1A população rural de municípios situados no Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais, Brasil, é historicamente impactada pela atividade minerária. Os efeitos negativos da mineração na região foram exacerbados pelos recentes desastres decorrentes do rompimento de barragens de rejeitos, com destaque para o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana no ano de 2015 (Figura 1), uma das mais graves tragédias socioambientais do mundo, que gerou impactos dramáticos em populações já vulnerabilizadas socioeconomicamente (Lacaz, 2017; Gomes, 2019; Silva et al., 2019; Castro, 2021), agravados pela pandemia por covid-19 (Rodrigues et al., 2022; Singulano et al., 2023).
Figura 1- Localização da área do estudo no Quadrilátero Ferrífero, Minas Gerais, Brasil.
Fonte: Elaborado por Marília Sírio e Aniele Pinheiro a partir de Fapemig (2022) e Ruchys U.A (2007).
2Desastres ambientais representam alteração abrupta da organização social e modos de viver e trabalhar constituídos nos territórios, causando graves efeitos sobre a saúde, pois comprometem o comportamento, alteram a rotina de vida das comunidades atingidas, podem desencadear agravos patológicos decorrentes do “pós-calamidade”, como Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs) das populações. Ainda, podem ocasionar ou agravar o quadro de Insegurança Alimentar e Nutricional (InSAN) (Mahan, Escott- Stump, 2005; Rocha et al., 2016; Freitas et al., 2019).
- 1 Optou-se pelo uso do termo “impactado(a)(s)” para indivíduos ou grupos afetados direta ou indiretam (...)
3Destaca-se que, com o rompimento da Barragem de Fundão, considerando os danos ambientais, materiais e humanos, as comunidades rurais e os agricultores familiares (AF) foram os principais impactados. Além das comunidades rurais que foram diretamente atingidas, AF que vivem em regiões não alcançadas pela lama também foram impactados devido aos efeitos sociais e econômicos ampliados e persistentes pós-rompimento, como: desemprego e queda na renda, dificuldades de comercialização da produção, estigmatização da população rural e danos sobre a saúde física e mental (Neves et al., 2018; Freitas et al., 2019; Singulano et al., 2023)1.
4Quando observados os processos de reparação e compensação que foram ofertados pela empresa responsável pela atividade mineradora, as comunidades rurais e principalmente os AF não foram priorizados no processo de recuperação dos estragos ocasionados, apesar de serem o principal setor afetado. Além disso, estes não faziam parte dos espaços decisórios e a oportunidade de incluir o setor familiar da agricultura em uma nova dinâmica de desenvolvimento social e econômico, baseada em práticas produtivas sustentáveis, como a agroecologia, que permitiria ações de produção juntamente com a recuperação ambiental, estava praticamente inviabilizada (Moreira, Aly; 2018).
5No caso das populações rurais impactadas pela mineração, em especial pelo rompimento da Barragem de Fundão, a pandemia da COVID-19 teve efeitos ainda mais dramáticos. Considerando que esta população não havia se recuperado anos após o rompimento da barragem, com a pandemia, pode-se falar de um somatório de duas crises gerando graves consequências sobre as condições de vida e saúde de tal população (Singulano et al., 2023).
6A pandemia produziu repercussões sociais e econômicas, com impacto direto no acesso a bens essenciais e na execução das políticas públicas voltadas à SAN, piorando as condições de pobreza das populações rurais e aumentando os níveis de InSAN, especialmente em grupos mais vulneráveis (Batista et al., 2020; Cavalli et al., 2020; Comissão Econômica para a América Latina, 2020; Instituto Interamericano de Cooperación para la Agricultura, 2020; Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2020; Roberton et al., 2020; Schneider et al., 2020; Silva et al., 2020; Rede Brasileira de Pesquisa dm Soberania de Segurança Alimentar, 2021; Santos et al., 2021; Mendes et al., 2021; Souza et al., 2021; Van der Ploeg, 2021; Sociedade de Pediatria de São Paulo, 2021).
7A situação atual, considerando as desigualdades que não foram superadas, o avanço de políticas neoliberais e o desmantelamento do sistema de políticas sociais inclusivas promotoras da SAN, tendem a deteriorar as condições de vida e saúde, propiciando o aumento da InSAN (Schneider et al., 2020; Silva et al., 2020; Galindo, 2022), fato este possivelmente encontrado nos AF e suas famílias na região estudada.
8Deste modo, o artigo tem como objetivo revelar as percepções de agricultores familiares em Mariana e Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil, impactados pela mineração e pela pandemia de COVID-19 sobre suas condições de saúde e segurança alimentar e nutricional (SAN) no município de Mariana, por ter sido diretamente afetado pelo rompimento da barragem, e Ouro Preto, por se tratar de município vizinho e potencialmente impactado pelo mesmo evento. A relevância deste trabalho se deve à escassez de análises quali-quantitativas produzidas acerca do assunto abordado na região de estudo, levando em conta a especificidade histórica recente, bem como à centralidade da temática da segurança alimentar no contexto pós-pandemia.
9Este artigo apresenta o recorte de um projeto maior, aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Viçosa, sob o número de parecer 5.034.908, contemplado pelo Edital n. 01/2020 do Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais como parte de ações de reparação às populações atingidas.
10O estudo é descritivo e combina métodos qualitativos e quantitativos. A população de estudo refere-se às famílias de agricultores participantes de cooperativas e associações nos municípios de Ouro Preto e Mariana impactados pela mineração e pela pandemia de Covid-19. Dentre essas famílias adotou-se como critério de inclusão aquelas com gestantes e/ou crianças menores de 5 anos. A escolha deste público-alvo justifica-se pela vulnerabilidade em sua saúde física e mental e pelas sérias implicações resultantes da InSAN, desencadeando múltiplas formas de má nutrição (Sociedade de Pediatria de São Paulo, 2021).
11Consistiu-se em entrevistas semiestruturadas, no período de maio a julho de 2022.O convite à participação ocorreu de maneira individual, utilizando a estratégia snowball (bola de neve), tomando as lideranças comunitárias como sementes. As perguntas norteadoras para as entrevistas individuais foram: “Como o rompimento da barragem do Fundão modificou sua vida, de sua família e de sua comunidade? e Como a pandemia de COVID-19 modificou sua vida, de sua família e de sua comunidade? As diretivas utilizadas no roteiro incluíram as modificações desses dois eventos: a) nas condições de trabalho e renda familiar; b) na saúde da família e da comunidade; c) no acesso aos alimentos, ao lazer e diversão, aos meios de transporte e a outros serviços essenciais. O critério de saturação teórica foi utilizado para definir o fechamento do grupo de participantes (Fontanella et al., 2008; Minayo, 2017).
12O conteúdo das entrevistas foi gravado em áudio e transcrito na íntegra. O material transcrito foi analisado por meio da análise de conteúdo, seguindo-se as etapas da modalidade temática, proposta por Bardin (1979): 1) fase pré-analítica; 2) exploração do material; 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação. As entrevistas foram submetidas ao software IRAMUTEQ®, utilizando-se a Classificação Hierárquica Descendente (CHD) para a construção das classes e, por fim, as categorias de análise.
13Empreendeu-se a preparação do corpus (Chartier; Meunier 2011; Camargo, 2013) estabelecendo uma codificação dos participantes por meio de números sequenciais e siglas identificadoras do município, de modo a garantir a privacidade dos participantes da pesquisa e o sigilo das informações coletadas.
14Por intermédio da CHD, o software categorizou automaticamente as palavras ativas em classes lexicais, considerando a frequência e as posições relativas ou associações dos termos no texto, dividindo-o em Segmentos de texto (ST), classificados em função dos seus respectivos vocabulários e repartindo conforme a frequência de aparecimento. Por fim, sucedeu-se a interpretação dos dados apresentados pelo software.
15Questionários estruturados e validados com informações sobre condições sociodemográficas foram aplicados a agricultoras gestantes e mães ou responsáveis por crianças menores de 5 anos no período de agosto a outubro do mesmo ano. Utilizou-se, ainda, a Triagem para Risco de Insegurança Alimentar (TRIA), recomendada pelo Ministério da Saúde, que possibilita identificar famílias em risco para InSAN. Esse instrumento é composto pelas questões 2 e 4 da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). Para indivíduos que responderam afirmativamente às duas perguntas, pressupondo-se a possibilidade de risco nutricional da família, aplicou-se em seguida a EBIA (Segall et al., 2004; Sardinha et al., 2014; Costa et al., 2021). Os dados coletados foram digitados no software Kobo Toolbox e, posteriormente, análises descritivas de tendência central e frequência de eventos foram realizadas no software SPSS v.18.
16Foram realizadas 20 entrevistas, registrando-se 05 recusas e exclusão de 01 por desvio considerável do roteiro. Dos 19 participantes, 68,4% (n=13) eram mulheres; 52,6% (n=10) se autodeclararam pretos; 63,2 % (n= 12) não concluíram o ensino fundamental; 42,1% (n=8) declararam renda de 1 a 2 salários-mínimos; 78,9% (n=15) casados e com 1 a 3 filhos e com idade média de 46 anos. A tabela a seguir expressa a caracterização da população entrevistada (Tabela 1).
Tabela 1- Características sociodemográficas da população entrevistada.
Variáveis
|
N
|
%
|
Sexo
|
|
|
Feminino
|
13
|
68,4
|
Masculino
|
6
|
31,6
|
Cor
|
|
|
Preta
|
10
|
52,6
|
Branca
|
5
|
26,3
|
Parda
|
4
|
21,1
|
Escolaridade
|
|
|
Ensino fundamental incompleto
|
12
|
63,2
|
Ensino fundamental completo
|
3
|
15,8
|
Ensino médio incompleto
|
1
|
5,3
|
Ensino médio completo
|
3
|
15,7
|
Renda
|
|
|
< 1 salário-mínimo
|
1
|
5,3
|
1 a 2 salários-mínimos
|
8
|
42,1
|
3 salários-mínimos ou mais
|
6
|
31,6
|
Não soube responder
|
4
|
21,0
|
Estado conjugal
|
|
|
Solteiro(a)
|
3
|
15,8
|
Casado(a)
|
15
|
78,9
|
Viúvo(a)
|
1
|
5,3
|
Número de filhos
|
|
|
1 a 3
|
15
|
78,9
|
4 a 7
|
3
|
15,8
|
8 ou mais
|
1
|
5,3
|
n=19
Fonte: Elaborado por Aniele Pinheiro.
17O processamento do corpus, por meio da CHD, gerou agrupamentos de palavras em classes, de acordo com sua frequência e associação, representadas pelo dendograma (Figura 2).
Figura 2: Classes fornecidas pela CHD do software IRAMUTEQ.
Fonte: Elaborado por Aniele Pinheiro e Maria Cristina Passos a partir do software.
18Foram identificadas 5 classes com representatividade equânime do corpus. Optou-se por excluir da análise deste artigo a classe 5, relacionada especificamente à educação remota no período pandêmico por distanciar-se da temática estudada. Na sequência, realizou-se a leitura exaustiva dos ST agrupados em cada uma delas para construção das categorias conforme os preceitos da modalidade temática da análise de conteúdo. As categorias temáticas que emergiram foram: “Trabalho, renda e acesso aos alimentos”, representada pela classe 2, e “Saúde, locomoção e lazer” composta pelas classes 4, 1 e 3. As categorias construídas pelas pesquisadoras no exame dos dados representam aspectos mais destacados nas falas dos entrevistados referentes aos efeitos tanto do rompimento da barragem quanto da pandemia de Covid-19, considerando que ambos os eventos repercutiram, ainda que de formas diferentes, tanto sobre as condições de trabalho, renda e segurança alimentar, quanto sobre a saúde e lazer dos participantes da pesquisa.
19A categoria intitulada "Trabalho, renda e acesso aos alimentos" realça algumas das palavras mais presentes nas falas dos entrevistados como: comprar, preço, caro, venda, pedra, renda caiu, alimento, aumentar, dinheiro, cair, acesso aos alimentos e matéria prima. Na análise das entrevistas, percebeu-se que os eventos exerceram influência nas condições de trabalho dos entrevistados, modificando suas rotinas, provocando uma diminuição das atividades laborativas e, em consequência, queda na renda. Paulatinamente, eles perceberam o aumento dos preços de produtos alimentícios e dos insumos para a produção, gerando perda no poder de compra, tanto após o rompimento da barragem, quanto durante a pandemia. Outro aspecto destacado nesta categoria corresponde à diminuição do acesso aos alimentos, expressando uma clara percepção da relação entre trabalho, renda e SAN.
- 2 Trata-se da sede do distrito de Santa Rita em Ouro Preto, onde se concentram serviços de saúde que (...)
20A categoria intitulada “Saúde, locomoção e lazer” destaca termos como: médico, Santa Rita2, carro, Ouro Preto, unidade de saúde, ônibus, casa, sair, cabeça ruim, medo, diversão, contaminar, preocupado, saúde, triste, família, comunidade, sentimento, Covid, terrível, contaminação, lazer. Tais termos descrevem a percepção dos participantes da pesquisa sobre sua condição de vida e de saúde, evidenciando efeitos, mais evidentes no caso da pandemia, mas também em decorrência do rompimento da barragem, sobre sua saúde física e mental, no âmbito das relações familiares e comunitárias.
21Cabe ressaltar que a percepção sobre as repercussões do rompimento da Barragem de Fundão variou entre os municípios e os entrevistados. Para os entrevistados de Mariana, este acontecimento refletiu de maneira direta, em decorrência da proximidade com o local em que ocorreu, bem como da presença de moradores que estavam trabalhando na barragem no momento do rompimento. Em Ouro Preto, por outro lado, a percepção dos efeitos deste evento é menos pronunciada e indireta. Em relação à pandemia, por seu turno, observou-se uma percepção semelhante para entrevistados de ambos os municípios. Nesse sentido, passamos a uma análise das percepções sobre cada um dos eventos a partir dos relatos de entrevistados dos dois municípios.
22Tratando-se do rompimento da barragem, os efeitos são notáveis nas falas dos entrevistados de Mariana, que destacam as múltiplas dimensões do impacto decorrente do rompimento. como mostrado no trecho a seguir:
“Na nossa vida mudou muito, porque, com o rompimento da barragem, os turistas, os fregueses, as escolas mesmo pararam de comprar em nossas mãos e a renda foi caindo. Não tinha rendimento para comprar as mercadorias mais na mão dos agricultores familiares, pararam de comprar por causa da queda no recebimento da prefeitura. Aí não vendemos mais para a alimentação escolar, ficamos um ano sem vender” (E_01MAR).
23Em relação à primeira categoria, referente às condições de trabalho, renda e acesso aos alimentos, além da produção agropecuária, muitos AF exercem a atividade de artesãos. Estes relataram questões relativas ao aumento do preço da matéria prima usada para a fabricação de suas peças, em sua maioria panelas de pedra sabão, o que impactava negativamente nos recursos disponíveis para compra de alimentos. Simultaneamente, a renda sofreu diminuição em virtude da queda na comercialização e por um preço abaixo do esperado. Como exposto pelo recorte abaixo:
“Os turistas pararam de vir para comprar e vendemos menos porque nós conseguimos comprar menos pedra, estava mais caro, e hoje está mais caro. Isso foi depois do rompimento da barragem e por isso nós tivemos prejuízo financeiro” (E_17MAR).
24Em relação à segunda categoria, referente à saúde e ao lazer, a análise evidencia que, para os moradores de Mariana, o rompimento da barragem impactou principalmente em sua saúde mental. Os relatos expuseram momentos aterrorizantes vivenciados por famílias que tinham em seu núcleo pessoas que estavam diretamente ligadas ao evento. É inegável que o ocorrido modificou a saúde dos familiares de maneira direta e indireta no que tange os aspectos mentais e emocionais, como revelado na fala transcritas a seguir:
“Depois do rompimento da barragem, nossas vidas mudaram… Tem alguns irmãos meus que trabalhavam e um foi levado pela lama. Graças a Deus não morreu, minha mãe ficou depressiva, com pressão alta, meu pai quase enfartou. Receber a notícia que o filho estava morto foi difícil, ele ficou dois dias sumido. Até achar ele, a suspeita é que estava morto, foi uma tragédia enorme na minha família. Eu acho que ele não se recuperou até hoje, ele mudou depois do rompimento da barragem, ele mudou muito, (...) não tem aquela alegria igual tinha, a família tenta falar com ele para arrumar um serviço, ele não quer trabalhar na área. Ele era uma pessoa alegre, ficou totalmente diferente, ficou com trauma, não é fácil, ele ficou uns dois dias fora de casa, sem falar com a família” (E_01MAR).
25Estudos têm mostrado que as lembranças do ocorrido na tragédia podem tornar-se profundamente vivas na memória, levando a respostas pós-traumáticas. Neves et al. (2018), dois anos após o rompimento da barragem, apontaram que os indivíduos atingidos se encontravam em situação de vulnerabilidade, sobretudo quanto à sua saúde mental. Destaca-se que os efeitos sobre a saúde mental podem ser imediatos, ampliados e prolongados na medida em que incertezas e inseguranças sobre o futuro se combinam com a ausência de resolutividade dos seus problemas e necessidades pelos órgãos públicos e empresas produtoras. Além disso, os prejuízos à saúde mental podem estar atrelados aos impactos socioeconômicos decorrentes da perda e/ou danos às habitações (Freitas et al., 2019). Assim, o rompimento de barragens representa um imenso desafio para a Saúde Coletiva em suas dimensões de vigilância e atenção à saúde em longo prazo (Lucchini et al., 2017; Freitas et al., 2022). Sua dinâmica resulta em uma complexidade de problemas e necessidades de saúde que se transformam nos espaços e no tempo. (Marchi; Wynne, 1992; Ravetz, 1999; Freitas et al., 2022).
26Tratando-se da pandemia de Covid-19, a percepção sobre seus efeitos deu-se de maneira semelhante entre os entrevistados dos dois municípios. Todos relataram que este evento esteve diretamente ligado às mudanças no trabalho, na renda e, por conseguinte, no acesso aos alimentos. Mais uma vez os AF ficaram impossibilitados de comercializar seus produtos por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), houve queda relacionada ao turismo, o que reduziu as vendas de produtos artesanais, ocasionando, dessa forma, redução na renda familiar. Destaca-se que o aumento do preço dos alimentos dificultou a aquisição destes para o consumo familiar. Vários entrevistados relataram que foram necessárias adaptações na compra de alimentos, conferindo uma redução na variedade alimentar das famílias. Percebeu-se, por meio dos depoimentos dos participantes, que esses eventos distanciaram a população de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, e, portanto, os expuseram à InSAN, visto que não puderam ter acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente. Ademais, ainda pouco se sabe sobre os impactos desse desastre na capacidade produtiva dos pequenos produtores. Tais aspectos estão presentes no trecho abaixo:
“Sobre acesso aos alimentos tiveram coisas que encareceram. Estamos achando que está mais caro e isso impactou no tanto que nós estamos comendo, por exemplo, antes comprava carne de boi e com o preço alto mudamos de escolha.” (E_06OP).
27Diante das dificuldades impostas pela pandemia, os depoimentos revelaram que as políticas públicas emergenciais se mostraram importantes ferramentas para a aquisição de renda e de acesso aos alimentos. Pode-se mencionar como exemplos o auxílio emergencial do Governo Federal, benefício financeiro concedido para garantir renda mínima aos brasileiros em situação de vulnerabilidade durante a pandemia da COVID-19. Referem-se, ainda, à distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do PNAE aos pais ou responsáveis de estudantes das escolas públicas de educação básica (Lei nº 13.987 de 7 de abril de 2020 e Resolução CD/FNDE nº 2 de 9 de abril de 2020, Brasil, 2020). No Brasil, logo no início da pandemia, as instituições de ensino decretaram a paralisação das aulas presenciais, em razão da ausência dos alunos nas escolas e a consequente suspensão da alimentação escolar. O acesso aos recursos advindos da comercialização de alimentos do PNAE foi duramente afetado, colocando em risco a situação financeira dos agricultores e a SAN daqueles AF que dependem efetivamente de hortas e criação de animais, desse mercado (Rodrigues, 2022), fato este vivenciado pela população neste estudo.
28Somando-se a isto, tem-se o fato desta população ter a produção para o próprio consumo, prática já presente em sua realidade, fundamental para melhorar o acesso aos alimentos e que foi intensificada como alternativa à aquisição no mercado de gêneros alimentícios, devido à elevação dos preços, como relatado:
“Agora nós plantamos por aqui para economizar muita coisa mesmo. A gente acabou trazendo para cá para a gente mesmo produzir para evitar alguns gastos, como por exemplo, legumes, começamos a criar galinhas, temos ovos, carne, agora também criamos porcos, plantamos mais frutas, a horta aumentou de tamanho com isso conseguimos reduzir um pouco o valor das compras.” (E_02OP).
29Referindo-se ainda à pandemia e destacando seus efeitos sobre as condições de saúde, um aspecto relatado pelos entrevistados foi a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, uma vez que inúmeras atividades foram interrompidas sem que houvesse medidas suficientes de amparo aos AF, que perderam seus meios de subsistência e de acesso aos bens e serviços essenciais, dentre esses o direito ao acesso à saúde. A interrupção das atividades durante a pandemia tornou o acesso majoritariamente remoto às pessoas e entidades responsáveis por serviços de saúde, com impactos sobre a saúde mental. Nesse sentido, os relatos evidenciaram a relação entre pandemia e comprometimento da saúde mental.
30Outro aspecto diretamente ligado a esta relação foram as alterações de rotina impostas pelo isolamento social, uma vez que isto refletiu sobre as atividades de lazer e diversão da comunidade. Os participantes expuseram que ficaram impedidos de realizar atividades religiosas coletivas, reuniões e festividades. O lazer aparece como um fator importante para a sensação de bem-estar e de equilíbrio na saúde mental, como se reafirmou nos relatos dos entrevistados como uma necessidade humana. Não foram poucas as menções à importância do lazer para a vida individual e comunitária. Abaixo está exposto um relato que evidencia os temas abordados:
“Minha mãe disse que estava chegando a cabeça dela ficar ruim de tanto a saúde mental prejudicada, ela era só ficar dentro de casa. Ela foi com a gente fazer compras e falou que sair fez ela melhorar demais” (E_04MAR).
31Sobre as características sociodemográficas das dezesseis participantes sobre a SAN, observa-se que todas são mulheres, 93,8% de cor preta e parda, com idade média de 28 anos, a maioria casada (62,3%) e com número de filhos entre 1 e 3 (87,5%), com ensino fundamental incompleto (50%) e renda familiar de 1 a 2 salários-mínimos (50%). A Tabela 2 refere-se às características sociodemográficas da população.
Tabela 2- Características sociodemográficas da população de agricultores familiares com gestantes e crianças menores de 5 anos.
Características sociodemográficas
|
N (%)
|
Sexo
Feminino
|
16 (100)
|
Gestantes
|
3 (18,8)
|
Idade
18 a 28
29 a 39
40 a 50
|
8 (50)
11 (37,5)
2 (12,5)
|
Raça/cor
Branca
Preta
Parda
|
1 (6,2)
4 (25,0)
11 (68,8)
|
Escolaridade
Ensino fundamental incompleto
Ensino fundamental completo
Ensino médio incompleto
Ensino médio completo
Ensino superior completo
|
8 (50,0)
2 (15,5)
1 (6,3)
3 (18,8)
2 (15,5)
|
Estado conjugal
Solteiro(a)
Casado(a)
|
6 (37,5)
10 (62,3)
|
Renda familiar
< 1 salário-mínimo*
1 a 2 salários-mínimos
3 salários-mínimos ou mais
|
2 (15,5)
8 (50)
6 (37,5)
|
Número de filhos
1 a 3
4 a 7
|
15
13 (86,7)
2 (13,3)
|
Idade das crianças
Menores de 6 meses
6 a 23 meses
|
15
2 (13,3)
5 (33,3)
|
24 a 60 meses
|
8 (53,4)
|
n=16 *Salário-mínimo (2022) = R$ 1.212,00
Fonte: Elaborado por Aniele Pinheiro.
32Em relação aos dados de SAN das famílias entrevistadas, 2 (12,5%) responderam sim para as perguntas da TRIA e, portanto, se encontravam em risco de InSAN. Nessas duas famílias, foi aplicada também a EBIA, que confirmou a situação de InSAN leve. Embora a TRIA tenha identificado apenas 2 famílias em risco de InSAN, optou-se por aplicar a EBIA a outras duas famílias, em razão das observações realizadas in loco durante a coleta de dados qualitativos. Dessas famílias, uma se encontrava em InSAN leve e a outra em InSAN grave, totalizando 4 (25%) das famílias em InSAN.
33Tratando-se das condições de SAN, o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil - ENANI-2019 evidenciou que, das 14.558 crianças acompanhadas, 47,1% apresentaram algum grau de InSAN, sendo 38,1% InSAN leve, 5,2% moderada e 3,8% grave. O estudo revelou que os domicílios brasileiros com crianças menores de 5 anos apresentam marcantes padrões de desigualdades e de InSAN (Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2021).
34Dados do II VIGISAN mostraram que entre os domicílios rurais, o segmento da agricultura familiar sofreu o impacto da crise econômica, porém foi especialmente afetado pelo desmonte das políticas públicas voltadas para o pequeno produtor do campo. As formas mais severas de InSAN (InSAN moderada ou grave) estavam presentes em cerca de 38,0% dos domicílios de agricultores(as) familiares/ produtores(as) rurais. A prevalência de InSAN grave era de 21,8%, mostrando que a fome atingia moradores de mais de 1/5 dessas habitações. O quadro de InSAN era mais preocupante nas regiões Norte e Nordeste, onde formas mais graves de InSAN eram realidade em 54,6% e 43,6% dos domicílios, respectivamente, e o acesso pleno aos alimentos existia em apenas 20,1% (Norte) e 16,4% (Nordeste) dos domicílios. Em oposição, nas regiões Sul e Sudeste, os efeitos das crises econômica, política e sanitária incidiram com menos intensidade entre os seus agricultores familiares/produtores rurais. No entanto, estas regiões apresentaram estimativas de InSAN mais elevadas do que aquelas observadas no I VIGISAN, em 2020, sinalizando que houve um aumento expressivo de InSAN no meio rural brasileiro, mesmo em regiões mais desenvolvidas (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, 2022).
35Os dados do presente estudo não destoam do cenário nacional, em específico da situação da região sudeste do país durante a pandemia. Destaca-se que as pessoas em condição de InSAN geralmente consomem uma alimentação monótona, reduzida em variedade e em nutrientes, o que contribui para o surgimento de obesidade e DCNT, como diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica e doenças cardiovasculares, o que denota as repercussões negativas a médio e longo prazo desta condição. No caso estudado, como relatado na fase qualitativa da pesquisa, os agricultores familiares aumentaram e/ou diversificaram a produção para consumo próprio, o que provavelmente amenizou as condições de InSAN e os prejuízos para a saúde.
36Como limitação do estudo, aponta-se a dificuldade logística para a coleta de dados no período da pandemia de COVID-19, que pode ter inviabilizado a participação de um número expressivo de indivíduos.
37A situação adversa instaurada com o rompimento da Barragem de Fundão e aprofundada pela pandemia de Covid-19 determinou alterações nas condições de saúde e SAN das famílias de AF. As repercussões percebidas pelos agricultores foram relativas às mudanças provocadas nas condições de trabalho, na perda ou queda da renda familiar, no aumento das preocupações com os meios de subsistência, nas dificuldades de acesso aos alimentos e aos meios de transporte, à ruptura de laços sociais, refletindo na diminuição das condições de lazer, de acesso aos serviços de saúde, bem como de saúde das famílias e da comunidade.
38Assim, pode-se cogitar que os efeitos de tal tragédia socioambiental são muito mais amplos em termos espaciais, temporais e com relação às múltiplas dimensões do impacto, que aqueles considerados nas medidas de reparação em andamento. A pesquisa permite concluir que todos os AF do município de Mariana foram impactados pelo rompimento da barragem, bem como agricultores em regiões próximas, pois também perceberam, ainda que não de forma tão pronunciada, os efeitos de tal evento.
39Em relação à pandemia de Covid-19, este estudo se soma às evidências de outras pesquisas que retratam seu impacto sobre AF e sobre as condições de SAN e avança no sentido de demonstrar que a situação de vulnerabilidade social, econômica e ambiental de grupos sociais específicos atuou e atua como fator de agravamento das condições de saúde impostas pela crise sanitária.
40Esse trabalho revela a complexidade das repercussões dos eventos e reforça o fato de que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que estas situações sejam superadas. Por fim, pretende-se contribuir para legitimar as percepções das partes impactadas pelos eventos ocorridos. Recomenda-se, contudo, a oportuna reavaliação desse contexto, bem como para a possibilidade de expansão da pesquisa para outras comunidades e municípios.