1A Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA) é uma doença parasitária infecciosa, porém não contagiosa, transmitida por mosquitos da subfamília Phlebotominae, gênero Lutzomyia, também conhecidos como flebotomíneos. Nesses insetos ocorre parte do ciclo biológico do parasito, um protozoário do gênero Leishmania. O inseto se infecta quando a fêmea pica o vertebrado reservatório, um mamífero como roedores, marsupiais, primatas, etc., e ingere o protozoário que vai se multiplicar no inseto. (Genaro; Reis, 2005). A transmissão ao homem ocorre durante o processo de alimentação do flebotomíneo. No hospedeiro considerado reservatório, raramente a Leishmania produz doença. Em hospedeiros acidentais, como o homem, a infecção produz comumente lesões na pele e lesões mucosas - nariz, boca, garganta, fato que fez esta doença ficar conhecida também como “ferida brava” (Genaro; Reis, 2005).
2Nas últimas décadas, no Estado de São Paulo, houve aumento da incidência de LTA e expansão geográfica das áreas (Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 2004). Qualquer pessoa pode contrair LTA, desde que esteja em lugares com mosquitos infectados. Segundo Dourado et al. (1989), pessoas concentradas nas áreas residenciais periféricas e que tem mais contato com a mata estão mais expostas à LTA.
3Das espécies de Leishmania que causam doença no homem e ocorrem no Brasil, destacam-se a Leishmania braziliensis, L.guyanensis e L.amazonensis. A L.braziliensis tem ampla distribuição geográfica em nosso país e é a espécie que ocorre no estado de São Paulo.Os principais vetores desta espécie são: Lutzomyia intermedia, L. whitmani, L.wellcomei e L.pessoai (Genaro; Reis, 2005). De modo geral, para seu desenvolvimento, os vetores requerem temperaturas entre 20 e 30ºC, umidade superior a 80% e matéria orgânica. (Superintendência de Controle de Endemias do Estado de São Paulo, 2007). Sua distribuição pode variar com a localização geográfica (Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 2004). L. intermedia foi encontrada por Marcondes, Lozovei e Vilela (1998), no Estado de São Paulo, ao leste da Serra do Mar, ocorrendo no Vale do Rio Paraíba do Sul especialmente nas partes mais baixas. As áreas em que L. intermedia tem sido encontrada são quentes e úmidas. Segundo dados da Superintendência de Controle de Endemias do Estado de São Paulo - Sucen, L. intermedia é encontrada em várias localidades nas cidades do Vale do Paraíba e Litoral Norte, incluindo o município de Ubatuba.
4Conhecendo os habitats dos flebotomíneos e sua importância para a proliferação do vetor, buscou-se um breve diagnóstico da situação geográfica desta região, utilizando técnicas que vem sendo atualmente empregadas na pesquisa de doenças, principalmente aquelas consideradas de saúde pública.
5O Geoprocessamento é um termo amplo, que engloba diversas tecnologias de tratamento e manipulação de dados geográficos, através de programas computacionais. Dentre essas tecnologias, se destacam o Sensoriamento Remoto e os Sistemas de Informações Geográficas – SIG, entre outras (Santos; Pina; Carvalho, 2000).
6O estudo de enfermidades como a LTA a partir da análise da espacialização de dados, utilizando Geoprocessamento e Sensoriamento Remoto, tem sido bastante utilizada (Aparício; Bitencourt, 2003). Habitats dentro e em torno de cidades que abrigam vetores e possíveis reservatórios, bem como as condições das moradias, são fatores passíveis de observação por sensoriamento remoto e que apresentam potencial relação com a Leishmaniose (Corrêa, 2007). Isto proporciona uma visão não só local, como também regional da doença, em função do seu modo de transmissão (Aparício; Bitencourt, 2004). Os vetores que transmitem a LTA vivem, preferencialmente, ao nível do solo, próximos a vegetação em raízes e/ou troncos de árvores, podendo ser encontrados em tocas de animais. Gostam de lugares com pouca luz, úmidos, sem vento e que tenham alimento por perto (Superintendência de Controle de Endemias do Estado de São Paulo, 2007). As importantes mudanças sócio-econômicas e ambientais que vêm ocorrendo atualmente podem contribuir para um maior contato da população com o vetor da LTA, como devastação da mata primitiva e construção de casas próximas a estes locais, em domicílios e peridomicílios (Barros et al., 1985), tanto na área rural quanto em centros urbanos (Carfan et al., 2004; Lemos; Lima; Costa; Magalhães, 2001; Teodoro et al.,1998; Gomes; Neves, 1998).
7O Sensoriamento Remoto é a ciência de adquirir, processar e interpretar imagens e dados correlatos, obtidos por aeronaves ou satélites. O instrumento de sensoriamento remoto (sensor) coleta informações sobre um objeto, área ou fenômeno que esteja dentro do campo de visada do sensor, sem contato físico direto (Jensen, 2009). Os produtos de satélites para estudo de doenças como a Leishmaniose, estão voltados ao mapeamento do habitat dos vetores e da propagação da doença em relação às variáveis ambientais (Corrêa, 2007), além de possibilitar a análise da dinâmica populacional. O uso de sensoriamento remoto também tem sido muito importante para identificar tipos de vegetação e monitorar a variabilidade temporal e espacial das características da vegetação, da expansão urbana e variações climáticas. A partir desses dados, podem ser melhor determinados os habitats dos mosquitos (Miranda; Massa; Marques, 1996).
8O Sistema de Informação Geográfica (SIG) é um sistema computacional usado para entendimento dos fatos e fenômenos que ocorrem no espaço geográfico (Amaral, 2007). O SIG é uma ferramenta de geoprocessamento que permite cruzar informações a respeito da localização dos casos com diferentes temas como uso e ocupação do solo, limite de município, climatologia, hidrografia, etc., possibilitando a investigação de algumas áreas devido à manifestação de maior número de casos naquele local, que poderia ser habitat de reservatórios e vetores da doença (Lima; Minelli; Teodoro; Comunello, 2002).
9Por isso, o presente estudo tem como objetivo utilizar técnicas de geoprocessamento e sensoriamento remoto para compreender a influência de mudanças sócio-ambientais na dinâmica da LTA, através da análise da distribuição espaço-temporal da doença a partir de casos notificados.
10Utilizou-se um Sistema de Informação Geográfica (SIG) que permitiu realizar análises complexas através do armazenamento, recuperação e manipulação de um conjunto de dados obtidos a partir de imagens de satélite, bases de dados sociais e ambientais e dados relativos à LTA, e integrá-los ao criar bancos de dados geográficos. Para isso foram compiladas, consistidas e sistematizadas as informações divididas nos seguintes bancos de dados:
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1 - Dados de casos notificados de LTA ocorridos entre 1998 e 2006, do banco de dados da Vigilância Epidemiológica do município de Ubatuba.
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2 - Dados de cobertura vegetal e uso do solo obtidos através de dados de sensoriamento remoto do satélite Landsat, do banco de dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
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3 - Dados climáticos (temperatura e precipitação) do banco de dados do IAC (Instituto Agronômico do Estado de São Paulo).
-
4 - Dados demográficos e socioeconômicos (população, qualidade de vida, economia, etc.) produzidos pelos censos e pesquisas amostrais do IBGE.
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5 – Dados da localização geográfica (latitude e longitude) do domicílio das pessoas notificadas como portadores de LTA e de observações ambientais obtidas em trabalho de campo.
11Foram utilizados também dados sobre o número, sexo, faixa etária e escolaridade da população atingida pela doença através da Ficha de Investigação preenchida na notificação da LTA. Imagens de satélite abrangendo o município de Ubatuba foram obtidas no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e utilizadas para analisar o uso do solo das áreas próximas aos locais de casos notificados. As imagens utilizadas foram do satélite Landsat-5 que apresenta resolução espacial média de 30 metros, resolução temporal de 16 dias e faixa imageada de 185km, dos anos de 2002, 2004 e 2006. Com o estudo de imagens de satélite tornou-se possível verificar o uso do solo, o tipo da cobertura vegetal, e os limites do domicílio das pessoas com LTA, ou seja, se se encontra próximo a possível habitat do vetor. As imagens de satélite possibilitaram também a análise de vasta região de uma só vez, neste caso, o município inteiro. Foi possível ainda comparar imagens de vários anos diferentes para verificar possíveis modificações que possam ter contribuído na dinâmica da doença. As imagens escolhidas foram as que apresentaram menor cobertura de nuvens e que estavam disponíveis no banco de dados do INPE.
12Todos estes dados foram utilizados para tornar possível identificar os indicadores ambientais, sociais e econômicos que possivelmente influenciam na dinâmica da LTA na região.
13O local de estudo foi a região do Litoral Norte Paulista, mais especificamente o município de Ubatuba (Figura 1). Situado a leste do Estado de São Paulo (23º75’00” S e 45º04’00” W), o município possui área territorial de 712km² e ocupa a maior área do litoral paulista. Sua topografia é montanhosa e abrange largos trechos da Serra do Mar. Do ponto de vista ambiental, é a região mais preservada, apresentando ainda vastas extensões de Mata Atlântica. O turismo veranista é seu principal fator de desenvolvimento e de alteração da paisagem.
Figura 1: Localização do município de Ubatuba
14Através de um banco de dados geográfico foi possível armazenar e cruzar informações variadas, principalmente aquelas de natureza gráfica, como vetores e imagens. Os vetores foram utilizados para delimitar a área de estudo (município e bairros); as imagens com variação temporal, depois de processadas, mostraram a alteração na paisagem ocorrida no município. O encontro destas informações foi possível devido aos recursos de georreferenciamento que posiciona vetores e imagens numa mesma escala geográfica.
15Para analisar os dados de casos notificados da LTA e relacioná-los com fatores sócio-ambientais, foram utilizadas técnicas de análise espacial e Sensoriamento Remoto através do uso do Geoprocessamento. Com a utilização de programas de computador específicos, como o Arcgis 9.1, os casos foram espacializados de acordo com a localização geográfica do endereço de cada caso notificado. Esta localização foi obtida através das coordenadas geográficas disponíveis no Google Earth, em mapas de zoneamento urbano obtidos na Secretaria de Arquitetura e Urbanismo de Ubatuba, e em trabalho de campo com o uso do GPS (Sistema de Posicionamento Global).
16As imagens de satélite foram classificadas em outro programa de computador, o ENVI 4.2. Foram identificadas áreas urbanizadas e áreas de mata, e detectadas possíveis alterações na vegetação no caso de ocorrência de desmatamento ou regeneração de áreas desmatadas. Também foi observada e mensurada a distância entre os domicílios onde há registro de casos de LTA e a mata, para indicar possível influência do entorno da residência na proliferação da doença.
17Para tanto foi feita a classificação do tipo supervisionada na qual o classificador orienta sua busca de classes a partir de amostras de treinamento feitas anteriormente pelo analista. Este tipo de classificação é a mais utilizada na análise quantitativa dos dados de sensoriamento remoto (Envi, 2009). O método utilizado foi o da Máxima Verossimilhança (Maxver) que é o método de classificação pixel a pixel. Dados estatísticos foram obtidos através deste processo de classificação das imagens.
18Durante o período em estudo, 183 casos foram notificados ao Ministério da Saúde pelo município de Ubatuba através do SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Desde 1998 até 2002 Ubatuba apresentava poucos casos notificados, sendo no ano de 2003 o maior registro para o período em estudo: 59 casos que foram diminuindo nos anos seguintes. Em todos estes anos, os indivíduos do sexo masculino foram os mais atingidos pela doença, embora esta diferença tenha diminuído nos anos seguintes (Figura 2).
Figura 2: Total de casos notificados de LTA por sexo em Ubatuba
Fonte: Ficha de investigação – SINAN
19A distribuição da LTA se apresenta heterogênea quando abordada sob o aspecto da faixa etária. Ubatuba apresentou número significativo de casos em crianças com idade escolar e também entre os maiores de 60 anos. Mas a população mais atingida foi a economicamente ativa, ou seja, com idade entre 15 e 49 anos.
Apesar da LTA acometer mais os indivíduos homens e adultos, mulheres e crianças também são atingidas com freqüência pela doença após contato com áreas de domínio do mosquito vetor (L. intermedia), que faz a endemia perder seu caráter de transmissão em região de floresta - ligada a atividades ocupacionais - para predominar nas residências situadas próximas às encostas dos morros, atingindo indivíduos de ambos os sexos e de todos os grupos etários (Ministério da Saúde, 2000).
20Entre a população atingida pela LTA, a escolaridade parece ser um fator que seleciona os acometidos pela doença. Dos indivíduos que tiveram LTA entre 1998 e 2006, 70% não tem o Ensino Fundamental completo e apenas 12% concluiu o Ensino Médio, grau máximo de instrução observado entre os indivíduos cujos casos foram notificados como LTA. Vários pacientes não indicaram o grau de escolaridade na ficha de investigação do SINAN, sendo estes 6% do total de casos. Este dado começa a mostrar o perfil da população atingida por essa doença.
Conforme os dados do Censo Demográfico de 2000 realizado pelo IBGE, das 31.297 pessoas com rendimento mensal em Ubatuba, 43% recebiam até dois salários mínimos. Estes valores mostram a situação econômica vigente em 2000 no município quando a população total era de 66.861 habitantes.
21De acordo com Vanzeli e Kanamura (2007) os pacientes infectados com LTA no município de Ubatuba em 2003 escolheram seus locais de moradia motivados pela situação econômica. Estas informações confirmam o que o Manual de Controle da LTA (2000) elaborado pelo Ministério da Saúde constatou: que as populações atingidas são, em geral, de baixo padrão sócio-econômico.
22Dos casos notificados com LTA em Ubatuba, 97% foram cadastrados como autóctones, isto é, foram adquiridos no próprio município. Em 68% destes casos, os pacientes indicaram o próprio bairro como local provável de infecção. Este fato indica que a contaminação pode ter ocorrido na residência do paciente ou próximo a ela. Com base nisto, buscou-se analisar então o local destas moradias e seu entorno para verificar se o local é propício à manifestação dos transmissores da doença. Introduzir variáveis ambientais aos modelos epidemiológicos é fundamental, dada a importância das condições ambientais ao desenvolvimento dos parasitas e vetores das endemias (Correia; Tassinari; Carvalho; Werneck, 2005).
23O município de Ubatuba apresentou um aumento populacional significativo ao longo dos anos em estudo. Cercada por floresta e mar, o crescimento da cidade fez a periferia urbana se aproximar da mata, local de grande número de insetos devido às condições favoráveis para sua proliferação. Com a espacialização dos casos notificados segundo o endereço residencial dos pacientes, localizados através de coordenada geográfica, foi observada a distribuição da doença em todo o município, desde a área central e mais urbanizada até o litoral, de norte à sul do município (Figura 3).
Figura 3: Distribuição dos casos notificados de LTA em Ubatuba
24Esta mesma distribuição pôde ser analisada temporalmente, onde foi observado não só o aumento do número de casos, mas também o deslocamento da doença ao longo dos anos. É notável que, a partir de 2003, a representação dos casos vai se direcionando da região norte para a região oeste do município e migrando cada vez mais para áreas com vegetação densa (Figura 4).
Figura 4: Distribuição dos casos notificados de LTA por ano em Ubatuba
25Analisando a figura 4 também é possível observar que a partir de 2003 surgiram vários casos notificados na região central e urbana de Ubatuba. Naquele ano o maior número de casos ocorreu ainda na região norte do município. Isto se deve ao fato de que várias pessoas na mesma moradia foram acometidas pela doença, registrando o mesmo local de residência para mais de um caso. Também houve registro de moradias muito próximas com casos da doença. Porém, já a partir de 2004 a expansão da doença passou a ser mais expressiva na região oeste, com número de casos notificados cada vez maior nas áreas próximas ou dentro de vegetação densa. Na região norte, os bairros (Figura 5) mais atingidos pela LTA foram Ubatumirim, Almada e Picinguaba, principalmente no ano de 2003. Nos anos seguintes o número de casos diminuiu nestes bairros. Na região oeste, Ipiranguinha, Horto e Sumidouro são os bairros que apresentaram maior número de casos notificados da LTA desde 2004.
Figura 5: Localização dos bairros com maior número de casos notificados de LTA entre 1998 e 2006
26Com a espacialização dos casos de LTA observou-se que estes se distribuíam em duas regiões principais e distintas: norte, nos casos notificados em 2003 e oeste, nos casos notificados a partir de 2004. A região norte (Figura 6) apresenta área de floresta mais preservada com menor número de moradias quando comparado com a região oeste (Figura 7), que também apresenta área de floresta próxima das casas, porém com expansão imobiliária. Sugere-se que esta expansão imobiliária associada ao aumento da população do município possa ter contribuído para o deslocamento dos casos notificados de LTA da região norte para a região oeste. Apesar dessas regiões mostrarem características ambientais diferentes, ambas apresentam condições favoráveis para a habitação do vetor. Segundo o Ministério da Saúde (2000), tem-se discutido a possível adaptação de vetores e parasitas a ambientes modificados e a reservatórios.
Figura 6: Região mais atingida pela LTA em 2003 destacando o uso do solo
Fonte: Google Earth, 2008
Figura 7: Região mais atingida pela LTA a partir de 2004 destacando o uso do solo
Fonte: Google Earth, 2008
27Através da classificação realizada nas imagens do satélite Landsat, foi observado que mesmo em várias regiões do município houve aumento da área antropizada ao longo dos anos. Na figura 8 é possível observar a perda da vegetação densa durante o período de aumento do número de casos de LTA. Em 2002, a área antropizada ocupava 34,83 km², isto é, 5% do total do município. Em 2004, este valor aumentou para 49,95 km² abrangendo 7% de Ubatuba. Algumas dessas áreas foram regeneradas até o ano de 2006 quando houve aumento da vegetação com relação ao ano de 2004. Por isso, a área antropizada em 2006 diminuiu e passou a ocupar 47,39 km², ou seja, 6,8% da área territorial de Ubatuba. A área regenerada foi muito menor num período de dois anos (0,2% de 2004 a 2006) do que a área desmatada no mesmo período (2% de 2002 a 2004). Este dado sugere uma relação entre o desmatamento e o aumento no número de casos da doença. Lemos et al. (2001) encontrou maior presença de flebótomos em ambiente alterado do que em ambiente florestal, principalmente da espécie L. intermedia.
28A ocupação do solo para fins de implantação de moradias quando não é planejada, favorece a formação de núcleos residenciais muito próximos das matas, permitindo a existência de manchas residuais de mata entre as moradias (Brito et al., 2002). E isto pôde ser observado através das imagens classificadas sob diferentes escalas temporais. Segundo o Ministério da Saúde (2007), a transmissão da LTA ocorre em áreas de floresta preservada ou com alguma alteração, onde haja presença humana. Um dos padrões de transmissão da doença está relacionado ao processo migratório que ocupa encostas da Serra do Mar, área protegida de Mata Atlântica.
Figura 8: Imagens classificadas do município de Ubatuba
29Esse desmatamento é devido, em grande parte, ao aumento do número de moradias que estão adentrando a mata. Domicílios estão sendo construídos em locais onde antes só havia floresta, e algumas destas casas não tem água tratada e canalizada nem infra-estrutura sanitária, indicando o baixo padrão econômico desta população. Por isso, a distância entre a residência do indivíduo cujo caso foi notificado como LTA e a vegetação densa mais próxima foi mensurada através dos recursos do software para Geoprocessamento sobre as imagens de satélite. O resultado encontrado para todos os casos notificados no período de 1998 a 2006 está na tabela 1.
Tabela 1 – Distância entre moradias de pacientes com LTA e a borda da mata
Distância
|
Nº casos
|
Porcentagem
|
até 50 metros
|
112
|
61%
|
até 100 metros
|
31
|
17%
|
acima de 100 metros
|
40
|
22%
|
Total
|
183
|
100%
|
30Segundo Aparício (2001), a transmissão ocorre primeiramente naqueles locais próximos aos habitats naturais dos mosquitos, que são os remanescentes de florestas, e depois em locais onde os mosquitos já se adaptaram ao ambiente peridomiciliar. Num estudo já realizado na cidade de Ubatuba, Vanzelli (2006) constatou que para 45% dos casos registrados em 2003, a distância entre as moradias e a borda da mata era menor que 10 metros e para 86,5 % essa distância não ultrapassava 50 metros, indicando que a proximidade com a mata pode estar relacionada com a aquisição da doença. Nesse trabalho, o resultado encontrado para todos os casos notificados no período de 1998 a 2006 mostra que em 61% dos casos, as moradias ficam a uma distância máxima de até 50 metros de algum fragmento de mata. Esses valores vêm reforçar a importância da proximidade com a vegetação densa, habitat de reservatórios e vetores, para a transmissão da LTA. Segundo Vanzeli e Kanamura (2007), a pequena distância observada entre a borda da mata e a maioria das residências dos infectados em Ubatuba em 2003, associada ou não a uma ação antrópica ao meio ambiente, foi identificada como um dos fatores importantes para a infecção de LTA.
31Através da contagem da população realizada pelo IBGE, nota-se um aumento maior que 36% no número de pessoas residindo em Ubatuba entre os anos de 1996 a 2007, período que abrange os anos deste estudo. Com este aumento populacional, muitas pessoas foram morar próximo às matas e devido aos escassos recursos financeiros desta população, ela entra constantemente na mata para retirar madeiras e outros produtos florestais, além de não adotar medidas de prevenção como uso constante de repelente.
32A fim de melhor observar e compreender a dinâmica da LTA em Ubatuba foi realizado também um trabalho de campo, onde foram obtidos dados da localização geográfica de alguns casos de LTA na região oeste do município e feitas observações ambientais, principalmente no entorno dos domicílios com casos notificados de LTA e em locais próximos a eles.Observou-se que muitas moradias num dos bairros mais atingidos pela doença se encontravam inseridas na mata, com vegetação densa ao redor. Observou-se também a precariedade das residências, a falta de portas e janelas com telas de proteção contra insetos o que provavelmente favorece a invasão vetorial, especialmente no período noturno quando os mosquitos são atraídos pela luminosidade no interior da residência (Brito et al., 2002; Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, 2001). Também foi observado que o desmatamento para novas construções imobiliárias ilegais acontece rapidamente e sem controle no local, pois não há demarcações de lotes nem infra-estrutura (água, luz, esgoto) numa região de difícil acesso. Tudo indica que mais pessoas estão se deslocando para esta área que já registrou grande número de casos da doença.
33Nas figuras 9 e 10, podem ser observadas as condições ambientais constatadas no trabalho de campo realizado no bairro do Horto, região oeste de Ubatuba.
Figura 9: Moradia construída dentro da mata na região oeste de Ubatuba
Fonte: Ana Elisa Pereira da Silva
Figura 10: Mata da região oeste de Ubatuba com casa construída ao fundo
Fonte: Ana Elisa Pereira da Silva
34A análise do regime de chuvas no município de Ubatuba para o período de 1998 a 2006 mostrou uma sazonalidade quanto à estação do ano, com maior volume de precipitação no verão e menor volume no inverno. Normalmente, a estação chuvosa é a que apresenta maior concentração de insetos em geral, inclusive flebotomíneos, devido ao aumento da umidade do ar favorável para sua proliferação. Porém, Ubatuba apresentou maior notificação de casos na estação seca e no final e início da estação chuvosa (Figura 11). Segundo Martins et al. (2004) os casos registrados no período da estiagem podem ser remanescentes de infecções transmitidas no final do período chuvoso. Desta forma, deve-se levar em conta o tempo de desenvolvimento do inseto (cerca de 36 dias) e o período de incubação da doença, isto é, o tempo decorrido entre a picada do vetor e a manifestação da LTA com o aparecimento de lesões na pele e/ou mucosa, que pode variar de 2 semanas a 3 meses.
Figura 11: Média mensal de precipitação e casos de LTA entre 1998 e 2006
Fonte: Instituto Agronômico do estado de São Paulo (IAC)
35O ano de 2003, quando ocorreu o pico da doença em Ubatuba, foi mais seco que de costume, com chuvas concentradas nos primeiros meses do ano. Aparentemente, estas variações pluviométricas não influenciaram diretamente este foco epidêmico da doença, apesar de fornecerem as condições favoráveis para que a população de insetos pudesse manter-se presente e atuante no município. Vanzeli (2006) também não encontrou relação concreta entre os índices de precipitação pluvial e a ocorrência de LTA em Ubatuba no ano de 2003.
36Para verificar se realmente há ou não uma relação direta de influência da variabilidade pluviométrica sobre o pico epidêmico da LTA, seria necessário analisar uma série histórica maior de casos de LTA, observando-se o que ocorreu durante outros picos epidêmicos da doença, para assim fazer uma comparação entre eles.
37As temperaturas encontradas em Ubatuba assim como em todo o Litoral Norte Paulista são altas, com variações entre a temperatura mínima e máxima acompanhando as variações das estações do ano: primavera, verão, outono e inverno. Nos anos entre 1998 e 2006, as variações aconteceram entre 13ºC (menor temperatura mínima mensal para o período) e 33,4ºC (maior temperatura máxima mensal para o período). No ano de 2003, o foco epidêmico parece não ter sido influenciado pelas temperaturas que mantiveram as médias encontradas nos anos anteriores, onde não houve elevado número de casos notificados de LTA. Porém, os valores de temperatura registrados para aquele ano foram significativos para que as condições favoráveis à proliferação do flebotomíneo fossem mantidas. O período com registro de maior volume de precipitação (estação chuvosa) foi também o período de temperaturas mais elevadas em Ubatuba, para todos os anos em estudo.
38Técnicas de Geoprocessamento e Sensoriamento remoto auxiliaram na investigação epidemiológica da Leishmaniose Tegumentar Americana no município de Ubatuba – SP, propiciando a análise da distribuição da doença e a constatação de alteração ambiental, tanto a nível espacial como temporal, além do cruzamento destes dados com os casos notificados de LTA. O pico epidêmico de casos da doença e a dinâmica do uso do solo desta região de forte atração turística despertaram o interesse para desenvolver este estudo. A importância de se conhecer e tentar controlar os casos autóctones de Ubatuba (97% do total de casos estudados) está em encontrar meios para evitar que, com o aumento populacional em decorrência do turismo, principalmente nos meses de verão onde as condições climáticas são mais favoráveis para a proliferação do inseto vetor da LTA, os turistas sejam infectados e a doença seja disseminada para outros municípios.
39A projeção da população flutuante de Ubatuba para o ano 2000 foi de 85.616 pessoas, número maior que a população residente no município neste mesmo ano (Godinho, 2000). Normalmente, no período em que os turistas permanecem no município ainda não há manifestação da doença, pois o período de incubação, que corresponde ao tempo decorrido entre a picada do mosquito e o aparecimento da lesão inicial, é em média de dois meses, variando de algumas semanas a dois anos (Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo, 2004). Por este motivo, caso algum turista tenha adquirido a LTA em Ubatuba, só vai perceber e procurar uma unidade de saúde quando estiver em seu município de origem, onde provavelmente será feita a notificação da doença.
40Os resultados encontrados mostraram importante relação entre o uso do solo e a localização da doença, além da proximidade das moradias com a mata. O fator social também parece estar relacionado já que, os preços das moradias são mais baixos na periferia urbana próximo às matas, onde há grande incidência do inseto vetor da LTA. O deslocamento da doença também parece sofrer influência demográfica e econômica, visto que a escolha do local da moradia muitas vezes é motivada pela situação econômica.
41O clima quente e úmido em Ubatuba parece ser favorável ao ciclo de vida dos flebotomíneos. Porém, não foi encontrada relação direta da variabilidade climática estudada com o aumento de casos registrados de LTA nos anos de estudo. Quanto à alteração da cobertura vegetal, esta pode ter fornecido condições satisfatórias para o aumento do número de casos, principalmente na região oeste, devido ao aumento da área antropizada entre os anos de 2002 e 2004, favorecendo o contato dos flebotomíneos com a população no momento do desmatamento e/ou da construção de moradias nas bordas e dentro das matas.
42Assim, os resultados desse trabalho ressaltam a necessidade de um maior controle da doença, visando particularmente a expansão imobiliária e turística do município, destacando o ecoturismo, o qual geralmente é baseado no contato de pessoas com áreas ambientalmente preservadas e que também são propícias ao desenvolvimento do flebotomíneo. Para tanto, sugere-se uma nova abordagem, com base na ficha de notificação de LTA de outros municípios, principalmente do estado de São Paulo, para verificar a presença ou não de casos que foram adquiridos por turistas em Ubatuba e onde se localizaram geograficamente enquanto estiveram no município. Esta nova informação pode mostrar as características da população flutuante, atingida pela doença.
43Esta pesquisa buscou também evidenciar a localização geográfica e o perfil da população residente em Ubatuba com maior vulnerabilidade e que está sendo atingida pela LTA. Além disso, os resultados ressaltam que através do uso das geotecnologias e a partir da integração de diferentes tipos de variáveis é possível realizar análises sistêmicas de doenças consideradas de Saúde Pública, destacando-se as doenças vetoriais, entre elas, a LTA, o que contribui para uma melhor interpretação dos fenômenos epidemiológicos destas doenças.