que demandaria uma grande quantidade de empregos de baixa qualificação. Mas mesmo essa possibilidade depende da formação de mão-de-obra específica para as novas atividades a serem criadas3.
37Dessa maneira, fica claro que as estratégias estatais e econômicas se realizam concretamente no espaço, transformando o lugar, que é incorporado pelo processo de acumulação, revelando novas contradições do espaço, indicando que o território se torna, nesta perspectiva, um fetiche do “desenvolvimento”, assim como a paisagem. Quando se fala de desenvolvimento territorial, se mascara os processos sociais contraditórios que são produzidos. Concebe-se abstratamente um projeto do território que seja voltado para o “futuro”, o que representa uma neutralização dos conflitos sociais presentes no processo.
38Em um urbanismo regulado por leis, a dinâmica da administração do fundiário é um tema central para o aménagement du territoire, o planejamento estatal. Ou seja, fundamental para os projetos de transformação dos lugares elaborados pelas coletividades territoriais. Assim,
- 4 Fórum “La Maitrise et la gestion du foncier”, Université Jean Moulin – Lyon 3, realizado em 2 de ab (...)
39“le foncier est bien la matière première de l’aménagement et du développement territorial. La mutabilité du foncier est donc au coeur de la réflexion en la matière; elle implique les relations entre les acteurs privés et publiques, les interfaces entre les espaces ruraux et urbains; elle est aussi l’enjeu des localisations des investissements majeurs”4.
40A gestão do fundiário tem regulamentações gerais que a regem em todo território francês. Dessa maneira essa problemática é fundamental para entendermos os desdobramentos legais da produção do espaço na França em seu momento preliminar, aquele da constituição da base (da terra - terreno) para qualquer uso posterior que se dará, nos diversos lugares. Apresenta-se uma estrutura legal geral para toda a França, através do Établissement Public du Foncier mas, a partir desse quadro legal, os diversos agentes públicos ligados a esse organismo estatal agem diante das necessidades de cada coletividade territorial e cada região onde há uma ação mais profunda do aménagement du territoire.
41Em um momento de crises e reestruturações econômicas de alcance mundial (produtoras de grandes friches - industriais, portuárias, e também militares e religiosas), que atingem diretamente as dinâmicas territoriais, a gestão do fundiário toma uma grande importância como um momento da gestão do território, agenciando possíveis novos usos, produzindo uma “identidade” ao território (o chamado “geomarketing”), tornando o território atraente do ponto de vista econômico, possibilitando a criação de novas centralidades.
42Fica claro que a gestão do fundiário permite ao poder público direcionar os novos usos, produzir um novo espaço, fazer “escolhas” para os determinados lugares em transformação, como a preparação de terrenos (e através de operações urbanas – ZACs [Zones d’Aménagement Concerté]) para atrair determinados tipos de empresas “limpas”, “sustentáveis” e de alta tecnologia, etc., buscando se destacar em um “mercado de lugares”. Coloco “escolhas” entre aspas porque de uma maneira geral as políticas públicas estão atadas a um único procedimento possível, que é atrair investimentos para o seu território, o que mostra que as escolhas se mostram como caminhos únicos para o chamado desenvolvimento territorial para, através da instalação de empresas no território, produzir novas fontes de renda para a coletividade.
43Por outro lado, a recuperação de antigas áreas industriais pode se revelar algo custoso do ponto de vista econômico e técnico para as coletividades (ou para o Etablissement Public du Foncier), já que em grande número de vezes depende da despoluição de terrenos contaminados por anos de uso industrial. Esse processo de preparação do terreno, que inclui desde a identificação dos usos pretéritos industriais, a despoluição e a disponibilização para a nova atividade determinada (funções do E.P.F.) entra, evidentemente, no custo do aménagement das regiões. Em regiões de antiga industrialização, comuns na França e em grande parte da Europa Ocidental, as atividades de despoluição do solo são parte integrante e não menos importante no processo de reestruturação das regiões industriais. Entram na soma das atividades da gestão do fundiário.
44Esse debate sobre o fundiário é de extrema importância para entendermos os mecanismos concretos da ação estatal no conjunto do que se denomina o “aménagement du territoire” (sobretudo para entendermos as ações da coletividade territorial Plane Commune no processo de reestruturação da Plaine Saint-Denis). A discussão do fundiário se localiza no limiar do político e do econômico. Os organismos públicos atuam como agentes econômicos nos processos de desenvolvimento territorial, no sentido de dinamizarem economicamente os territórios. Esse debate, revestido de um aspecto técnico que muitas vezes camufla os seus conteúdos políticos e sociais, permite questionarmos até que ponto há possibilidades reais de uma verdadeira gestão do território, pois as discussões em torno da gestão do fundiário se balizam nas possibilidades jurídicas/legais de dinamização econômica do território, reduzindo ou esvaziando a esfera do político diante das necessidades de um realismo econômico “objetivo”.
45O Estado está no centro de todo o processo de transformação de espaços de desindustrialização. É ele que coordena todo esse processo, tomando o espaço como uma página em branco a ser preenchida pelo “desenvolvimento local” inserido no planejamento global de reestruturação da região parisiense. Nesse sentido, o Estado é a instância que liga as diversas dimensões do desenvolvimento local, sempre atuando de maneira a promover um “equilíbrio” entre essas diferentes dimensões.
46O planejador exprime o projeto usando a metáfora de uma flor com pétalas, sendo que o centro da flor é o Estado, que coordena todo o processo e as pétalas são os diversos setores do “desenvolvimento” (GROSSARD, 2003). Essa metáfora também presume, mais uma vez, uma coerência, um equilíbrio que se realizaria no “território”. Porém identificamos uma contradição importante, que por ela própria colocaria em questão esse pretenso equilíbrio, que é a lei de mercado se sobrepondo aos mecanismos reguladores do Estado. Neste discurso de progresso, se por um lado o Estado impõe regulamentos, por outro lado ele, que se realiza como um Estado capitalista, não pode colocar muitas barreiras à liberdade de mercado, onde o mercado (a concorrência) aparece como a regulação do processo. No entanto, quando pensamos em um contexto de valorização do espaço, a liberdade de mercado coloca em cheque qualquer projeto de “mixité sociale” (mistura social) previsto nos regulamentos do Estado francês para os projetos de reestruturação urbana.
47No sentido do crescimento econômico do espaço em questão, uma agência da intercomunalidade cuida da criação de “parcerias” com as empresas, a Plaine Commune Promotion. Essa agência trabalha no sentido de promover o máximo de condições favoráveis possíveis para a instalação de empresas no seu território de ação.
48Assim, ao mesmo tempo em que o planejamento se coloca como um processo regulador (subsumido às leis de mercado), o planejador admite que nunca se pode controlar tudo, que há brechas no processo e, em nossa opinião, a própria lei de mercado é uma brecha que pode subverter os projetos do Estado. Por isso ele propõe uma lógica flexível para lidar com as questões contingenciais (GROSSARD, 2003).
49O “Aménagement du territoire”, por representar a idéia de desenvolvimento social, progresso, se apresenta como a vontade pública, de toda a sociedade, sem conflito. Nessa perspectiva, se o que se busca é o desenvolvimento, os procedimentos, os regulamentos dispensados são indiscutíveis, objetivos. Os “agentes do desenvolvimento” apresentam um discurso “objetivo” que conteria a verdade sobre as tarefas a serem feitas, sendo os mediadores entre as necessidades sociais e as ações do poder público, tendo a capacidade de ver e entender as necessidades da sociedade. Os eleitos, os políticos são, por outra parte, a população representada (a própria vontade da população), uma parte importante dos atores do desenvolvimento, pois tem o poder de direcionar as políticas públicas. Com isso, o planejamento aparece como uma técnica pura, promotor indiscutível do “desenvolvimento”. A sua articulação com os representantes da população é fundamental para justificar a sua funcionalidade de promotor dos interesses sociais. Ou seja, a parceria entre a política e a técnica é fundamental para a própria legitimação das ações do ordenamento territorial.
50Nessa perspectiva, a cidade aparece como uma empresa, integrando parceiros que partilham a lógica da empresa. O “desenvolvimento” se torna somente uma questão de boa gestão, e a cidade depende de um bom ordenamento, de um planejamento bem feito. No entanto, no exercício do planejamento estatal, o que vemos se concretizar na realidade é um conjunto de modelos voltados para a capitalização do espaço através de tecnopólos high-tech, espaços propícios para a instalação de empresas modernas, criando um tipo de espaço específico, aquele dos edifícios envidraçados, das paisagens estandartizadas do mundo dos negócios, serviços e entretenimento, articulados a conjuntos residenciais com arquiteturas que remetem ao novo, à superação do que havia antes. Fala-se, no discurso do planejamento, de reunião de sinergias, como se a cidade ou um determinado território fosse mesmo uma empresa, voltada para um modelo de crescimento econômico. Nesse sentido, as zonas de atividades criadas, lugares facilitados para a implantação de empresas, produz um tipo específico de sociabilidade, justamente a sociabilidade da empresa como a única possível.
51O agente de desenvolvimento aparece nesse contexto não como uma função política, mas técnica, a de fazer funcionar a cidade como se esta fosse uma empresa, com uma objetividade pura, como se a técnica não fosse também política ou, também, ideologia. No entanto, é precisamente pelo fato de que ela aparece como uma função neutra, que atua como uma potente ferramenta ideológica para o crescimento econômico e para o “desenvolvimento”. Nesse sentido, o desenvolvimento local apresenta um fetiche do território, apresentando um suposto “equilíbrio” territorial possível de ser conquistado. É a busca desse equilíbrio no território o que sempre está em questão, como se houvesse um equilíbrio possível entre a empresa e a coisa pública, entre o âmbito do público e o do privado em um contexto de uma economia crítica. Devemos, portanto, refletir como o projeto de desenvolvimento, que seria um facilitador do “desenvolvimento” da região, se realiza concretamente. Podemos concluir que em um contexto de aumento da exploração do trabalho e de proletarização avançada, o projeto de desenvolvimento territorial se revela como um facilitador da valorização mercantil do espaço. Assim, o sentido concreto do planejamento como o catalisador do “desenvolvimento” se revela como um neutralizador das contradições sociais, no descompasso presente entre as necessidades concretas da sociedade e aquelas da acumulação econômica.
52A política de espaço hoje significa eminentemente a dinamização econômica dos territórios, a transformação de lugares concretos em territórios da ação do Estado e do setor econômico, criando sociabilidades específicas dessa forma de produção do espaço. As centralidades são prioritariamente dos negócios, sejam eles negócios com a terra, sejam eles por meio da produção de escritórios ou empreendimentos residenciais. A gestão do espaço como mercadoria é o fundamento da produção dos espaços sociais e das centralidades, que produzem também a segregação, pois os usos produzidos nesse contexto se realizam em grande parte por sua funcionalidade econômica, implicando a mediação fundamental da mercadoria e do dinheiro. Para essa realização, esses projetos se materializam nas unidades políticas de proximidade (as comunas, a intercomunalidade) se articulando às políticas de espaço mais amplas do Estado francês (Grand Paris).
53O Estado, em suas diferentes unidades (município, região e Estado central) lança mão dos mecanismos urbanísticos para o remanejamento do espaço, produzindo um novo espaço. O espaço passa a ser também uma mercadoria vendida num mercado de lugares – os escritórios, os apartamentos, os espaços de grandes eventos, os serviços, os grandes espaços comerciais aparecem como esses produtos que dinamizariam os lugares, que se constituiriam como as novas raridades no conjunto da metrópole parisiense, que por sua vez, tomada em seu todo, quer se recolocar como uma metrópole mundial. O movimento que se liga ao mundial determina fortemente as políticas e ações no âmbito local, revelando as novas formas de “governança” do território. Essa “governança” se realiza como os novos mecanismos de articulação entre o político e o econômico (GAUDIN, 2002), para alcançar a meta primordial a ser alcançada, que é a dinamização econômica do território. Nesse sentido, no caso da Plaine Saint-Denis, constatamos que se trata da transformação de um lugar industrial em um imenso portfólio de vendas de escritórios e residências, o que elevaria a região a uma das mais dinâmicas (do ponto de vista econômico) da região parisiense.