1Dentre outras tradições, a geografia francobrasileira foi moldada pelo debate em torno das articulações entre espaço e tempo, propiciado pelo diálogo com historiadores e outros cientistas sociais. Mas a despeito das inovações críticas, o especialismo e as cisões disciplinares seguem exigindo novos métodos para estabelecer essas conexões. As mais recentes guinadas aos estudos imagéticos, por exemplo, têm proposto abordagens que dão mais atenção ao papel do conhecimento cartográfico e das imagens geográficas na estruturação de visões de mundo ao longo da história.
2Nesse sentido, o percurso aqui proposto procura, de início, identificar algumas tendências teórico-metodológicas da geohistória francobrasileira, criticando a subutilização da cartografia enquanto linguagem, e centralizando o mapa e o “mapear” no entendimento da produção espacial. Como fundamento da crítica, também se preza por uma geografia histórica que ultrapasse a história disciplinar ou institucional, e se abra com mais frequência à visualidade geográfica de diferentes períodos-regiões históricos.
3Um primeiro passo nessa direção pode ser uma retrospectiva dos saberes de espaço do Renascimento, contexto no qual o clássico, o medieval e o moderno se entrelaçavam e colocavam a geografia em fusão com outras práticas científicas. Acredita-se que a escala renascentista – dados seus limites ocidentais e coloniais – oferece um repertório visual que pode expandir as definições sobre mapas e imagens geográficas, e retomar, através da cartografia, uma ligação aprofundada entre tempo e espaço na teoria social.
4A tarefa de atribuir um marco originário às relações disciplinares entre geografia e história se mostra nebulosa, e tem sido relativizada na perspectiva de uma produção de saberes que se estende do pensamento clássico à modernidade, mesmo antes da respectiva institucionalização desses conhecimentos. Mas nos contextos em que a leitura catedrática e iluminista permanece, é comum que esse marco seja conferido à géohistoire de Fernand Braudel, sem esquecer de suas continuidades em relação aos métodos regionais de Paul Vidal de La Blache. Nos liceus e nas universidades francesas dos séculos XIX e XX, as duas disciplinas eram colocadas em interdependência por diversos aparatos. A dupla diplomação, a convivência departamental das cátedras, e as relações entre os professores-orientadores das duas áreas pintaram um cenário epistêmico de aparente comunhão entre a historiografia e o pensamento geográfico, que seria transposto à realidade acadêmica brasileira pelas sucessivas gerações da missão francesa (Febvre, 1950, p. 3-4). Nesse quadro político-científico, não desvinculado das relações de colonialidade, ocorreu um relativo amalgamento dos departamentos de ciências humanas, mas que certamente não abandonaria as fronteiras cultivadas entre esses saberes.
5Se a geohistória braudeliana perpetuou uma série de reflexões sobre os nexos entre espaço e tempo, ela o fez partindo de uma separação bem clara entre as funções científicas da história e da geografia, que seriam conjuntivas, mas nunca misturadas. O intuito original de sua mais famosa obra – sobre o mar mediterrânico na monarquia espanhola filipina – era estruturar uma abordagem baseada na dialética espaço-tempo (Braudel, 1972, p. 16). Braudel se mostrava insatisfeito com o papel cosmético exercido pelos dados espaciais, criticando a tradição de preâmbulos geográficos que havia se tornado uma etiqueta comum entre os autores das ciências humanas a partir da Terceira República (Braudel, 1972, p. 20; Verdier, 2009, p. 109). Mas sua crítica se dirigia mais ao uso do que ao conteúdo desses dados: não seria problemático que a geografia fosse um compêndio de descrições minerais, botânicas e climáticas – isso era reafirmado como sua natureza –, mas sim que a história não mobilizasse esses referenciais com mais profundidade. A energia teórica a ser empreendida se concentrava nas mãos da historiografia, e em sua capacidade de ligar os elementos geográficos à realidade social.
6Nestes cânones, os amigos geógrafos são adeptos da interpretação da concretude, observadores que tomam nota dos “acidentes do caminho” e das “cores das paisagens”, dotados de um “olhar novelista” que sabe discernir os contornos e a realidade (Braudel, 1968, p. 48; Braudel, 1972, p. 1240). Apontamentos como esses ajudaram a reforçar a geografia, nos meados dos novecentos, como uma relação fixa de “condições”, “fatores”, “marcos”, “obstáculos” (termos de Fernand); em suma, uma ciência que se atenta ao conteúdo das formas externas do visível, às morfologias concretas e dinâmicas ecológicas que influenciam os atores históricos, e cuja relação com a esfera social só se faz possível pelo intermédio das verdadeiras ciências sociais (Sociologia, História e Economia). Trata-se de um quadro ambíguo: Braudel concordava com a imposição de um entendimento de mundo mais geográfico às ciências humanas (Braudel, 1968, p. 105), e mesmo assim imputava o mérito científico da geografia à eficácia de seus determinismos (Verdier, 2009, p. 105).
7Esse paradoxo – de propor a conexão das duas disciplinas, sem a fusão de suas categorias – é tributário justamente à visão epistêmica de La Blache. É interessante notar que Braudel despercebeu os geógrafos de seu tempo, preferindo no lugar um resgate da lógica regional e uma perenidade das antigas categorias vidalianas (Verdier, 2009, p. 107). Anteriormente, numa época de fronteiras disciplinares ainda imprecisas, Vidal se viu impelido a destacar as particularidades do pensamento geográfico em relação ao restante das humanidades, afirmando que a geografia não era uma ciência voltada aos homens, mas sim aos lugares. Por outro lado, também reconheceu, como o maior trunfo da ciência geográfica, a capacidade de incorporar simultaneamente saberes de outras disciplinas, e de “não separar o que a natureza reuniu” (La Blache, 1913, p. 299).
8A necessidade de particularização, contudo, levaria a uma progressiva desvinculação entre tempo e espaço, vivida por Braudel como um iminente divórcio entre a história e a geografia. Mas Fernand, em reverência aos postulados vidalianos, também respeitou “o desejo [dos teóricos] de se afirmarem diante dos demais” (Braudel, 1968, p. 61). Pode-se assim identificar uma continuidade nas geohistórias de La Blache e Braudel; ambos propuseram uma junção sem sobreposição, uma aliança entre dois universos que, mesmo casados, permaneceriam nitidamente distintos.
9Não é pertinente aqui associar os rumos dessas ciências às ações de grupos acadêmicos específicos, mas é crucial assumir que o modelo vidaliano-braudeliano de geohistória permaneceu um tanto cristalizado, também pela maneira como foi interpretado subsequentemente. Mas isso não se deu sem críticas contundentes.
10Muito difundidas e pouco absorvidas são as provocações feitas por Yves Lacoste, que ajudaram a sacudir um pensamento geográfico imobilizado nos fatos físicos. Sua atenção se voltou à maneira com que historiadores e economistas utilizam o argumento geográfico como um fato neutro e objetivo, no que se chamou de uma “conspiração do silêncio” ao redor da geografia (Lacoste, 1988). O autor revela que à história sempre interessou uma geografia tímida, presa mais aos aspectos metodológicos (como o descritivismo que se consolidou com o impacto das ideografias regionais) do que aos debates epistêmicos e filosóficos. Foi denunciada a tendência de conter o ver-pensar geográfico dentro dos limites da análise topográfica e morfofuncional, e se atribuiu aos tempos de La Blache a ruptura entre o pensamento geográfico e o social.
11A mesma crítica seria continuada por Edward Soja (1989, p. 15) em sua tentativa de reaproximar a geografia das ciências humanas renovadas, através de uma condenação da “excessiva contextualização histórica” que secundariza a imaginação espacial. Todos esses dissensos foram respostas a uma visão epistêmica que perdurou com bastante força desde o século XIX até o fim do milênio, nos termos da qual os historiadores viram a geografia como uma “serva da história” (Baker, 2003, p. 16).
12Mas se o distanciamento entre as explicações espaciais e as ciências sociais foi apontado enquanto imposição hegemônica da história, ele foi igualmente um arbítrio dos próprios geógrafos. Na leitura epistemológica de Nicolas Verdier (2009, p. 106-108), esse movimento tem uma origem dupla; foi favorecido por crises externas e internas à geografia. Após a separação das duas cátedras no contexto político da República de Vichy, produziram-se novas turbulências, desde os crescentes rechaços dos etapismos históricos, até a defesa de um programa teórico próprio da geografia frente aos comitês da Escola dos Annales, que Braudel julgou segregadora e contraproducente. Essa atmosfera de emancipação inspirou os geógrafos a escancarar as condições desiguais sob as quais a relação com a história foi estabelecida.
13A grande difusão dessas críticas no discurso de “independência” da ciência geográfica, entretanto, não falhou em cultivar na disciplina um grau de desconfiança em relação às outras ciências sociais. Muito se fala do vilanesco historicismo e sua prisão de cronologias evolucionistas, das explicações puramente sociais, e pouca energia é direcionada ao reconhecimento de um isolamento da geografia, que se mostrou muito capaz de produzir seus próprios “espacialismos”. São raras admissões como a de Verdier (2009, p. 108), de que as abordagens estatísticas e espacializantes, focadas no instante presente, engoliram as investigações sobre geografias passadas. Central a essa destemporalização da análise espacial foi o que Christian Grataloup (1996, p. 8) chamou de uma onda de “quantitativismo ingênuo” nas ciências humanas, momento em que as modelizações matemáticas da Econometria foram incorporadas nos métodos geográficos, com expressão na “aritmética política” dos estudos demográficos.
14A relativa consolidação da geografia como um eterno agora, uma ciência de espaços sem balizas, que acumula todos os tempos (dos geológicos aos históricos) numa mesma expressão momentânea – a paisagem visível e medível –, deve ainda ser desembaraçada. Isso é captado pelas reflexões de Henry Darby (2020, n. p.), que questiona a insistência na observação como método universalizado de pesquisa em geografia: “quando deixamos de ser geógrafos históricos e nos tornamos geógrafos do presente por completo, como devemos conduzir a nós mesmos? Se o propósito do geógrafo é explicar a paisagem, é claro que ele é incapaz de depender somente daquilo que vê”.
15Nesse ponto, uma crítica que termina na contestação do modelo braudeliano se mostra insuficiente. É preciso contestar também as posturas dos geógrafos. Ao mesmo tempo em que procurou se desvencilhar das amarras historicistas e econométricas, a geografia parece ter (re)produzido sua própria secundarização, e também se conformado em certo nível aos limites de uma ciência de verdades físicas, de descrição do mundo concreto, e um tanto inconsciente dos perigos do quantitativismo. As desigualdades epistêmicas construídas na relação geografia-história não são unilaterais; sua composição intricada revela um caráter recíproco.
16A resposta aos desacordos definitivamente não é uma rejeição do paradigma vidaliano e de sua expressão na concepção braudeliana de geografia. Deve-se lembrar que La Blache ajudou, na passagem do século XIX ao XX, a repensar a visão de espaço predominante entre os historiadores; sua atenção às formas idiossincráticas com que cada sociedade produz suas paisagens culturais, continuada pelos possibilismos de Lucien Febvre, foi decisiva para desestabilizar – sempre com continuidades – as leis de uma causalidade geral entre humanidade e natureza (Lacoste, 1988; Baker, 2003, p. 19-20). Já Braudel, apesar de ter reproduzido alguns determinismos do solo, não foi por isso uma referência menos indispensável a outros autores dedicados ao aprofundamento da dialética espaço-tempo. A ênfase dada pelos geógrafos braudelianos nos contornos herdados da paisagem, ou em suas sucessivas morfogêneses, foi influente na posterior definição de uma categoria de espaço mais retrospectiva, baseada na ideia de um palimpsesto, que acumula memórias vivas de feições pretéritas (Santos, 2006, p. 69; Verdier, 2009, p. 121-122).
17Os processos históricos de longa duração enunciados por Braudel (1965) associaram às realidades sociais suas temporalidades múltiplas e relativas, marcadas pela concomitância entre escalas de “tempos curtos” (conjunturais) e “longos” (estruturais). Mas houve uma dificuldade por parte dos historiadores do período – ou pouco interesse – em incorporar a dimensão espacial nas teorias da longa duração (Silva, 2020, p. 7). As lacunas começaram a ser preenchidas pela leitura de Milton Santos (2006, p. 179-180), e sua proposta complementar de “tempos lentos” e “tempos rápidos” para explicar a concorrência de diacronias e sincronias na reprodução do espaço. Sem se prender a balizas exatas, e aprofundando o propósito braudeliano de libertar as ciências sociais das cronologias lineares, as categorias miltonianas buscaram socializar na geografia lógicas que por muito tempo foram privilégios das outras humanidades.
18Tendo em vista esse trajeto de oscilantes repulsas e atrações entre geografia e história, podemos traçar objetivos teóricos mais comuns. Como partir de uma união hierarquizada entre espaço e tempo, e buscar então sua inseparabilidade? Toda a questão da relação geografia-história constitui um dilema tradicionalmente estudado há séculos, mas se pode dizer o mesmo de uma perspectiva mais sincrônica, que almeja sair de um dualismo e compreender tempo e espaço enquanto um só objeto? Dentre os que empreitaram nesse sentido, Grataloup se destacou pela consciência de que toda baliza temporal nasce associada a uma espacialidade própria, e propôs a categoria de “período-região” para “levar em conta as descontinuidades espaciais e as descontinuidades temporais das sociedades como um problema único” (2006, p. 38). Ele também viu o pensamento de Braudel como um marco paradoxal, que ao mesmo tempo estruturou a ciências sociais e barrou suas conexões com a geografia, mas não nega que a teoria da longa duração permitiu o entendimento de estruturas sociais perenes, sem abrir mão da historicidade (2003, p. 2).
19Na mesma época, Jacques Lévy e Michel Lussault (2003) definiram o espaço como uma das dimensões simultâneas da sociedade, regida por métricas e escalas socialmente estipuladas, e cujo elemento simétrico, mais valorizado, seria o tempo. São novas tentativas de efetivação da tarefa de dialetizar história e geografia, mas que não partem de uma distinção entre fatos físicos e sociais. Pelo contrário, colocam a fisicalidade como algo variável entre as realidades. O espaço não seria um plano anterior às próprias coisas, mas sim uma instância que é erguida e transformada junto à produção humana.
20Uma das principais distinções desse viés é a noção do espaço como categoria relativa, e o rompimento com o espaço absoluto – tecido numa matriz contínua, intransponível e imóvel; assentado na física newtoniana e depois reforçado pela metafísica idealista, e que precederia e conteria tudo o que existe (Crosby, 1997, p. 108; Lévy, Lussault, 2003, p. 327; Fonseca, 2004, p. 35-36). O olhar espacial dos braudelianos, inspirado pela cosmovisão kantiana, buscava conciliar a absolutez do mundo físico com a relatividade dos significados da percepção, mas essa perspectiva não necessariamente deixou de tomar o espaço como um recipiente hermético do conteúdo social.
21Parte desse discurso foi resultado da iconização das abstrações geométricas. É uma preocupação presente nas reflexões de Claude Raffestin, que indagou se as dinâmicas de controle territorial são forçadamente traduzidas, conforme as necessidades do poder, na espacialização de uma “sintaxe euclidiana” (1993, p. 145); mas a crítica tomaria um corpo robusto com Lévy e seu alerta sobre a progressiva vulgarização do espaço euclidiano enquanto o único possível de conceber (2003, p. 351). Propor a relatividade espacial, então, é negar essa ontologização da geometria e dizer que cada espaço depende de generalizações abstratas, adotadas socialmente como representações.
22É aqui que se nota um critério das novas tentativas de aproximação geohistórica: elas consideram e valorizam o mapa (e toda abstração geográfica) como um dispositivo de produção dos espaços-tempos históricos. Se o espaço é ao mesmo tempo material, imaterial e ideal (Lévy, Lussault, 2003, p. 325), ele só o é através da mediação por esquemas gráficos e abstratos de propriedades igualmente múltiplas. Com isso não estamos nos limitando à concepção ocidental do mapa como um documento formal, um registro movido pela pretensão à precisão escalar e a equivalência das distâncias. Prefere-se dizer que a autoridade dos mapeamentos geométricos deriva, na verdade, de uma postura de nobreza ou “cavalheirismo burguês” que legitima sua cientificidade (Grataloup, 1996, p. 7). Mesmo com uma vívida renovação teórica, amarras cientificistas ainda restringem os movimentos da geografia, e isso é bem ilustrado nas rígidas noções cultivadas sobre o espaço cartográfico, que tendem a permanecer passivas à naturalização das extensões e contiguidades euclidianas (Fonseca, 2019).
23Surpreende a baixa adesão a ideias mais transversais como as de John Pickles (2004, p. 12-14) e Matthew Edney (2019, p. 230), que admitem os limitados critérios sob os quais a cartografia científica é legitimada, e tentam abarcar não a tecnicidade do mapa enquanto um produto terminado em si, mas toda a processualidade dos atos de mapear. Nessa visão ampliada, que pode ultrapassar a ocidentalidade, são mapeamentos legítimos as inscrições efêmeras sobre superfícies, os rabiscos, rascunhos e modelos das mais diversas grafias, os gestos do corpo e também as abstrações cognitivas, imagens mentais construídas e idealizadas pela imaginação espacial.
24É uma transferência de pensamento que requer um rompimento com a predominante axiomática da prática cartográfica, que vê no mapa uma representação realista ou espacialização de uma superfície já existente (Bord, 2003, p. 174). Longe de copiar a concretude da natureza, mapear é uma ação sobre os rumos da realidade social, que propõe novas visões dominantes e novas espacialidades. Mapas, no fim, não são representativos, mas artefatos que operam a construção de diferentes espaços relativos (Lussault, 2007), e que são parte ativa da “dialógica política” (Lévy, 2004, p. 15).
25Mas a cultura da objetividade sedimentou o espaço matemático-geométrico, e o fez em tanta intensidade que se produziu a ilusão semiótica de que o mapa (euclidiano e topográfico) é a correspondência do próprio espaço geográfico. A noção crítica desse processo aparece já durante o século XIX, no que Karl Ritter chamou de uma “ditadura da cartografia” sobre a geografia, pela qual as representações formais limitam as concepções de espaço possíveis (Fonseca, 2004, p. 45; Bord, 2003, p. 174). Esse diagnóstico foi retomado mais recentemente pela “razão cartográfica” de Franco Farinelli (2009), um termo que endereça as formas pelas quais os dispositivos visuais e as técnicas gráficas passaram a reger e antecipar as visões de espaço.
26Uma leitura ingênua das pretensões objetivas dos mapas pode levar a imagens inflexíveis dos territórios representados. Começa-se a crer que o espaço material é geométrico, ou que a geometria é a própria natureza do espaço. É uma naturalização violenta, mas silenciosa. Os trabalhos epistemológicos, ainda um pouco marginalizados no debate geral da cartografia, ajudam a estabelecer a consciência de que “uma nova cultura visual redefine tanto o que é para ver quanto o que há para ver” (Latour, 2015, p. 10). Quantos aspectos dos nossos modos geográficos de observar e raciocinar estão sendo decididos pela autoridade gráfica dos mapas geométricos? Uma das composições mais impositivas parece ser a conformação do espaço a um substrato bi ou tridimensional de pontos, linhas e áreas/tessituras (Raffestin, 1993, p. 148-149).
27Nas abordagens geohistóricas, essa contradição é evidente quando a cartografia euclidiana e seus princípios sistemáticos são empregados na abordagem de espacialidades históricas, como se o espaço geométrico fosse uma chave de tradução para todos os tempos e todos os lugares. É necessário lembrar das preocupações de John Brian Harley (1989, p. 84), que atentava aos perigos do mapeamento do passado, e à presunção equivocada de que as imagens técnicas contemporâneas correspondem às realidades históricas.
28Um grande exemplo dessa fé inabalável na universalidade temporal do mapa foram as cartas topográficas que introduziam os estudos regionais nos novecentos, e não cumpriam muito propósito além de reforçar um plano de contornos precisos, uma arena concreta que continha toda a atividade humana subsequente (Harley, 2005, p. 66). Havia pouco nessas cartas que desse acesso ao conteúdo social das obras, e isso deveria ser compreendido no exame do texto historiográfico, não na interpretação imagética, meramente referencial. São casos que servem como uma metáfora para o estado dos mapas e do conhecimento cartográfico nos estudos históricos da época. Não estaríamos aqui falando de uma hegemonia da sequencialidade textual sobre a simultaneidade visual na captura dos espaços do passado? (Lévy, 1999; Lévy, 2004, p. 1-3; Fonseca, 2004, p. 203-205).
29A desidratação dos mapas, dessocializados e feitos de esqueletos descritivos, foi uma característica da geohistória novecentista, que subutilizou a cartografia e não percebeu a anacronia de retratar os espaços da antiguidade, do medievo e da alta modernidade segundo uma verdade topográfica da Ilustração. Tanto nas tradicionais pranchas morfológicas que acompanhavam as descrições dos tempos de Vidal e Braudel, quanto na cartografia estatística depois encabeçada pela semiologia gráfica, havia o consenso quase unânime de que uma matriz euclidiana seria o plano mais privilegiado de transposição, independentemente de sua historicidade.
30O processo de desvinculação acadêmica das disciplinas de geografia e história, embora libertador para os geógrafos, anunciou transformações na contribuição do mapa para o pensamento geográfico. São elucidativas as palavras de Jean-Paul Bord (2003, p. 177-178): ao contrário do que comumente se diz sobre outros campos, a cartografia sofre de um excesso de prática aplicada e uma carência de reflexões teóricas. A profissionalização da geocartografia, conjugada ao avanço dos espaços computadorizados, marcou a vitória da engenharia cartográfica sobre a cartografia geográfica, e também um distanciamento entre as lógicas cartográficas e as renovações da geografia humana. Gerou-se uma descompensação: enquanto a teoria geográfica crítica se viu afetada pelo relativismo social, pelo contextualismo e materialismo histórico, pela semiótica filosófica e pelas categorias da linguística, nada pôde ser dito na mesma intensidade sobre a cartografia.
31Mas não só em pessimismos se apoia esse cenário. O saber cartográfico generalizado no interior da chamada “geografia quantitativa”, curiosamente foi marcado por suas próprias renovações no âmbito imagético (os cartogramas e a modelização gráfica, a abertura a espaços topológicos e métricas relativas, como se empreendeu nos mapeamentos anamórficos) (Fonseca, 2004, p. 52-53). A maior contradição é que a rejeição ao dito positivismo dessa cartografia pode ter produzido outros distanciamentos das geografias renovadas em relação ao mapa. Para a geohistória, isso significa uma abordagem do passado mais focada na narração textual do que na mediação por linguagem cartográfica; e quando esta última acontece, emprega-se usualmente a autoridade atemporal dos mapas euclidianos e georreferenciados.
32Mais importante do que os questionamentos críticos, contudo, são as propostas de novas lentes de análise para a relação geografia-história. É uma tarefa que implica uma reformulação dos moldes do pensamento geográfico crítico. A renovação teórica vivida nas últimas décadas pelos geógrafos especializou seu arcabouço conceitual na abordagem dos tempos globais da informação. Em muitas interpretações da geografia materialista, o ponto de virada epistêmica mais decisivo da modernidade é o iluminismo industrial, não os renascimentos e descobrimentos. Há uma esticada até o fim do medievo, mas quase sempre nos termos da acumulação primitiva e das dinâmicas mercantilistas dos fluxos coloniais, em noções bem tributárias ao modelo braudeliano de economia-mundo (Santos, 2006, p, 124; Harley, 2004, p. 47).
33Sem rechaçar a vital importância dessas correntes, é possível afirmar que há uma atual confusão entre a história da geografia e a história do capital ou da globalização, o que gera algumas lacunas no olhar geohistórico. Um sintoma frequente é a dificuldade dos geógrafos em identificar fenômenos de mundialização anteriores à sociedade globalizada mais recente, horizonte que já foi bem explorado pelos historiadores (Gruzinski, 2010, p. 81-83; Silva, 2020, p. 4-6). A geografia histórica guarda, assim, o objetivo de se aventurar numa epistemologia que abarque outros contextos dos seus saberes. Uma leitura focada no âmbito acadêmico dos séculos XIX e XX pode obscurecer processos de institucionalização da geografia desenrolados, pelo menos, desde a alta modernidade.
34Em primeiro lugar, admite-se que uma abordagem por divisões disciplinares não abarca a complexidade dos saberes geográficos do período-região renascentista. Fazer geografia não era apenas uma especialidade dos geógrafos, cosmógrafos, corógrafos, cronistas, desenhistas, pilotos e mestres cartógrafos (que por vezes ocupavam esses cargos simultaneamente), mas uma possibilidade heurística de todas as artes liberais e humanistas. Os métodos de produção do saber conheciam poucas distinções entre si, e o nascimento, por vias coloniais, de um mundo a preencher e descrever, colocava os polímatas em arenas convergentes; o que não impedia princípios de compartimentação das artes.
35Além disso, um olhar secularizado é inadequado à percepção de um modelo científico que não separava os saberes neoescolásticos dos eclesiásticos. As descrições cosmográficas e naturalistas dos quinhentos, a exemplo, não tinham a necessidade de distinguir entre motivos de empiria e motivos de fé, e traçavam relações mútuas e hibridismos entre “o humano, o natural, o técnico e o divino” (Nieto Olarte, 2013, p. 13-14). Essa inseparabilidade também se expressava na dificuldade de diferenciar o conhecimento empírico, visto e vivido, do livresco, elaborado em gabinete: a autoridade dos aventurados viajantes e dos sábios era construída reciprocamente, à medida que a oralidade e os manuscritos informavam os letrados (Gomes, 2009, p. 117).
36A cosmografia, que constituía uma das maiores expressões de saber geográfico na alta modernidade, pode dar acesso a esses movimentos de síntese, porque sua ambição era um retrato total da ordem cósmica; era uma arte que intercalava descrições astrais e abstrações geodésicas para atestar “as homologias entre os paraísos e a terra” (Cosgrove, 2007, p. 56). Sua legitimidade científica vinha acompanhada de uma exaltação da obra divina, reinserindo as formas clássicas numa genealogia cristã do universo.
37Uma fidelidade aos ideários concêntricos e geocêntricos da neoptolomaica (considerando os abalos de Copérnico e Galileu) se faz perceptível na gravura impressa seiscentista do médico e cosmógrafo inglês Robert Fludd (Imagem 1), junto a uma sobrevivência da física aristotélica. A partir das esferas externas, de planos etéreos, passa-se por um relógio celeste dos astros, e então pelos elementos (fogo e ar, e depois água e terra, componentes da matéria viva e não-viva, tripartida em animal, vegetal e mineral), que nas esferas mais profundas são seguidos das artes liberais e suas aplicações, até enfim chegar num globo terrestre de quatro partes continentais, iconizando o mundo humano enquanto centro astral, teológico e epistêmico de toda a natureza. A pretensão à imagem completa do universo em suas dimensões materiais e imateriais não descaracteriza uma descrição objetiva. O Speculum (espelho, cujo nome reforça a empiricidade) demonstra, além de emblemas alquímicos, uma autoridade de precisão e equivalência; e é ilustrativo de um saber que não colocava disjunções entre as lógicas científicas e aquelas da magia e do hermetismo (Nieto Olarte, 2013, p. 254; Brotton, 2013).
Imagem 1 - Integræ Naturæ speculum Artisque imago (Espelho de toda a Natureza e imagem da Arte),
Na Utriusque cosmi de Robert Fludd (ca. 1617), Biblioteca Histórica José María Lafragua, Benemérita Universidad Autónoma de Puebla. URL: https://bidilafragua.buap.mx/expo-virtuales/items/show/185
38É interessante notar como a inclusão das esferas astronômicas, a dualidade entre elementos terrosos e aquosos e as divisões aristotélicas da vida perduraram no pensamento geográfico moderno até as cosmologias de Humboldt e a geografia comparada de Ritter (Vasconcelos, 2017), mas essas conexões são perdidas em análises que não levam em conta o lado espacial da longa duração moderna. Ademais, vê-se uma lógica de espaço global que não separa o planeta de todo o cosmos; não corresponde ao postulado vidaliano que conformaria os estudos geográficos à totalidade terrestre (La Blache, 1913, p. 290-291). Uma das polissemias da cosmografia renascentista era a sinergia entre a iluminação do globo e o domínio do espaço celeste (Brotton, 2013; Nieto Olarte, 2013, p. 17).
39Identifica-se no período-região da alta modernidade uma forma mais ecumênica de saber geográfico, que não era limitada à observação da concretude física e dos ciclos naturais. No entanto, os processos de institucionalização desses saberes definitivamente resgataram os princípios clássicos de uma repartição científica. O caráter crescentemente enciclopédico da produção de conhecimento, consoante a um “princípio de classificação e ordenação tabulada” (Harley, 1988, p. 65), anunciou uma segmentação dos saberes, que por sua vez começou uma longa ligação da geografia com a tradição fisicalista e descritiva, reveladora de seus destinos enquanto ciência moderna.
40A gênese de uma especialização do saber geográfico pode ser estendida até o pensamento ptolomaico, mas sua situação particular na Renascença é expressa nas iconologias do perugino Cesare Ripa (1593) (Imagem 2), que consistem em uma tabulação de emblemas de todas as noções humanas: as virtudes, os vícios, as artes liberais, os arquétipos morais, as paixões, e as partes do mundo. Nela, os saberes do espaço se encontram repartidos: a Cosmografia, tão velha quanto a criação, carrega um astrolábio e um raio romano para medir ângulos e distâncias entre o globo terrestre e a esfera celeste (Ripa, 1709, p. 19); a antiga Geografia se debruça exclusivamente sobre o mundano; sua verdadeira essência é a medição e a descrição da Terra (Ripa, 1709, p. 35) – dessa vez em certa concordância com o que La Blache denominaria unidade terrestre no século XX; e a mais jovem Corografia corresponde ao exame geográfico das partes, utiliza o compasso e a régua para traçar os limites entre os domínios e “discernir os confins uns dos outros” (Ripa, 1709, p. 18).
Imagem 2 - Emblemas morais da Cosmografia, da Geografia e da Corografia na Iconologia de Cesare Ripa (1593)
Fonte: Ripa ([1593] 1709, p. 18-35)
41As características próprias de cada arte são, contudo, dotadas de traços bem similares, aludindo a uma origem comum: as personificações femininas, empenhadas em atos de medição, bem como as ferramentas métricas em suas mãos e os globos traçados por linhas geodésicas, as colocam como filhas da Geometria, compondo os critérios da cultura de quantificação que marca o mundo ocidental. São desdobramentos de um movimento aparente desde o baixo medievo, a partir do qual tempo e espaço se fizeram mensuráveis: o primeiro, pela popularização dos relógios mecânicos e calendários astrológicos, e o segundo, pela difusão dos instrumentos métricos e cartográficos, incluindo as cartas de marear, os mappæmundi e as descrições cosmográficas (Crosby, 1994).
42Mas essa separação era provisória. Espaço e tempo ainda se encontravam unidos na escala ecumênica. Os sinais de uma compartimentação científica, exemplificados na Iconologia, não implicam uma autonomia completa das partes. Não se fala aqui da formação iluminista de disciplinas, que segundo Braudel (1968, p. 61-62) estruturam cada uma sua própria totalidade analítica. No âmbito neoescolástico, a divisão epistêmica correspondia à necessidade de reforçar a unidade do conhecimento. São adequados a esse período-região métodos humanísticos que assumam uma ligação mais permeável entre história e geografia.
43Como uma reflexão final, deve-se reconhecer que o papel das abstrações espaciais é vital à produção histórica do mundo, mas numa acepção que vá além do que comumente se considera um mapa. Entende-se como imagens igualmente cartográficas as tábulas cosmográficas, as emblemáticas, os pictogramas e todo um universo gráfico dedicado à descrição e espacialização do mundo. O globo, nesse sentido, não é um resultado tecnológico da mundialização informacional contemporânea, mas uma iconização de longa duração que perpetuou ideias de expansão e poder no discurso geográfico moderno (Pickles, 2004, p. 8; Gruzinski, 2010, p. 181-182), remontando, no mínimo, à ressignificação dos modelos clássicos no Renascimento.
44O que deve interessar nessas imagens geográficas é sua capacidade de objetivar e subjetivar uma noção universal de espaço, e também transformar lógicas e cognições espaciais, produzindo novas crenças, novas práticas, novos comportamentos (Latour, 2015). São as linguagens cartográficas, numa nova essência, incorporadora todas as formas de representação (i)material e ideal, que mediam a produção dos espaços relativos (Lévy, Lussault, 2003, p. 325-327). Suas diferentes historicidades nos garantem acesso à visão de mundo idiossincrática de cada período-região.
45Para empreender em alguma generalização sobre as espacialidades do passado ocidental, é preciso atentar às diferentes tradições gráficas que delineavam a produção dos espaços; tradições múltiplas, apesar de unidas pelo discurso da verdade objetiva. O vitruvianismo e o princípio de simetria, por exemplo, influíram de maneira extensiva nas formas da urbanidade. Já nos quatrocentos a organização das cidades se via intimamente atrelada ao espaço cartográfico dos gradeados e dos eixos radiais, num jogo semântico que fazia confundir mapa e território. A regularidade euclidiana dos planos e plantas urbanas era transposta à materialidade pela geometrização dos arruamentos, na ambição de fazer da cidade uma unidade orgânica legível (Cosgrove, 2008, p. 169-179). As linhas radiais eram também invocadas na loxodromia dos portulanos ou cartas náuticas; irradiadas a partir das rosas dos ventos, elas projetavam uma infinidade necessária à exploração marítima e produziram um gênero cartográfico focado na topografia litorânea e na toponímica costeira (Kantor, 2007, p. 75). Desde a visão zenital, indispensável à tradição ptolomaica de planificar a inventada esfera terrestre, até o perspectivismo linear florentino que fez do espaço a experiência localizada de um observador, vemos um pensamento geográfico ambivalente, oscilante entre o olhar cosmográfico (de medição geodésica e formação de uma harmonia global) e corográfico (de esmiuçamento e descrição das paisagens particulares) (Alpers, 1999, p. 263-264; Cosgrove, 2008, p. 7-41; Farinelli, 2009, p. 26-27).
46Mesmo com algumas tendências regionais, essas razões de espaço não podem ser localizadas nos recortes exatos das unidades políticas da época; seu fluxo e sua comunicação ultrapassavam fronteiras e identidades (Silva, 2020, p. 12-13). Uma amostra da interação discursiva entre diferentes espaços relativos são as gravuras do mercador e viajante holandês Jan Huyghen van Linschoten, parte de seu Itinerario (1596), cuja publicação informou as primeiras expedições inglesas e holandesas pela Rota do Cabo, no que até então havia sido monopólio dos navegadores que serviam a Coroa portuguesa. Frequentemente interpretado de forma errônea como um espião, Linschoten na verdade foi colaborador de mercadores e mestres de cartas ibéricos (Vila-Santa, 2021, p. 738). Seus mapeamentos de Goa e dos Açores trouxeram algumas tradições da descrição geográfica da escola neerlandesa ao mundo lusófono, que no decorrer dos quinhentos havia permanecido relativamente focado no regime técnico mais ortodoxo dos portulanos.
47Na vista topográfica de Angra, na Ilha Terceira (Imagem 3), a iconografia náutica e a heráldica lusitana convivem artisticamente com longos compêndios textuais, elaboradas cártulas e uma rica pictografia. Esses últimos são elementos que expressam, nos termos de Svetlana Alpers (1999), diversos princípios da arte renascentista dos circuitos nortenhos do Canal da Mancha: a confluência entre os mapas e as pinturas, a perspectiva de visão oblíqua ou em voo de pássaro para uma descrição realística e instantânea da paisagem, e, em vez da representação ecumênica do todo terrestre, um foco na exaltação singular da cidade como um organismo perfeito, mas sem separar bruscamente os espaços urbanos dos rurais.
Imagem 3 - A cidade de Angra na ilha de Iesv xpo da Tercera qve esta em 39 graus, de Jan Huyghen van Linschoten (1596)
Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal. URL: https://purl.pt/3563
48As escolhas artísticas explicam uma lógica cartográfica transformada pela cultura impressa e erudita, que em parte rompeu com o foco cosmográfico na escala global, e dentro da qual os mapas exerciam poder através da confiança social em sua objetividade, mas também por meio de sua ostentação estética, como se fossem quadros, tapeçarias, partes de uma exposição vangloriosa. Na visão adotada no mapeamento remanescem traços de um perspectivismo ou uma técnica de “ponto de distância”; ciência e arte constroem juntas uma geografia ótica, uma acepção de espaço como registro instantâneo do olho (Latour, 2015, p. 9-12).
49A maneira com que esse espaço cartográfico, relativo da cultura gráfica neerlandesa, reverberou em outros espaços relativos da Europa ocidental, revela um cenário de trocas epistêmicas, e por outro lado demonstra como as métricas e as dimensões espaciais variam cultural e historicamente. Nem só de visões zenitais, mapas escalares e planisférios se fez a modernidade geográfica. Há no processo uma multitude de gêneros cartográficos articulados e que, embora obedientes aos princípios da geometria clássica, costuraram espacialidades de diferentes texturas e oscilantes naturezas.
50Com esses exemplos, procura-se despertar reflexões sobre a trajetória epistêmica da geografia e sua ligação com os elementos históricos, que como vimos é intermediada pelas abstrações cartográficas, pelos atos de mapear que projetam os “espaços simbólicos” (Silva, 2020, p. 7-8) das sociedades. Não se nega que o saber geográfico encarou paradigmas contínuos ao longo de sua modernização, desde o século XVI até o XX: a dualidade entre a análise da totalidade terrestre e das regiões; a valorização científica dos atos de ver e da contemplação da paisagem; a aderência metodológica à obsessiva arte de descrever, e uma cosmovisão apoiada em ícones geométricos (a esfera global, a planificação, as linhas quadriculadas, axiais ou de perspectiva).
51Mas acima das regularidades, é necessário ter em mente as particularidades epistemológicas de cada contexto. Ao nos aventurarmos em geohistórias e geografias históricas, ou na compreensão das historicidades do pensamento geográfico, não é adequada uma aplicação universal do espaço natural ou físico, e nem uma anacronia das linguagens, como se observa na crença de que semiologia gráfica e o espaço matemático equivalem às espacialidades do passado. Em vez de reforçar formas mais ou menos diferentes de um espaço absoluto, pode ser mais frutífero levar em conta os modos com que cada grupo social concebeu seus espaços históricos relativos, ou os mecanismos pelos quais esses espaços foram tecidos na mente e na materialidade. Há assim uma série de vantagens analíticas para uma geohistória que parta do uso social da linguagem cartográfica.