1A formação das fronteiras brasileiras tem relação direta com os usos do território e com a formação cultural de seus povos, principalmente em um país continental como o Brasil, onde, convivem inúmeros povos em diferentes fronteiras.
2Partindo destes aspectos na formação das fronteiras no Brasil, o presente trabalho se propõe a analisar, em uma perspectiva sociocultural, a importância do Rio Uruguai e do Bairro do Passo para a formação e manutenção da fronteira entre as cidades de Santo Tomé - Argentina e São Borja - Brasil.
3Buscando compreender melhor esta questão, com o objetivo de desenvolver esse problema, foram utilizados os métodos dedutivo e histórico. Assim, o primeiro, foi usado para estabelecer o cenário geral para análise específica do contexto dos usos e da importância da bacia do Rio Uruguai para a região e além. O segundo estabeleceu um momento crítico-reflexivo acerca do histórico destes usos a fim de propiciar uma análise mais profunda sobre as transformações e dos problemas derivados destas, buscando elencar propostas que, deem conta de mitigar as consequências negativas destas transformações. Por último, como técnicas de pesquisa foram realizadas análises das transformações das paisagens através de fotos e de entrevistas com moradores locais.
4O Rio Uruguai, juntamente com o Rio Paraná e o Rio Paraguai, drena águas de áreas de países como Brasil, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. Os rios Uruguai e Paraguai, ao desembocarem juntos no Estuário do Prata, formam o chamado Rio da Prata, muito mencionado entre os exploradores do século XVII e XVIII, e com importância estratégica para a logística hidroviária da região por séculos e que, pela importância, dá nome ao país Argentina (Argentum em latim).
A Bacia Hidrográfica do Prata (BHP) é a segunda maior na América do Sul em vazão média e área de drenagem, perdendo apenas para a Bacia Amazônica. Também é a quinta maior bacia hidrográfica do mundo em termos de área de drenagem, drenando cerca de 3 milhões de quilômetros quadrados em cinco países na América do Sul: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai (Figura 3.1). Dentre os cinco países que compartilham a área da bacia, o Brasil possui a maior porcentagem (46% da área total), seguido da Argentina (30%), Paraguai (13%), Bolívia (7%) e Uruguai (5%) (García e Vargas, 1996, p.20).
5De acordo com o relatório de Estudos de Inventário Hidroelétrico da Bacia do Rio Uruguai, esta abrange uma área de aproximadamente 384.000 km², sendo 174.494 km² no Brasil, o que equivale a 2% do território brasileiro. Está situado na região sul, compreendendo 46.000 km² do estado de Santa Catarina e 130.000 km² no estado do Rio Grande do Sul. Os limites geográficos da bacia do Rio Uruguai se delimitam ao norte e nordeste pela Serra Geral, ao sul pela fronteira com a República Oriental do Uruguai, a leste pela Depressão Central Rio-Grandense e a oeste pela Argentina. “Por suas dimensões, a bacia hidrográfica do Rio Uruguai é um dos mais importantes corredores de biodiversidade do Cone Sul, apresentando em sua fauna diversas espécies endêmicas ou em vias de extinção.” (ELETROBRAS, 2010, p. 6).
6Segundo informações da Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA, 2015), a bacia do Rio Uruguai apresenta baixo nível de tratamento de esgotos, o transporte, a diluição e a assimilação dos efluentes urbanos, rurais (suíno e avicultura intensivos) e industriais (produção de celulose) causam degradação da qualidade das águas, impactando o abastecimento das populações e outros aspectos sanitários.
Quadro 1 - Abrangência da bacia do Rio Uruguai
Unidades Hidrográficas
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Área aprox. (km2)
|
Cidades
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População Total
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Uruguai Internacional
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98.257
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107
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1.582.538
|
Uruguai Nacional
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76.544
|
247
|
2.340.335
|
Região hidrográfica
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174.801
|
354
|
3.922.873
|
Fonte: Elaborado pelo autor com base nos dados da ANA (2015, p. 156).
7A formação do Rio Uruguai tem origem da confluência entre o Rio Pelotas e o Rio do Peixe, dividindo os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Possui aproximadamente 2.200 km de extensão e serve de marcador territorial para os limites das fronteiras entre o Brasil e a Argentina. O trecho, após receber a afluência do rio Quaraí, que limita o Brasil e o Uruguai, marca a fronteira entre a Argentina e o Uruguai até desembocar no Oceano Atlântico.
Figura 1 - Bacia do Rio Uruguai
Fonte: ANA (2015, p. 155).
8Segundo a ELETROBRAS, alguns elementos são bastante preocupantes no que tange a utilização dos recursos desta bacia, a situação da demanda/disponibilidade é preocupante, crítica ou muito crítica, devido aos conflitos entre a irrigação, que representa 82 % da demanda total da bacia, principalmente de arroz irrigado por inundação, e o consumo humano, bem como os baixos níveis de tratamento de efluentes.
9De acordo com a Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA) (2015, p. 151), “A área irrigada, em 2012, foi de aprox. 455.600 ha (7,9 % do Brasil), com destaque para a irrigação de arroz por inundação, a qual conflita com abastecimento humano [...]”.
O relevo acidentado no trecho alto da Bacia, trecho mais plano na região da Campanha Gaúcha, com solo pouco profundo, o que faz com que o rio Uruguai escoe em leito rochoso. Isso implica em inundações nas áreas ribeirinhas, nos períodos de precipitações intensas, do mesmo modo, quando ocorrem períodos de estiagens, há uma dificuldade para garantir o atendimento das demandas. Por ter um regime de chuvas variado, dificulta o planejamento da utilização da água na Bacia. (ELETROBRAS, 2010, p. 5).
10Por correr em declive rumo ao oceano Atlântico, e em leito rochoso, o Rio Uruguai possui uma baixa capacidade de armazenamento, ficando, segundo a Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico, sujeito a graves estiagens por falta de precipitação, como ocorreu no verão de 2020, uma seca histórica, onde quase foi possível a travessia a pé a fronteira pelo rio.
Figura 2 - Ponte Internacional da Integração na seca de 2020
Fonte: Acervo Alex Retamoso
11O Rio Uruguai possui um regime muito variável, com dois períodos de inundação separados pelos meses menos chuvosos de janeiro e agosto, o que interfere nas relações das pessoas com o rio, pois, algumas características geomorfológicas como esta, fazem com que este seja um rio de difícil planejamento hídrico.
Caracterizado por precipitação intensa em forma de enxurradas com atividade elétrica e ventos intensos. O entalhe forma vales profundos em “V”, com desníveis topográficos que alcançam valores da ordem de 200 m a 300 m e que, à medida que avança em direção a sua desembocadura, apresenta um relevo mais suavizado. Esse entalhe também se reflete nos afluentes, o que provoca o ressecamento do altiplano, formando um relevo serrano. (ELETROBRAS, 2010, p. 4).
12Entretanto, em contraste com estas secas, surgem as cheias, como as que assolaram o Estado do Rio Grande do Sul em 2023, e que acentuaram os problemas relativos a produção agrícola e com a subsistência dos moradores margeados no rio, dentre estes os chamados ribeirinhos, que são comunidades tradicionais e que tiram seu sustento do que restou da pesca artesanal. Este acúmulo hídrico, provocado pelo fenômeno climático El Niño, que atingiu os estados do sul brasileiro, fez com que todo o Rio Grande do Sul entrasse em estado de emergência. Além disso, existe o problema relatado pelos pescadores locais que é a falta de informação sobre a abertura das comportas da represa da Usina Hidrelétrica de Itá, que segundo o entrevistado abaixo, acarreta perdas para os ribeirinhos.
13De acordo com Retamoso (2021, p.148), a falta de planejamento dos efeitos locais de obras no entorno do rio Uruguai vem causando inúmeros problemas para os moradores do bairro do passo, dentre estes o pesquisador cita principalmente as barragens, que impactam na imprevisibilidade de cheias a montante da obra, e a construção da Ponte da Integração, que acabou causando uma assepsia social e econômica nas margens do rio Uruguai, mais especificamente aos moradores do entorno do bairro do Passo.
14Esta variação hídrica, tanto em excesso quanto em escassez, faz com que o fluxo do rio Uruguai seja considerado instável (ELETROBRAS, 2010), principalmente com o advento das mudanças climáticas, fazendo com que seus usos diretos sejam complexos.
Figura 3: Enchente Ponte da Integração São Borja x Santo Tomé (2023).
Fonte: Foto de Marcelo Rodrigues da Silva.
15Ademais, devido a sua importância para o abastecimento, seja para o consumo humano ou para os sistemas de produção, o Rio Uruguai deveria estar na pauta de várias instâncias de planejamento, seja local por parte dos municípios que convivem com seu fluxo, seja por parte do Estado, que é responsável por zelar pelos recursos hídricos, seja pelas instâncias internacionais que fazem fronteira com este rio e que assim, compartilham demandas e problemas dos mais variados tipos, desde questões legais de jurisdição de pesca, questões de segurança alfandegária até contrabando e descaminho.
16Outro elemento importante para compreender os usos do rio é a comparação da concentração de nutrientes, que é mais elevada no Rio Uruguai do que a do Rio Paraná. De acordo com os Estudos de Inventário Hidroelétrico do Rio Uruguai (ELETROBRAS, 2010), os afluentes da margem brasileira contribuem com uma alta carga de fósforo, originados pelo carreamento superficial de solos, provenientes da intensa atividade agrícola.
As principais fontes de poluição provêm do lançamento de efluentes domésticos sem tratamento, industriais e de atividades pecuárias (criação de suínos e de aves) concentradas na sub-bacia do Alto Uruguai e agrícolas procedentes de áreas de cultivo de soja, milho, trigo e arroz, no Médio Uruguai. Na Argentina a atividade agrícola está menos desenvolvida. (ELETROBRAS, 2010, p. 6).
Figura 4 - Diferença entre usos agrícolas e florestais das margens do Rio Uruguai entre Brasil e Argentina
Fonte: Adaptado de Google Maps (2020)
17Deste modo, percebemos a importância do Rio Uruguai no que tange as questões ambientais, produtivas e de consumo humano para alimentação e saneamento básico, a figura 4, apresenta a diferença das matas ciliares dos dois lados da fronteira, sendo o lado argentino bem mais preservado do que o lado brasileiro, principalmente por causa da agricultura de extensão, principalmente as lavouras de arroz irrigado.
18O Rio Uruguai só é navegável longitudinalmente em alguns trechos, quando em águas altas (época das cheias), pois com águas médias e baixas, as numerosas corredeiras, bancos de areia e soleiras rochosas que existem em seu curso não têm suficiente profundidade para permitir a passagem de embarcações de certo porte, que, em seu nível normal, a navegação em embarcações de médio e grande porte só é viável a partir de Itaqui em direção ao estuário do Rio da Prata. Comercialmente, só existe navegação em trechos isolados e serviços de travessia entre localidades argentinas e brasileiras, com embarcações de pouco calado.
19Assim, pode-se observar a complexidade das relações imbricadas ao longo do curso de um rio que, além de marcador territorial, é a própria fronteira em si, no sentido amplo de limites e também como ligação entre sociedades.
20Contudo, como potencial alternativa já existem projetos e iniciativas que demandam investimento público-privado, mas que são fomentados a partir, principalmente, das Universidades da Região, como é o caso do projeto Navega Uruguay, Figura 14, capitaneado pela Universidade da República (UDELAR), na pessoa do professor Dr. Alejandro Noboa (2016, p. 26, tradução nossa), que destaca:
- 1 “La habilitación de la Hidrovía abre una puerta principalmente de salida a un enorme potencial de p (...)
21A habilitação de uma via navegável abre uma porta principalmente a um enorme potencial produtivo na zona de influência formada por parte do Estado do Rio Grande do Sul (Região Funcional RF-6), a província de Corrientes e os departamentos de Artigas e Salto, no âmbito da bacia hidrográfica do Uruguai [...]. A abertura do mercado e o intercâmbio comercial representado pela via navegável é verificado a nível regional e com o exterior. No primeiro caso, a área com acesso ao baixo Uruguai e ao Rio da Prata, bem como ao Atlântico (São Paulo e Rio de Janeiro), está ligada à área do Médio Uruguai a montante de Salto Grande através do ESM. Os principais produtos que necessitam de transporte: soja, arroz, milho, madeira, citrinos, chá e erva-mate, podem ser embalados de diferentes formas e podem optar pelo transporte terrestre ou fluvial. a tradução.1 (Noboa 2016, p.26).
Figura 5 – Projeto Navega Uruguay
Fonte: Panfleto entregue em uma reunião na Unipampa (2015)
22Ainda com relação aos aspectos logísticos, os pontos de travessia atualmente existentes são via ponte entre os municípios de Uruguaiana (BR) e Passo de Los Libres (AR) e São Borja (BR) e Santo Tomé (AR), e via navegação oficial por balsas, segundo dados da Capitania dos Portos do RS, ocorrem entre os municípios elencados no quadro 2.
Quadro 2: Navegação por balsas pelo Rio Uruguai.
Itaqui (BR) x Alvear (AR);
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Porto Xavier (BR) x San Xavier (AR);
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Porto Vera Cruz (BR) x Panambi (AR);
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Porto Mauá (BR) x Alba Posse (AR);
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Porto Soberbo (BR) x El Soberbio (AR);
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Barra do Guarita (RS) x Itapiranga (SC).
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Fonte: ELETROBRAS
23Ademais, segundo a publicação Estudos de Inventário Hidroelétrico da Bacia do Rio Uruguai, no trecho compartilhado entre Argentina e Brasil (ELETROBRAS, 2010), a região hidrográfica do Uruguai apresenta potencial hidrelétrico, apresentando principalmente uma grande capacidade total, considerando-se os lados brasileiro e uruguaio, de produção de 40,5 Kw/km2, ou seja, uma das maiores relações energia/km2 do mundo.
Figura 6 - Empreendimentos hidroelétricos no Rio Uruguai
Fonte: Eletrobrás (2010).
24As principais fontes de poluição provêm do lançamento de efluentes domésticos sem tratamento, industriais e de atividades pecuárias (criação de suínos e de aves), concentradas na sub-bacia do Alto Uruguai, e agrícolas, procedentes de áreas de cultivo de soja, milho, trigo e arroz, no Médio Uruguai. Na Argentina, a atividade agrícola está menos desenvolvida.
Diferentemente do que acontecia com o rio Jacuí, o rio Uruguai não recebia a mesma atenção. Segundo o viajante Avé-Lallemant o rio poderia ser melhor utilizado mas, conforme diziam os habitantes da região, era tratado pelas pessoas importantes de Porto Alegre como um enteado, pois acreditava-se que desenvolvendo-se o comércio no Oeste da província prejudicaria os comerciantes do Leste. Eram raros os trabalhos de manutenção desse importante Rio. Somente com muita insistência, a Câmara de São Borja conseguiu a desobstrução da cachoeira do Botui, seu principal problema de navegação. A cachoeira do Botui estava localizada na foz do afluente com o mesmo nome, entre São Borja e Itaqui, possuía cerca de uma milha de comprimento, cruzando praticamente todo o rio. Na vazante, tornava a navegação muito difícil. Pensou-se, inclusive, na construção de um canal para facilitar esta navegação. Apesar dessa dificuldade, diversas embarcações singravam o rio Uruguai. Durante muito tempo o Vapor Uruguai navegou o rio Uruguai ligando São Borja ao porto de Constituição porém, devido aos problemas de navegação e as cachoeiras, o Vapor só conseguia cumprir todo seu trajeto com o rio cheio. (COSTA, 2013, p. 149).
Figura 7 - Sedimentos do Rio Uruguai na bacia do Rio da Prata
Fonte: NASA (2002).
- 2 Referência aos países que formam o Mercado Comum do Cone Sul. O Mercosul teve como origem os acordo (...)
25Nas últimas décadas, o Rio Uruguai tornou-se uma via estratégica para as relações comerciais do Conesul2. Em 1997, foi construída a ponte da integração na fronteira São Borja-Santo Tomé. Até então, o translado entre as duas municipalidades ocorria via balsa, que ligava o porto do lado brasileiro até o chamado porto “del hormiguero”, do lado argentino.
Figura 8 - Bacia hidrográfica do Rio da Prata
Fonte: Pontes (2016, p. 39).
26Em termos de integração regional, o fluxo viário é o único aspecto que se destaca na faixa de fronteira. Embora os corredores logísticos mais importantes do Mercosul da região passem pelas pontes que ligam Uruguaiana a Paso de los Libres e São Borja a Santo Tomé, outras localidades situadas às margens do Rio Uruguai, como San Javier e Porto Xavier, ou Alba Posse e Porto Mauá possuem forte integração local.
27Considerando as informações coletadas e observando ao largo do Rio Uruguai, se percebe inúmeras formas de exploração dos recursos, tais como: lavouras de arroz e soja, pontes, usinas hidroelétricas, adutoras, pesca artesanal, potencial turístico e, em destaque, a população ribeirinha, que preserva conhecimentos ancestrais e artefatos locais, dentre outras potencialidades.
28Em São Borja - BR, mais especificamente no bairro do Passo, cujo nome deriva justamente de sua principal característica ancestral, o passo de São Borja, ou seja, o local em São Borja onde era possível o desembarque de pessoas e mercadorias desde os tempos em que, os Missionários Jesuítas por ali chegaram em meados de 1690 para a fundação deste povoado, e que desde então, tem passado por inúmeras fases de utilização principalmente para o chamado comércio formiga, antes da construção da ponte internacional da integração que liga São Borja a Santo Tomé. O comércio formiga era intenso na cidade e se efetivava através da travessia de embarcações pelo rio Uruguai, como observado na figura 9.
Figura 9: Comércio formiga entre São Borja -BR e Santo Tomé - AR.
Fonte: Acervo Ulisses Souza29Conforme destaca Senhoras (2017), o comércio formiga não possui uma definição monolítica, este pode também ser compreendido não só por comercialização de produtos, mas também, a venda de serviços em países vizinhos. Essa prática era comum de ocorrer entre moradores das duas localidades.
30Para Senhoras (2017), o comércio formiga tem duas vertentes, o comércio legal em que a prática está voltada para o cidadão que atravessa a fronteira em busca de obter mercadoria para consumo próprio. Há também que se destacar que o comércio formiga remete à informalidade. Gomes Filho (2011) destaca que nas regiões fronteiriças, esta modalidade se caracteriza, por um intercâmbio comercial, de forma incipiente e informal.
A palavra informal entra no conceito que até então não tinha sido citado por nenhum outro autor. O sentido da palavra então ganha o contorno de ser um comércio sem formalidade, deixando a entender que seria um comércio de idas e vindas, sem a obrigatoriedade de apresentação de documentação na entrada ou saída dessas regiões fronteiriças. (Senhoras, 2017, p6).
31Destaca-se que essa prática social era um importante ponto comercial da cidade de São Borja. Os moradores locais trabalhavam de forma informal, muitos no transporte das mercadorias que chegavam à cidade, através do porto. A imagem abaixo retrata o porto na época e a prática do transporte de mercadoria.
32Entretanto, a partir da construção da ponte internacional da integração, essa prática fronteiriça deixou de existir. É importante ressaltar que a definição de fronteira tem várias concepções, no entanto optou-se por a definição de Albuquerque que estabelece.
As fronteiras nacionais demarcam territórios repletos de significados políticos, econômicos, culturais, jurídicos e simbólicos. Os limites entre os Estados expressam as divisões entre soberanias, cidadanias, legislações e punições, línguas e símbolos nacionais, instituições políticas, militares, jurídicas e sociais. Esses limites estatais territorializados possibilitam a produção de variadas distinções entre “nós” e “eles” e alteram a nossa condição objetiva e subjetiva entre cidadão nacional e estrangeiro em um breve deslocamento por uma ponte internacional, uma rua ou um simples marco no terreno nas “fronteiras secas” entre os Estados nacionais. (Albuquerque, 2009, apud Costa 2013, p. 43).
33É importante, destacar que a identidade local também foi afetada, pois agora os moradores antigos que haviam instituído a prática, viram-na acabar e ficando presente, somente, na memória e acervo de particulares, fotos e publicações de jornais da época.
Figura 10: Barca Tamandaré.
Fonte: Acervo Ulisses Souza.
34Assim, a fronteira entre São Borja e Santo Tomé estabelecia, por meio do comércio formiga, esses significados, políticos, econômicos, culturais, jurídicos e simbólicos. Entretanto, a partir do fim dessa prática social, muitas pessoas que tiravam o sustento de suas famílias ficaram totalmente sem renda. Uma vez que o comércio formiga movimentava toda uma economia local, havia as pessoas que buscavam a mercadoria para que fossem vendidas, na cidade. Havia também aqueles que trabalhavam no transporte dos produtos e os comércios da cidade que vendiam produtos oriundos da Argentina. Como bem destaca
Tais diferenças propiciam inúmeros meios de sobrevivência, formas de trabalhar, tudo facilitado pela proximidade fronteiriça. “São trabalhadores, empresários, especuladores e mais uma quantidade incontável de ocupações que nascem exclusivamente no intuito de se aproveitarem das possibilidades oficiais e extraoficiais criadas pela situação de fronteira” (CARDIN, apud COSTA 2013 p. 42).
35No entanto, com o fechamento do Porto de São Borja, as famílias que tiravam o seu sustento das possibilidades que a prática proporcionava aos moradores locais, ficaram desassistidas. A construção da ponte significou desenvolvimento para a cidade, mas para os atores locais que figuravam no comércio formiga, a ponte internacional da integração gerou o fim de uma renda local, destinada ao sustento de muitas famílias.
36Costa (2013) observa que Albuquerque (2009) nos traz a correlação entre a fronteira e a identidade dos moradores deste espaço, que compreende que as identidades nas fronteiras nacionais são marcadas profundamente por relações, não sendo então definitivas essenciais nem primordiais.
Existia o contrabando de grande escala feito por atravessadores que utilizavam as estradas ou rio Uruguai, mas também existia o contrabando de pequena escala o chamado contrabando formiga. Este contrabando, geralmente, era realizado pelos moradores da vila de São Francisco de Borja e de Santo Tomé e, raramente, causavam problemas para aqueles que o executavam. (Albuquerque (2009) apud Costa p155, 2013).
37O indivíduo se permite construir, designar, imaginar, formas de pertencimento com a coletividade, contrastando com outros grupos. Assim, tais identidades ganham um caráter relacional, dinâmico, que contrasta com os demais, individual ou coletivamente.
38As mudanças na territorialidade de um espaço geográfico são fenômenos dinâmicos que ocorrem ao longo do tempo. A territorialidade se refere à relação entre e o espaço que ocupam, incluindo os aspectos físicos, sociais, políticos e econômicos. Essas mudanças podem ocorrer de diferentes formas, seja através das transformações naturais, como desastres naturais, ou através de processos sociais e políticos, como conflitos territoriais.
39Uma das mudanças na territorialidade que pode ocorrer é a expansão territorial. Isso ocorre quando um grupo ou país expande seus limites geográficos, seja através de conquistas militares, negociações diplomáticas ou mesmo pela ocupação de terras desabitadas. Essa expansão pode ter impactos significativos na forma como o espaço é utilizado e governado, afetando as relações sociais e econômicas entre as diferentes áreas.
40Por outro lado também podem ocorrer mudanças na territorialidade em sentido contrário, ou seja, a redução ou perda do território. Isso pode ocorrer devido a fatores como o surgimento de novas fronteiras políticas, processos de descolonização, acordos de paz e até mesmo pela ação de desastres naturais que causem a destruição de áreas antes ocupadas. Essas mudanças podem gerar deslocamentos populacionais, conflitos étnicos e culturais, além de reestruturação nas atividades econômicas. Uma destas mudanças diz respeito justamente ao nome do bairro, Bairro do Passo, onde, atualmente, nada passa legalmente para o outro lado.
Figura 11: Obras da construção da Ponte Da Integração
Fonte: Acervo Ulisses Souza
41Uma das mudanças significativas que ocorreu em São Borja foi o fim do comércio de formigas na região. O comércio formiga também conhecido como contrabando ou comércio ilegal, consistia na compra e venda de produtos, sem o pagamento dos impostos devidos. Durante muitos anos, São Borja foi conhecido como um ponto de referência para esse tipo de atividade, devido a sua localização estratégica próximo à fronteira com a Argentina. com a construção da Ponte, houve significativas mudanças na utilização e ocupação do espaço do cais do porto
42Com as mudanças políticas no final dos anos 1980, assim como a reconfiguração das atividades econômicas locais (agronegócio, comércio internacional, acordos internacionais e etc.), houve transformações sociais que limitaram a atuação do passo de fronteira pelo leito do rio Uruguai, dessa forma, estabelecendo o fim do comércio formiga como se conhecia.
Figura 12 - Revitalização do cais do Porto
Fonte: Acervo de Edson Pellat Engenharia
43A partir do ano de 1994, com a construção da ponte da Integração São Borja/ Santo Tomé, houve o final do translado de embarcações no antigo porto local, em virtude da mesma ter sido construída em outro espaço. Com a ponte, houve mudanças culturais e econômicas nessa região ribeirinha, visto que o fluxo era intenso em todos os dias da semana. Outro fator que gerou novas mudanças sociais e econômicas nesse local foi a reestruturação do Cais do Porto, área constituída por bares típicos e uma paisagem privilegiada do rio.
44Uma das principais transformações que ocorreu foi na infraestrutura do Cais do Porto. Com o objetivo de atrair visitantes e proporcionar uma experiência turística, as antigas instalações portuárias foram remodeladas e adaptadas para receber embarcações de turismo e recreação. Novos píeres, calçadões, áreas de lazer e espaços para eventos foram construídos, proporcionando um ambiente agradável e convidativo para os moradores e turistas.
45Essa região da cidade é uma área periférica influenciada diretamente pelo Rio Uruguai. Seu processo de formação está relacionado ao desenvolvimento do comércio entre brasileiros e argentinos e pela cultura da pesca. Em relação às comunidades inseridas nessa área de abrangência, foram identificados dois contingentes populacionais, os moradores do bairro do Passo e integrantes da colônia de pescadores Z-21.
46Os territórios de zonas de fronteira proporcionam fisicamente uma noção de limites Estatais, sejam eles físicos (rios, montanhas, parques, relevo, etc.), ou políticos (Estado, questões culturais e linguísticas, etc.). Por tratar-se de uma fronteira física, ou seja, uma fronteira com um marcador territorial, neste caso, o Rio Uruguai, muitos são os atores que, em vários contextos, se utilizam do rio e, nele, produzem sua própria identidade.
47A forma com que os objetos se apresentam interferem no território de forma substancial, neste sentido, a Ponte Internacional da Integração, por seu formato, canaliza um fluxo que na realidade sempre foi disperso, e tal dispersão se dava justamente pela capilaridade dos tipos de relações comerciais e sociais disponíveis no território, os atores de ambos os lados ajustavam suas condutas de acordo com suas demandas.
48Com a construção da Ponte Internacional da Integração, ligando São Borja a Santo Tomé, o deslocamento de pessoas e mercadorias ficou condicionado ao atendimento das condições formais (Acordos Internacionais entre Estados) que uma aduana apresenta, ou seja, em outras palavras, o comércio formiga, informal, e que abrangia a população mais vulnerável e culturalmente ligada às práticas ribeirinhas e que, em virtude disso, possuía um histórico de trocas com o outro lado, acabou sendo proibido pela formalização que a estrutura da ponte impôs.
49Assim, as pessoas que, historicamente, viviam e tinham suas tradições e práticas ligadas à pesca e ao que se chamava de comércio formiga tiveram suas vidas abaladas. Não só pelo fato de verem seus ganhos reduzidos ou sujeitos às regras as quais os membros não foram consultados, mas também pelas relações interpessoais que se criavam entre pessoas de nacionalidades diferentes, mas de práticas sociais irmãs.
50Algumas ações locais tem surgido para dar mais legitimidade aos planos e políticas específicas sobre esta fronteira, sobre o rio e sobre a ponte, e, dentre estas, destacamos o grupo de pesquisa LABpoliter vinculado a Universidade Federal do Pampa e o Comité para el Desarollo da Cuenca del Rio Uruguay, e a criação de um Observatório Socioeconômico com o objetivo geral de apoiar o desenvolvimento transfronteiriço da bacia do Rio Uruguai, os objetivos específicos são: a) contribuir para a compreensão das problemáticas e complexidades da bacia; b) encorajar a formação de atores institucionais e territoriais especializados nas prioridades da agenda transfronteiriça; c) estimular debates interdisciplinares que contribuam para a consolidação de uma visão de longo prazo sobre política transfronteiriça na referida bacia.