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Licenciamento ambiental federal no Brasil: perspectiva histórica, poder e tomada de decisão em um campo em tensão

Permis environnementaux au Brésil : perspective historique, pouvoir et prise de décision sur un terrain en tension
Aline Borges do Carmo et Alessandro Soares da Silva

Résumés

Cet article analyse la construction de l’outil d’Évaluation des impacts environnementaux (EIE) et l’application de l’instrument « Permis Environnementaux » au Brésil, en considérant l’influence de l’histoire, de la société et de la politique sur les processus décisionnels définis par les politiques publiques du secteur. L’étude vise à comprendre les problèmes techniques de l’EIE, à travers l’histoire des enjeux environnementaux, l’émergence des principaux instruments juridiques et, enfin, les politiques publiques liées à l’évaluation de l’impact environnemental par rapport au contexte socio-économique et politique du Brésil. Par conséquent, ce travail cherche à mieux appréhender les processus de prise de décision qui concernent l’émergence de débats politiques et d’actions éducatrices par le pouvoir. L’analyse montre que les événements apparemment exogènes aux procédures effectuées par des techniciens chargés d’évaluer les demandes de permis environnementaux fédéraux influencent de manière décisive les résultats de ce travail technique, mais il est toutefois difficile d’appréhender tous ces facteurs, surtout pour les éléments non techniques. D’une manière générale, cet article suggère une révision des considérations des enjeux techniques et des relations humaines au cours du processus d’EIE. Il conclut que des outils purement techniques et scientifiques, bien qu’acceptés d’un point de vue académique, peuvent ne pas être suffisant pour agir dans ce domaine et qu’une vision plus large, qui prend en compte les relations subtiles entre la politique, les relations humaines et les procédures techniques, devrait guider toute tentative d’intervention visant à améliorer ces procédures. En dépit de l’approche technico-scientifique apparente, illustré par les études environnementales - en théorie qui sous-tend l’EIE -, la prise de décision est en fait le reflet du jeu politique qui conditionne l’ensemble du processus.

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Texte intégral

1A questão ambiental está estabelecida, de forma global, em todos os setores do conhecimento, tendo se tornado pauta não só da agenda política de movimentos sociais, mas da agenda pública de governos e Estados. Isso significa que o Governo reconheceu esta questão como política e significativamente relevante ao ponto de compor sua própria agenda, a qual chamamos de agenda pública. Assim, uma agenda pública nasce da luta das diversas agendas políticas de movimentos sociais da sociedade civil e das múltiplas agendas que coexistem no interior de governos e Estados. Os elementos que garantem um reconhecimento político são os que compõem a agenda pública. Nesse sentido, a agenda pública de um Estado ou um governo é uma agenda política, mas que resulta de um processo de negociação amplo, que busca estabelecer um pacto social em torno de questões que respeitam as múltiplas demandas vividas na sociedade e que procura construir resolubilidades para os problemas nela contidos. No campo ambiental, a produção dos pontos que pautam essa agenda pública é também, portanto, atravessada por múltiplas demandas que nem sempre são relativas ao meio ambiente, mas com a dinâmica do capital que orienta a lógica social na contemporaneidade. Ainda assim, este é um assunto sobre o qual se necessita agir, o que garantiu nesses últimos 20 anos um papel de destaque que fez com que a temática adquirisse o status de problema público, que governos e Estados não podem ignorar.

2Há porém, no Brasil, uma lacuna significativa entre a percepção dos problemas ambientais pelos cientistas naturais e pela sociedade e a abordagem destes problemas na agenda pública. Segundo Trajano (2010), a literatura é muito rica em documentos sobre estratégias e diretrizes de conservação ambiental, mas isso não necessariamente se refletiria em ações efetivas, pois a mensagem de que algo precisa ser feito neste sentido não vem atingindo o nível mais importante, que é o da tomada de decisões dentro do governo. Tal tomada de decisões se refletiria na elaboração de políticas públicas as quais abrangessem as recomendações contidas nos documentos e estratégias citados pela autora, o que não vem ocorrendo.

3Este impasse evidencia as várias questões que estão por trás da elaboração e implementação de políticas públicas, sejam elas ambientais ou não. Para Labra (1999), mesmo se fosse possível elaborar uma política “racional”, esta não sobreviveria aos problemas de implementação, o que nem sempre é percebido por setores mais técnicos. De fato, González Suárez (2008) concorda que as teorias aceitas pelas ciências tendem a enxergar o mundo de forma microscópica, ignorando o contexto sócio-cultural e, sobretudo, as estruturas de poder nacionais e internacionais. Isto é fato inclusive para as ciências envolvidas na questão ambiental. Neste contexto, é necessário superar o mero tecnicismo, comum nas ciências naturais, e entender o contexto social (histórico, político, e econômico) que acaba por influir no processo de tomada de decisões que se reflete na elaboração e implementação de políticas públicas.

4Uma definição de “Política Pública” seria “o processo pelo qual os diversos grupos que compõem a sociedade tomam decisões coletivas, as quais afetam o conjunto dessa sociedade” (Rodrigues, 2010, p.13). Isso não se dá sem conflitos, mas a política visa exatamente à resolução destes conflitos de forma pacífica. Para um assunto, problema ou conflito se tornar pauta na agenda pública, como é o caso da questão ambiental, é decisiva a participação dos cidadãos e dos partidos políticos, bem como a interação dos atores envolvidos (públicos e privados) e a possibilidade de participação democrática. Aqui temos clara a dimensão psicopolítica do processo de tomada de decisão que depende de elementos da subjetividade política de cada “tomador de decisão”, no caso o gestor público. Isto é importante porque a gestão é eminentemente ação política e esta depende da ação de atores sociais individuais e coletivos (Costa, 2012). Esta questão pode compor, na psicologia política, os estudos “das situações de pressão, do conflito e da negociação e dos efeitos do primeiro e dos fatores psicológicos da segunda (...) [, mas também os estudos da] ideologia como fenômeno político, instrumento e processo de mediação, com seu correlato de alienação e seus efeitos em sociedades e indivíduos” (Montero & Dorna, 1993, p.10).

5O debate sobre quem estaria por trás das tomadas de decisões que culminam nas políticas públicas não é novo e teve início no período anterior da própria constituição das políticas públicas como área de conhecimento específico (Rodrigues, 2010). A busca por explicação sobre por que motivo determinadas políticas públicas são adotadas em detrimento de outras e por que o Governo está agindo de uma forma em detrimento de outra, pode nos ajudar a compreender melhor não só a sociedade em que vivemos, mas também as causas e conseqüências das decisões públicas (Rodrigues, 2010). Neste sentido, é importante entender que as políticas públicas são adotadas num determinado momento e dentro de um determinado contexto, que o governo tem poder político para tomar decisões de acordo com as preferências e interesses dos diversos atores e que, em um governo democrático, tais preferências e interesses são permanentemente negociados. Entender as peculiaridades deste processo é o primeiro passo para agir e prol da melhoria das políticas públicas ambientais num contexto de uma democracia imperfeita, em que alguns atores tem mais poder que outros.

6Desta forma, este trabalho pretende analisar a construção da definição do processo de Avaliação de Impactos Ambientais e a implementação do instrumento Licenciamento Ambiental no Brasil de uma perspectiva mais ampla que a técnica, analisando, por um lado, como a história e o contexto social, econômico e político interno e externo ao país influenciaram no processo de tomada de decisão, que se refletiu e se reflete na definição de políticas públicas no setor e por outro os contextos subjetivos que orientam a ação dos agentes decisores. Ainda que o escopo deste trabalho possa soar ambicioso, importa dizer que não é nossa intenção, ou mesmo pretensão, aportar aqui soluções mágicas para problemas no mínimo crônicos existentes no campo ambiental; não é nossa intenção esgotar as análises necessárias para o enfrentamento das questões aqui levantadas. Mas é nossa intenção contribuir de modo sólido para a discussão das problemáticas decorrentes do exercício cotidiano da Avaliação de Impactos Ambientais de projetos.

7No que tange aos aspectos metodológicos, destacamos que este manuscrito resulta de uma análise qualitativa das legislações ambientais federais e procedimentos internos do órgão ambiental federal- IBAMA- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, bem como de uma revisão de literatura que nos propiciou as condições analíticas necessárias para pensarmos a avaliação de políticas ambientais na atualidade. Nossa análise se deu com base nas ponderações de Ignácio Martín-Baró (1991) e Maritza Montero (1999, 2009) acerca do que seria o método e os níveis de análise possíveis desde a Psicologia Política. Estes, por sua vez, são aplicados ao campo das políticas públicas, inaugurando um enfoque psicopolítico, como se pode ver em trabalhos de Eda Tassara, José Oliveira, e Vanessa Batista (2007); Eda Tassara e Omar Ardams (2008); Marcelo Calegare (2010) e Alessandro Soares da Silva (2012). No campo da análise de políticas públicas ambientais, entendemos que a perspectiva psicopolítica da análise de políticas públicas pode agregar uma dimensão humanizadora de processos avaliativos, os quais podem vir a contribuir na elucidação de conflitos entre a técnica e o ser humano.

Problemática da avaliação de impactos ambientais e do licenciamento ambiental federal no Brasil

8O surgimento do conceito de Avaliação de Impactos Ambientais data da década de 70, nos Estados Unidos. Devido à pressão da opinião pública sobre o governo para que o mesmo aceitasse sua parcela de responsabilidade pelas atividades desenvolvidas por suas próprias agências, foi criada a NEPA – National Environmental Policy Act, em 1970 (Sánchez, 2008). Esta foi a base para o desenvolvimento do mecanismo que ficou conhecido mundialmente como AIA – Avaliação de Impactos Ambientais.

9A AIA foi formalmente introduzida no Brasil pela Política Nacional de Meio Ambiente, instituída na Lei n 6938, de 31 de agosto de 1981, que elegeu dentre as ações preventivas a Avaliação de Impactos Ambientais e o licenciamento para a instalação de obras ou atividades potencialmente poluidoras. O processo de AIA deve identificar e avaliar os impactos potenciais benéficos ou negativos de projetos ao ambiente, levando em consideração aspectos ecológicos, sociais, culturais e até estéticos. Deve ser levado em conta também como o projeto avaliado vai afetar pessoas, os locais que elas habitam e o seu modo de vida.

10Apenas anos depois de promulgada a Política Nacional do Meio Ambiente, as definições, responsabilidades, critérios básicos e diretrizes gerais sobre a AIA foram disciplinadas através da Resolução Conama 001/1986 (Assunção, Bursztyn e Abreu , 2010). Segundo os autores, esta norma vinculou a aplicação da AIA ao instrumento licenciamento ambiental, o que teria causado uma redução de sua abrangência, ao ser exigida apenas para determinados empreendimentos/atividades (projetos), deixando de lado planos, programas e políticas.

  • 1  O uso do termo “ambiental”, e  não “socioambiental” é proposital, e implica necessariamente a dime (...)

11A principal norma referente ao instrumento licenciamento ambiental no Brasil é a Resolução CONAMA 237, datando de 19 de dezembro de 1997. Segundo esta norma, a competência do licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos de grande porte (que envolvam mais de um Estado), além da totalidade daqueles localizados no mar territorial, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva cabe ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), órgão executivo federal do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA). O licenciamento ambiental, portanto, é o instrumento processual através do qual se dá a Avaliação de Impactos Ambientais de projetos. Trata-se de uma etapa essencial, devendo ocorrer em uma fase anterior a qualquer empreendimento de grande porte para assegurar que impactos potenciais sejam identificados e que os danos sejam mitigados ou compensados. Qualquer ação em prol do desenvolvimento requer não apenas uma análise da real necessidade de tal projeto e dos custos e benefícios econômicos envolvidos, mas, tão importante quanto, requer o estudo e análise da viabilidade ambiental1 dos mesmos.

12Este processo tem sido objeto de intensa controvérsia no Brasil envolvendo tanto aqueles para quem os requerimentos excessivos e a demora no processo de licenciamento são responsáveis pela demora de execução de importantes obras de infra-estrutura, como os que defendem que as licenças são concedidas por pressões econômicas e políticas em detrimento de relevantes questões ambientais.

13Para Oliveira & Bursztyn (2001), um dos principais problemas da AIA seria a sobreposição de interesses políticos às conclusões contidas nos estudos ambientais que subsidiam este processo. Egler (1998) apontou problemas relacionados a deficiências de infra-estrutura e pessoal no IBAMA para a condução do processo de AIA, enfatizando que melhorias qualitativas e quantitativas eram requeridas. Isso é corroborado pelo trabalho de Glassom & Salvador (2000), que aponta como fragilidades o processo burocrático e facilmente manipulável por pressões políticas e econômicas que envolve a aprovação dos Estudos de Impacto Ambiental, bem como a falta de regulamentações secundárias, de mão de obra treinada para análise e de infra-estrutura.

14É fato que o corpo técnico responsável pela análise de processos de licenciamento ambiental sofreu um incremento numérico devido aos três concursos públicos realizados pelo IBAMA nos anos de 2002, 2005 e 2008. As legislações referentes ao tema Licenciamento Ambiental, conforme dito anteriormente, também foram aprimoradas desde o surgimento da Avaliação de Impactos Ambientais no Brasil, como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981, conforme ilustrado pela Imagem 1.

Imagem 1- Linha do tempo ilustrando a evolução das legislações e instituições relacionadas ao licenciamento ambiental federal

Imagem 1- Linha do tempo ilustrando a evolução das legislações e instituições relacionadas ao licenciamento ambiental federal

15(Esta evolução será explicada com maior detalhamento na seção 2- Histórico e discussões acerca da questão ambiental no Brasil e surgimento dos principais instrumentos legais referentes ao tema.)

16Por outro lado, a demanda de análises de pedidos de concessão de licenças ambientais ao longo deste período aumentou significativamente, de forma que enquanto no ano de 2002 o órgão federal recebeu 464 processos para análise, este número saltou para 1675 processos no ano de 2010 , conforme ilustrado na Imagem 2.

Imagem 2- Gráfico com o número de processos de solicitação de licenças ambientais abertos por ano, desde a criação do IBAMA

Imagem 2- Gráfico com o número de processos de solicitação de licenças ambientais abertos por ano, desde a criação do IBAMA

(adaptado de Forattini, 2011)

17Novas legislações referentes ao tema acabaram de ser editadas em que se verifica uma preocupação em se padronizar os procedimentos de análise de pedidos de concessão de licenças ambientais, bem como diminuir os prazos de emissão de licença. Certamente estas duas necessidades são importantes em um momento de grande crescimento econômico e de demanda por grandes obras. Entretanto, mais que nunca se torna necessária a determinação da viabilidade ambiental destes empreendimentos, de forma que o processo de AIA tem que estar sob permanente avaliação e aperfeiçoamento para que seja mais ágil sem deixar de atingir seus objetivos.

Histórico e discussões acerca da questão ambiental no Brasil e surgimento dos principais instrumentos legais referentes ao tema

18A preocupação com os impactos das ações do ser humano sobre o ambiente é uma temática antiga, sendo mencionada desde a civilização grega, na época de Aristóteles (Santos, 2004). Entretanto, foi após a Revolução Industrial e da época das grandes descobertas no campo da História Natural que os conflitos existentes na relação homem-ambiente tornaram-se mais evidentes.

19Mais recentemente, nas décadas de 1950 e 1960, após um intenso movimento popular de protesto contra a forma de desenvolvimento e os padrões de consumo vigentes, começaram a surgir propostas de gerenciamento dos recursos naturais, através de mecanismos de comando e controle, que se refletiram principalmente na elaboração de instrumentos legais. Em 1968 ocorreu uma reunião tratando sobre o tema, mundialmente conhecida como “Clube de Roma”, que, além de chamar atenção da sociedade, passou a pressionar ainda mais os governos acerca da questão ambiental, o que acabou por impulsionar a criação do NEPA (National Environmental Policy Act) nos Estados Unidos, ao qual se seguiram diversas legislações também em outros países.

20A NEPA surgiu da preocupação com os impactos ambientais resultantes da implantação pelo governo de grandes obras de infra-estrutura. Durante quase vinte anos foi discutida no Congresso Americano a necessidade de estudos de impacto ambiental em grandes obras, e durante estas décadas a idéia passou a ser debatida também em outros países (Santos, 2004). Nesse contexto, a Avaliação de Impactos Ambientais (AIA) surgiu como um instrumento do processo de tomada de decisão que visa a estimular a consideração de fatores ambientais no planejamento e tomada de decisão, de modo que as ações, públicas e privadas, implementadas sejam mais compatíveis com o meio ambiente.

21O Brasil, nesta mesma época, vivia uma fase de governos militares (1964 a 1985), e é este momento político-histórico emblemático que tem os elementos fundamentais para compreender o nascimento das políticas públicas exclusivamente ambientais nacionais e seus desdobramentos até o momento atual. Este período foi marcado por uma ausência de uma construção interna consistente nas políticas públicas ambientais, aliada com um papel decisivo de pressões externas (Pagnoccheschi & Bernardo, 2006).

22Nesta mesma época ocorreu ainda a Primeira Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente, conhecida como Conferência de Estocolmo, em 1972, que envolveu os representantes das Nações Unidas, permitindo o comparecimento de grupos, segmentos e pessoas das ONGs ambientalistas de várias partes do mundo. O evento também marcou a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o incentivo aos países participantes em criarem instituições nacionais responsáveis pela questão ambiental (Pagnoccheschi & Bernardo, 2006). Assim, em 1973, foi criada a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA). Além disso, a Conferência acabou por dar maior visibilidade ao ainda incipiente movimento ambientalista brasileiro, que se fortaleceu, com a multiplicação de ONGs ligadas ao tema e a interlocução das mesmas e da comunidade científica com o governo.

23A SEMA foi o primeiro órgão federal com atribuição específica para tratar de questões ambientais no Brasil (Pagnoccheschi & Bernardo, 2006), e era ligada ao Ministério do Interior. Começou sua atuação de forma bastante tímida, com pouco poder de interlocução e equipe técnica reduzida, tratando principalmente de temas ligados ao combate à poluição, bastante em evidência devido aos problemas enfrentados em São Paulo e no Rio Grande do Sul, e à aquisição de áreas para a criação de Estações Ecológicas, categoria de Unidade de Conservação de uso indireto (que não permite a presença humana). A atuação desta entidade foi marcada por dificuldades de integração, se mantendo como uma espécie de enclave do movimento ambientalista dentro do governo, com alcance restrito às chamadas ações de comando e controle, mas sem acesso às políticas setoriais de grande impacto ambiental, como agricultura, energia e infra-estrutura (Pagnoccheschi & Bernardo, 2006).

24Além disso, começaram a ser elaborados marcos legais sobre o tema, culminando na edição da Política Nacional do Meio Ambiente, contida na Lei nº6938, em 31 de agosto de 1981 (vide Imagem 1). Dois dos instrumentos para a execução da referida política citado nesta lei foi a Avaliação de Impactos Ambientais e o licenciamento das atividades efetiva ou potencialmente poluidoras. A AIA no Brasil já ocorria de forma não regulamentada desde a década anterior, em função da exigência de órgãos financiadores internacionais, sendo apenas posteriormente incluída como um dos instrumentos de execução da Política Nacional do Meio Ambiente (Rohde, 2006).

25Em 1986 foi editada, no âmbito da AIA, a Resolução CONAMA nº01 de 23 de janeiro de 1986 (Imagem 1), a qual estabeleceu as definições, as responsabilidades, os critérios básicos e as diretrizes gerais para uso e implementação da Avaliação de Impactos Ambientais. Esse marco regulatório foi muito importante uma vez que, na prática, a AIA já estava sendo feita em muitos projetos sem, no entanto, haver um dispositivo legal no qual os técnicos envolvidos no processo pudessem se embasar.

26Em 1987 foi apresentado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento o Relatório Brundtland, ou “Nosso Futuro Comum”, o qual oficializou o termo “desenvolvimento sustentável”, definido como aquele que atende às necessidades das gerações atuais sem prejudicar o atendimento às gerações futuras. Este documento enfatizou a importância do planejamento na área ambiental e deixou claro que não poderia existir desenvolvimento desvinculado das questões ambientais. A partir de então, a questão ambiental deixou de ser vista de forma fragmentada e passou a, aos poucos, ser encarada como temática global, com responsabilidade e interesse tanto de países desenvolvidos, como dos em desenvolvimento.

27Foi neste cenário internacional que a Assembléia Constituinte no Brasil passou a discutir o tema “Meio Ambiente”. Após a redemocratização, houve um período de consolidação das políticas públicas ambientais brasileiras, com a existência na nova Constituição de um capítulo inteiro voltado para o meio ambiente, da inovadora responsabilidade compartilhada entre o Poder Público e a coletividade sobre a defesa ambiental, bem como as competências de todos os entes da federação (União, Estados e Municípios) para proteger o meio ambiente e legislar sobre ele.

28O novo governo implantou então, em 1989, o programa chamado “Nossa Natureza”, com uma série de medidas relevantes, entre elas a que reformulou institucionalmente a área ambiental, com a criação do IBAMA- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Imagem 1). A nova autarquia, com a missão de ser o órgão executor da Política Nacional do Meio Ambiente, surgiu da fusão da antiga SEMA com 3 órgãos de fomento à produção: o IBDF (Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal), a SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca) e a SUDHEVEA (Superintendência do Desenvolvimento da Borracha).

29O ano de 1992 representou um momento histórico para a questão ambiental no Brasil, com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro, conhecida como Rio-92. Este evento representou a consolidação da rede do movimento ambientalista brasileiro, e marcou a consagração do chamado “socioambientalismo”, com uma mudança de ideologia a respeito de questões ambientais, passando de uma visão de principalmente de controle de poluição e estabelecimento de áreas protegidas (normalmente sem a presença humana) para uma visão de desenvolvimento econômico e “socioambiental”. Isso significa que o social estaria implicitamente presente no ambiental, sendo ambos indissociáveis, devendo ser levados conjuntamente em consideração na compreensão de problemas e busca de soluções pelas políticas públicas. Houve ainda um crescimento na atuação das ONGs em todo espectro de políticas públicas, destacando-se a área ambiental (Pagnoccheschi & Bernardo, 2006).

30Ainda no final do ano de 1992 foi criado o Ministério do Meio Ambiente, com a missão de promover a inserção do conceito de desenvolvimento sustentável na formulação e na implementação de políticas públicas. Entretanto, desde sua criação, este Ministério teve a atuação muito prejudicada pela falta de recursos e de espaço de debate junto a outros ministérios mais poderosos. O IBAMA, que tinha uma atuação mais consolidada, ficou subordinado ao MMA, sendo que as atribuições destes dois órgãos até os dias de hoje ainda não estão estabilizadas, com a relação formulador-executor bastante confusa.

31A Resolução 237 do CONAMA, editada em 1997 (Imagem 1), revisou o sistema de Avaliação de Impactos Ambientais, efetivando o licenciamento ambiental de projetos como instrumento de gestão ambiental, conforme já instituído desde 1981, pela Política Nacional do Meio Ambiente (Rohde, 2006). Essa norma definiu critérios e prazos para a análise de Estudos de Impacto Ambiental, consagrando o licenciamento ambiental como procedimento administrativo a ser adotado por técnicos dos órgãos ambientais na análise de projetos.

32A partir de 1998, tendo alcançado a estabilidade econômica após sucessivas crises, o Brasil passou por um período de crescimento econômico e melhoria nas condições sociais, com grande parte da população ascendendo socialmente e tendo acesso a um nível de consumo muito mais elevado. Teve início também, sobretudo a partir de 2002, um período de grandes obras de infra-estrutura. Ao mesmo tempo, o IBAMA teve um incremento na sua mão-de-obra com os únicos concursos públicos para provimento de cargos técnicos do órgão, realizados nos anos de 2002, 2005 e 2008.

33O incremento de mão-de-obra e na qualificação nos quadros do órgão ambiental federal licenciador resultou na aplicação mais efetiva da legislação já existente, considerada uma das mais restritivas do mundo. A análise mais criteriosa dos pedidos de concessão de licenças ambientais trouxe à tona as fragilidades dos estudos existentes, e colocou em dúvida qual seria o limite de atuação do órgão ambiental em termos de solicitações de complementações e condicionantes. Desta forma, foi editada em 2011 uma série de Portarias a respeito do licenciamento ambiental estabelecendo critérios e limites na análise dos pedidos de concessão de licenças, de forma a agilizar e baratear o processo para os empreendedores (Imagem 1).

34Em relação à dinâmica dos órgãos ambientais, começou a haver uma descentralização de competências da União para os demais entes federativos, em consonância com a Constituição Federal de 1988. Aproveitando-se da atuação crescente de alguns estados e municípios na área ambiental, muitos escritórios regionais do IBAMA foram fechados e muitas competências foram delegadas por meio de convênios. Paralelamente, vem ocorrendo um processo de reorganização da gestão ambiental federal, com a criação de outros órgãos e entidades ou a transferência da competências do IBAMA para outros órgãos. Deste processo fazem parte a Agência Nacional de Águas - ANA, o Ministério da Pesca, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade –ICMBio (Imagem 1), e o Serviço Florestal Brasileiro - SFB, cada qual levando consigo, quando criado, parte das atribuições que eram do IBAMA.

35Desta forma, tem havido muitas polêmicas sobre o enfraquecimento na forma da perda de atribuições por parte do IBAMA. O entendimento do momento histórico atual pode contribuir para esclarecer como tem se dado estas tomadas de decisão que tem se refletido diretamente na mudança de rumo das políticas públicas ambientais, e também nas condições de execução do trabalho cotidiano dos técnicos da instituição. Destes aspectos conjunturais produtores de contextos e situações é que surgem tensões, conflitos e disputas de poder intra-institucionais e interinstitucionais que se refletem indubitavelmente no processo de formulação, avaliação e monitoramento de políticas públicas no campo ambiental e em suas dimensões micropolíticas. Ou seja, na ponta da ação pública realizada pelos agentes responsáveis pela execução das AIAs, pela análise das solicitações de licenciamento e, portanto, pela negociação dos conflitos sociais inerentes aos processos contidos na própria AIA.

36Ao analisarmos a dinâmica em torno da legislação ambiental e as instituições federais responsáveis pela gestão ambiental, podem-se perceber momentos distintos, muito relacionados aos momentos históricos, envolvendo economia, sociedade e pressões políticas internas e externas. Estes momentos estão descritos resumidamente na Quadro 1, que busca ilustrar as diferentes características destes momentos, as legislações criadas e a dinâmica das instituições.

Quadro 1- Tabela ilustrando as características principais de 3 momentos históricos da questão ambiental no Brasil

Período militar

Assembléia constituinte até 1998

1998-atual

Percepção dos problemas ambientais

-Problemas eram vistos como pontuais;

-Poluição nas grandes cidades;

-Necessidade de criação de Unidades de Conservação sem a presença humana.

-A partir de Bruntdland, problemas são vistos como globais;

-Desmatamento na Amazônia e perda da biodiversidade;

-Visão sócio-ambiental- homem inserido no meio ambiente.

-Aquecimento global e perda de habitats;

-Economia ambiental- valoração econômica dos recursos naturais.

Cenário político-econômico-social

- Governo autoritário, com pouca ou nenhuma participação popular;

-Maioria da população sem acesso a bens de consumo;

-Início do movimento ambientalista, ainda com visão romântica e idéias de separação homem-natureza.

-Clube de Roma, Conferência de Estocolmo.

-Democratização, com maior participação popular;

-Multiplicação de ONGs sócio-ambientalistas;

-Transição entre crise e estabilidade econômica;

-Brundtland- Nosso Futuro Comum, surgimento do conceito de Desenvolvimento Sustentável e Rio-92.

-Estabilidade e crescimento econômico;

-Ascensão de grande parte da população e acesso a bens de consumo;

-Grandes obras de infra-estrutura;

-Expansão do agronegócio e exploração de petróleo;

-Kyoto, Rio + 10, Rio +20.

Principais legislações ligadas ao licenciamento ambiental

-Política Nacional do Meio Ambiente e Res. CONAMA 01/86

-Resolução CONAMA 237/97 e Lei de Crimes Ambientais.

-Novo Código Florestal (2012), Lei Complementar 140 e Novas Portarias do IBAMA de outubro de 2011

Dinâmica das instituições

-Criação da SEMA, ligada ao ministério do Interior.

-Criação do IBAMA, com a junção da SEMA, IBDF, SUDEPE e SUDHEVEA;

-Criação do MMA posteriormente à criação do IBAMA.

-Descentralização da gestão ambiental;

-Divisão do IBAMA, com a criação do ICMBio, SFB e ANA.

(adaptado de Neder, 2002)

Conflitos, Negociação e Territorialidades Subjetivas

37Tratar de processos de negociação nos leva necessariamente ao tema dos conflitos e das territorialidades subjetivas que ordenam o conflito. A partir desta premissa, entendemos que num processo de construção coletiva de um instrumento de gestão de uma política ambiental como a AIA a negociação política e temas relacionados a ele, como conflito, papéis dos atores e relações de força, estratégias de ação e métodos de influência, desempenham uma função central na própria gestão. Nesse marco, pensar em territorialidades subjetivas nos permite entender os espaços objetivos e subjetivos da negociação dos conflitos e das tomadas de decisão. A esse respeito Moura, Ultramani e Cardoso (1994) e Trindade Junior (1998) afirmam que a noção de territorialidades subjetivas refere-se à delimitação de interesses não-formais, por meio dos quais seus agentes definem seus raios de ação em limites subjetivos, sem a necessidade de demarcações sólidas, asseguradas institucionalmente, e que em geral surgem a partir de identidades que expressam suas territorialidades através da prática espacial.

38As territorialidades subjetivas, então, dependem de processos materiais e estabelecem mediante a relação com o espaço e o espaço simbólico, atribuições de sentidos que ordenam as relações de sujeitos e pautam posições identitárias, as quais passam permanentemente por negociações e por situações conflitivas. Este fato atravessa a realidade, no caso da gestão, e a ação dos sujeitos, no caso, dos gestores ambientais. Vale recordar que

39O conflito é frequentemente a máscara que esconde as relações de dominação e de exclusão, escreveram Michel Callon, Pierre Lascoumes e Yannick Barthe. Nós não aprofundaremos a democracia buscando acordo custe o que custar. A política é a arte de tratar dos desacordos, dos conflitos, das oposições e, por que não, que as faz surgir, incentivar, multiplicar, pois é assim que os caminhos inesperados se abrem, que as possibilidades se multiplicam (Thuderoz, 2010, p. 19).

40Tratar os desacordos implica em negociar. Para Graciela Mota (2006), a negociação política resulta de um processo coletivo, pois negociar implica no debate de argumentos posto à disposição dos implicados, o que faz da negociação uma ferramenta política de persuasão. É ela que opera frente e para a resolubilização de conflitos de modo democrático ou, ao menos, menos autoritário, menos fundado na força e no poder de quem se impõem sem diálogo.

41Nesse sentido, a autora aponta que negociar é

um ato e uma tarefa de construção social que visa a mais cara aspiração das democracias contemporâneas: restituir ao nosso cotidiano o sentido de pertencimento e da vocação para o coletivo, onde a liberdade e o pleno exercício da inteligência tendem à reencontrar a vida da política, da justiça, da paixão e de uma vida novamente gerada na sua dimensão real” (Mota, 2006, p. 44).

42Compreender a negociação na contemporaneidade implica em superar a visão corrente de algo relativo somente à diplomacia, ao comércio ou às relações de trabalho. A negociação é, portanto, um mecanismo de decisão, uma atividade social dotada de intencionalidade e com uma perspectiva processual. Thuderoz (2010) destaca que negociar envolve indivíduos e suas vontades, seus afetos; estratégias de ação; interesses que, as vezes se aproximam, as vezes se afastam. Mas negociar também envolve cálculos sobre a utilidade das ações, uma avaliação de recursos disponíveis e das oportunidades que surgem e que abrem possibilidades de pressão e de resolubilização de conflitos. Portanto, a negociação mobiliza recursos psicológicos, técnicos, normativos e éticos, pois a ação de negociar está em primeiro plano e traz em si a necessidade de comprometer-se com o outro, de decidir com ele, de estabelecer um compromisso. Assim,

Negociar não é somente um verbo de ação estratégica, mas é (forçosamente) uma tríade; ele designa o movimento de três entidades: 1) aquela que pretende; 2) aquela a quem é endereçada esta pretensão; 3) a coisa ela mesma. (...) Do ponto de vista deste sentido e dos seus efeitos, uma outra tríade define a negociação. Se trata de: 1) uma modalidade de interação social; 2) um processo de decisão; 3) uma prática social encerrada (Thuderoz, 2010, p. 15).

43A negociação, no campo ambiental, necessita conduzir a um acordo entre as partes, e, desta feita, não pode ser decorrente de um esquema de imposição. É preciso que haja a livre aceitação do acordo, visto que “Todas as decisões tomadas em uma estrutura de negociação são, portanto, coletivas, onde as partes se entendem voluntariamente e em conjunto, depois de ter examinado, de maneira mais ou menos conflitiva, outras ações possíveis” (Thuderoz, 2010, p. 42).

Poder e tomada de decisão na área ambiental: considerações psicopolíticas de um campo em tensão

44O quadro ilustrado nas seções anteriores mostrou uma análise das políticas públicas hoje vigentes na área do licenciamento ambiental que vai além de questões meramente técnicas. Conforme enfatizado anteriormente, a análise de qualquer política pública evidencia que a inclusão ou a exclusão de um assunto da agenda pública pode sofrer variações de acordo com o ativismo dos cidadãos e partidos políticos, com a ideologia social e com a interação dos atores, sendo que a possibilidade de participação democrática nem sempre é igualitária.

45O surgimento da preocupação ambiental moderna no Brasil deu-se durante o período do governo militar e a inclusão desta questão na agenda política sempre esteve ligada a fortes pressões de grupos de interesse externos ao país e a indivíduos que possuem nível educacional elevado e de origem urbana. Assim, as primeiras políticas públicas voltadas para o processo de Avaliação de Impactos Ambientais passaram a existir neste contexto. Como a visão de meio ambiente nesta época ainda era fragmentada, deu-se ênfase à avaliação de impactos de projetos, em detrimento à avaliação de políticas, planos e programas do governo. De fato, muitos dos problemas ambientais e de desenvolvimento surgem da fragmentação setorial das ações públicas, sendo necessário, portanto, a adoção de medidas mais integradas e coordenadas no contexto do processo de tomada de decisão para as ações estabelecidas em determinado país, região ou localidade (Oliveira & Bursztin, 2001). Egler (1998, p.153) ainda sugere outro aspecto a ser considerado:

46Outro elemento que pode impor sérias restrições a tentativas de melhorias deste processo [de Avaliação de Impactos Ambientais] é a atual tendência internacional, que enfatiza a redução do tamanho e funções do Estado na economia. De acordo com esse modelo, as funções do Estado deveriam ser reduzidas ao mínimo desempenho fisiológico das atividades de defesa, justiça e polícia, essencialmente à garantia da soberania nacional; as demais atividades seriam reguladas pelo mercado. No entanto, a inserção das atividades de integração e de coordenação nos processos de formulação e de implementação de políticas, planos e programas, é uma função do Estado. Nesse sentido, essa tendência pode comprometer seriamente a atividade de coordenação das ações públicas.

47Mais recentemente, após sucessivas crises, e com uma certa estabilidade econômica, houve um período de crescimento e melhoria nas condições sociais, com grande parte da população ascendendo socialmente e tendo acesso a um nível de consumo muito mais elevado. Isso se refletiu numa demanda crescente de análises de pedidos de concessão de licenças ambientais em nível federal. Desta forma, foi necessário um incremento na mão-de-obra no órgão ambiental federal (IBAMA), resultando na realização de concursos públicos.

48O incremento de mão-de-obra e na qualificação nos quadros do órgão ambiental federal licenciador resultou na aplicação mais efetiva da legislação já existente, o que significou um empecilho real para o crescimento econômico baseado na realização de grandes empreendimentos. A análise mais criteriosa dos pedidos de concessão de licenças ambientais trouxe à tona as fragilidades dos estudos existentes, e do próprio processo de avaliação de impactos ambientais, voltado apenas para projetos. Isso, aliado às ingerências internas entre IBAMA e Ministério do Meio Ambiente (MMA), e do próprio relacionamento entre o MMA e Ministérios com mais poder se refletiu em afirmações de o órgão ambiental tentaria emperrar o desenvolvimento, colocando em dúvida qual seriam os limites de atuação do mesmo. Este processo complexo, no qual fatores externos afetam direta e indiretamente o processo de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas ligadas ao licenciamento ambiental, está ilustrado na Imagem 3.

Imagem 3- Representação esquemática dos aspectos externos que interferem na elaboração, formulação e implementação das políticas públicas ligadas ao licenciamento ambiental.

Imagem 3- Representação esquemática dos aspectos externos que interferem na elaboração, formulação e implementação das políticas públicas ligadas ao licenciamento ambiental.

49A criação do ICMBio, com o conseqüente enfraquecimento do IBAMA, foi emblemática neste processo, uma vez que tal medida foi na verdade uma conseqüência do impasse envolvendo o licenciamento ambiental de duas usinas hidrelétricas na Amazônia (Zhouri, 2008). A usina de Belo Monte (Imagem 4), outro caso emblemático, é um claro exemplo de como interesses políticos, muitas vezes, se sobrepõem à análise técnica, de forma que ocorre degradação ambiental e contradição dos interesses da população mesmo em obras licenciadas.

Imagem 4- Fotos tiradas pela Organização Não Governamental Greenpeace no canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, licenciada pelo IBAMA, ilustrando diversos flagrantes de degradação ambiental causada pela obra.

Imagem 4- Fotos tiradas pela Organização Não Governamental Greenpeace no canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, licenciada pelo IBAMA, ilustrando diversos flagrantes de degradação ambiental causada pela obra.

Foto retirada do site http://www.gestaoebt.com.br/​blog/​?p=5485

50Ao mesmo tempo em que há o claro enfraquecimento do principal órgão executor da Política Nacional do Meio Ambiente, há paradoxalmente um discurso que prega a sustentabilidade, aproveitando-se da posição do Brasil de país megadiverso, como se esta posição fosse um atestado de boas políticas públicas no setor. Sobre isso, Pierre Charaudeau (2006, p.56) relata o seguinte:

A instância política encontra-se no lugar em que os atores tem um “poder de fazer”-isto é, de decisão e de ação- e um “poder de fazer pensar”-isto é, de manipulação. Por conta disso, a instância que os reúne está em busca de legitimidade, para ascender a este lugar, de autoridade e de credibilidade, para poder geri-lo e se manter. (...) Não há outra justificativa para o poder senão a própria situação de poder. Portanto, o discurso da instância política pode apenas se dedicar a propor programas políticos quando se trata de candidatar-se aos sufrágios eleitorais, a justificar decisões ou ações para defender sua legitimidade, a criticar as idéias dos partidos adversários para melhor reforçar sua posição e a conclamar o consenso social para obter apoio dos cidadãos, tudo com a ajuda de diversas estratégias de persuasão e sedução.

51Em certos âmbitos acadêmicos, tem havido preocupação de setores ligados à ciência sobre a necessária determinação da viabilidade ambiental de grandes empreendimentos, de forma que o aperfeiçoamento do processo de AIA deveria se pautar numa avaliação técnica permanente, que permitisse uma maior agilidade sem deixar de atingir seus objetivos primordiais. Entretanto, estas preocupações nem sempre são levadas em consideração e não chegam ao conhecimento do grande público.

52Nas seções anteriores fica claro que os principais grupos de interesse que conseguem interferir na arena política ambiental, em geral, são indivíduos de boa condição social e com interesses econômicos que, diante de pressões internas ou externas, favorecem a transformação dos problemas ambientais em questões de agenda das políticas públicas . Tal cenário evidencia que, numa arena dessa natureza, grupos minoritários como cientistas acabam não tendo visibilidade e suas questões não são incorporadas na agenda pública.

53Para Porto-Gonçalves (1988), a ciência e a técnica são sempre instituídas socialmente, e a relação sociedade-natureza se faz mediada pelo agir comunicativo e relações inter-pessoais subjetivas com fins sócio-historicamente determinados, onde a razão técnico-científica não tem plena autoridade para decidir. Desta forma, o aumento de produção e o lucro, além do arraigado conceito de propriedade privada, fatalmente limitam os resultados de técnicas e propostas de cientistas, e o próprio sistema limitaria as possibilidades de utilização destas técnicas quando o modelo de desenvolvimento estivesse em jogo. A técnica é apenas um aspecto da crise ambiental, e este aspecto encontra-se obrigatoriamente subordinado a aspectos sociais no seu sentido mais amplo, que abrange a economia, a cultura e a política.

54Pierri (2008) deixa clara esta realidade ao abordar a questão do processo de Avaliação de Impactos Ambientais e explica que o papel decisório do governo está subordinado à garantia de defesa da acumulação do capital e que seu papel de mediar diferentes interesses em relação à sustentabilidade dependerá da pressão de diferentes setores. A mesma autora reconhece desigualdades sócio-econômicas na apropriação do conhecimento e na capacidade de exercer pressão política.

55A análise incompleta da problemática do licenciamento ambiental no Brasil dificulta a visualização das causas reais dos problemas percebidos, muito mais sutis e enraizadas em aspectos sociais, aos quais os técnicos se subordinam. Se abordarmos de forma mais ampla a questão, como realizado no decorrer deste trabalho, percebemos entidades sociais com participação mais ou menos ativa no delineamento desta questão. Conclui-se, desta forma, que o entendimento do contexto social, político e econômico em que as políticas públicas ambientais são adotadas, refletindo na tomada de decisão pelo governo, a qual é dependente da negociação de preferências e interesses dos diversos atores, deve nortear qualquer esforço técnico-científico no sentido da melhoria do processo de Avaliação de Impactos Ambientais federal no Brasil.

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Notes

1  O uso do termo “ambiental”, e  não “socioambiental” é proposital, e implica necessariamente a dimensão social e humana, uma vez que o ser humano, suas ações e interações fazem parte do meio ambiente. O termo socioambiental será utilizado quando for tratado o momento histórico de mudança de percepção a respeito da inclusão da dimensão humana e social na questão ambiental.

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Table des illustrations

Titre Imagem 1- Linha do tempo ilustrando a evolução das legislações e instituições relacionadas ao licenciamento ambiental federal
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Titre Imagem 2- Gráfico com o número de processos de solicitação de licenças ambientais abertos por ano, desde a criação do IBAMA
Crédits (adaptado de Forattini, 2011)
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Titre Imagem 3- Representação esquemática dos aspectos externos que interferem na elaboração, formulação e implementação das políticas públicas ligadas ao licenciamento ambiental.
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Titre Imagem 4- Fotos tiradas pela Organização Não Governamental Greenpeace no canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, licenciada pelo IBAMA, ilustrando diversos flagrantes de degradação ambiental causada pela obra.
Crédits Foto retirada do site http://www.gestaoebt.com.br/​blog/​?p=5485
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Pour citer cet article

Référence électronique

Aline Borges do Carmo et Alessandro Soares da Silva, « Licenciamento ambiental federal no Brasil: perspectiva histórica, poder e tomada de decisão em um campo em tensão »Confins [En ligne], 19 | 2013, mis en ligne le 16 novembre 2013, consulté le 14 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/8555 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/confins.8555

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Auteurs

Aline Borges do Carmo

Doutoranda em Oceanografia, analista ambiental do IBAMA, Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, aline.carmo@gmail.com

Alessandro Soares da Silva

Livre Docente, Professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, alessoares@usp.br

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