1O processo de globalização impõe novos arranjos no quadro das relações internacionais e das escalas territoriais. Novas tecnologias facilitam o armazenamento e transporte de uma crescente gama de serviços, possibilitando o comércio à distância e superando a característica histórica de produção e consumo simultâneos no mesmo local. Para as empresas, há a mudança da base técnica que favorece produtos e tecnologias leves, reduzindo custos de transporte e facilitando o comércio internacional e inter-regional de bens de modo que, como observa Lefebvre (Lefebvre apud Mello, 2006), a globalização tende a comprimir o espaço-tempo e anular o espaço físico. Desta forma, as escalas territoriais, representadas de maneira simplificada pelo local, urbano, regional, nacional e internacional passam a se sobrepor e interpenetrar, com tendência ao enfraquecimento das escalas intermediárias e importância dos extremos: o global e o local.
2Desde a Conferência da Biodiversidade, o debate tem se centrado em questões como a conservação da biodiversidade e a participação das comunidades locais na gestão desses recursos como formas de impedir a destruição das reservas de biodiversidade do planeta. Em um contexto de diminuição do papel regulador do Estado, do desenvolvimento de ONGs e do aumento das reivindicações das populações locais sobre o uso e acesso a seus recursos, verifica-se o aumento do poder das empresas. Desta forma, a questão sobre a quem cabe definir tanto o uso quanto o acesso aos recursos naturais assume especial importância, tendo em vista sua apropriação por parte da sociedade de consumo em detrimento das comunidades locais às quais tais recursos pertencem.
3No contexto brasileiro, a criação das primeiras reservas extrativistas pelo Governo de José Sarney em 1990, como resposta a reivindicações sociais localizadas, foi tomada como garantia de boa vontade ecológica do país para uma opinião internacional chocada com a Amazônia em chamas. Deve-se lembrar, no entanto, que a atividade extrativista não era novidade para o país, tendo em vista ter sido o extrativismo a força motora da colonização da Amazônia até os anos 1950.
4Este texto analisa a “Colheita da Floresta” (Rainforest Harvest), que se baseia na extração de produtos não-madeiros como uma alternativa econômica e socialmente mais viável ao desmatamento. Buscou-se investigar a parceria entre a empresa de cosméticos inglesa “The The Body Shop” e a comunidade indígena Kaiapó A’Ukre, entre o final da década de 1990 e início da década de 2000, com o intuito de entender alguns dos reflexos locais do fenômeno da globalização. O argumento é que a conservação da biodiversidade do planeta passou a ser uma questão econômica e as parcerias entre empresas privadas e comunidades locais aparecem como concretização, a nível local, dos desejos dos pensadores do “global”.
5Este texto representa uma síntese da dissertação de mestrado da autora, realizada e concluída entre os anos de 1996 e 1998, a partir de informações secundárias e entrevistas com pessoas envolvidas no projeto da The Body Shop com os Kaiapó. Foram realizadas visitas às lojas da The The Body Shop em Londres, onde as entrevistas foram realizadas. No Brasil, o levantamento de dados secundários junto a organizações não governamentais, como o Instituto Socioambiental, relatórios sobre o projeto da The Body Shop com os Kaiapó, pesquisas em jornais e revistas e entrevista com pesquisadores envolvidos no projeto.
- 1 www.inpe.br/noticias/arquivos/pdf/editorial_desmatamento.pdf
6Estimativas com base no Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)1 mostram que o desmatamento da Amazônia ganhou novo fôlego. A partir desse levantamento, o instituto aponta que o desmatamento na região amazônica pode ter chegado a 7 mil quilômetros entre agosto e dezembro de 2007, podendo haver uma variação para mais ou para menos 1.400 quilômetros quadrados. Os alertas indicaram principalmente desmatamentos por corte raso (67,5%) e por degradação florestal de intensidade alta (17%).
7Os dados publicados pelo INPE e as controvérsias geradas com relação à sua veracidade, demonstram que a intranqüilidade com relação à preservação da Amazônia ainda hoje é plenamente justificada e continuam a refletir os conflitos entre os interesses da sociedade – principalmente local – e os interesses dos diversos segmentos envolvidos na apropriação econômica dos espaços amazônicos.
8As transformações profundas que ocorreram no espaço territorial da Amazônia brasileira precisam ser entendidas à luz das razões políticas que conduziram as estratégias do recente processo de integração territorial da Amazônia, principalmente a partir dos anos 1970 (Mello, 2006).
9Nos anos 1970, os projetos geopolíticos e econômicos do governo estavam associados ao princípio da soberania do Estado sobre as fronteiras nacionais que alicerçavam uma estratégia de ocupação e densificação do território com forte indução dos investimentos estatais e internacionais (Mello, 2006). Foram criados pólos industriais – petroleiros, minerais, complexos siderúrgicos, barragens hidrelétricas, ou centros de turismo com pouca ou nenhuma consideração em termos de impactos ambientais.
10Segundo Becker (2001 apud Mello, 2006), depois da crise do petróleo de 1976, a Amazônia foi transformada numa grande fronteira de recursos a serem exportados por meio da implantação de grandes projetos minerais e hidrelétricos, como o caso de Carajás. Como aponta Mello (2006), essa fase deixou cicatrizes profundas provocadas pelos fortes conflitos sociais e pelos impactos ambientais. Entre tais conflitos podem ser citadas questões de acesso à terra entre fazendeiros, posseiros, seringueiros e índios. Tais conflitos se davam em um contexto de desmatamento acelerado pela abertura de estradas, exploração da madeira, seguida da expansão agropecuária e intensa mobilidade espacial da população (Mello, 2006).
11As repercussões negativas do desmatamento e as condições de vida das populações locais tornaram-se o lema das mobilizações dos anos 1980 e 1990, as quais demandavam a incorporação da ecologia nas políticas públicas, assim como novas formas de gestão do território amazônico.
12O final da década de 70 e início dos anos 80 testemunhou a intensificação das denúncias e reações no âmbito da sociedade e da opinião internacional sobre a proteção à floresta, aos índios, e aos direitos humanos, forçando algumas mudanças nas estratégias governamentais no Brasil. Poucos, porém, foram os projetos ambientais para a região amazônica (Mello, 2006). Forçado pelo impacto das críticas internacionais, pelas denúncias de responsabilidade por políticas destruidoras do meio ambiente e de culturas indígenas, em 1988 o governo brasileiro instituiu o programa Nossa Natureza, associado à política de criação de Unidades de Conservação (UCs) e à ampliação da identificação e demarcação de terras indígenas. Como resultado, o Brasil ampliou sensivelmente os territórios protegidos (Mello, 2006).
13No contexto global, principalmente a partir da década de 70, crescia a conscientização, por determinados segmentos da sociedade nos países desenvolvidos, sobre os problemas ambientais. A apresentação dos conceitos de ecodesenvolvimento e de desenvolvimento sustentável se justifica na medida em que tais conceitos representaram a visão de determinadas parcelas da sociedade nos países industrializados e motivaram empresas como a The Body Shop a desenvolver mercados para produtos “verdes”.
14O termo ecodesenvolvimento foi introduzido na Conferência de Estocolmo em 1972. Ele significa o desenvolvimento de um país ou região, baseado em suas próprias potencialidades, sem criar dependência externa, portanto endógeno (Sachs, 1998, p.53) tendo por finalidade responder à problemática da harmonização dos objetivos sociais e econômicos do desenvolvimento com uma gestão ecologicamente prudente dos recursos e do meio.
15Conforme aponta Sachs (1998), o objetivo geral do ecodesenvolvimento deveria ser o do estabelecimento de um aproveitamento racional e ecologicamente sustentável da natureza, em benefício das populações locais, levando-as a incorporar a preocupação com a conservação da biodiversidade aos seus próprios interesses. Daí a necessidade de se adotar padrões negociados e contratuais de gestão da biodiversidade.
16Na opinião de Sachs (1998, p. 54), quer seja denominado ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável, a abordagem fundamentada na harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos não se alterou entre o encontro em Estocolmo até as conferências do Rio de Janeiro (Sachs, 1998).
17A “Sustainable Harvest” ou “Colheita Florestal” baseia-se no princípio do extrativismo. Produtos florestais extraídos de forma sustentável são produtos que podem ser extraídos causando menor ou nenhum impacto sobre o ecossistema, tais como frutas, plantas medicinais, látex, castanhas, resinas e óleos.
18Apesar de já existir certo consenso sobre a necessidade da sustentabilidade, a comercialização dos produtos não-madeireiros ainda tem sido foco de controvérsia. O debate é comandado por dois grupos sediados em países desenvolvidos e líderes na área de direitos indígenas, Cultural Survival e Survival International.
19Com o objetivo de auxiliar as comunidades indígenas em seus esforços por seu direito a terra, autonomia e cultura, a Cultural Survival - uma organização não governamental sediada em Boston - criou a Cultural Survival Enterprises (CSE) em 1989. A CSE promove ativamente o marketing e o consumo de produtos da floresta como forma de gerar a renda necessária para as comunidades locais ao mesmo tempo em que protege o meio-ambiente. A CSE acredita que desenvolver mercados para produtos oriundos de reservas extrativas cria um incentivo econômico convincente para produtores locais, governos, ONG’s, agências financiadoras e bancos de desenvolvimento. A CSE acredita, portanto, que as florestas precisam ser utilizadas economicamente para que sejam preservadas:
20A CSE decidiu não trabalhar com produtos madeireiros, alegando que ainda se preocupa com a questão da sustentabilidade da extração de madeira. Da mesma forma a organização decidiu não comercializar plantas medicinais até que a questão os retornos financeiros às comunidades de origem - através de patentes e royalties - sejam negociados.
21Do outro lado do debate, a Survival International expressa sérias restrições sobre o marketing “verde” na floresta. De acordo com Stephen Corry da Survival International, a moda dos produtos florestais sustentáveis desvia a atenção pública de questões mais críticas, como por exemplo, o direito histórico de posse dessas comunidades sobre a terra que ocupam. Corry (1993) também aponta que a colheita da floresta não fez nada para capacitar os povos indígenas ou para proteger as florestas; pelo contrário, a colheita tem desviado a atenção pública de problemas mais críticos, como a demanda por seu direito à terra.
22Terence Turner (1995), da Universidade de Chicago, acusa a estratégia de marketing verde de ser uma síntese de liberalismo de mercado com ativismo em defesa do meio ambiente e da sobrevivência das culturas e dos povos da floresta.
23Jason Clay (1992), ex-diretor da Cultural Survival, reconhece que a renda obtida da floresta raramente ultrapassa uma fração do que seria possível, mas defende o marketing verde como forma de propiciar a essas comunidades mercados e incentivos, ao mesmo tempo em que leva aos consumidores em potencial o conhecimento sobre a existência desses produtos.
24Críticos como Corry (1993) argumentam que estratégias de comercialização só terão chance de sucesso se partirem da própria comunidade, a quem cabe julgar quais iniciativas mais se adaptam à sua situação econômica e social. Tais empreendimentos seguiriam o padrão já existente, ou seja, projetos de pequena escala e que fornecem mercadorias e artesanato a um mercado local.
25Torna-se claro, portanto, que no campo da teoria o futuro da “Colheita da Floresta” ainda é incerto. Apesar do senso comum quanto à necessidade de sustentabilidade, o palco da discussão é controverso.
26Faz-se importante, porém, ouvir as opiniões das comunidades envolvidas na questão. A próxima parte analisa a parceria entre a comunidade Kaiapó A’Ukre e empresa de cosméticos inglesa The The Body Shop .
27De acordo com dados da FUNASA2 (2006), os Mebengokre (Kaiapó) são 3.096 índios distribuídos em 20 aldeias ocupando sete reservas que cobrem uma área de cerca de 3.284.005 ha ao sul do estado do Pará e norte do estado do Mato Grosso. Cada aldeia corresponde a uma unidade política e economicamente independente. Eles se autodenominam “men bengokre” que significa “gente do espaço dentro da (s), ou entre a (s) água (s)”.
Sua organização social é caracterizada pela residência matri-uxorilocal e a oscilação entre expedições de grupos de caça e aldeias de base e instituições com ênfase em categorias de idade, associações comunitárias e estrutura de metades. A produção deste sistema de relações é orientada pela busca de valor pessoal por parte dos indivíduos men bengokrés homens e mulheres.
28Trazidos ao centro do palco internacional do discurso ambientalista no início dos anos 1990, parecia natural que os líderes Kaiapó tenham se valido dessa representação para chamar a atenção da opinião pública internacional acerca dos problemas que os afligiam, sobretudo a situação de suas terras.
Cabe ressaltar que as estratégias de negociação entre a Kaiapó e grupos empresariais como a The Body Shop nunca foram consensuais, provocando muitas vezes conflitos internos, e até cisões nas comunidades, entre os partidários de um ou outro tipo de atuação. Os Kaiapó não são um bloco monolítico de pensamento e atitudes. Como salienta o Instituto Socioambiental3 (2010), é preciso entender as ações e estratégias dos Kaiapó tanto no contexto de sua “política externa” (luta por autonomia e afirmação étnica), quanto no de sua “política interna”, que envolve também disputas por prestígio entre lideranças intra e inter-aldeias e grupos de idade.
29A história da The Body Shop no Brasil se inicia em Fevereiro de 1989, durante o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, realizado em Altamira, Pará. Cerca de 700 índios, na sua maioria Kaiapós, e representantes de outras 20 nações indígenas da Amazônia, do México, Canadá e Estados Unidos pressionavam o Banco Mundial a cancelar o financiamento ao governo brasileiro para a construção de duas usinas hidrelétricas no Rio Xingu, o qual corta o território Kaiapó. O líder dessa campanha era o carismático Paulinho Payakan, que viajou pela Europa e Estados Unidos em 1988 na tentativa de obter fundos e apoio político para o evento.
A campanha em Altamira foi um sucesso de mídia. Como observadores do encontro articiparam jornalistas das agências Associate Press, UPI e France Press, além de outros órgãos de comunicação do Brasil e do exterior, parlamentares brasileiros e europeus, representações brasileiras, organizações não-governamentais e ainda empresários da Europa e dos Estados Unidos interessados na causa indígena e na preservação da Amazônia.
30A fundadora da empresa britânica de cosméticos The The Body Shop, Anita Rodick, esteve também presente ao evento. Rodick doou dinheiro, em nome da The Body Shop, para financiar ONG’s brasileiras cuja atuação foi importante para fazer de Altamira um sucesso.
- 4 Petean, S.: "The Body Shop no Brasil: Se ficar o bicho come e se correr o bicho pega!" Instituto S (...)
De volta a Inglaterra, Anita criou a Fundação The Body Shop, iniciando uma campanha de arrecadação de fundos para ajudar Paulinho Paiakan, que naquele momento alegava estar sendo jurado de morte por fazendeiros. De imediato Anita recebeu US$ 800 mil em doações.4
31Com o dinheiro das doações Anita criou a Fundação The Body Shop, comprou um avião monomotor para a aldeia de Payakan (A’Ukre) e financiou os investimentos iniciais para a montagem da unidade de produção de óleo de castanha da aldeia A’Ukre, contratou um consultor para seus negócios no Brasil e fez algumas doações para ONG’s no Brasil. O objetivo era ajudar os índios a ganhar dinheiro sem destruir os recursos naturais de suas terras e criar uma alternativa à exploração ilegal de ouro e madeira. A participação de instituições do governo brasileiro, como a FUNAI não foi verificada na época (Oliveira, 1998).
Muitos autores questionam as reais intenções da The Body Shop ao firmar acordos comerciais com os Kaiyapó. Christoffersen (1994) em um artigo para a revista Dinamarquesa Mânedsbladet Press, sugerem que a enorme exposição dos Kaiapó na mídia na época incentivou a The Body Shop a associar sua imagem à causa daquele povo.
Mapa de localização das aldeias Kaiapó envolvidas no projeto
Fonte: Morsello, 2006.
32O fenômeno “Kaiapó” na época fica claro num artigo do “The Wall Street Journal”:
- 5 FSC Social Working group Brazil: "Presentation of a case-study: The Brazil nut oil production and (...)
“No final dos anos 80 os Kaiapós saltaram no centro do debate internacional sobre o meio ambiente. Adotando uma posição apaixonada contra um projeto de hidrelétrica que poderia ter submergido uma vasta extensão da floresta tropical, os Kaiapós emergiram como ícones do movimento verde em todo o mundo...”5
33Em 1994, a Survival International, em um relatório preparado para o Ethical Investiment Research Service (EIRIS) também questiona as reais intenções da The Body Shop ao escolher os Kaiapó para seus projetos. De acordo com a Survival International, os Kaiapós já eram um grupo indígena privilegiado, com certa renda financeira obtida através da exploração de madeira e minérios, e já possuía um avião. Segundo o relatório, a escolha dos Kaiapó não se justificaria.
Antes do contato com a sociedade envolvente na década de 50, os mebengocrés utilizavam a castanha como alimento. O óleo da castanha era usado para massagem corporal como tratamento para o esgotamento físico e nervoso. Os frutos da castanheira são coletados nos meses de fevereiro e março depois que caem no chão da floresta.
34Nas últimas décadas, os contatos comerciais com o mundo externo se intensificaram. Serrarias e madeireiros começavam a avançar em áreas indígenas na época da chegada da The Body Shop, unindo-se a garimpeiros já instalados. A atividade madeireira e o garimpo causaram inúmeros impactos negativos sobre o meio-ambiente, a estrutura sócio-cultural e a saúde dos índios.
A busca por novos caminhos de desenvolvimento dentro da economia externa com a qual os índios se relacionam de uma forma ou outra tem surgido como um desafio importante. Vários grupos e organizações indígenas sugerem a busca por alternativas econômicas - e por isso querem dizer alternativas à venda de terras, madeiras duras preciosas e minerais, especialmente ouro.
35Em meados dos anos 90, Saulo Petean, o representante administrativo e consultor da The Body Shop no Brasil, iniciou o processo de criação de duas fábricas para a produção do óleo de castanha para exportação, trabalhando inicialmente com a aldeia A’Ukre e em seguida com a Pykany. Em termos gerais, o processo de estabelecimento das duas fábricas foi semelhante (Oliveira, 1998).
Cumpridas as providências administrativas que asseguram o funcionamento das empresas no Brasil (registro nos órgãos federais, estaduais e municipais), o conjunto de atividades envolvendo a produção e comercialização do óleo de castanha, bem como os investimentos e a distribuição dos lucros obtidos com esse trabalho é regulado pelas regras próprias da organização social da comunidade.
36O estabelecimento das fábricas exigiu assistência técnica externa tendo a empresa inglesa se responsabilizado pelos custos referentes aos salários do representante no Brasil e do pessoal na Inglaterra e por despesas correntes.
Ambas as empresas são constituídas por pessoal administrativo, mas os mais importantes são o “Presidente” (Payakan na A’Ukre e Pukati-Re da Pykany) e os “diretores” - rapazes das respectivas aldeias.
37De acordo com um estudo de caso em Pykany (FSC, 1997), a organização da produção, comercialização e o gerenciamento dos recursos são realizados pela comunidade enquanto a distribuição individual dos lucros se baseia na participação de cada membro no trabalho de coletar a castanha na floresta (medida em sacos coletados), na produção de óleo de castanha, na exportação e gerenciamento do negócio (medido em dias de trabalho).
38O projeto da The Body Shop com os Kaiapó é o foco de sua estratégia batizada de “Trade, Not Aid” (Comércio, ajuda não) que se insere no conceito da “Colheita da Floresta”. O interesse comercial da The Body Shop estaria em divulgar o marketing de empresa ética e socialmente responsável. O rótulo impresso do condicionador de cabelo feito à base de óleo de castanha vendido pela empresa enfatiza que a compra do produto será revertida em ajuda para que os índios Kaiapó continuem a preservar suas terras e o a floresta. A eficiência desta estratégia de mercado é contabilizada nas vendas do “Brazil nut conditioner”, um condicionador para cabelo. O produto está entre os quatro mais vendidos da empresa desde o seu lançamento. A The Body Shop figurava vendas na Inglaterra de US$ 8.273.600 entre 1991 e 1996 e um lucro de US$ 1.241.040. As vendas em outros países trouxeram para a companhia um lucro aproximado de mais de US$ 3 milhões no mesmo período (FSC, 1997)
39Os objetivos dos projetos “Trade not Aid” da The Body Shop incluem: a independência da comunidade, através do controle da produção e distribuição da renda dos projetos, sua integração justa como parceiros iguais no comércio internacional, e a oportunidade de uma alternativa econômica que os torne independentes de atividades que destroem o meio ambiente, como a extração e venda de madeira e o garimpo.
Os projetos da The Body Shop estendem-se a comunidades em várias partes do globo. A imagem propagada pela The Body Shop de empresa ética e socialmente responsável tem sido alvo de constantes ataques que se direcionam a estratégia de “Trade, not Aid” da empresa se direcionam a diversos pontos. Um deles se refere à política de preços praticada pela The Body Shop junto às comunidades onde atua. Segundo os críticos, a empresa não paga “salários de primeiro mundo” conforme declara em sua publicidade. O relatório independente do Ethical Investiment Research Services (Zagor, 1994) revelou que a empresa The Body Shop pagou cerca de 0.3 % do total de suas vendas mundiais de 438 milhões de libras esterlinas para seus produtores dos programas de “Comércio, Ajuda Não”.
40No caso de seu projeto com os Kaiapó no Brasil, a The Body Shop estabeleceu o preço de US$ 35 por quilo do óleo e o volume máximo de 2.000 quilos por aldeia. Segundo o gerente do projeto, Saulo Petean (Petean, 1995), a promessa inicial da companhia inglesa aos índios foi a de que compraria anualmente a quantidade produzida, qualquer que fosse essa quantidade.
- 6 Bavaria, J., Becker, E. e Billeness, S.: "The Body Shop scrutinized" , revista ‘Insight’, 15 de s (...)
41A The Body Shop também foi criticada por utilizar uma fração ínfima de seus ingredientes nas iniciativas batizadas como “Trade, Not Aid” em seus produtos, apesar da publicidade pesada sobre esses projetos. A própria empresa admitia que o fornecimento direto dessas comunidades representava uma percentagem pequena de seus negócios, porém afirmava que pretendia aumentar essa prática assim que possível.6
42Em 1994 , a organização inglesa de pesquisa New Consumer7, também criticou a The Body Shop por utilizar em seus produtos uma fração muito pequena de ingredientes vindos das comunidades onde atua. Baseado nos números fornecidos pela The Body Shop, a organização calculou que apenas 0.165% do valor bruto das vendas retornavam aos bolsos dos produtores dos projetos “justos”. A quantidade desses ingredientes já foi declarada como de eficácia nula.
- 8 Moberg, David: "Skin Deep" In These Times, 19 de Setembro de 1994
A mesma pesquisa também calcula que, apesar da publicidade pesada sobre seus projetos com os Kaiapó, o óleo de castanha constitui apenas 1% dos ingredientes em produtos da The Body Shop que contém óleo de castanha.8 Adams revela ainda que uma grande parte desse óleo é fornecida por fontes comerciais normais e não dos Kaiapós ou outros grupos indígenas.
43Uma outra grave acusação sobre as estratégias e intenções da The Body Shop refere-se ao uso da imagem dos índios em sua publicidade. Alguns alegam que o objetivo do projeto da The Body Shop com os Kaiapó era utilizar o potencial de relações públicas propiciado por sua associação com as comunidades. O valor principal dos Kaiapó para a The Body Shop seria, portanto, a publicidade que eles oferecem, não a quantidade relativamente pequena de óleo que produzem.
- 9 Gamboa, A., L’Amoreaux,C., Dotô Takak-ire, Pykati-re Kayapo, Athias,R., Petean, S.;"Pycany Trading (...)
A nota quatro de um estudo de caso premiado em Novembro de 1996 pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola das Nações Unidas (FIDA) na conferência eletrônica Fidamérica, aponta que, enquanto a The Body Shop obteve com a venda do “Brazil nut conditioner” um lucro líquido de aproximadamente US$ 4 milhões durante os quatro anos de negócios com as aldeias A’Ukre e Pycany, as duas comunidades obtiveram um lucro líquido em torno de US$ 400 mil. A conta de quanto a The Body Shop obteve através da campanha publicitária com a marca Kaiapó é difícil de ser contabilizada. Estima-se que é superior aos lucros obtidos com a venda do ’ Hair nut conditioner.9
44Para Terence Turner (1995), da Universidade de Chicago, o trabalho da The Body Shop com os Kaiapós não passa de um jogo de relações públicas que promove a imagem da The Body Shop enquanto oferece pouco em troca aos índios. A The Body Shop tem usado de forma extensiva a imagem dos índios em suas lojas e panfletos. Em resposta às acusações sobre o uso indevido da imagem dos índios, a The Body Shop afirma praticar preços acima de mercado que compensam os índios pelo uso de sua imagem e pelo uso de seu conhecimento tradicional de recursos com potencial de mercado.
- 10 PIB/CEDI 1991 citado em: “Povos indígenas do Brasil 1991/1995” Instituto SocioAmbiental, São Paulo
Turner (1995) argumenta que não existe um preço de mercado para o óleo da castanha, já que existe somente um produtor mundial do óleo da castanha brasileira no mundo. A The Body Shop é o único comprador conhecido para o óleo da castanha10.A questão da dependência dos índios é importante. Os índios produzem um único produto para o qual a The Body Shop é provavelmente o único comprador.
- 11 Stocker,P., Almeida,R., Ferraz, I., “An evaluation of the trade not aid links between The The Body (...)
45O relatório comissionado e – surpreendentemente - não publicado pela The Body Shop nas aldeias Pykany e A’Ukre em setembro de 1995 afirma que: “Em um momento, a The Body Shop propôs que do preço pago (na época em US$ 35), US$ 15 seriam pagos pelo óleo e US$ 20 pelo o uso do nome e da imagem dos Kaiapó no marketing, mas o acordo não foi implementado. E, segundo o mesmo relatório, os índios consideram que o preço pago é somente para o óleo.11
Os desentendimentos quanto aos direitos dos índios sobre o uso de sua imagem e a questão da propriedade intelectual têm sido uma constante. Para Turner (1995), a The Body Shop falhou ao não remunerar os índios de forma justa pelo uso de sua imagem e por não deixar clara a importância do uso dessa imagem para seus projetos. O relatório comissionado em 1995 pela The Body Shop admite haver pouco entendimento entre os líderes indígenas entrevistados - com exceção de Paiakan - sobre o que significam ”Direitos à Propriedade Intelectual”.
46Poucos discutiam o fato de que o retorno de imagem obtido pela The Body Shop através de sua associação com a causa dos índios era substancial. O crescimento da influência dos ”consumidores verdes“ para preservar as florestas tropicais e proteger as populações locais sugere uma explicação mais que óbvia para o interesse da The Body Shop em negociar com essas comunidades. Calcula-se que a proprietária da The Body Shop na época, Anita Rodick, faturou US$ 600 mil pelo anúncio que fez para a American Express Cards, enquanto os quatro índios que a acompanhavam embolsaram juntos US$ 1.632,50 pelo uso de sua imagem (Petean, 1995).
47Em maio de 1993, na conferência sobre ”Direitos à Propriedade Intelectual, Culturas indígenas, e Conservação da Biodiversidade“, em Oxford, Inglaterra, a The Body Shop anunciou a criação de seu contrato de parceria entre os índios Kaiapó e a The Body Shop plc. Uma nota da Fundação para Etnobiologia afirmou: ”A The Body Shop International lança um plano corajoso de ser a primeira empresa a assinar um acordo de Direito à Propriedade Intelectual com um grupo indígena - neste caso, os índios Kaiapó do Brasil...” Este contrato ... tem como objetivo proteger os produtos e moléculas retirados pelos Kaiapós, e desenvolvê-los comercialmente em seu benefício.“(divulgação da Fundação para Etnobiologia, 14/5/93)
De acordo com Turner (1995), esse contrato formal nunca foi assinado pelos Kaiapó. Petean (1995), gerente da The Body Shop no Brasil, afirmou que apesar das alegações de que seria a primeira empresa a assinar um contrato que incluía direitos à propriedade intelectual, o contrato formal nunca existiu e nenhum pagamento relativo a tais direitos foi feito aos índios.
48Alguns questionam os reais interesses da The Body Shop ao anunciar suas intenções de proteger os direitos à propriedade intelectual dos índios. A The Body Shop já havia revelado que não tinha intenção de expandir seus projetos a outras aldeias Kaiapó e que não compraria quantidades adicionais de óleo de castanha porque não poderia usá-las, mas que ajudaria os Kaiapó a encontrar novos parceiros comerciais.
O projeto da The Body Shop também foi acusado de promover rupturas internas nas aldeias. Apesar de já haver tensões anteriores à entrada da The Body Shop, as atividades da empresa causaram impactos sobre a organização social dos grupos envolvidos. Um exemplo refere-se à obtenção de privilégios por parte dos homens mais jovens em detrimento dos mais velhos. Os Mekranyre, ou homens mais jovens, são considerados pelos Kaiapó como um grupo etário ”inferior“. A despeito disso, eles se tornaram diretores das empresas em A’Ukre, com acesso a dinheiro e competiam com os homens mais velhos ou guerreiros, que são aqueles que tradicionalmente organizam a sociedade Kaiapó.
49O relatório comissionado pela The Body Shop em 1995 admite que a criação das empresas comerciais nas aldeias não foi uma iniciativa tomada após uma discussão cuidadosa com os índios - somente com alguns de seus líderes. Outras críticas se direcionam à relação de dependência dos índios ao acordo com a empresa, dada a verificação de redução nas terras destinadas à agricultura de subsistência por parte das famílias mais envolvidas com a produção de óleo de castanha para a empresa (Morsello, 2007).
- 12 Gamini, Gabriela, “Sacked crusader for tribes wins The Body Shop case”, em The Times Saturday, 7/0 (...)
50Ao examinarmos as críticas e a troca de acusações entre a The Body Shop e seus ”inimigos“ fica claro o silêncio dos índios no debate. A The Body Shop em seu relatório social de 1995 afirma que seus parceiros na Índia, Nepal e México estão claramente satisfeitos com seu contato com a empresa. A declaração acima nos deixa com a clara impressão de que essas comunidades já estão com sérios problemas e desesperadas por qualquer fonte de renda extra. O chefe Kaiapó Pykati-Re afirmou que os benefícios da colheita das castanhas chegaram a uma minoria da tribo.12
51Para muitos autores, a tentação dos madeireiros e do garimpo é irresistível para os índios. Christoffersen (1994) e outros autores sugerem que será difícil que o projeto com a The Body Shop supere os totais US$ 16 milhões obtidos pelos Kaiapós pela exploração do ouro e da madeira. A existência de mercados estimula a exploração predatória de espécies valiosas como o mogno. Os índios vendem uma tora de mogno de 2,5 a 4 metros cúbicos por R$ 40 (cerca de US$ 20). Essa mesma tora de 4 metros cúbicos beneficiada vale US$ 6 mil no mercado internacional.
52Restam poucas dúvidas de que a atividade econômica, integrada ao princípio da sustentabilidade, tem o potencial de gerar mudanças positivas, ao preservar a natureza e melhorar a qualidade de vida das comunidades locais. Deve-se levar em conta, no entanto, a complexidade da questão de envolver empresas com fins lucrativos em projetos dessa natureza.
53O sucesso de estratégias sustentáveis dependerá em grande parte do comprometimento dos empresários com as seguintes considerações:
1 - A atividade comercial deverá ser mantida numa escala que não prejudique o equilíbrio do ecossistema e a disponibilidade de terras destinadas à agricultura de subsistência. Conforme mencionado anteriormente, o aumento da produção de óleo seria inviável para a continuidade de agricultura de subsistência, aumentando a dependência da comunidade sobre os recursos financeiros advindos dos acordos comerciais.
2 - Os empresários deverão estar aptos a adaptar suas estratégias aos valores sociais e culturais da comunidade envolvida. Isso pode ser realizado através de convênios com instituições locais de pesquisa e profissionais especializados.
3 - Se empresas pioneiras forem bem sucedidas, novas empresas poderão ser atraídas para a região, exercendo maior pressão sobre ecossistemas fragilizados.
4 - A dependência da disponibilidade do consumidor em pagar um ”prêmio verde“ por um produto sustentável poderá não ser mantida por muito tempo. Além disso, o empresário deverá antecipar os efeitos do aumento da oferta de produtos da floresta no mercado, que reduzirão seus preços e conseqüentemente a parcela dos lucros repassada aos produtores.
5 - O empresário deve procurar evitar os custos decorrentes de formar longas cadeias de distribuição e outros custos. Isso poderá ser feito, por exemplo, através da formação de alianças com empresas locais e com o treinamento da mão de obra local. Um problema comum em muitas iniciativas de mercado é que a comunidade local não é preparada para assumir o controle das operações, ficando na dependência de um só comprador;
6 - O uso da imagem e do conhecimento tradicional dos povos locais deverá ser adequadamente remunerado e reinvestido na comunidade.
7 – A maior atuação do Estado nas parcerias comerciais entre povos indígenas amazônicos e empresas para a comercialização de produtos florestais não-madeireiros é vital. Desta forma se permitiria que os direitos e interesses indígenas fossem assegurados.
54Quanto à pergunta inicial desse artigo: “A parceria entre a The Body Shop e a aldeia A’Ukre foi uma solução ganha-ganha?”, concluiu-se que as estratégias de mercado aqui examinadas falharam ao não considerar os direitos dos índios de decidirem seu próprio caminho de desenvolvimento. Ao invés de ganharem maior autonomia através da venda de seus produtos para um mercado internacional, os povos locais se tornaram ainda mais dependentes de forças de mercado fora de seu controle. Além disso, parece haver pouco conhecimento por parte das empresas da realidade social e cultural das comunidades onde atuam.
55A probabilidade de que tais projetos sejam aplicados de forma bem sucedida a outras comunidades é ainda remota. Isso pode ser explicado pelo pouco interesse demonstrado pelas empresas envolvidas em aumentar o número de comunidades participantes, comprometendo seriamente a sustentabilidade de tais projetos.
56Uma outra questão importante é que não existe absolutamente nenhuma garantia de que haverá um mercado eterno nos países importadores para produtos na moda, como sorvete tropical, guaraná e condicionar para cabelos de castanha do Pará. Em última instância, são produtos supérfluos sujeitos às variações de humor dos consumidores.
57Cabe aqui mencionar que, em nenhum momento, as reais forças propulsoras da destruição das florestas tropicais e as mudanças políticas necessárias à solução do problema são mencionadas. Portanto, a atuação do Estado nessas parcerias é de vital importância a fim de garantir os direitos dos índios. No Brasil, ainda não existem normas específicas para as parcerias comerciais entre povos indígenas e empresas, não tendo havido atualização das regras contidas no Estatuto do Índio e no Código Civil tratando dos contratos comerciais entre indígenas e não-indígenas (Michi, 2007). Segundo Michi (2007), ainda não existe nenhuma norma que impeça os povos indígenas de estabelecerem acordos com empresas para a comercialização de produtos florestais não-madeireiros.
58A parceria entre a The Body Shop e os Kaiapó tinha por objetivo substituir a atividade de extração da madeira através da geração da renda alternativa com os produtos não-madeireiros. A iniciativa, entretanto, não atingiu seus objetivos e a empresa reconheceu seu fracasso (Roddick, 2001 apud Morsello, 2007). Segundo Morsello (2007), a extração ilegal de mogno prossegue na aldeia A’Ukre e a mineração do ouro só não ocorre porque não foi encontrada quantidade suficiente que implique lucratividade.
59Uma válida pergunta seria como convencer os habitantes locais, cujo interesse principal é alimentar suas famílias, a sobreviver da pequena renda ainda gerada por alternativas econômicas sustentáveis? Alguns dos maiores responsáveis pela destruição do meio ambiente são, entre outros, as empresas transnacionais, madeireiras, serrarias, mineradoras, que, indiretamente, nós, consumidores, apoiamos quando adquirimos seus produtos.