1No velho debate entre Rosa Luxemburgo e Lênin havia duas dimensões em disputa simultaneamente, sem, talvez, que seus próprios defensores tivessem muita clareza sobre isso. Além da disputa sobre a necessidade de exploração de mercados não-capitalistas como recurso indissociável da acumulação de capital, defendida por Rosa Luxemburgo, a noção de “mercados externos” envolvia uma condição inalienavelmente espacial.
2A preocupação com o desenvolvimento e a apresentação do conceito de imperialismo perseguiu mais de perto Lênin do que Rosa Luxemburgo. Rosa deixou apenas algumas linhas dedicadas mais explicitamente ao tema no início de seu livro (A Acumulação do Capital), anunciando aí “que este trabalho, além de apresentar um interesse puramente teórico, também adquire importância para a luta prática na qual nos empenhamos contra o imperialismo” (Luxemburgo, 1985, p. 03). Contudo, não dedicou novos esforços durante o restante do livro para reforçar o vínculo com uma teoria do imperialismo. Já Lênin (1979), em Imperialismo: fase superior do capitalismo, faz do tema o problema central a partir do qual se empenha no desenvolvimento das categorias econômicas ali apresentadas.
3A diferença com a qual esse mesmo assunto toma as obras de Lênin e Luxemburgo tem a ver com a forma e os aspectos espaciais que o processo econômico assume na visão de cada autor. Ou melhor, trata-se de uma diferença que parte da valorização de processos e dinâmicas espaciais em níveis de relações absolutamente distintos. Tanto para Lênin quanto para Luxemburgo o comportamento espacial da acumulação capitalista assume uma dinâmica territorialmente expansionista, e isso está na base da interpretação do imperialismo para ambos. No entanto, para Lênin, a expansão e a projeção externa do capital se operam necessariamente sobre as delimitações territoriais consagradas pelos acordos interestatais. Para Lênin (1979), o processo se dá na escala internacional, numa articulação tributária da existência simultânea de unidades político-territoriais mutuamente excludentes por definição. Os eventos analisados nessa escala são definidos pelos limites do território nacional, ou seja, na relação entre países como unidades políticas de expressão essencialmente territorial. A noção de mercado externo presente nessa interpretação envolve o reconhecimento dos limites territoriais como elementos centrais da exploração capitalista.
4Para Rosa Luxemburgo, contrariamente, a expansão capitalista recebe seu impulso primordial de uma indissociável compulsão capitalista sobre territórios de formação não-capitalista. A noção de “mercado externo” para Luxemburgo não é, como para Lênin, aquela ligada a uma definição política do território. Os mercados externos de Luxemburgo não envolvem necessariamente relações interestatais. Para Luxemburgo, “mercado externo é para o capital o meio social não-capitalista que absorve seus produtos e lhe fornece elementos produtivos e força de trabalho” (Luxemburgo, 1985, p. 251).
Desse ponto de vista econômico, a Alemanha e a Inglaterra constituem, em sua troca recíproca, uma para a outra, mercados capitalistas internos, enquanto as trocas entre a indústria alemã e seus produtores ou consumidores camponeses alemães representam, para o capital alemão, relações de mercado externo (Luxemburgo, 1985, p. 251).
5Nesse sentido, a dinâmica espacial capitalista presente na interpretação de Luxemburgo envolve um movimento de avanço sobre áreas que respeitam e estão estruturadas a partir de relações e lógicas sociais distintas. Enquanto para Lênin os limites político-territoriais funcionam como o elemento espacial preponderante nas relações capitalistas, na teoria de Rosa Luxemburgo a dinâmica de fronteira, a zona de contato, emerge com maior relevância. Essas análises, lidas dessa forma, são mais complementares do que concorrentes. Não se trata de escolher entre uma ou outra interpretação das causas seja do imperialismo ou do comportamento geográfico do capital. Mas resta ainda um problema a ser resolvido.
6Se os limites territoriais são para Lênin o fator de definição que recai sobre a exploração dos mercados externos, para Luxemburgo a fronteira é o elemento mais significativo, pois demarca não as relações de comércio entre Estados nacionais, mas a zona de contato e intersecção entre sistemas ou lógicas distintas – no interior, muitas vezes, das mesmas unidades político-territoriais. Nesse último caso, são essas relações que são interpretadas como condição de reprodução do capital. Para Luxemburgo, é somente com a exploração e o avanço de formações capitalistas sobre territórios que respeitam outro repertório da reprodução social que são garantidos os meios da acumulação de capital. Essa fronteira, no entanto, pelo que se defende aqui, não deve ser resultado único do contato com o mundo exterior, extracapitalista. A expansão capitalista, por meio do avanço destrutivo sobre áreas que devem abastecer os novos ciclos de acumulação não estão restritos à exploração de territórios não-capitalistas. O avanço da fronteira capitalista não se dá somente de forma a promover uma expansão geográfica em termos absolutos, por meio da exploração de suas próprias fronteiras externas. A forma do processo, descrita por Rosa Luxemburgo, precisa ser completada.
7É importante destacar dois significados ou campos de referência diferentes assumidos no uso atual da expressão “limite”. Geralmente, em ambos os casos, a noção de limite carrega consigo algo do campo semântico no qual residem também os significados de extremidade, de descontinuidade e de término. Primeiramente, o uso do termo serve para referenciar mais diretamente uma marcação ou uma linha que resultam numa determinada configuração espacial, a partir da qual uma área, região ou território ganham seus contornos. Essa forma de emprego reforça os significados originais da palavra. “A palavra limite, de origem latina, foi criada para designar o fim daquilo que mantém coesa uma unidade político-territorial” (Machado, 1998). Nesse caso, circunscreve-se o lugar, a região ou o território e este ganha suas definições, ou mais especificamente seus limites, no contato com o exterior. É nesse sentido que a palavra assume um conteúdo propriamente espacial e passa a fazer parte do vocabulário dos geógrafos, militares e estadistas preocupados com a definição e edificação da soberania.
8Num outro universo de significação, a noção de limite pode ser aplicada para expressar a exaustão, a impossibilidade e o fim de um processo ou atividade. Remetendo-se mais especificamente, nesse caso, ao funcionamento de um corpo social ou natural no tempo, o uso da noção de limite faz referência à duração. Remetendo-se a suas próprias possibilidades intrínsecas, o uso da expressão limite aparece ligada mais ao funcionamento lógico. Dessa forma, a palavra limite também demarca sincronicamente o ponto exato de sua morte – morte no tempo – ou a impossibilidade estrutural do prosseguimento de determinada conjunção.
9De qualquer forma, em ambas as possibilidades de emprego da palavra limite, ela se volta para o interior do corpo ao qual faz menção. O limite diz respeito ao conjunto cercado entre os contornos que se remetem a uma identidade interna, e portanto ele é voltado para dentro, seja em relação ao território ou às possibilidades de definição e continuidade de determinado arranjo social – do que se entende por capitalismo, por exemplo. Ele não faz menção ao que “não é”, mas somente ao que termina ou encontra o seu fim num determinado ponto ou linha – no espaço, no tempo ou a partir de uma configuração interna (lógica).
10Diferente, no entanto, é o sentido que foi atribuído à noção de fronteira. “A fronteira está orientada ‘para fora’ (forças centrífugas), enquanto os limites estão orientados ‘para dentro’ (forças centrípetas)” (Machado, 1998). O sentido mais forte do termo, entretanto, e o campo no qual essa discussão assumiu um contorno conceitual mais preciso, seja no campo jurídico ou no da ciência geográfica, se remete às categorias espaciais e, mais especificamente, à fenômenos e definições que ganham existência no território. Isso se deveu em grande medida ao comportamento, à dinâmica e ao modus operandi inseparáveis do Estado territorial moderno. Nesse sentido, segundo Lia Osório Machado,
11“A gênese da noção de ‘fronteira’ é diferente e muito mais antiga daquela de limite internacional. A literatura considera o Império Romano e o Império da China como casos paradigmáticos na investigação das origens da concepção de fronteira e da evolução de seu significado no tempo. Os romanos, por exemplo, não tinham interesse em estabelecer limites aos seus domínios; no entanto, criaram um sistema administrativo e defensivo de fronteira (período dos Augustos), primordialmente para dificultar a expansão dos povos bárbaros nas fímbrias do Império” (Machado, sem data).
12Stephen Jones aponta com clareza para uma dinâmica, própria da fronteira, que se desenha em contraposição ao imobilismo sugerido pelos limites, tais como são concebidos atualmente pelo moderno sistema interestatal (ver Arrighi, 1996; e Machado, sem data). A confusão recorrente entre limites e fronteiras guarda armadilhas para o pensamento, nem sempre visíveis. A legalidade, presente na concepção atual de “limite”, a qual recorre o Estado e o moderno sistema interestatal para a definição territorial dos poderes concorrentes, foi extraída da esfera privada de regulação da propriedade, mais especificamente do Direito Civil romano. “A ager publicus ou domínio público não tinha limites; terminava em algum lugar mas o fim não era especificado por nenhuma linha legalmente relevante (a expressão usada era fines esse)” (Machado, sem data). Em sua concepção atual, disseminada pelo uso do léxico estatal-legalista, “o limite não está ligado à presença de gente, sendo uma abstração, generalizada na lei nacional” (Machado, 1998). A indefinição legal da situação de “fronteira”, em contrapartida, implica frequentemente num tipo de mobilidade congênita, contrariando as tendências imobilizadoras impostas pelo limite. Nesse sentido, o caráter extrovertido da situação de fronteira sugere uma ampliação das possibilidades, uma tendência à expansão (do corpo lógico, social ou ecológico) que ignora as definições impostas pelos limites internos, muitas vezes ultrapassando e desrespeitando as definições legais dos poderes jurídicos e regulamentadores do Estado, justamente enquanto a conformação introvertida do limite sugere a restrição e o contorno do universo em questão.
13“A palavra fronteira implica, historicamente, aquilo que sua etimologia sugere – o que está na frente. A origem histórica da palavra mostra que seu uso não estava associado a nenhum conceito legal e que não era um conceito essencialmente político ou intelectual. Nasceu como um fenômeno da vida social espontânea, indicando a margem do mundo habitado. Na medida que os padrões de civilização foram se desenvolvendo acima do nível de subsistência, as fronteiras entre ecúmenos tornaram-se lugares de comunicação e, por conseguinte, adquiriram um caráter político. Mesmo assim, não tinha a conotação de uma área ou zona que marcasse o limite definido ou fim de uma unidade política. Na realidade, o sentido de fronteira era não de fim mas do começo do Estado, o lugar para onde ele tendia a se expandir” (Machado, 1998).
14Nesse sentido a fronteira faz referência também ao que é externo, ao contrário do limite, que permanece voltado para o seu interior. Ela se projeta como zona de comunicação e incorporação mútua entre o mundo externo e o interior, mas, simultaneamente, dá ganho de causa ao segundo sobre o primeiro, representadas aí todas as forças expansionistas das sociedades dinâmicas de fronteira.
15Podemos pensar, a partir dessa noção, no sentido que a fronteira assumiu no tratamento de questões relacionadas à formação territorial nacional dos países colonizados por ação do expansionismo europeu. Frederick Jackson Turner foi um dos primeiros a empregar e desenvolver com clareza o significado da fronteira na história americana. Esse historiador norte-americano, de Wisconsin, escreveu um de seus principais trabalhos sobre o tema já no fim do século XIX. Em sua abordagem, a fronteira aparecia como zona de interpenetração e conflito, mas também, e sobretudo, como lugar desprovido da imobilidade típica experienciada nos limites territoriais interestatais da velha e consolidada Europa. Em The Significance of the Frontier in American History, Turner atribui ao espírito de fronteira, dotado por natureza de um impulso tipicamente expansionista, a formação da identidade nacional americana. Para ele, estaria nessa configuração territorial dinâmica toda a explicação para a singularidade da formação americana (Turner, 1976).
16No Brasil, o tema não foi menos importante. Não bastasse a infinidade de trabalhos desenvolvidos por geógrafos – preocupados com a dinâmica, formação e especificidade da situação de fronteiras móveis em território nacional –, a afirmação de uma certa positividade no pensamento sobre as instituições brasileiras se consolida com uma reflexão sobre o papel dessa zona territorial de contato na formação nacional. O esforço de compreensão da realidade brasileira que se inicia sob a temática da “miscigenação” se desenvolve e ganha expressão mais concreta nos apontamentos sobre a potência explicativa da situação de fronteira, interiorizada dentro dos limites do território nacional. Sérgio Buarque de Holanda, quando retorna dos Estados Unidos na década de 1940, assume em sua produção a necessidade de um estudo profundo sobre o papel da fronteira e da mobilidade territorial das ocupações humanas na América. Diferenciando-se da tônica adotada em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque escreve Caminhos & Fronteiras e Monções, como obras que resultam das novas preocupações que giram em torno dessas questões (Wegener, 1998).
17Apesar da existência material e concreta da fronteira assumir uma dimensão inquestionável e evidentemente vinculada ao espaço, para ambos – Sérgio e Turner –, a fronteira sempre foi mais do que uma manifestação ou uma forma espacial stricto sensu. Para eles, a fronteira é a zona de contato entre mundos diferentes, entre formações sociais particulares e lógicas distintas – mas não necessariamente opostas. Analisado desse ponto de vista, o fenômeno da fronteira se coloca como algo que se situa para além dos problemas que se definiram sob a ótica da Geografia Política, e põe ênfase numa dinâmica espacial que supera o processo das delimitações territoriais. Nesse sentido, de acordo com Sérgio Buarque de Holanda, “pode-se mesmo dizer que, como o Oeste do historiador Frederick Jackson Turner, a América é antes uma forma de sociedade do que uma área geográfica” (Holanda, 1978, p. 27).
- 1 Nesse sentido, o trabalho da economista Maria Heloisa Lenz (2006), sobre O Papel de La Conquista d (...)
18Contudo, as interpretações sobre a dinâmica espacial materializada na fronteira não permaneceu restrita à temática da formação nacional ou da cultura de determinados povos ou regiões. Não foi somente a Geografia Política que perdeu campo no debate sobre o significado da fronteira. Muitas vezes, a fronteira foi tratada como objeto de estudo da ciência econômica1. Nesse campo, no entanto, ela foi vista com muito maior freqüência como fenômeno extra-nacional ou de extrapolação dos limites territoriais dos estados nacionais. As fronteiras econômicas foram, por isso, observadas quase que exclusivamente como fenômenos que definiam as relações entre estados e territórios mutuamente excludentes; como um problema que se restringia ao campo das relações econômicas internacionais. Assim tratou do problema, por exemplo, Lenin (1979). A temática do imperialismo se edifica em função dessa visada sobre a questão. É por isso, também, que há uma predominância desse ponto de vista em O Novo Imperialismo, de David Harvey.
19Mesmo Ratzel, consagrado pelos trabalhos realizados no campo da Geografia Política não pôde deixar de observar fenômenos com uma íntima relação com o desenvolvimento das forças produtivas. “A despeito das inúmeras críticas dirigidas ao geógrafo alemão em vida e depois de morto (...), Ratzel conseguiu captar na noção de ‘espaço vital’, e na metáfora do Estado como ‘organismo vivo’, os movimentos de expansão territorial do sistema capitalista no século XIX” (Machado, sem data). No entanto, ele ainda permaneceu no campo de uma dimensão espacial estreita, reduzida ao território sob domínio – ou necessário – para a manutenção dos poderes do Estado. A fixação da escala em que o autor pôde perceber essa dinâmica serviu como um fator limitante de sua teoria.
20Muito do esforço e da grande importância de Rosa Luxemburgo, no entanto, se deve ao empreendimento na tentativa de demonstrar que “a fronteira entre ‘interno’ e ‘externo’ (...) é socioeconômica, computando-se como ‘interno’ tudo aquilo que se encerra dentro do sistema capitalista de produção” (Miglioli, 2004, p. 196). Desse modo, Rosa Luxemburgo libertava a fronteira e todo o debate entre relações internas e externas da escala exclusiva da geopolítica internacional. Assim, a autora passou a valorizar o reconhecimento de que as estratégias de reprodução do capital atuam numa escala fluida e mutante, apreensível momentaneamente, somente antes de mudar, em seguida, para um outro registro espacial. Esse sentido, presente em toda A Acumulação do Capital, pode ser lido também na afirmação de que “o mercado interno e o mercado externo” devem aparecer “não como conceitos de Geografia Política, mas como conceitos de Economia Social” (Luxemburgo, 1985, p. 251). Essa foi parte da briga que Luxemburgo comprou contra Lenin, Hilferding e alguns dos marxistas russos do período.
21Evidentemente, não se está aqui discutindo a necessidade do fenômeno ter ou não uma existência espacial – indiscutível, inclusive do ponto de vista dos autores em questão –, mas se ele será aprisionado numa dimensão que cabe única e exclusivamente ao domínio legitimado pela esfera estatal mais ampla. Qualquer padrão espacial de reprodução do capital único e imutável é uma ficção abstrata. As estratégias reprodutivas adotadas pelo capital não estão restritas a considerar exclusivamente as unidades territoriais definidas no campo dos acordos interestatais. Os limites territoriais são, nesse sentido, uma referência externa e, frequentemente, ignorada (transposta) pelas dinâmicas expansionistas de fronteira – a não ser quando a atuação do Estado venha a reforçar a presença de tais limites na vida econômica nacional, como, por exemplo, controlando as taxas de cambio, impondo ou liberando tarifas alfandegárias, taxando o fluxo de capitais ou criando mecanismos de atração, definindo o piso salarial etc., e mesmo assim, a presença de tais limites não será absoluta.
22A assim chamada “tese da fronteira”, de Frederick Jackson Turner, descrevia a situação na fronteira Oeste americana. Turner encontrou aí a configuração espacial original da sociedade americana, e, com isso, acreditou ter encontrado o germe da formação de um povo e de uma identidade nacional próprias. Isso se explica, para o autor, pela conjunção de dois fatores típicos da situação de fronteira: o “isolamento” e o “primitivismo” que se encontram nas zonas de ocupação recente. Para Turner, foi somente o avanço, decorrente da mobilidade e da dinâmica territorial originária da situação de fronteira, que permitiu a presença reiterada desses elementos na vida social e econômica dos Estados Unidos. Segundo Turner,
23“No caso da maioria das nações, entretanto, o desenvolvimento ocorreu numa área restrita; e se a nação se expandiu, ela encontrou outros povos crescendo, os quais foram conquistados. Mas, no caso dos Estados Unidos, nós temos um fenômeno diferente. Limitando nossa atenção à Costa Atlântica, temos o fenômeno familiar da evolução das instituições numa determinada área... Mas temos também, além disso, a recorrência desse processo de evolução em cada área a oeste que foi atingida pelo processo de expansão. Desse modo, o desenvolvimento americano exibiu não somente o avanço ao longo de uma única linha, mas um retorno às condições primitivas no avanço contínuo da linha de fronteira, e um novo desenvolvimento para aquela área. O desenvolvimento social americano foi continuamente reiniciado na fronteira. Esse constante renascimento, essa fluidez da vida americana, essa expansão para o Oeste com essas novas oportunidades, esse contínuo encontro com a simplicidade da sociedade primitiva fornecem as forças que dominam o caráter americano” (Turner, 1976, p. 2-3).
24Assim, o pioneiro da fronteira é identificado com a figura que deu origem ao desenvolvimento da sociedade e das instituições americanas. Para Turner, esse homem renasce como o novo homem americano na fronteira, pois atuava, ao seu modo, como uma espécie de veículo da civilização contra a “rude natureza inanimada do Oeste selvagem” americano. A imagem do pioneiro da fronteira dos Estados Unidos, criada por Turner, remete a uma glorificação desse personagem, e atribui a ele o desfecho de uma história de sucesso que desemboca na moderna democracia americana. O agente da civilização de um território tomado pela natureza selvagem de suas matas, fauna e homens é valorizado pelos seus feitos. Ele constitui a imagem da vitória da civilização em meio a um ambiente hostil reiteradamente elaborado pelo avanço da fronteira. Para Turner, “nesse avanço, a fronteira é a borda externa dessa onda – o ponto de encontro entre a barbárie e a civilização” (Turner, 1976, p. 03). Esse novo homem americano é, para Turner, o resultado do encontro de mundos nas condições da fronteira, da intersecção em avanço constante sobre o território. A imagem do destemido desbravador dos sertões também vestiu, na retórica do IHGSP, o bandeirante paulista (Schwarcz, 1993).
25O aspecto ideológico, no entanto, que funciona como critério normativo para a “tese da fronteira” e confere legitimidade à “ação civilizatória” do pioneiro, foi elaborado ao mesmo passo com a construção da imagem de um Oeste “selvagem” e que precisava ser vencido. Isso justificou as atrocidades realizadas nas franjas de uma civilização hedonista em constante expansão territorial.
26Neil Smith (2007) compreendeu o sentido amplo do significado da fronteira expresso em Frederick Jackson Turner e percebeu que este poderia ser empregado, mesmo levando em consideração seus aspectos ideológicos, à atual situação na qual as grandes cidades americanas e européias se encontram – ou mesmo àquelas de grande projeção e destaque internacionais que estão fora das regiões tipicamente reconhecidas como de grande poder econômico. Para isso, no entanto, é preciso reconhecer a interiorização de uma dinâmica de fronteira, para a qual a experiência original representava a ligação com o mundo externo. É preciso reconhecer também que há uma “fricção espacial”, uma alteração da escala territorial de reprodução do capital. Esse “retrocesso” (aparente) a uma determinada escala espacial se coaduna com a continuidade cada vez mais amplificada dos processos de expansão interna dos limites da reprodução capitalista; uma inversão do sentido do ciclo expansivo do capital, que por vezes assumiu um comportamento espacial consumidor de configurações e formações não-capitalistas e agora se volta para o consumo de espaços tipicamente forjados por ação direta do capital. Esse deslocamento da fronteira de expansão capitalista para o interior dos territórios urbanos já colonizados pela lógica de reprodução do capital modifica a dieta que alimenta a expansão mais lógica do que territorial (em termos absolutos) do capital. Trata-se de uma nova dinâmica espacial da reprodução capitalista.
27Neil Smith recorre ao “significado da fronteira na história americana” para interpretar os aspectos ideológicos que atribuem legitimidade ao processo de gentrificação dos espaços urbanos nos Estados Unidos. Imbuído da retórica civilizatória de Turner, Smith reconhece no discurso que enaltece os empreendedores imobiliários urbanos os mesmos atributos que valorizavam o pioneiro da fronteira. Para Smith, a imagem de um centro urbano degradado, carente das ações empreendidas por agentes civilizadores, atende a um conjunto de interesses imobiliários que visam empreendimentos nessas áreas centrais. Segundo Neil Smith, “durante o século XX a imagem do lugar selvagem e da fronteira foi aplicada menos às planícies, montanhas e florestas do Oeste, e mais às cidades do país todo, mas especialmente aquelas do Leste” (Smith, 2007, p. 16). Efeitos de um discurso hegemônico sobre as condições de vida nos grandes centros urbanos chegam às cidades brasileiras, a partir da década de 1970, com o mesmo teor que tinham desde que foram elaborados no centro do capitalismo mundial. Em igual medida, o medo e a aversão são os sentimentos possíveis em relação à cidade diante do novo quadro urbano pintado por uma retórica internacional. A cidade passa a ser o signo da violência (em oposição à harmonia), do caos (em oposição à ordem) e do – palavra nova por aqui – stress (em oposição à tranqüilidade do campo e dos luxuosos subúrbios e condomínios fechados). A ordem, a lógica e a racionalidade na organização do espaço são os elementos de uma retórica que vende os espaços avessos à vida “caótica” dos grandes centros urbanos. Uma reedição empresariada do fugere urbe se constitui para servir, mais tarde, de justificativa para as ações coordenadas dos segmentos capitalistas associados aos empreendimentos imobiliários.
28A analogia entre a “fronteira externa” e a nova “fronteira urbana” do século XX se estabelece para além do aspecto ideológico. O fundo falso dessa aparentemente ingênua retórica sobre o cenário fácil de um conflito entre civilização e barbárie é exatamente o mesmo. É preciso ir além dos aspectos simbólicos ligados a interpretação da fronteira para desmascarar as estratégias reprodutivas que ligam a expansão turneriana à experiência da gentrificação urbana. O avanço da fronteira na formação do território dos Estados Unidos, a tão referenciada “marcha para o Oeste”, foi sempre mais resultado de interesses poderosos que envolvem a valorização capitalista do grande capital do que obra da ação voluntarista de destemidos homens que se lançaram na digna empresa exploratória que ganhou existência na fronteira. O caráter reprodutivo presente na expansão geográfica mobilizada durante a “marcha para o Oeste”, desse ponto de vista, é mais importante que seus aspectos simbólicos.
29O processo da reprodução capitalista na periferia ou no interior daqueles territórios colonizados por ação direta do expansionismo europeu assumiu uma dinâmica igualmente expansionista. A partir dos influxos externos, essa dinâmica internacional se replicou no interior dessas formações territoriais. De acordo com Giovanni Arrighi (1996), a expansão do capitalismo mundial prosseguiu, a partir daí, segundo um novo padrão territorialmente expansionista. Os Estados Unidos, na condição de novo centro da economia e do poder internacionais, se constituiria num “compacto ‘império’ territorial doméstico” (Arrighi, 1996, p. 60). Por isso, nas palavras de Gareth Stedman Jones, “toda história interna do imperialismo dos Estados Unidos foi um vasto processo de conquista e ocupação territorial” (Apud. Arrighi, 1996, p. 59). Ainda, para Gareth Stedman Jones, com relação aos Estados Unidos, “a ausência de territorialismo ‘no exterior’ fundamentou-se num territorialismo ‘interno’ sem precedentes” (Arrighi, 1996, p. 59). Dessa forma, os excedentes gerados no interior ou mesmo fora dos territórios norte-americanos foram canalizados para a construção do espaço econômico interno dos Estados Unidos. Assim, foi no interior e no processo de formação desse vasto império voltado para si que uma parcela significativa dos excedentes econômicos do capitalismo mundial encontrou um emprego lucrativo a partir de uma dinâmica territorialmente expansionista.
30Wilson Cano (2007), em análise sobre a realidade territorial da indústria brasileira no período entre 1930 e 1970, faz freqüentes referências ao processo de expansão da indústria no território dos Estados Unidos e revela mais do que diferenças no processo de expansão para a formação da identidade nacional ou para a promoção de uma democracia social e política. Para ele, há identidades no que diz respeito ao avanço do capitalismo sobre esses novos territórios como uma forma essencialmente espacial da reprodução capitalista. É por isso que, segundo Cano (2007, p. 184), “entre os estudiosos da economia brasileira parece ter sido Normano (...) o primeiro a compreender e explicitar, ainda que brevemente, a relevância da integração do mercado nacional do Brasil”. Para isso, também esse autor “certamente valeu-se de seu conhecimento sobre o processo histórico dos Estados Unidos” (Cano, 2007, p. 184).
31Partindo da terminologia empregada por Arrighi (1996), para compreender o que poderia se caracterizar como um “compacto ‘império’ territorial domestico”, é preciso recorrer a uma compreensão do processo que é possível ler em Harvey. Para ele, “as práticas imperialistas, do ponto de vista da lógica capitalista, referem-se tipicamente à exploração das condições geográficas desiguais” (Harvey, 2004, p. 35). Esse é um nível no qual “a condição de igualdade costumeiramente presumida em mercados de funcionamento perfeito é violada, e as desigualdades resultantes adquirem expressão espacial e geográfica específica” (Harvey, 2004, p. 35). É nesse sentido que é possível e “há naturalmente boa parcela de desenvolvimentos geográficos desiguais fundados em parte em relações assimétricas de trocas no interior dos Estados. Entidades políticas subnacionais, como governos metropolitanos ou regionais, envolvem-se de modo crucial nesse processo. Mas de modo geral não se chama isso de imperialismo” (Harvey, 2004, p. 35-36). O termo “imperialismo” permaneceu vinculado a uma escala supranacional de exploração das diferenças espaciais.
32Segundo Neil Smith, “no século XIX, a expansão da fronteira geográfica nos EUA e em outros lugares foi também uma expansão econômica do capital. (...) Nesse período, a expansão econômica foi realizada em parte por meio da expansão geográfica absoluta, ou seja, a expansão da economia significou a expansão da arena geográfica na qual a economia operava” (Smith, 2007, p. 17).
33No entanto, uma diferença tem de ser valorizada. Entre os processos que resultam em “expansão geográfica absoluta”, como resposta e dinâmica fundamental de absorção do capital excedente, e aqueles nos quais a expansão capitalista se dá por meio da rediferenciação interna no interior dos espaços de formação já anteriormente capitalista, o objeto capturado e deglutido para os fins da reprodução do capital é de natureza diversa. A partir daqui, a contribuição de Rosa Luxemburgo se torna mais evidente.
34No caso de uma “expansão geográfica absoluta”, com a incorporação de novas terras ao circuito da valorização capitalista, como no caso na “marcha para o Oeste”, o próprio modo de produção capitalista é lançado contra formações sócio-espaciais absolutamente distintas em relação a si mesmo. Nesses casos, a fronteira é a zona de intersecção, o lugar do encontro (e do conflito, muitas vezes) entre modos de produção, “sistemas” sociais e lógicas reprodutivas diversas. Trata-se aqui da “fronteira externa”, no sentido que é possível extrair de Rosa Luxemburgo. A fronteira capitalista é, nesse sentido, a materialização do encontro entre mundos e territorialidades a serviço de lógicas de origem diversa.
35Quando o crescimento econômico se opera a partir da reestruturação, reordenação ou reprodução do espaço urbano já consolidado no interior do desenvolvimento de relações sociais capitalistas, a dinâmica espacial da acumulação terá de enfrentar e se confrontar com novas forças; desconhecidas no caso de um avanço sobre territórios “virgens” do ponto de vista da exploração do capital. Para Neil Smith, o que o processo de gentrificação nos revela é que, “hoje, o vínculo entre o desenvolvimento econômico e geográfico persiste, conferindo à imagem de fronteira a sua atualidade, mas a forma desse vínculo é bem diferente” (Smith, 2007, p. 17). No caso de um retorno dos investimentos pesados do capital contemporâneo para o interior das áreas já transformadas pela ação direta desse mesmo modo de produção, não temos nem o contato que é típico das situações de fronteira como a descrita logo acima, nem, ao menos, como resultado, a expansão geográfica absoluta como a que se é possível verificar diante da incorporação de novas terras aos circuitos capitalistas. Nesse caso, o confronto e o objeto de satisfação dos mecanismos de reprodução capitalista estão menos nas configurações pré-capitalistas, encontradas para além do mundo conhecido e do universo das relações de produção fundadas nos processos de valorização do valor, do que nos próprios elementos e fragmentos de uma classe que compartilha da mesma origem de sua opositora. Esse é o momento em que o capital estanca um movimento direcionado para fora de si (uma pulsão extrovertida) e volta todas as suas forças para o consumo de configurações capitalistas mais frágeis ou pertinentes a outros momentos históricos do estágio de valorização. Em termos relativos, cessada a compulsão geograficamente extrovertida do capital, este retorna para os antigos centros urbanos, destruindo formas espaciais, modos de vida arraigados e todo um conjunto de infraestruturas e relações ligados aos momentos anteriores da valorização capitalista no interior da economia urbana.
36Os diferenciais do potencial de acumulação geograficamente instalados promovem as condições de acumulação em ambos os casos. A exploração das “assimetrias espaciais” constitui a base da reprodução geográfica do capital segundo Harvey (1990, 2004 e 2005). No entanto, é o potencial reprodutivo das diferenças espaciais que colocam o segundo caso como um fenômeno mais próximo de uma condição especificamente capitalista. A independência da oferta de fatores externos, de territórios de formação não-capitalista e do consumo de configurações sócio-espaciais pré-capitalistas, circunscreve melhor tanto as condições de reprodução quanto seus limites no interior da própria lógica de acumulação do capital. É a sua capacidade de diferenciação interna, auto-promovida, histórica ou geograficamente definida, que vai garantir o combustível internamente elaborado para a reprodução das formas mais atuais dos processos sociais de acumulação capitalista. É nesse sentido que, “no que diz respeito à base espacial, a expansão econômica ocorre hoje não por meio da expansão geográfica absoluta, mas pela diferenciação interna do espaço geográfico” (Smith, 2007, p. 17). A gentrificação e a revitalização dos espaços urbanos centrais podem, por isso, ser definidas como fenômenos diretamente ligados à exploração da “fronteira interna” do capitalismo mundial. É nesse sentido que “a fronteira urbana é, antes de mais nada, uma fronteira no sentido econômico” (Smith, 2007, p. 18), mais ou menos no sentido empregado por Rosa Luxemburgo.
37A experiência brasileira de gentrificação das áreas centrais urbanas, que caracteriza o processo por aqui, teve início somente na década de 1990. De acordo com Hélène Rivière D’Arc, inspirada na periodização de Neil Smith (2001), “São Paulo (...) desconheceu tanto a primeira quanto a segunda fase da gentrificação” (D’Arc, 2004, p. 341). Isso, contudo, de um ponto de vista mais geral, não resultou em desvios significativos em relação ao que já se apresentou. No que diz respeito à dinâmica dos investimentos imobiliários que ocorrem por meio da reprodução do espaço urbano, Mariana Fix (2007) e Ana Fani Alessandri Carlos (2001) apontam para dispositivos que consideram a desvalorização como um momento crucial do processo de valorização capitalista. Só a desvalorização de regiões da cidade pode recolocar à disposição de investidores novas porções do espaço urbano a preços significativamente baixos a ponto de originarem uma renda diferencial, ou um diferencial de renda expresso no tempo, que deverá compor a lucratividade final do capital investido. Portanto, esse rent gap, analisado também por Smith (2007), que é um dos componentes centrais dos elevados índices de lucratividade do setor imobiliário, é conquistado em grande medida pela desvalorização e destruição do capital e do espaço anteriores. No caso brasileiro, processo pode ser definido mais ou menos assim:
38“A desvalorização dos centros antigos das grandes cidades brasileiras, a partir da década de 1970, encontra parte de sua justificativa nessas estratégias. A tomada de espaços suburbanos quase sem valor de mercado, pelas poderosas incorporadoras, não só realizou um impressionante potencial de valorização nos subúrbios, organizados sob a forma de condomínios residenciais de luxo, para o qual afluíam as camadas mais abastadas da sociedade brasileira, como desvalorizou as regiões centrais. Hoje, os centros antigos dessas cidades passam por processos de ‘revitalização’, processos esses que procuram inserir novamente essas áreas degradadas e destruídas no circuito de valorização do capital. Durante os anos 1980 e parte dos anos 1990, os centros das cidades brasileiras que passaram por esse processo, funcionaram como um estoque desvalorizado de ativos imobiliários” (Santos, 2008, p. 46).
39Esse processo, apresentado aqui no caso brasileiro, mantém identidade com a análise de Neil Smith (2001, 2007) sobre as “ondas” do processo de gentrificação. A circularidade intencional do processo, que envolve valorização e desvalorização simultâneas e geograficamente não coincidentes, como parte da estratégia de valorização capitalista a partir da produção do espaço, recai sobre espaços de formação capitalista prévia. Isso aponta para o fato de que os centros urbanos das grandes cidades brasileiras voltarão a ser atingidos por uma nova onda de capitalização, uma vez ocorrido o processo de desvalorização. Essa dinâmica se dá de forma que o capital a ser investido possa se apropriar de porções do espaço urbano a preços relativamente baixos para poder vendê-las, mais tarde, a preços bastante altos, se apropriando assim do potencial de valorização do espaço numa estratégia conjunta entre Estado e capital privado. Nesse sentido, é a diferenciação interna do espaço urbano que produz e reproduz esse potencial de acumulação a partir do espaço social. Induzida por poderosas ações, a degradação e destruição de fragmentos da vida social urbana espacialmente localizados ocorre a par com um simultâneo processo de valorização e gentrificação (enobrecimento) de outras áreas. “Em um nível mais básico, é o deslocamento do capital para a construção de paisagens suburbanas (...) o que cria a oportunidade econômica para a restruturação das áreas urbanas centrais. A desvalorização da área central cria a oportunidade para a revalorização desta parte ‘subdesenvolvida’ do espaço urbano” (Smith, 2007, p. 22). “Portanto, a reestruturação do espaço urbano conduz a uma simultânea, assim como subseqüente, decadência e redesenvolvimento, desvalorização e revalorização” (Smith, 2007, p. 29). Dessa forma, a diferenciação interna do espaço geográfico se coloca no horizonte da acumulação capitalista como uma fonte inesgotável de recursos para a absorção dos excedentes e novos investimentos lucrativos. Após abandonar uma área já saturada pelos investimentos de outrora lucrativos, o capital busca por áreas mais baratas e desvalorizadas pela escassa procura. Ao promover todo o potencial de acumulação a partir das estratégias de valorização desses novos espaços que acolhem os investimentos mais atuais, os investidores imobiliários se apropriam da diferença gerada no tempo e preparam, simultaneamente, as antigas áreas, já desvalorizadas, para uma nova participação nos ciclos futuros da acumulação. “A gentrificação, a renovação urbana e o mais amplo e complexo processo de reestruturação urbana são todos parte da diferenciação do espaço geográfico na escala urbana; e (...) sua função hoje é reservar uma pequena parte do substrato geográfico para um futuro período de expansão” (Smith, 2007, p. 17-18). Nesse caso, o limite do processo de acumulação não será atingido pelo escasseamento direto de um estoque de terras “virgens” a ser apropriada pelo ciclo de reprodução capitalista. Aqui o estoque territorial se tornou reprodutível; ele foi, portanto, incorporado no interior da lógica de reprodução do capital e passou a ser um produto do mesmo modo de produção do qual é condição de existência. Com a dinâmica da gentrificação ou da “revitalização” dos espaços centrais – compreendido aqui todo o mecanismo histórico de valorização e desvalorização de regiões inteiras –, o processo de acumulação do capital passou a produzir suas próprias condições espaciais de reprodução – reproduzindo incessantemente a diferenciação geográfica. Podemos pensar aqui numa produção especificamente capitalista do espaço nos termos da reprodução capitalista do espaço urbano.
40Enquanto a fronteira externa, consumida no processo da urbanização do território, “representou a realização de uma expansão geográfica absoluta como a principal expressão espacial da acumulação de capital, a gentrificação e a renovação urbana representam o exemplo mais desenvolvido da rediferenciação do espaço geográfico com vistas ao mesmo resultado” (Smith, 2007, p. 19). E dessa forma, “a requalificação de espaços no interior da cidade (...) substitui o processo de apropriação de porções territoriais de formação não-capitalista” (Santos, 2008).
41Temos, portanto, nesse ponto, a clara intuição de que a reprodução capitalista a partir do espaço pode se dar, genericamente, segundo dois padrões radicalmente distintos. A necessidade de apropriação capitalista de espaços de formação tipicamente não-capitalista para os fins da continuidade da acumulação de capital é uma ficção injustificada. Muitos autores, de épocas e formações distintas, chegaram a sinalizar que essa seria a única alternativa válida para a manutenção dos padrões de acumulação capitalista. Rosa Luxemburgo, ao seu tempo, e Rosa Tello Robira (2005), mais recentemente, animaram o debate tomando essa posição. Segundo a abordagem apresentada, no entanto, a partir da qual a exploração das fronteiras internas do capitalismo satisfaz as necessidades do processo de acumulação, o próprio modo de produção capitalista aparece como portador de uma capacidade interna de reprodução de suas próprias condições espaciais de reprodução.
42Podemos afirmar, portanto, que os diferentes arranjos espaciais do capital envolvem dispositivos de acumulação que consideram, genericamente, segundo termos empregados por Harvey (2005), expansão e intensificação geográfica do capital. De um lado, temos aquelas estratégias consumidoras de configurações, articulações e formações sócio-espaciais não-capitalistas, com a expansão geográfica absoluta do capital sobre territórios ainda não transformados diretamente pela ação do modo de produção capitalista como único resultado. De outro, podemos observar elementos definidos a partir de uma determinada configuração espacial de formação previamente capitalista servindo de alimento à reprodução capitalista em sua forma mais dinâmica. Nesse caso, ao invés da expansão, temos uma intensificação dos investimentos num mesmo espaço. Esse aumento da densidade capitalista do espaço, com seu correlato adensamento técnico, social e infra-estrutural da mesma área atingida pelos aportes de capital, envolve, sobretudo, uma nova experiência do espaço. Trata-se da intensificação das relações sociais com vistas à reprodução capitalista do valor. É nesse sentido também que Lia Osório Machado chama atenção para uma das lacunas na elaboração de Ratzel. Segundo ela, Ratzel percebeu apenas dois movimentos que envolvem a expansão da fronteira e que podem ser estudados como manifestações do comportamento espacial típicas da acumulação capitalista. Para ela,
43“Houve um terceiro movimento, a expansão não territorial e sim sistêmica das ‘fronteiras’ do regime capitalista, ao incorporar as ‘mentes e corpos’ das multidões. Talvez seja a incompreensão deste terceiro movimento por Ratzel o motivo dele enxergar exclusivamente o território em sua ‘teoria’ do espaço vital, o que não só tornou a expressão historicamente datada e geograficamente situada (imperialismo alemão): permitiu que os críticos posteriores reduzissem o conteúdo teórico da expressão apenas à ideologia ‘vitalista’ que caracterizou sua abordagem do estado (a metáfora do ‘organismo vivo’)” (Machado, sem data).
44Ao compreender a lacuna presente na elaboração teórica de Ratzel, Lia Osório Machado supera os limites de Rosa Luxemburgo e Rosa Tello Robira, simultaneamente. Ela capta uma possibilidade para a reprodução capitalista que não se reduz à expansão territorial em termos absolutos ou à utilização de um estoque anterior de territórios mantidos em situação não-capitalista. Nesse sentido, no entanto, apesar de ter atingido um determinado nível de compreensão sobre a intensificação geográfica do capital como solução para os problemas de acumulação, diferenciando-se de Rosa Luxemburgo e de Rosa Tello Robira, ela não expressou conceitualmente a relação que tais processos mantêm com o espaço social.
45A título de conclusão, podemos afirmar, portanto, que “a teoria afirma que o capitalismo se destina a expandir por meio tanto da intensificação dos relacionamentos nos centros capitalistas de produção, como da expansão geográfica desses relacionamentos no espaço” (Harvey, 2005, p. 62). Apesar de se tratar de padrões genericamente distintos, essas formas da reprodução espacial do capital não são, de maneira alguma, incongruentes, podendo, mesmo, ser complementares. Mas é importante reforçar que cada qual detém validade para os fins da reprodução capitalista de maneira isolada ou conjunta. De acordo com os fins da reprodução capitalista, “a teoria geral de Marx fala da necessidade de expandir e intensificar geograficamente” (Harvey, 2005, p. 66).