- 1 Outrora, denominadas de comunidades tradicionais. Preferimos não usar o termo tradicional pois numa (...)
1No contexto brasileiro, por sua riqueza natural e cultural a região do Alto Rio Negro emerge como uma das regiões prioritárias para a conservação da sociobiodiversidade e a construção de propostas de desenvolvimento capazes de valorizar e proteger a base natural, resgatar e preservar o patrimônio cultural e assegurar benefícios às comunidades com identidades próprias ancestrais1 e povos indígenas.
2O povo Werekena por décadas passou pelo processo de exploração por meio do escambo e patronagem, em uma relação de escravidão no qual a piaçava era o instrumento primordial utilizado para esse fim. Tanto os Werekena quanto a piaçava eram vistos pelos regatões como meros recursos (mercadorias) que pudessem ser explorados ao seu bel prazer desconsiderando a importância desse elemento natural como um instrumento cultural presente tanto sociobiodiversidade quanto na sua territorialidade.
“A relação de diversos grupos sociais amazônicos, povos indígenas, comunidades tradicionais ou não, comunidades rurais e ribeirinhas está diretamente associada à terra e ao território. A cultura e a identidade se materializam nas formas de uso e ocupação da terra e do território. Portanto, a conservação dos elementos naturais e das cadeias de valor da biodiversidade com suas tecnologias sociais próprias são fundamentais para a sobrevivência física e cultural. Nesse sentido, a valorização e fortalecimento da sociobiodiversidade é importante.
Como sociobiodiversidade compreendemos toda diversidade de conhecimentos e saberes próprios com suas tecnologias sociais que perpassam tempo e gerações sobre o uso e manejo da biodiversidade dos biomas e dos ecossistemas; uso, ocupação e organização do território; sistemas agrícolas associados às identidades e culturas específicas. Alguns podem até confundir com conhecimento tradicional. No fundo é parte desses conhecimentos que preferimos denominar de "próprios" de cada povo, indígenas e comunidades “tradicionais”. (Faria e Osoegawa, 2021, p.49)
3A pesquisa foi desenvolvida no território dos Werekena, Rio Xié, afluente do Rio Negro, TI Alto Rio Negro/AM, por 24 meses (Edital Universal/CNPq), cujo objetivo foi compreender o sistema de manejo da piaçava na calha do Rio Xié a luz gestão territorial bem como mapear e caracterizar o território usado para essa finalidade; analisar as relações socioeconômicas da sua cadeia de valor e visibilizar a importância do manejo cultural da piaçava por esse povo. Nesse artigo, pretende-se demonstrar a relação do manejo cultural da piaçava com a territorialidade do povo Werekena, habitantes do Rio Xié/AM.
4Esta pesquisa tem como base os princípios da pesquisa participante (PP), difundida por Demo (2008) e Brandão (2007). A PP correlaciona a qualidade formal com a qualidade política do ato de pesquisar, “aposta na politicidade do conhecimento como instrumento essencial de mudanças profundas e autônomas” (Demo, 2008, p. 16). Não dissocia o alinhamento ideológico do ato de pesquisar, combate com veemência o mito da neutralidade do método e demonstra que mesmo a tentativa pela produção de uma ciência neutra tem pressupostos e consequências na estruturação social.
5Nessa perspectiva, utilizamos os procedimentos metodológicos do trabalho de campo com realização de oficinas de gestão do conhecimento e mapeamento participante (cartogramas participantes) com técnicas da escuta sensível, da mediação e registros fotográficos, essenciais para alcançar os resultados bem como atividades de gabinete, a partir de fontes primárias e secundárias e aportes teóricos para análises dos dados.
6Pretende-se com a pesquisa apoiar as comunidades Werekena a desenvolver um projeto se sustentabilidade ambiental, cultural, econômica e social a partir do manejo da piaçava para fortalecer os conhecimentos e tecnologias sociais ancestrais ao mesmo tempo a associação indígena do Rio Xié (ACIRX) para que possam ter autonomia e se livrarem do regatão. Não é uma tarefa fácil, mas precisamos tentar não apenas pelo compromisso assumido com os Werekena mas por ser o propósito da ciência e da universidade em contribuir para com sociedade.
7Por acreditarmos que a ciência não é neutra e que cada pesquisador deve ter um propósito em comum com a sociedade, propusemo-nos a realizar uma pesquisa não convencional como convém aos que navegam entre as águas da ciência ocidental e de outros saberes.
8O território do povo Werekena localizado na TI Alto Rio Negro (Figura 1), que foi homologada em 1998 com 8.150 milhões de ha habitada por 22 povos das famílias Tukano Oriental, Arawak e Japurá Uaupés, falantes de 19 línguas indígenas de 04 famílias linguísticas Tukano Oriental, Arawak, Japurá-Uaupés e Tupi (Nheengatu falado pelos povos Baré, Werekena e parte dos Baniwa do Baixo Rio Içana).
9O rio Xié, território do povo Wekena é um dos afluentes do Rio Negro e às suas margens existem piaçabais, que ocorre em abundância, de forma agregada, nas áreas de terra firme da floresta amazônica que são entrecortadas por zonas alagadiças de antigos canais ou igarapés.
Figura 1 - Terra Indígena Alto Rio Negro/Amazonas/Brasil
Fonte: Faria & Aquino, 2015.
10Às suas margens existem 13 comunidades Indígenas, que são: Anamuim, Maraúna (São José), Tukano, Kunuri, Umarituba, Tunu-Cachoeira, Cumati-Cachoeira, Santa Cruz, Santa Rosa, Boa Esperança, Campinas, Vila Nova e São Marcelino. Além das comunidades existem oito sítios, que são Boa Vista, Ukuki-ponta, Pamã-cachoeira, Masarabí, Cuatí, Cuecé, Nazaré e Cuté (Figura 2).
Figura 2 – Localização da área do estudo. Ocupação territorial do povo Werekena
Org: Osoegawa, 2017.
11Este rio é historicamente relacionado com a extração da piaçava, devido à ocorrência de piaçabais na região dos tributários que se originam à margem direita (sentido montante), sendo as comunidades Anamoin, Tukano, Kunuri e Umarituba mais próximas dos piaçabais.
12As comunidades se originam a partir de um sítio, próximo aos roçados, formado por uma família, que se aglomeram, que cresce, onde os filhos vão se estabelecendo até que este se torne uma comunidade.
13Neste caso, principalmente nas comunidades menores, o povo da família fundadora acaba por ter grande importância na determinação da composição étnica delas, pois, por exemplo, se o chefe de família for Baré todos os filhos também serão. Nesse caso, encontramos comunidades com maioria Baré, ainda que inseridas no território Werekena.
14Para entender a cadeia de valor da piaçava em contexto intercultural se faz necessário conhecer um pouco dos elementos socioculturais do povo Werekena, majoritário na região. As referências encontradas partem da bibliografia, de observações e relatos de campo sobre a origem, história, modo de vida e Cosmovisão do povo Werekena.
“...os Werekena sentem orgulho de seu povo e cultura, que possui seus próprios processos históricos e conhecimentos tradicionais, que são diferentes de outros povos, que os identifica como pertencentes a um grupo social que continua existindo e não está extinto”. (Ferreira, 2013, p. 5)
15Os Werekena vivem ao longo do rio Xié, para onde grande parte deles migrou compulsoriamente em razão do contato com os não indígenas, história marcada pela violência e pela exploração do trabalho extrativista do látex no início do século XX e do cipó que sofreu grande impacto da extração predatória e da piaçava até o presente momento. O rio Xié é território Werekena, que convivem principalmente com os Baré, que migraram para região devido às relações de patronagem.
- 2 Assim é denominado o Rio Negro, a montante do território brasileiro, na Venezuela e na Colômbia, on (...)
16Relatos Históricos retratam que os Werekena até o Séc. XIX ocupavam o Xié e o Içana que migraram depois para o Guaínia2, na fronteira entre a Colômbia e Venezuela. Há pesquisadores que afirmam que parte desse povo vivia anteriormente também no Rio Vaupés, onde trabalhavam para os Tarianos de quem se separaram, quando formaram as comunidades no Rio Xié.
17Há indícios em 1881 de que migrações para Guaínia já haveriam ocorrido. Nesta data o rio Xié foi descrito como deserto pelo conde italiano Ermano Stradelli (2009), que desceu o rio Negro, desde Cucuí. Calbazar e Ricardo (2006) apontam também para possibilidade de que eles estivessem vivendo nas cabeceiras e em pequenos igarapés, justamente para evitar o contato destrutivo com os brancos.
18Relatos da década de 20 do Século XX demonstram que os Werekena habitavam a região do Guaínia haviam iniciado seu retorno ao Xié, que contava com apenas uma família deste povo. Nesta década foram fundadas as comunidades mais antigas ainda existentes na região (Nimuendajú, 1950; Aikhenvald, 1998; Cruz, 2011).
“A partir do início deste século [XX], muitas famílias que haviam debandado para a Venezuela retornaram para o lado brasileiro, motivadas não só pelas revoluções que ocorriam lá, mas também pela violência de comerciantes que exploravam a produção extrativa dos índios no Guainia e Casiquiari”. (Calbazar e Ricardo, 2006, p. 47 e 48)
19Na época em que se inicia o retorno dos Werekena ao Rio Xié, este era ocupado pelos povos Baré e Baniwa, como relatado abaixo:
“Em épocas anteriores o Xié foi ocupado por assentamentos Baré desde a sua foz, no rio Negro, até “Têwa púuli” (olho amarelo) um pouco acima da cachoeira de Cumatí. A partir do Têwa púuli o rio foi ocupado pelos Baniwa. Os Werekena entraram no Xié pelo río Kababuris (também chamado de Meweré) mas vinham do Rio San Miguel, em afluente do Rio Guainía. Vieram por esas vias alternativas ou igarapés para escapar dos caucheros do Casiquiare.”. Entrevista a Don Hipólito Waruya (1970), retirado de Ñañez (2005).
20O povo Werekena pertence à família linguística Aruak, hoje a maioria fala o nheengatu, língua difundida pelas carmelitas no período colonial. Atualmente, poucos falam Werekena, que deixou de ser a língua de comunicação e de instrução sendo considerada em risco de extinção.
“No Rio Xié..., os idosos nascidos anteriormente a 1930, falam Warekena como língua materna e aprenderam o Nheengatú posteriormente. Esta situação foi observada na comunidade de Anamoim, no alto rio Xié, em que há dois idosos falantes de Warekena. Também conversas com outros Warekena confirmam essa situação. A geração nascida na década de 1940 e 1950, porém, tende a ser monolíngue em Nheengatú [e a maioria dos jovens nas comunidades do Rio Xié hoje é bilíngue Nheengatú/Português]”. (Cruz, 2011, p. 15,)
21A expansão do uso da Língua Yẽgatu, que substituiu o Werekena teve influência do intenso regime de patronagem que ocorria na região, que trouxe fregueses de vários povos, de diversas regiões do Rio Negro para exploração de produtos do extrativismo, como o látex, o cipó, e a piaçava que se comunicavam pela Língua Geral (Yẽgatu).
22A Carta de Koch-Grünberg evidencia a influência do sistema de patronagem na situação de sobreposição linguística do Yẽgatu e do Werekena.
“...as pessoas não entendem quase nenhum Espanhol, mas apenas Uerékena, Baniwa e a Língua geral. Por isso, socorro-me de meu vocabulário Baniwa, ou o Patrão traduz para eles do Espanhol para a Língua geral (Autos do Museu Etnológico de Berlim referentes à viagem do Dr. Koch, vol. IB 44. Carta datada de Rio Negro, 8 de julho de 1903”. Excerto consultado em Cruz (2011, p.15)
23O sistema de patronagem também contribuiu para a substituição da língua Werekena pelo Nheengatu nas comunidades do Rio Xié da maneira inversa à que já foi referida. Além de trazer falantes de Nheengatu para trabalhar no Xié os patrões cooptavam fregueses Werekena e os levavam para trabalhar em outras regiões do Rio Negro falantes de Yẽgatu.
24O valor do trabalho dos indígenas era subvalorizado e os patrões muitas vezes utilizavam de violência para obrigá-los a se manterem na atividade para o qual foram “contratados”, sob regime de escravidão, até encerrarem a dívida, que muitas vezes não ocorria pela aplicação das relações abusivas da patronagem. “Quando os Warekena conseguiram fugir da exploração no Médio Rio Negro e voltar para o Alto rio Negro, traziam mulheres e filhos, falantes de Nheengatu.” (Cruz, 2011, p.16)
25Ao longo da história a piaçava sempre foi um importante recurso do extrativismo no Alto Rio Negro. No registro dos primeiros naturalistas já constava a produção e comercialização da piaçava. Contudo as cadeias produtivas do extrativismo sempre se caracterizaram pela intensa exploração dos extrativistas e por relações de trabalho de escravidão e semi-escravidão.
26A situação de escravidão no Rio Xié não ocorre mais depois da demarcação da Terra indígena, mas a situação de exploração é evidente. Esta se dá por parte dos regatões, que são comerciantes fluviais que fornecem os produtos industrializados trazidos da cidade em troca dos produtos indígenas, oriundos da agricultura, do extrativismo e do artesanato.
- 3 Valores citados na Assembleia Ordinária da ACIRX, que ocorreu em 17 maio de 2015.
27Esta troca é injusta, pois o valor cobrado pelos produtos industrializados é muito mais caro e o que se paga pelos produtos indígenas. Uma vassoura de piaçava pode ser trocada por um litro de gasolina em Anamoim, a comunidade mais distante do rio Xié, que por sua vez pode ser revendida na cidade por até 15 reais na sede do município. Outra comparação que pode ser feita para termos a dimensão dos preços abusivos é com pilhas AA Panasonic, que são compradas na cidade por 1 real cada e são vendidas por 5 reais em Anamoim (ou trocada de forma desigual pelos produtos indígenas principalmente farinha e piaçava)3.
28A reestruturação da cadeia e valor da piaçava é uma demanda da Associação das Comunidades Indígenas do Rio Xié (ACIRX) como iniciativa para melhorar as condições de comercialização da piaçava, seus artefatos e artesanatos, para valorização da identidade e da arte indígena.
29O manejo da piaçava no Rio Xié teve forte queda desde 1998 após reunião da ACIRX, na qual os indígenas decidiram parar de trabalhar com sua extração diante das condições exploratórias que os patrões impunham. Apenas poucas famílias estão extraindo e produzindo artefatos de piaçava. A maioria começou a se dedicar mais a outras atividades produtivas.
30Portanto, a reestruturação da cadeia produtiva da piaçava visa retomar o manejo da piaçava por meio de uma concepção que parta da sustentabilidade e valorize os produtos indígenas, pelo que representam como valor agregado cultural que faz parte da vida e da identidade deste povo.
31Hoje a fibra da piaçava é muito abundante na região. É uma extração não predatória, pois não é necessário derrubar a palmeira, e pode ser extraída novamente em um período de 5 anos. Como a extração da piaçava foi pouco expressiva nos últimos 18 anos os piaçabais que haviam sido utilizados já recuperaram o potencial produtivo e há grandes quantidades de piaçabais passiveis de extração próximos às comunidades
32A relações históricas dos povos indígenas do xié com a piaçava permitiram que desenvolvessem um sistema de manejo próprio fundamentado em suas culturas, que foi praticado a partir de várias gerações de interação dos povos Werekena e Baré com a piaçava (Leopoldinia piassaba) e da socialização desse saber por meio da prática e da oralidade ao longo do tempo o que ora denominamos de manejo cultural. Preferimos utilizar o termo manejo cultural e não “tradicional” por ser resultado de um saber, de um conhecimento próprio cultural desses povos.
33Nesse sentido é importante ressaltar, que mesmo que a exploração da piaçava seja conhecida, para os Werekena e os Baré, é muito mais que uma atividade econômica pois faz parte da territorialidade deles cuja identidade foi criada a partir da relação de suas culturas e as formas próprias de uso e utilização desse elemento natural que não é apenas uma mercadoria, mas integrante de um sistema de vida, parte deles, uma episteme fundamentada no bem viver.
34As análises a seguir partem da nossa observação em trabalho de campo percorrendo as trilhas de exploração dos piaçabais, conversas com os piaçabeiros e oficinas de gestão do conhecimento (figura 3) realizadas nas comunidades com elaboração dos mapeamentos e cartogramas participantes (figura 4) que demonstram não apenas a territorialização das áreas de uso mas a importância dessa atividade na construção da territorialidade dos povos Werekena e Baré que vem se perdendo com a nova geração devido a exploração do trabalho pelos regatões de outrora.
Figura 3 – Oficina de Gestão do Conhecimento na comunidade de Umarituba
Fonte: Osoegawa, 2015.
35O manejo da piaçava no rio xié, ao logo da história teve mudanças, tanto no que diz respeito à intensidade de exploração, quanto às técnicas empregadas tanto na extração, quanto no beneficiamento/processamento da fibra. Estas mudanças podem ser correlacionadas com a utilização histórica da piaçava e as demandas e exigências do mercado, com as relações de trabalho existentes na cadeia produtiva de extração, com a disponibilidade de acesso às ferramentas e a conscientização sobre boas práticas de manejo.
Figura 4 – Mapeamento participante nas comunidades de Campinas, Kunuri, Umarituba.
Fonte: Osoegawa, 2015.
36Apresentaremos a seguir (quadro 1) um esquema os processos envolvidos no manejo da piaçava com detalhamento, apontando as mudanças que ocorreram ao longo do tempo e os acontecimentos e conjunturas que motivaram essas mudanças.
Quadro 1 - Processos Envolvidos no Manejo Cultural da Piaçava
Org: Osoegawa, 2016.
37Os preparativos da viagem envolvem garantir parte da alimentação que será consumida durante a estadia nos piaçabais, que costumam variar de 1 dia há um mês. Dentre os itens, o mais importante é a farinha de mandioca, produzida em abundância por todas as famílias no Rio Xié. É o elemento principal da alimentação dos povos que habitam este rio e essencial para sua reprodução social.
38É um alimento essencial de consumo diário, que não se consegue produzir nos piaçabais, portanto, é essencial que a quantidade levada seja adequada ao período de permanência. Além de acompanhar os pratos tradicionais, como a Kiãpira e outros preparos de carne ou peixe cozidos ou assados também é utilizado para consumo no café da manhã como mingau e nos períodos de trabalho nos piaçabais como refresco/alimento chamado xibé.
39Além da preocupação com a alimentação, os preparativos envolvem a verificação do estado das ferramentas necessárias para a extração da piaçava, facas e terçados (facões) afiados em “pedras de amolar. É importante que os instrumentos estejam extremamente afiados para aumentar o rendimento do trabalho de extração da piaçava. A extração pode ser feita com o terçado ou com a faca, essenciais no processo, sendo o terçado também utilizado para fazer a manutenção das trilhas e a faca para serviços menores, como por exemplo, cortar o cipó em pedaços menores para a amarração dos pacotes.
40Os meios de locomoção também são verificados. A maioria das famílias utiliza motores de centro do tipo “rabeta” com capacidade que varia de 5 a 10 hp. Poucas são as famílias que possuem motores de popa, 15-40hp. O óleo lubrificante de motor (havoline) é verificado e a gasolina a ser utilizada é separada.
- 4 Conversa realizada em 13/01/2016
41Normalmente, pela manhã, saem rumo aos caminhos de acesso aos piaçabais, com suas canoas equipadas com os motores rabetas. A viagem pode demorar de poucos minutos (acompanhamos a extração em uma trilha a 20 minutos da comunidade de Kunuri) até um dia, como foi retratado por Virgílio Gonçalves4, piaçabeiro de Anamoim, que extrai a piaçava no rio Tewapuri, distante da comunidade.
42A escolha do piaçabal a ser extraído perpassa pela avaliação de custo-benefício, em que se leva em consideração a quantidade de piaçava que se pretende extrair, a quantidade de dias que querem ficar nos piaçabais, e a capacidade de extração de cada piaçabal, se são “virgens” ou “quase virgens” ou mamayapuka (Figura 5). Os piaçabais com grande capacidade de extração, que foram explorados há muito tempo, apresentam piaçavas virgens, que nunca foram retiradas, ou quase virgens, que foram extraídas há muito tempo e já acumularam grande quantidade de fibras. Os piaçabais que foram utilizados há pouco tempo, que já tem potencial de extração novamente (ao menos 3-5 anos sem retirada da fibra) apresentam piaçavas mamayapuka, nome dado às piaçavas que foram extraídas, mas detêm estoque passível de produção.
43Além da questão de custo-benefício relacionada com a piaçava, é levada em consideração a disponibilidade de outros elementos. Por exemplo, o tewapuri, apesar de ser distante de Anamoim é um rio muito rico em caça e pesca, que o torna atrativo, pois além de poder retornar com abundância destes recursos para a comunidade, significa a garantia de alimentação disponível durante a estadia nos piaçabais.
Figura 5 – Mamayapuka
Legenda: À esquerda, Mamayapuka sendo penteada, à direita, sendo retirada (destaque em vermelho indica a porção que foi extraída anteriormente e o destaque em amarelo a extração efetuada nesta expedição.
Fonte: Osoegawa, 2016.
44A escolha dos sítios de extração também passa pelas regras de gestão dos bens comuns, em que normalmente se utilizam áreas da própria comunidade, e caso desejem extrair em outras comunidades, normalmente comunicam as lideranças locais, os tuxauas ou capitães, como são chamados na língua portuguesa.
45Quando os períodos de permanência nos piaçabais são longos, os piaçabeiros costumam montar acampamentos na entrada das trilhas de extração, em locais pré-determinados. No período em que havia intensa retirada da piaçava no Rio Xié, até a década de 1990, havia muitos acampamentos montados, sendo necessário apenas realizar a sua manutenção.
46Estes acampamentos eram de uso comum, compartilhados entre as famílias e consistiam de uma construção simples, com as pilastras, sem paredes, com um telhado coberto com palha, ou lona (na época mais recente). Quem construiu o acampamento, que durava de 3 a 5 dias, tinha prioridade de ocupação sobre ele, mas quando não usavam, ficavam disponíveis para as outras famílias.
47Os piaçabais correspondem à pequenas áreas em que a palmeira ocorre densamente, sendo mais propícias para a retirada. Estas áreas se apresentam ao longo das trilhas de extração e são chamadas de reboleiras. Nas áreas em que acompanhamos chegamos aos primeiros piaçabais passíveis de utilização depois de 20 a 40 minutos de caminhada. Em algumas trilhas cruzamos com piaçabais já extraídos.
48Na época em que a exploração era intensa, os piaçabeiros relatam que dependendo do lugar, tinham que caminhar até 3 horas até os piaçabais passíveis de utilização, e que caminhar até 1 hora e meia era comum. A exploração da piaçava, apesar de ser uma extração não predatória, que não provoca a mortalidade das palmeiras, quando realizada intensamente faz com que os piaçabais produtivos fiquem cada vez mais distantes. Se a proporção de exploração for maior que a de reposição do estoque de piaçava, esta diferença provoca a diminuição da produtividade do trabalho, e pode inviabilizar a sustentabilidade da atividade. Assim, é importante que a exploração seja bem planejada.
49Enquanto percorrem os caminhos até os piaçabais os Werekena realizam a manutenção das trilhas com terçados, e coletam cipó, que será utilizado para amarrar os feixes de piaçava.
50Os pontos em que a trilha cruza igarapés são importantes, pois são onde os piaçabeiros podem tomar água e preparar o Xibé. Tamanha é a importância destes pontos, que em um dos mapeamentos participantes, realizado na comunidade de Kunuri, foram identificados (Figura 6).
Figura 6 – Lugares de preparo do Xibé.
Legenda: Cartograma participante em Kunuri. A importância desta prática e destes lugares.
Fonte: Comunidade de Kunuri, 2015.
51Os indígenas conhecem muito bem seu território e normalmente o estado dos piaçabais, qual o estágio de desenvolvimento da fibra, se foi retirado há pouco tempo, e ainda não pode ser utilizado novamente. Se foi extraído há um tempo intermediário (ao menos 3-5 anos), e se a maior parte das piaçavas se encontra em estado de mamayapuka podem ser retiradas novamente, ou se foram exploradas há mais de 15 anos, predominando piaçavas virgens, ou quase virgens, em que cada pé apresenta grande estoque da fibra, pode aumentar a produtividade da extração.
52Mas podemos dizer que estes estágios representam os estados gerais em que se encontram o estoque de fibra de piaçava nos piaçabais, mas os indivíduos variam e alguns são selecionados para extração observando-se algumas características.
53Os piaçabais muito antigos, que apresentam fibras muito velhas, não são extraídos, pois têm coloração acinzentada quando secas e se tornam quebradiças, perdendo resistência e elasticidade, sendo inadequadas para maior parte dos usos. Por outro lado, as piaçavas muito jovens ou recém extraídas também são descartadas, pois a produtividade é muito baixa e as fibras podem não apresentar comprimento adequado. A fibra destas piaçavas normalmente é mais fina, podendo ser útil para alguns artesanatos específicos, mas para maioria dos usos se preferem fibras mais grossas.
54Os piaçabais muito altos são avaliados quanto ao esforço/benefício, se a quantidade de piaçava a ser extraída compensará o esforço. Antigamente os piaçabeiros derrubavam esses piaçabais, que são chamadas também de gigantes para a extração da fibra, mas perceberam que são importantes para a manutenção da população de piaçavas e deixaram de realizar este tipo de extração predatória.
55Hoje têm de subir em árvore próxima para extrair a fibra, ou construir um “andaime” de troncos com as árvores próximas. Como são extrações mais trabalhosas só são realizadas se estas piaçavas apresentarem grande quantidade de fibras de qualidade e por escolhas pessoais. Há piaçabeiros que não retiram fibra das piaçavas gigantes.
56O local que será utilizada também é determinante na escolha da piaçava a ser extraída. Por exemplo, para a fabricação de espias, ou seja, cordoamentos de piaçavas trançadas, as fibras tinham que ser mais longas e novas, para que mantivessem a elasticidade e outas para produção de telhados (figura 7). Para vassouras (figura 8), brincos (figura 9), pulseiras e para a fibra externa, de revestimentos de porta-panelas, porta joias, porta lápis são necessárias fibras mais grossas. Fibras mais finas podem ser utilizadas piraibinhas (enfeites de mesa e/ou chão que imitam piraíbas em tamanho reduzido).
Figura 7 – Telhado de palha da piaçava.
Fonte: Osoegawa, 2016.
Figura 8 - Vassoura tradicional de piaçava (vassoura de cabeça)
Fonte: Osoegawa, 2016.
Figura 9 - Brincos feitos de piaçava e cipó.
Fonte: Osoegawa, 2017.
57Para a comercialização da fibra bruta, por peso, comumente se utilizam todos os tipos de piaçava mesmo as mais novas, finas e curtas, pois neste caso a maior preocupação é em aumentar o peso e não prezar pela qualidade.
58Depois de escolher o pé de piaçava a ser extraído é realizado bosqueamento em cerca de 2 metros em torno da palmeira, para facilitar a extração e permitir que se penteie as fibras da piaçava. Neste processo as plântulas e árvores jovens próximas ao piaçabeiro são cortadas. Esta prática provavelmente beneficia o piaçabeiro por eliminar possíveis competidores por nutrientes e água em seu entorno. Este processo de “limpeza” também envolve a retirada da maior parte das folhas, para que seja possível pentear a fibra e extraí-la com facilidade. Costumam deixar entre 3 a 5 folhas, as mais jovens, para que não provocar a morte da planta, pois se todas são retiradas há grandes chances de mortalidade.
59Após o desbaste da área que rodeia a piaçava é confeccionado um bastão, que normalmente é feito com as raques das folhas que foram cortadas ou com um tronco de uma árvore jovem, que seja fino e retilíneo. Este bastão é utilizado para golpear a piaçava, em primeiro lugar para espantar as possíveis ameaças que possam existir, como por exemplo cobras, cabas, formigas, abelhas, aranhas, que podem representar grande risco ao piaçabeiro.
60Depois de averiguado que não existem mais ameaças, golpea-se a piaçava para penteá-las, dando voltas e golpeando-as novamente, e posteriormente o emaranhado das fibras vão se soltando, até que fiquem ordenadas e se assemelhem bastante a cabelos lisos, com uma coloração marrom brilhante, quando novas.
61Além dos golpes aplicados às fibras para proporcionar o ordenamento inicial, quando ficam com o aspecto “liso” também começam a pentear as fibras puxando-as, com a ponta da vara, trazendo do centro às pontas. Em seguida, pegam o lado de trás do terçado, que não tem corte, ou com o cabo da faca, para finalizar a organização das fibras com a ferramenta que utilizarão para cortar as fibras.
62Com as fibras penteadas, inicia-se a retirada, de cima para baixo, seguram pequenos feixes de piaçava com a mão e as puxam em direção ao corpo e seguem cortando com a faca ou o terçado (a maioria dos piaçabeiros observados, 5 de 7, preferiram cortar com faca). Ainda com o feixe retirado em mãos, seguram mais um feixe, repetindo a operação, por 2 ou 3 vezes até a quantidade máxima que lhes cabem nas mãos.
63Depois de amarradas cortam uma porção da base, a parte que estava presa ao tronco da piaçava, para deixá-la mais uniforme. Mais uma vez penteiam as fibras e depois as colocam no chão.
64Seguem nesse processo dando voltas no piaçabeiro até extrair todas as fibras, pouco a pouco, unindo estes feixes penteados e com a base cortada, para que fiquem “retas”, e estejam todas alinhadas em um dos lados do feixe.
65As cabeças são os agrupamentos destes feixes que são produzidos durante a retirada. Nas extrações observadas foi possível atestar que a produção de fibra varia bastante, sendo entre 0,5 e 5 kg. Isto depende do seu estágio de desenvolvimento (se é muito jovem possui poucas fibras, mesmo virgem) e do tempo de pousio em relação à última extração (quanto mais tempo, mais piaçava disponível). As cabeças também variam de peso e normalmente correspondem ao montante de fibras extraídas de 1 ou mais piaçabeiros, normalmente entre 1 e 5 kg cada uma.
66Para a confecção das cabeças os feixes extraídos são agrupados, e a base é cortada novamente com terçado, alinhando as fibras e são novamente amarrados com fios da fibra de piaçava, ou seja, as cabeças, são feixes menores produzidos durante a extração.
67Os pacotes são compostos por cabeças de piaçava que somam entre 20 e 60 kg e que são amarradas com cipó (figura 10). Este tipo de amarração é realizado com o intuito de se transportar a piaçava ao longo das trilhas dos piaçabais até o acampamento e do acampamento até a comunidade.
68A produção dos pacotes, se inicia fazendo uma “cama” com 2 ou 3 folhas da piaçava para protegê-las do contato com o chão, evitando que as folhas secas se emaranhem nas fibras. As cabeças são dispostas em cima desta “cama”, lado a lado, com a base sempre na mesma direção, até atingirem uma largura de cerca de 50cm, depois começam a posicionar as outras cabeças em cima das primeiras, organizando várias camadas de cabeças, até organizarem toda a piaçava extraída.
69As fibras são amarradas próximo à base com um cipó, 30 cm acima do primeiro, que envolve todo o pacote. Então, parte da piaçava restante é dobrada para trás (podendo se utilizar o auxílio de um galho), que é amarrada com o terceiro e último cipó, cerca de 30 cm acima do segundo.
Figura 10 – Processo de amarração do pacote
Fonte: Osoegawa, 2015.
- 5 Tecido externo à troncos jovens de algumas espécies de árvores, que sai como uma tira contínua, qua (...)
70A ponta das fibras que foi dobrada para trás é encaixada em um dos cipós, para não ficar balançando durante o transporte e então é extraída uma tira de envira5, amarrada em torno do pacote permitindo que seja carregado encaixando-se esta alça na cabeça (Figura 11) ou na testa.
Figura 11 – Mulheres de Umaritiwa transportando piaçava
Fonte: Osoegawa, 2015.
71Após chegar nos acampamentos ou nas comunidades os piaçabeiros realizam o processo de beneficiamento da fibra e amarração em paraíba ou pedaço, com duas formas diferentes de amarrar os feixes de piaçava, para que se mantenham penteadas e em bom estado de conservação até a chegada ao consumidor final. Para fazer as piraíbas, iniciam novamente uma “cama” de folhas de palmeira, desta vez de açaí (Euterpe oleracea), que é abundante nas comunidades. Utilizam 2 folhas para forrar o chão. Em Kunuri, trançaram as folhas em uma espécie de esteira, que isolalando-se totalmente as fibras do chão. Em Umaritiwa não chegaram a trançá-las, mas também as utilizaram.
72Então desamarram o pacote, separando novamente as cabeças que são desfeitas e penteadas mais criteriosamente, retirando-se as fibras menores, emaranhadas, ou muito grossas, que não ficam como fios, mas que se parecem como placas agregadas. São penteadas com as mãos e golpeando-as em superfícies duras, como por exemplo, troncos de árvores. E têm a base cortada novamente, para alinhá-las.
73Então elas vão cuidadosamente sendo dispostas sobre a “cama” de açaí, organizadas, espalhadas uniformemente, ao longo de cerca de 1m, formando uma camada de 15-20 cm (para uma piraíba de 20 Kg). Parte da piaçava não é fixada na base, mas pouco mais a frente para dar volume no centro da piraíba, em um formato cônico, quando pronta.
74Então as fibras são firmemente amarradas com um cipó que havia sido colocado abaixo delas, com formato circular à base. Depois, com o auxílio de uma espátula de madeira, golpeiam a base da piraíba, para que fiquem alinhadas e seguem penteando-as com um pente de madeira. Giram a piraíba até que as fibras de todos os lados estejam penteadas.
75Depois de penteada um segundo cipó é amarrado, acima do primeiro, em volta da piraíba à 1/3 de sua altura. Este cipó é amarrado temporariamente, para manter a sua forma enquanto os outros cipós vãos sendo amarrados. A base da piraíba é novamente golpeada e as fibras são novamente penteadas e segue a amarração com cipós paralelos ao longo do seu comprimento, à uma distância de cerca de 7 cm entre si, todos circundando-a. Depois de ter amarrado 5 vezes com cipó, pode retirá-lo e seguir.
76Quando se chega à metade da piraíba, esta é novamente penteada com as mãos, então a amarração dos cipós que a circundam segue, e regularmente, entre a colocação dos cipós, é novamente penteada, até que os cipós circundem totalmente. Foram utilizadas 19-20 tiras de cipó para circundá-la.
77Com o auxílio de uma faca, a parte excedente dos cipós é cortada, próximo aos nós raspando o fundo da piraíba, para retirar a ponta das fibras de piaçava, para que a base fique plana.
78As piraíbas que foram confeccionadas durante a pesquisa tinham cerca de 20 kg, mas de acordo com os relatos dos piaçabeiros era comum que tivessem mais fibras, de 30 a 60 Kg (Figura 12).
“Depois de cortar, a gente faz uma cabeça, que a gente chama. Até 6 cabeças desse tamanho, mais ou menos 5 a 10 kg cada cabeça, aí a gente junta, já pra fazer piraíba”. (Pereira, comunidade de Amiῦ, 11/10/2014).
Figura 12 – Confecção de piraíba (Piaçabeiro, Roberto Cândido Oliveira).
Fonte: Osoegawa, 2015.
79Os povos Werekena e Baré do rio Xié têm em sua trajetória histórica um processo de ampliação da autonomia frente às relações com o mercado.
80O acesso aos bens industrializados era plenamente dependente dos regatões, que promoviam a escravidão pela dívida. Os Werekena e os Baré foram se apropriaram da matemática, adquiriram motores que ampliaram sua capacidade de locomoção, e formalizaram o movimento indígena e em 1998 decidiram se posicionar contrários à exploração sofrida na cadeia produtiva da piaçava, reduzindo-se drasticamente a extração desde esta data para combater a forma de trabalho semi-escrava e degradante da exploração desse elemento natural.
81Praticamente paralisaram a extração da fibra, que se tornou uma atividade secundária, pouco praticada. Muitos jovens deixaram de aprender os procedimentos do manejo cultural e a confecção de artefatos e artesanatos. Estes procedimentos são parte do conhecimento deles, que se mantém vivo pela prática cotidiana e pela aprendizagem intergeracional. Por mais que seja possível registrar esses conhecimentos em livros ou em formato audiovisual a sua verdadeira conservação se dá pela prática do manejo e pelo uso desse elemento natural agregando valor cultural como parte de suas identidades aos artefatos utilizados no dia a dia ou aos artesanatos.
82Mais do que meras técnicas, tanto o manejo cultural, como a confecção de artes são espaços pedagógicos, geradores de aprendizagem, onde existe partilha entre as gerações, na qual encontra-se um terreno fértil para o fortalecimento dos laços familiares e socialização de outros conhecimentos integrados, como a cosmologia, conhecimentos morais, histórias de origem, calendários culturais, preparos medicinais e outros conhecimentos ordenadores da sociedade indígena e fundamento de suas relações com o território. Nessa perspectiva o manejo cultural da piaçava não apenas promoveu a territorialização do povo Werekena no rio Xié mas produziu uma territorialidade que os identificam na TI Alto Rio Negro. Entendemos como territorialidade a identidade criada por um povo/grupo social a partir das relações de suas culturas com o território.
83Assim, além da importância da manutenção das atividades relacionadas à piaçava, hoje o estoque de fibras nos piaçabais está alto e as áreas passíveis de extração estão próximas às comunidades o que demanda menos esforço para sua retirada.
84Ainda que as atividades de manejo e confecção de arte da piaçava se apresentem como atividades secundárias, reflexo das relações exploratórias exercidas nas trocas por esses bens, são atividades que expressam a identidade do povo Werekena, sua territorialidade e fazem parte do seu processo histórico de territorialização na região, expressos no manejo cultural, que resistiu ao extrativismo comercial e as relações escravistas de trabalho, e que ainda podem ser observados, mesmo na extração não comercial deste elemento e na confecção dos artefatos e artesanatos para utilização familiar.
85Assim, além da importância da manutenção das atividades relacionadas à piaçava, hoje o estoque de fibras nos piaçabais está alto e as áreas passíveis de extração estão próximas às comunidades o que demanda menos esforço para sua retirada.
86Estes fatores mostram relevância da piaçava como uma das atividades a integrar o projeto societário dos povos do Rio Xié (como têm sido expresso por eles) e o potencial em apoiar o processo histórico que vêm ocorrendo de ampliação de autonomia.
87Nesse processo é importante que ocorra uma indigenização da modernidade (Sahlins, 2003) através de propostas anticoloniais protagonizadas pelos povos indígenas, para que a realidade globalizada não atue de maneira globalizante, construindo estratégias interculturais e participantes, para valorizar e reforçar os valores e concepções próprias, de forma a ampliar a autonomia, ressignificando os elementos externos a partir de uma lógica própria.
88Assim, é necessário que ocorra o inverso do que era proposto pela relação integracionista clássica antes da constituição de 1988, em que se almejava integrá-los à sociedade nacional, para que abandonassem a cultura e identidade. Se propõe um integracionismo ao revés, em que elementos da sociedade nacional possam ser ressignificados com uma concepção intercultural às sociedades indígenas para fortalecer seus projetos societários abandonando a lógica externa e sejam guiados pelos valores socioculturais locais.
89Através da indigenização da modernidade os povos indígenas têm o potencial de construir seus caminhos de futuro e novas estratégias de se relacionar com os não indígenas, que através de suas tradições, tecnologias sociais e valores têm muito a compartilhar neste processo de ressignificação das estruturas da sociedade não indígena.
90O manejo e comercialização da piaçava está entre as práticas que podem fazer parte do planejamento de um projeto de futuro para os povos indígenas do Rio Xié frente ao contexto vivenciado hoje, para que seja possível resistir às pressões globalizantes através da construção da indigenização da modernidade.