1Uma hipótese orienta nossa investigação: existe um capítulo da história do pensamento geográfico francês que só pode ser contado tomando a historiografia dos Annales — referimo-nos a Bloch, Febvre e Braudel — como objeto de análise. Assim, o presente artigo constitui a segunda parte dessa pesquisa, iniciada com “Espaço e técnica como estruturas do cotidiano: capítulos braudelianos de história do pensamento geográfico” (Ribeiro, 2010), a ser publicado no boletim “Investigaciones Geográficas”, da Universidade Autônoma do México que será finalizada com “A gênese da geohistória: capítulos braudelianos de história do pensamento geográfico (III)”. Sobre a geografia em Bloch e Febvre, consulte “A Geografia testemunha a História: paisagem, região e interdisciplinaridade em Marc Bloch” e “Para ler Geografia ou A Geografia segundo Lucien Febvre” (Ribeiro, 2009, 2009a).
2Espaço de intersecção entre geógrafos e historiadores, radiografar a identidade da França passa, inevitavelmente, pela análise de seu território. Aliás, seria possível falar de nação e de identidade sem evocá-lo? Para Braudel, esta tarefa é impraticável: “Tento explicar-me no que toca a relações múltiplas, entrecruzadas, difíceis de se apreender, entre a história da França e o território que a contém e a sustenta e que, de certa maneira (certamente não totalmente, longe disso) a explica” (Braudel, 1989a:25 [1986]). Contudo, tal associação está presente mesmo naqueles cuja predileção geográfica não é das maiores (vide, p.ex., Hobsbawm, 1990). Sim, o território não é monopólio da Geografia, não se trata de sugerir isso. A questão é evocar sua estreiteza com o discurso geográfico, seja através da geopolítica, de suas especificidades regionais ou de estudos em torno do tráfico de drogas ou grupos urbanos — que visam, entre outras coisas, deslocar o quase que “natural” vínculo Estado-território, explorando o conceito em múltiplas escalas analíticas mas sem deixar de relacioná-lo à noção de poder (cf. Souza, 1995).
3De qualquer forma, embora historicamente o território faça parte das preocupações da Geografia, devemos destacar dois aspectos, no mínimo, contraditórios:
(i) alguns afirmam que o território é uma “descoberta recente” na Geografia Humana, na medida em que é somente por volta das décadas de 70 e, principalmente, nos anos 80, que os geógrafos atribuem ao mesmo novas definições (Claval, 1999). Num contexto mais ou menos semelhante, foi proclamado o imperativo do “retorno do território” (Santos, 1994). Sua valorização traria à tona uma variedade de expressões, tais como território-zona, território-rede, território descontínuo, desterritorialização, reterritorialização, des-re-territorialização... No limite, pode-se vislumbrar toda a Geografia Humana como se fora uma História territorial, tendo no processo de formação do Estado territorial um dos campos mais fecundos do ofício do geógrafo (Moraes, 2002);
(ii) de outro lado, no bojo de aspectos como crise do Estado-Nação, constituição de uma sociedade global, financeirização da economia e advento de novas tecnologias, admite-se também a abolição das fronteiras, a virtualização dos espaços e a desterritorialização de pessoas, mercadorias e informações. Igualmente, diz-se que o território nacional perde importância frente à política ditada pelas multinacionais e seus produtos ubíquos; a parcela da população que tem acesso ao consumo compartilha gastronomia, entretenimento, vestuário e hábito mundiais; e a classe burguesa independe das restrições impostas pelos lugares (Bauman, 1999 [1998]; Giddens, 1991 [1990]; Virilio, 1993 [1984]; Ortiz, 2003 [1994]). No limite, até o “fim dos territórios” já foi declarado! (Badie apud Haesbaert, 2002).
4O intuito aqui não é o de resgatar a trajetória do conceito em tela, mas tão somente inserir Braudel num quadro onde a Geografia, embora contestada em alguns pontos, têm sua importância garantida (Ribeiro, 2006). Nesse sentido, talvez ele dissesse: “o território é uma estrutura”. Afinal, menciona a conquista, a expansão, a violência e os saques ocorridas nos territórios pré-históricos; passa pelo exame da formação territorial destacando o Tratado de Verdun no ano 843; chega ao triunfo da teoria das fronteiras naturais no século XVIII e não esquece de (evocando datas como as da Guerra franco-prussiana e as duas Guerras Mundiais) destacar a artificialidade e o risco que caracterizam os limites franceses do mar do Norte ao Reno. Em suas próprias palavras:
“A maior parte das fronteiras da França é a que se pode quase sem problema de consciência qualificar de ‘natural’: os mares, os Pireneus, os Alpes, o Jura — fronteiras que a natureza se encarrega de defender, e onde a tarefa dos homens se torna mais leve. Em 1940, no inaudito desmoronamento militar da França, a fronteira dos Alpes ‘aguentara’. A fronteira artificial e perigosa da França vai do mar do Norte até o Reno. Uma fronteira fabricada e refabricada pelos responsáveis pela política, pelos militares, pelo numerosos acasos da história. O Reno, que na direção do nordeste dá a impressão de completá-la, nada tem em comum com a Mancha. É apenas uma proteção aparente, ilusória. E, aliás, ele só foi alcançado pela política francesa a partir de 1648 — na Alsácia — e, em todo o seu comprimento (das cercanias da Basiléia até o mar), apenas por instantes, de 1795 a 1814 e de 1919 a 1930, quando da ocupação da margem esquerda do Reno pelos franceses e seus aliados. Frágil, essa fronteira do nordeste e do leste é a mais turbulenta de todas, a mais viva, porque sempre em alerta, em razão mesmo do perigo que constituem seus vizinhos agressivos e temíveis. Estes já sabem que é por aí que se deve atacar a casa francesa, com chance de arrombar a porta. Foi Carlos V, em 1544, que deu a primeira demonstração disso: saindo de Luxemburgo, ele iria até Saint-Dizier, onde seria vitorioso, e, através do Marne, chegaria até Meaux, nas portas de Paris. A demonstração recomeça em 1557, em 1596, em 1636, em 1708, em 1814, em 1870, em 1914 e em 1940. Que não digam que a história, por natureza irreversível, nunca se repete. Frequentemente falta-lhe a imaginação. Ela tem hábitos todos seus” (Braudel, 1989ª, p. 277-78 [1986], grifo nosso).
5Vários pontos desta passagem carecem ser grifados. Primeiro, a posição assumida por Braudel no que toca a parte das guerras na história. Integrante crucial da terceira seção de La Méditerranéeet le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II (Braudel, 1949) e presente em menor medida em Le Temps du Monde (Braudel, 1996 [1979]), vemo-la ocupar algumas páginas de seu último trabalho. Ainda que ele pareça diminuí-la, a verdade é que não estamos falando de um caso isolado, mas de um herança proveniente de Bloch e, sobretudo, de Febvre. Para além do interesse deste último junto aos mapas e estratégias militares, a escrita de Le Rhin: problèmes d’histoire et d’économie em parceria com Demangeon na perspectiva de que o Reno não era um rio alemão mas sim um canal europeu (e isso em 1935, ou seja, às vésperas da II Guerra Mundial [Demangeon & Febvre, 1935]), deixava claro o poder que a dupla Geografia-História detinha quando se tratava de construir um discurso político francófono mobilizando as noções de tempo e de espaço.
- 1 Atentando para as obras citadas e suas datas — Géographie Sociale. Le Sol et l’État, de 1911; La F (...)
6Destarte, quando Braudel se dispõe a passar em revista a constituição das fronteiras do leste da França investigando, sintomaticamente, as fontes encontradas nos Arquivos de Guerra (tal como atestam as notas de fim do volume I de L'Identité), não há qualquer surpresa nisso. Igualmente, se a lembrança de La France de l'Est (Vidal de la Blache, 1994 [1917] nos é imediata, também não podemos nos admirar com o fato de que a única referência que Braudel lhe faz não diz respeito ao seu lado geopolítico, mas sim à mera constatação de que o número de trabalhadores braçais é maior que o dos lavradores fixados na terra (Braudel, 1989ª, p. 325 [1986]). No entanto, ao tratar das fronteiras, ele prefere mencionar o polêmico e contestado Géographie sociale. Le Sol et l'État (1911) de Camille Vallaux — cujo conteúdo geopolítico, na acepção de Febvre, o aproximava de Ratzel —, preservando Vidal para os assuntos harmoniosos e pacíficos referentes à temática homem-meio 1.
7Segundo, a “naturalização” das fronteiras ou, no máximo, sua consideração das mesmas como sendo um produto do “acaso” histórico só revela como a natureza jogou papel crucial na elaboração das ideologias nacionais. Não é essa a vigorosa e bem-sucedida crítica de Chauí ao identificar que um dos mitos fundadores do Brasil encontra-se na exploração de sua natureza exuberante e fértil, verdadeira dádiva divina? Consequentemente, o que se tem é o deslocamento de que o processo histórico é feito por homens reais, motivados por interesses econômicos, políticos e sociais reais. Em uma palavra: esquece-se do roubo das terras indígenas, da destruição dos ecossistemas, do massacre de Canudos e das demais insurreições territoriais que, em conjunto, perfizeram a imagem de um país grande e bonito “por natureza” do qual todos os seus habitantes carregam demasiado orgulho (Chauí, 2000:58-70). Assim, no Brasil ou na França, naturalizar fronteiras é, portanto, naturalizar a história e, nessa operação, a aparente concretude dos elementos geográficos atua simbolicamente na montagem de uma representação ideal e mítica da nação e da nacionalidade. Em resumo: tanto no domínio material quanto no simbólico, o território é imprescindível para o exercício do poder e da política estatal.
- 2 Em Histoire et Science Sociales: la longue durée (1958), um de seus mais importantes artigos teóri (...)
8Terceiro, o historiador da longa duração não abre mão do acontecimento (Boutier, 2004). Se as datas indicando a tardia marcação das fronteiras do leste (1648, 1795-1814, 1919-1930) e a penetração de invasores por aquele espaço (1544, 1557, 1596, 1636, 1708, 1814, 1870, 1914, 1940) estão longe de manter algum parentesco com a história dos limites administrativos e réfem do tempo curto — contra a qual se insurgiram Vidal de la Blache e os primeiros Annales —, elas mostram que nem as estruturas podem suprimir o evento. A longa duração também não é a mera soma ou reunião de acontecimentos: em qualquer perspectiva histórica adotada, eles são incontornáveis. Nas entrelinhas, o que Braudel sugere ao enfatizar a repetição histórica em torno das questões fronteiriças é a possibilidade de uma História (Geo) Política para além do événementielle2.
9Por último, entrelaçar o território nacional à temporalidade da longue durée possui notórios desdobramento políticos. O principal deles é representar — para não dizer, novamente, naturalizar — as fronteiras como se elas fossem não o resultado de um processo histórico tenso e recheado de disputas (diplomáticas ou, inúmeras vezes, militares), mas sim a consequência de um desenvolvimento “normal”, quase que espontâneo. Para isso, vale tanto invocar a Biologia quanto afirmar, à moda dos Metódicos, que os Estados “agem como os indivíduos”. O objetivo é um só: fixar, em um continente atravessado por embates fronteiriços, a idéia de que os limites franceses são inquestionáveis.
“Na verdade, os Estados agem como os indivíduos. Cada homem se obstina em delimitar o seu domicílio, como todo animal livre defende a propriedade daquilo que ele considera ser seu território. (...) Qualquer limite administrativo, a fortiori, toda fronteira política, uma vez devidamente demarcado, tende a durar, e até a se eternizar. Tudo se passa como se a marca tivesse uma inaudita dificuldade em se apagar. É o caso, na França, dos múltiplos limites diocesanos, calcados nos antigos territórios das cidades galo-romanas: duraram, de modo imperturbável, desde as origens pré-carolíngeas, ou pouco menos que isso, até a Revolução de 1789. (...) Portanto, a história tende a enraizar fronteiras, como se se tratasse de acidentes naturais, desde logo incorporados ao espaço, e difíceis de se deslocar” (Braudel, 1989a, p. 261-262 [1986], grifo nosso).
10Braudel parece ter se desviado de uma concepção mais ampla de fronteira, conforme pregavam as elaborações de Dion e Febvre. Para estes, a inteligibilidade da fronteira só se daria através de uma análise retrospectiva da psicologia coletiva (cf. Pomian, 1997:930 [1986]). A opção de nosso investigado por uma leitura um tanto quanto “dura” recairá também no que diz respeito à insistência de que o tamanho do território francês teve papel determinante na lenta constituição de seu mercado nacional. “Vítima do seu gigantismo” — em contraposição às Províncias Unidas e a Inglaterra, cujas dimensões territoriais favoreciam a unificação (Braudel, 1996:291 [1979] —, apesar dos esforços das feiras, mercados e transportes, por muito tempo as malhas econômicas da França permaneceram irregulares. As distâncias, os acidentes naturais e a variedade regional acarretavam um cenário de fragmentação espacial e hierarquização econômica onde era possível observar que haviam, ao mesmo tempo, regiões isoladas da circulação mais geral e cidades com alto poder de centralização (Paris e Lyon, p.ex.), bem como a coexistência do feudalismo com o capitalismo (Braudel, 1989a, p. 148-191 [1986]).
11Não por acaso Braudel certifica “que a França se chama diversidade” (idem, p.27). Tal fórmula não é nenhuma novidade: consagrada em 1903 por Vidal no Tableau de la géographie de la France (Vidal de la Blache, 2007, p. 369 [1903]) e repetida em 1947 por Febvre num de seus “artigos-combate” (Febvre, 1947, p. 205), ela evocava uma diversidade de tempos, paisagens, gêneros de vida, línguas e regiões. De tudo isso, cabe observar que essa característica da história da França passa, obrigatoriamente, pela valorização de suas realidades geográficas. No entanto, se o Tableau acentua com certo excesso os elementos naturais e La Terre prega uma geografia modesta preocupada, antes de mais nada, com o solo, L'Identité aponta que a diversidade francesa deve ser explicada não apenas por causa das gradações de clima, relevo e hidrografia, mas também em virtude da precoce centralização do Estado; das diferentes cidades encontradas de Norte a Sul do país; dos dialetos e economias locais; do povoamento e ocupação desiguais ao redor do território...
12Na realidade, a pendência determinismo-possibilismo — cuja consequência mais drástica foi ter prejudicado o desenvolvimento interno e externo da Geografia — refere-se, num plano mais geral, à preponderância do homem sobre a natureza, operada empiricamente no transcurso da Modernidade e legitimada intelectualmente pela Ciência Moderna (sobretudo pelas Ciências Naturais e Exatas). Tal convalidação, no entanto, será profundamente questionada com o passar do tempo: no século XIX, pelo Romantismo; no final do XIX e início do XX, pela Geografia vidaliana; no século passado, pela Escola de Frankfurt (vide, p.ex., Habermas, 1983 [1968]).
13A enriquecer este panorama epistemológico já bastante diverso, podemos acrescentar também a obra de Braudel: sua perspectiva histórica da longa duração rompe com a moderna dicotomia sociedade-natureza, rechaçando a idéia de domínio completo sobre esta última (Aguirre Rojas, 2003). Para ele, as coerções naturais sempre têm algo a dizer, pois a agricultura se processa fundamentalmente atuando sobre a natureza; a economia a vê como um recurso a ser explorado sem cessar; a cultura tem na dança da natureza a fonte de seus mitos e símbolos; as civilizações construir-se-ão, enquanto grupos específicos, a partir de como suas técnicas lidarão com as condições físico-naturais de seus respectivos espaços. Vem daí o peso conferido ao mar mediterrâneo, ao conjunto planalto-planície, ao quadro climato-botânico das civilizações, aos acidentes geográficos do território — e, no limite, ao determinismo (Braudel, 1949, 1996 [1979a], 2004 [1963]).
14Neste ponto, se se trata de avaliar como e, principalmente, em que medida a natureza influencia a vida social, é mister identificar, simultaneamente, o período histórico e o espaço geográfico que estão sendo estudados. Tomemos dois exemplos que nos auxiliam a meditar sobre o assunto.
15Ao se interrogar sobre a validade da noção de região, Santos valida sua importância mas, ao mesmo tempo, crê que a base explicativa de que as construções humanas resultam da interação de “um” grupo com “seu” meio geográfico já não faz mais sentido. Ela foi abalada pelo incremento brutal dos transportes, das comunicações e da economia mundializada, ou seja, de elementos do exterior, perdendo portanto sua coerência interna (Santos, 1978, p. 22-23). A seu turno, problematizando um dos principais conceitos da Geografia Clássica, Sorre percorre a trajetória dos gêneros de vida tentando historicizar os diferentes processos de adaptação humana ao meio geográfico. Retratando como tais gêneros (esquimós, pastores nômades, cultivadores sedentários e outros grupos) imprimiram suas marcas na paisagem e na ocupação do espaço durante séculos, ele percebe, no entanto, uma modificação histórica crucial: a Revolução Industrial e as estradas de ferro provocaram sensível impacto na circulação e, consequentemente, gêneros de vida antigos tendem a desaparecer ou adaptar-se às novas condições. Ainda que a circulação seja vista como “instrumento de uniformização do globo” (Sorre, 1984, p. 114 [1952]), o conceito continua sendo válido: traços comuns encontrados nas cidades definiriam um “gênero de vida global” (idem, p.117). Seu raciocínio pode muito bem ser aplicado ao determinismo:
16O que ambos estão dizendo é que, historicamente, a relação das sociedades com a natureza tem sido radicalmente alterada. A associação tradicionalmente feita entre uma série de técnicas locais/regionais investindo num meio também local/regional, constituindo um conjunto de gêneros de vidas específicos distribuídos pela superfície terrestre, parece não fazer mais sentido após a propagação mundial da economia de mercado, da mobilidade dos transportes e da fluidez da comunicação, que interligou o planeta através de redes, malhas e nós. O que não significa dizer que, em se tratando da produção do espaço no capitalismo, não existam áreas “opacas” e áreas “luminosas” (Santos, 2002 [1996]), isto é, hierarquias geográficas que fazem com que determinados lugares sejam mais beneficiados que os demais em termos de infra-estrutura, recursos humanos, dinamismo econômico e — porquê não — menor autonomia face às coerções naturais. Em todo caso, estas são muito menores que outrora.
17É esse “outrora” — grosseiramente negligenciado por geógrafos incapazes de discernir senão o século XX — que será focalizado por Braudel. Ao lançar-se no Mediterrâneo no século XVI, na vida material das civilizações entre os séculos XV-XVIII e na formação da identidade francesa na longa duração, ele conscientizou-se de que as modificações na agricultura, a proliferação do fenômeno urbano, os avanços tecnológicos, a expansão espacial e, lato sensu, a vida na Terra passariam, maiormente, por domar a selvageria da natureza. Revisitada em minúcias, esta história mostrará tanto os êxitos quanto os insucessos humanos. Todavia, como seria normal imaginar num primeiro momento, nem por isso as vitórias devem ser creditados ao “possibilismo” e os fracassos ao “determinismo”. Sim; na géohistoire braudeliana, o determinismo não significa apenas obstáculo, tal como a extensão do território francês consistindo num empecilho à formação de um mercado nacional ágil e estruturado ou o tamanho da América Latina dificultando e retardando sua ocupação. Uma vez reabilitado, sua utilidade histórica será enfatizada.
18Vê-se logo que não se está diante de uma argumentação simplória e fatalista. É assim que, quando Filipe II conquista Portugal (1580) e abriga seu governo em Lisboa, a cidade se revestirá de grande importância. Afinal, “de frente para o oceano é o lugar ideal para se controlar e dominar o mundo” (Braudel, 1996:22 [1979]). Porém, administrar o espaço não é tarefa fácil, visto que implica numa estratégia de controle do mesmo. Uma jogada errada podia colocar tudo a perder.
- 3 Não por acaso, logo em seguida a este trecho Braudel faria alusão ao almirante Mahan, um dos princ (...)
“Assim, sair de Lisboa, em 1582, era abandonar uma posição de onde se dominava a economia do Império, para encerrar a força espanhola no coração praticamente imóvel de Castela, em Madri. Que erro! A Invencível Armada, longamente preparada, corre em 1588 para sua desgraça. A ação espanhola sofreu com esse recuo, e os contemporâneos tiveram consciência disso” 3 (idem).
- 4 Nada mais normal pois, para ele, a Geografia é, “por si mesma, uma suma de diversas ciências” (Bra (...)
19Terminantemente, o espaço não é algo neutro e privado de relevância. É o que ele descortina quando analisa as regiões francesas e o sítio urbano de Besançon. Manejando conhecimentos de Geografia Física, Geologia e História Antiga 4, aprendemos que o determinismo nem sempre tem papel restritivo:
“Poucos sítios são mais claros, mais propícios, à primeira vista, do que o de Besançon. Deste sítio, tudo dependeu, o melhor e o pior; aqui, o determinismo geográfico não é certamente palavra vã. Um meandro de rio, a espantosa volta que o Doubs descreve, envolve a cidade, protegendo-a. Não é uma defesa perfeita, uma vez que a raiz, o pedúnculo do meandro, não permite que se crie uma ilha, defendida pela água por todos os lados; ali, há uma falha, uma abertura. Mas esta abertura é fechada por um estreito trecho de montanha (aproximadamente 360 metros de altitude) que, a uma centena de metros, domina a volta do rio. A essa altura, uma muralha gaulesa provavelmente tenha existido, e depois uma fortaleza (Vauban a reconstruirá bem mais tarde, integralmente), reforçando a muralha natural. Esta é fruto de processos geológicos muito antigos. No período pliocênico, com efeito, o Reno correu no atual vale do Doubs, até que o desmoronamento mediano do maciço Vosges — Floresta Negra — o obrigou a abandonar seu leito jurássico e a seguir um outro caminho. É assim um rio poderoso, diferentemente do Doubs, que modelou o relevo da região de Besançon; que fragmentou, como que retalhou com serras, as bordas do Jura. A cidade de Besançon fica no cume de um desses fragmentos, entre as duas eclusas de Rivotte, ao norte, e de Taragnoz, ao sul. Não é de se espantar que uma cidade se tenha alojado desde muito cedo neste sítio tão bem defendido pela natureza. Besançon foi a capital dos Sequanas, um dos grandes povos da Gália independente, em contato com os Helvetas, acantonados por sua vez do outro lado do Jura, e de seus inimigos, os Eduenos, instalados além do Doubs e do Saône. Em seus Comentários, César ressalta a importância e a força dessa localização” (Braudel, 1989a, p. 157-58 [1986]).
20É esse tipo de espacialização que Braudel gostaria que a Geografia não perdesse de vista. É em nome dessa geografia que ele acusa seus representantes mais novos de “desespacializar” a História — como veremos mais adiante. Foi exatamente seu conteúdo concreto, visível e pleno de vida (logo, de pistas históricas) que chamou a atenção de Bloch e Febvre no princípio do século XX e que atravessaria do início ao fim o pensamento braudeliano. Estamos falando daquilo que, primeiramente, chama a atenção em termos estéticos e sensoriais mas que, no momento seguinte, deve ceder lugar à análise científica. A surpresa não substitui a valia da visualização geográfica, adverte ele, “mas é uma maneira de estar alerta, de sentir de modo quase obsessivo a diversidade como que biológica de nosso território” (idem, p.45). É desse modo que, na prática desta disciplina, o olhar, a descrição e a empiria ocupam posições fundamentais. Eles nos remetem às estruturas profundas de longa duração:
“O valor da observação geográfica está, de fato, na espessura, na duração, na abundância de realidades amontoadas umas sobre as outras, que é preciso distinguir mas, em seguida, reaproximar. Ao mesmo tempo atual e retrospectiva, a geografia nos oferece suas iluminações, suas explicações entre ontem e hoje. A terra, o meio, o meioambiente, o ecossistema são palavras que designam aquilo que ela nos aporta, as aproximações que ela nos impõe e que nos ensinam tanto quanto os mais ricos documentos de arquivos” (ibidem, p. 26).
21Eis, enunciado da maneira mais clara possível, o papel epistemológico da Geografia na escrita histórica braudeliana. Ela comporta consigo as senhas de entrada para um passado longínquo. Irrecuperável pela morte das pessoas, pelos documentos que não deram voz aos homens comuns e pelas fontes por demais fragmentadas e dispersas, no entanto os sinais, traços e permanências inscritos na paisagem e nos espaços fazem vir à tona uma história longa, profunda, subterrânea. Embora tenham experimentado um sem-número de mudanças, o impacto sofrido pelas realidades geográficas não as impediu de testemunhar o passado. São formas, volumes e marcas que evocam outros ambientes, outras situações, outros contextos. Através do espaço geográfico, resgata-se o tempo histórico. Através dos espaços, resgatam-se acontecimentos, conjunturas e estruturas. Não há determinismo: o que há é cooperação, via de mão dupla, entrelaçamento.
“Evidentemente, há vários modos de por em questão a geografia. Pode-se utilizá-la por ela mesma, segundo seus problemas próprios e segundo suas confluências com as outras ciências do homem e com as ciências da natureza. É o que fazem os geógrafos, especialmente atentos para o atual. Mas a geografia, para nós, será sobretudo uma maneira de reler, de ponderar, de reinterpretar o passado da França, evidentemente na direção de nossas próprias preocupações. Ela se prestará a um tal jogo, além do mais, sem reticência. As paisagens e espaços não são unicamente realidades presentes, mas também e amplamente sobrevivências do passado. Horizontes passados se desenham, se recriam, para nós, por meio dos espetáculos oferecidos: a terra, como nossa pele, está condenada a conservar as marcas das antigas feridas” (ibid., p.25, grifo nosso).
22Na apreensão quase que obsessiva por uma história para além dos eventos superficiais, por uma história que falasse aos homens do presente mais do que eles pudessem imaginar sobre seus antepassados e, ao mesmo tempo, explicasse o quanto esta história permanece a afetá-los nos dias atuais, Braudel se lança numa perseguição aos elementos empíricos que lhe permita organizar o processo histórico numa temporalidade mais longa que aquela dada pelo calendário e pela cronologia. Assim, por mais que pareça contraditória, embora sua concepção de tempo seja “plástica”, no sentido de confrontar-se com o “absoluto” do paradigma cartesiano-newtoniano, sua percepção vai buscar aquilo que fixou-se nos costumes, nas práticas, nas mentalidades. E é justamente aqui que ele encontra a Geografia. Nesse sentido, a França é um espaço mais que privilegiado. Afinal, das igrejas às casas termais, as construções do Império Romano estão grafadas em seu território; até bem pouco tempo, seus camponeses viviam em ambientes e situações quase que feudais; a urbanização contemporânea não pode ser entendida fora do traçado e do arranjo típicos das cidades medievais; os castelos e palácios mantém viva a sociedade de corte; o chão da Place de la Bastille guarda, ainda hoje, parte da Revolução de 1789; em contraste com os boulevares à moda Hausmann, algumas pequenas e estreitas ruas de Paris trazem a atmosfera e as esperanças da Comuna; em meio às já tão múltiplas temporalidades, cabe ao Sena percorre a cidade-luz carreando consigo uma história anterior ao próprio homem...
- 5 Nas palavras de Vidal: “A história da Inglaterra é insular, a da França é sacudida entre o mar e o (...)
23Eis o que é o espaço: a materialização do tempo (Santos, 1996). Ou, para ser mais correto, dos vários ritmos do tempo, da superposição de histórias, da dialética conservação-destruição. No plano empírico, Braudel perceberia isso não só na França, mas na Argélia, onde uma civilização com hábitos distintos dos seus lhe chamaria a atenção para deslocar a História do “coração” Europa; no Brasil, espaço amplo em que as “etapas históricas” não são mais que momentos aleatórios cuja empiria as desmentia a cada instante; no cativeiro, onde idealizou uma história profunda a fim de ser consolado face aos trágicos eventos que assolavam o mundo de então; e em todos os outros lugares que conheceu, viveu e revirou depósitos de arquivos em busca da edificação de uma outra história. No plano teórico, embora a revolução einsteniana seja inconteste, a dívida notória para com Bloch e Febvre passa, antes de tudo, por Vidal de la Blache (RIBEIRO, 2009, 2009a). Sua formação de historiador, a atração pelo presente e a atenção ao ritmo da natureza o conduziram a uma apreciação ampliada da temporalidade 5. Não há dúvidas de que esta é uma das principais contribuições da Escola Francesa de Geografia aos Annales (cf. Pomian, 1997 [1986]).
24Braudel soube captar, com rara inteligência, o fato de que a Geografia lhe colocara diante de uma temporalidade mais rica e profunda que aquela ditada pela historiografia tradicional. Isso significa dizer, especialmente, que ele não se limitou a associar o tempo longo aos temas referentes aos vínculos sociedade-natureza — embora possamos traduzir que esta ocupe o lugar da “primeira” das histórias de longa duração.
- 6 Depois dessa longa e eloquente passagem, o que dizer dos que vêem Braudel como determinista, prati (...)
“Mostram, no pano de fundo da História da França, o lugar prodigioso de uma França natural, que o homem diminui lentamente ao longo dos séculos à força de trabalho, mas que, por sua massa, resiste ao machado, à pá, à picareta, ao arado, à serra, ao fogo destruidor e cego... Que recupera rapidamente terreno, assim que o esforço do homem é relaxador; que aproveita a proteção daqueles que dela tiram vantagem: senhores de terras obstinados em defender suas florestas e sua caça; vilarejos ligados a seus bens comunais... As terras incultas não são indispensáveis para os citadinos, que delas tiram o vigamento para as construções e a lenha? Para a indústria, como combustível; para os camponeses e os senhores de terras, que utilizam pastagens e florestas para os seus rebanhos? O natural e o cultivado devem coexistir em certo equilíbrio. (...) Tudo nos leva a olhar o destino agrícola da França como um duelo entre o homem e a natureza selvagem: árvores, arbustos, plantas, animais, águas correntes ou represadas... A abundância da fauna não ressalta perfeitamente esse universo da natureza livre? (...) Outra constatação: embora tenham havido, conforme as regiões e as épocas, avanços e recuos da terra cultivada — pântanos dragados que voltam a se tornar pântanos, terras arroteadas e mais tarde abandonadas, florestas saqueadas que, lançadas à própria sorte, acabam por transpor os fossos que as cercam —, é evidente que o movimento a longo prazo é o de uma conquista contínua. A terra cultivada, domesticada, não cessa de ganhar espaço contra o inimigo. De geração em geração há avanço, acumulação constante — expressão que a teoria faria bem em se apropriar para uma maior clareza da história lenta, falsamente imóvel, dos campos franceses. E até mesmo de toda a história da França” 6 (BRAUDEL, 1989a:44-45 [1986]).
25No que diz respeito à dinâmica econômica de seu país, em 1950, ou seja, muito antes de pensar em escrever L'Identité de la France, ele já havia observado que a Geografia constituiria meio privilegiado para apreender as realidades que mais lhe interessavam: as de longa duração.
“ (...) ainda no início do século XIX, a França é uma série de Franças provinciais, com seus círculos de vida bem organizados e que, ligadas em conjunto pela política e pelas trocas, se comportam, uma em relação à outra, como nações econômicas, com regulamentos segundo as lições de nossos manuais e, portanto, deslocamentos de numerário para reequilibrar o balanço de contas. Essa geografia, com as modificações que lhe traz um século fértil em inovações, não é, para o caso francês, um plano válido de pesquisas e uma maneira de atingir, esperando o melhor, esses lençóis de história lenta, de que as modificações espetaculares e as crises nos roubam de vista?” (Braudel, 2005:121 [1969]).
- 7 Não é por acaso que Von Thünem é citado inúmeras vezes, direta ou indiretamente. O conceito de red (...)
- 8 “É de fato o fim dos circuitos locais de pequena extensão; a autarcia, por muito tempo atuante, em (...)
- 9 “O Estado, na França, somente se consolidou (ou se assentou se preferirem) ao ‘domesticar’ os movi (...)
- 10 “Concluí que a organização do espaço é por si só criadora de desigualdade e de hierarquia. Marx vi (...)
26Tal como em La Méditerranée e Civilisation Matérielle, eis que vemos novamente Braudel explorar o poderoso trinômio alemão wirtschaft-gesellschaft-raum7 (economia-sociedade-espaço), percebendo que o movimento econômico altera a relação entre os lugares, “desterritorializando” as coisas (e, consequentemente, o regional, tal como o conhecemos, “tende a desaparecer” 8); que algumas cidades são mais poderosas que outras e, por vezes, mais do que o Estado; que este opera seu poder, essencialmente, através do controle de seu espaço 9; que a fluidez do território é elemento crucial para o desenvolvimento dos negócios. Assim, são expostos temas de evidente matiz geográfico, tais como: rotas econômicas e construção do mercado nacional; relação entre as repúblicas urbanas e a centralização do território; impacto da circulação na produção; desnivelamentos do espaço econômico e a divisão regional do trabalho; redes urbanas e hinterlândia; desigualdade campo-cidade 10.
27Em trecho dos mais significativos:
“Ora, o Estado está condenado a cuidar do essencial, ou seja, do conjunto da nação. Toma consciência da necessidade de liberar a grande estrada dos seus quadros locais, de ‘desterritorializá-la’, de ligar ‘os grandes tabuleiros de xadrez regionais realizados pelos intendentes no interior das generalidades’, para fazer deles uma enorme rede concebida em forma de estrela — que parte de Paris e para lá retorna —, e assim implantar, na medida do possível, o que os economistas de hoje chamam de um mercado nacional. A tarefa só pôde ser realizada lentamente, mesmo porquê as vezes ela se choca às resistências locais” (Braudel, 1989c, p. 225-26 [1986]).
28Em todo caso, independente de versar sobre a relação homem-meio ou a relação economia-espaço-sociedade, apropriar-se da Geografia significa uma operação em que a diversidade (territorial, cultural, linguística) vira identidade — a identidade da França.
29Visto que trabalha o tempo todo conjugando os elementos físicos e os elementos humanos, o pensamento de Braudel é, portanto, anti-dicotômico: seu ângulo de visão não privilegia nem a natureza, nem a sociedade per se, mas sim que não é possível compreender um sem o outro. Na realidade, esse é um viés que o acompanhou tanto em La Méditerranée quanto em Civilisation Matérielle: naquele, os componentes naturais do mar Mediterrâneo foram casados com o traçado das rotas econômicas terrestres e marítimas, as cidades e a formação de redes urbanas e as estratégias políticas de uso do espaço; neste, a base física das civilizações, uma das principais estruturas da vida material, fora entrelaçada com a sucessão das hegemonias territoriais do capitalismo, o sucumbir das cidades-Estado em prol do Estado nacional e o papel do espaço para a economia como um todo. Para Braudel, a manutenção de uma geograficidade mais rígida, que investe no papel causal do determinismo, no tamanho do território e na observação do concreto visível, não se contradiz com a abordagem mais moderna da organização do espaço e a apreciação de temas como circulação, rotas comerciais, formação de mercados nacionais, associação cidade-campo etc.
Figura 1 Capas de edições de bolso da Identité de la France
30No entanto, a despeito disso, o geógrafo francês Christian Grataloup assinala inapelavelmente que “Para o geógrafo contemporâneo, ler em 1986 L'Identité de la France tem o charme de um antigo sótão onde se redescobrira o Tableau géographique de la France” (Grataloup, 1986, p. 34-35). Por sua vez, ao comparar La Méditerranée e L'Identité, o espanto de Lacoste é tal que, “Quando se mede a diferença entre esses dois livros em relação ao raciocínios geográficos que ali estão e em relação à concepção da geografia que eles expressam, só se pode estar muito impressionado com a amplitude da transformação. Pode-se até perguntar se é o mesmo autor. é importante tentar explicar essa aparente involução” (Lacoste, 1989, p. 212 [1988]). Dosse ratifica a visão de ambos e, não satisfeito, acrescenta que Braudel “ignorou a evolução da disciplina geográfica em si, que o desorientou mais do que enfeitiçou. Pensar a geografia como ciência do espaço das sociedades mais do que como ciência dos meios naturais e das paisagens não influenciou a escrita braudeliana” (Dosse, 2004, p. 132 [1998]).
31O que os três parecem não ter compreendido muito bem é que a defesa do legado vidaliano e sua “aplicação” em L'Identité de la France não significou desconhecimento ou rejeição para com o desenvolvimento posterior da ciência geográfica. Muito pelo contrário! Uma averiguação atenta da situação epistemológica em que esta se encontrava quando da publicação de La Méditerranée (1949) e Civilisation Matérielle (1979) desvendará o seguinte quadro:
32(a) na primeira metade do século XX, os geógrafos estavam divididos entre o homem e a natureza, a proeminência da escala regional e o receio de ascender à escala global e oscilando entre a descrição e a explicação. Na esteira dos Annales, Braudel propôs o neologismo géohistoire, entrelaçou as heranças geográficas francesa e alemã e pôs em prática uma história total onde a geografia, longe de resumir-se às características físicas que atuavam como introdução à História, se fez presente em sua dimensão humana, atuando enquanto instrumento de análise urbana, econômica e geopolítica;
33(b) entre 1945 e 1979, se a influência do neopositivismo, da fenomenologia e do marxismo na Geografia aportaram o rigor teórico-metodológico, a dimensão subjetiva e o papel das relações econômicas e da luta de classes, em contrapartida trouxeram, respectivamente, uma concepção matematizada-geometrizada do espaço, um viés excessivamente culturalista e uma interpretação enrijecida do materialismo histórico e dialético. Por fora desses problemas, Civilisation Matérielle levou o raciocínio geográfico à escala mundial, articulou espaço e economia como nenhum geógrafo jamais fizera e lançou mão da moderna noção de redes. Tudo isso sem abrir mão da relação homem-natureza, tomada porém não de forma esquemática, mas numa leitura plural focalizando seus ângulos paisagístico, social e cultural.
34A concordar com o esboço acima, a que conclusão chegamos? Para dizer o mínimo, pode-se assinalar que a geografia braudeliana praticada em 1949 e 1979 era tão ou mais interessante que a maior parte da produção geográfica destes períodos. Se aceitarmos que as principais inovações desta produção foram – entre outras – a economia como núcleo da produção do espaço, a análise multiescalar, as novas roupagens para definições conceituais tradicionais e a crítica ao espaço cartesiano-newtoniano, a leitura que Braudel fizera da Geografia representava aquilo que havia de mais atual e avançado.
35Como autor de duas obras de vanguarda nas Ciências Sociais do século XX, ele as criou situando a ciência geográfica no centro de suas análises. Tratar-se-ia de algo a ser desprezado – sobretudo por um campo de conhecimento que passou toda a segunda metade do século XX no mais absoluto ocaso? A resposta só pode ser negativa.
36No limite, o raciocínio poderia ser enunciado da seguinte forma: em meio às várias críticas endereçadas à Geografia, a obra de Braudel representou não apenas a preservação da fértil herança vidaliana, mas também a incorporação dos novos enfoques geográficos engendrados nas décadas de 50, 60 e 70. É assim que, aos poucos, o “meio”, de significado mais fisicalista, vai sendo incorporado pelo “espaço”, de cunho mais humano e social; o sítio e a situação continuam sendo importantes enquanto base inicial de observação, mas o relevante mesmo é como a constituição de redes econômicas e de transportes lograram ou não ultrapassar determinados obstáculos colocados pela natureza; a descrição das paisagens e dos lugares continua a ter destaque na composição da narrativa, embora ciente de que o que cabe apreender são as modificações que as sociedades lhes impõem no decorrer do processo histórico.
37Com L'Identité de la France não é diferente. Seus três volumes evocam o movimento dos vilarejos aos burgos e às cidades, o sítio e a situação, as migrações, o papel das cidades na constituição do mercado nacional e suas associações com as outras escalas etc. (Braudel, 1989a [1986]); a urbanização e as estradas da Gália superando suas florestas; as villa galo-romana e suas muralhas protetoras (Braudel, 1989b [1986]); e as cidades como lócus privilegiado para o desenvolvimento da economia de mercado e, sobretudo, do capitalismo, a atividade econômica superior (Braudel, 1989c [1986]). Ou seja, Braudel aborda meio ambiente, microclima, ecossistema, determinismo, sítio e localização com a mesma habilidade que discute redes urbanas, circulação, escalas, rotas e organização do espaço. Cita Vidal, Demangeon, Dion, Siegfried e Deffontaines, juntamente com os aportes da geração de Rochefort, Pinchemel, Pitte, Claval, Estienne, Delaure e Bonnaud. Como se não bastasse todas essas evidências, ter batizado de “Espace et Histoire” a primeira parte de L'Identité é um forte indício de que seu autor havia avançado no tratamento da matéria geográfica: o contexto em que a Geografia era, antes de mais nada, “La part du milieu” — conforme indicava o tomo I de La Méditerranée — havia ficado para trás.
- 11 Visão radicalmente contrária é a de Aguirre Rojas. Sua defesa de que a história braudeliana não te (...)
38Portanto, discordamos novamente — e duplamente — de Dosse, para quem o meio ou o espaço seriam termos equivalentes em Braudel e Vidal. Pensa ele também que, no diálogo com a Geografia, ocorre um “processo de naturalização” em que a História “se imobiliza no solo” (Dosse, 2004, p. 128 [1998]). Mesmo que seu olhar à apropriação geográfica promovida pelos Annales conclua que esta foi prejudicial à epistemologia da Geografia, nem por isso podemos aquiescer às suas observações. Afinal, o sentido de consagrar a imagem de uma geohistória estática não é outro senão o de depreciar a escrita histórica braudeliana. Porém, a consequência disso é que toda a geohistória acabou sendo vista apenas em seu lado mais fixo, quase “imóvel”. Ou seja, tem-se a impressão de que a parte que cabia à Geografia não era algo que merecesse atenção 11.
39Aqui, um ponto de inflexão: tal como Cardoso dissera da afirmação de Febvre que a Geografia havia criado a história annaliste ser, indubitavelmente, um exagero (Cardoso, 2005, p. 144) e tal como Daix se desculpara por ter investido demais nos componentes geográficos da obra braudeliana (Daix, 1999, p. 15 [1995]), devemos nos perguntar em que medida um exame apurado do papel intelectual desta ciência no pensamento de Bloch, Febvre e Braudel foi tomado rigorosamente como matéria de estudos por parte daqueles que têm investigado a historiografia dos Annales. Ou, examinando as coisas por outro ângulo, quais os propósitos políticos inscritos nas leituras que visam minimizar o papel da Geografia naquela tendência? No que concerne especificamente ao pensamento de Braudel, a pergunta é semelhante: quais os significados políticos das interpretações que associam a Geografia, fundamentalmente, à longa duração e ao determinismo?
40Apreciar as coisas apenas sob essa ótica é deixar de perceber, pelo menos, três aspectos:
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(i) desprezar o vigor, a novidade e o impacto da Geografia Humana vidaliana na elaboração das idéias e na prática historiográfica dos primeiros Annales é uma distorção que não condiz com o envolvimento social e intelectual destes para com a produção geográfica de então;
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(ii) existe em Braudel uma geografia magistralmente em movimento que versa, sobretudo, acerca das conexões entre o espaço e a socidade, com destaque para a dinâmica econômica;
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(iii) mesmo que a Geografia estivesse ligada apenas à longa duração, nem por isso seu papel político poderia ser minimizado pois, mesmo privilegiando o tempo longo, Braudel expõe as várias estratégias em torno do controle do espaço e da disputa por territórios, seja pelos grupos dominantes ou pelos Estados Nacionais.
- 12 “A necessidade social de produzir um discurso sobre o território e sobre a identidade nacional tro (...)
41Em outras palavras, é assaz plausível uma apropriação “de esquerda” — na falta de um termo melhor — da géohistoire. O último livro de Braudel, p.ex., só faz reforçar a relevância, o alcance e a pluralidade que a Geografia possui. Utilizá-la para abrir um estudo sobre a identidade francesa só faz desnudar seu já indisfarçável conteúdo político. Historicamente, nada poderia ser mais adequado. O contexto no qual esta ciência surgiu não afirma escopo semelhante 12?
42É bem verdade que os estudiosos de nosso investigado possuem material abundante para criticá-lo. É o caso de Châteauvallon, onde ele se opôs abertamente a Etienne Juillard e a Claude Raffestin. Após Juillard ter recebido do próprio Braudel os manuscritos do capítulo terceiro de L'Identité — “Teria a geografia inventado a França?” —, sua leitura foi a de que ele teria reaberto o debate sobre o determinismo. Relembrando Febvre em 1922, o geógrafo dava por encerrada a contenda. Ao que o historiador replica: “O sr. decide a questão um tanto quanto depressa. Se não há determinismo geográfico, onde se encontrará a ciência geográfica?” (Braudel, 1989:142 [1986]). À pergunta formulada no capítulo acima citado, Braudel responde:
“Naturalmente, respondo que não, mas para mim foi um prazer retomar as velhas afirmações de Vidal de la Blache. O vale do Ródano, o istmo francês determinou o desenho da França... ? Eu estava apaixonado pela geografia, mas eu me ligo a uma geografia muito mais antiga que a de Juillard. (...) Muitos geógrafos, entre os quais Pierre Gourou, que ambos estimamos, consideram como você, meu caro Etienne, que o espaço contém uma experiência humana muito variável. Então, eles pegam a experiência humana e esquecem o espaço. Eu os acuso de desespacializar a história. Repondo as coisas em seus lugares, tenho a impressão de devolver à geografia seus antigos direitos. Isso se chama, ou não, determinismo. Lucien Febvre, em La Terre et l'évolution humaine, não negou pura e simplesmente o espaço. O ‘possibilismo’ de Lucien Febvre é um determinismo edulcorado, mas é ainda um determinismo” (idem, p.166-167).
43Que conteúdo polêmico guarda essa passagem! Dela, vários pontos merecem ser comentados. Em primeiro lugar, embora saibamos que a geografia vidaliana é uma de suas maiores referências intelectuais, nem por isso ela é incorporada de maneira acrítica. As “velhas afirmações” de Vidal não são inquestionáveis, o que mostra não apenas a rebeldia de Braudel para com seus mestres, mas sobretudo que seu raciocínio geográfico não permaneceu estacionado na primeira metade do século XX. Em segundo, ter dedicado a GourouLes Jeux d’Échange (Braudel, 1996b [1979]), trocado correspondências com ele durante a escrita de L'Identité e consagrá-lo “o maior dos geógrafos franceses” (Braudel, 1985, p. 18 [1977]) não o isentou da acusação de desespacializar a história. Em terceiro, Febvre perde a posição de defensor-mor do possibilismo – noção, nunca é demais lembrar, que ele mesmo criou – e torna-se um adocicado determinista.
44A seu turno, em defesa de Juillard e de uma concepção geográfica não-determinista (ou “aleatório-determinista”, como ele mesmo afirma [ibidem, p.170]), Raffestin retrucaria evocando, propositalmente, o próprio Gourou e seu argumento das estruturas de enquadramento (técnicas de exploração). Mas Braudel rebate: “Mas essas técnicas não são balões, elas estão presas a um espaço. O sr. é obrigado a voltar ao próprio espaço; evidentemente ele não é sempre o mesmo, ele se transforma, mas é quase sempre o mesmo” (ibid.). “Mas existem meios de escapar às mais fortes imposições do espaço” (ibid.), insiste Raffestin. Porém, Braudel não desiste: “É verdade, mas não se pode suprimi-lo” (ibid.).
45Há que se ter atenção para não classificar Braudel como determinista stricto sensu ou, pelo menos, devemos considerá-lo como um determinista sui generis. Se ele “resmunga” sem pudor contra uma suposta desespacialização da história, não quer dizer que advogue a favor da incapacidade humana face ao poder de uma natureza inalterável, mas simplesmente que o processo histórico de constituição das sociedades modernas passa, necessariamente, pela compreensão dos desafios colocados a estas pela dinâmica da natureza. Recordemos seu aviso ainda nos anos 40. Num tempo em que a tradição cientificista e a ameaça organicista persistiam em rondar as Ciências Sociais, ele apontava que um dos perigos para a geografia humana seria justamente
“a tendência a tudo explicar pelo ambiente geográfico e biológico, então que assim explica-se forçosamente não mais que uma parte das realidades (...). O objeto, o centro da geografia humana, e talvez de toda a geografia, da geografia ‘profunda’ a qual temos o direito de sonhar, não é o homem, mas a sociedade, verdadeiro ambiente do homem, onde este último se mete como um peixe na água. (...) é da sociedade que é necessário frequentemente partir (e não de seu meio)” (Braudel, 1997, p. 77-78 [1941-44]).
46Em 1944, numa crítica incisiva à trilogia Les bases biologiques de la Géographie humaine, essai d'une écologie de l'homme (1943), de Sorre, Braudel persiste que o caminho a ser tomado pelos geógrafos é em direção à sociedade. O ambiente, a natureza e o espaço são apenas meios privilegiados para compreendê-la. E sentencia:
“A geografia me parece, na sua plenitude, o estudo espacial da sociedade ou, para ir além até o fim de meu pensamento, o estudo da sociedade pelo espaço. (...) Tanto quanto nos liames do espaço, o homem está nas malhas do meio social — e não haverá geografia se ela não apanha de mãos cheias essa realidade social (...), se não pesquisa as linhas do esforço ‘dos homens sobre as coisas’, tanto as coerções quanto as criações da vida coletiva, amiúde visíveis sobre o solo...” (Braudel, 2005, p. 157-58 [1969]).
47E, para que não digam que ele mudou de idéia, como taxar de “determinista” alguém que afirma que “Não pode haver organização do espaço sem uma organização social que a acompanhe e que seja sua chave necessária”? (Braudel, 1989a, p. 66 [1986]).
48Enfim, os geógrafos têm muito o que aprender com Braudel... Afinal, para dizer o mínimo, ele aprendeu muito com a Geografia.