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Dossiê alimentação e políticas alimentares nas cidades

Democracia alimentar para populações em vulnerabilidade social: o caso de cozinhas solidárias em Manaus, Amazonas

Démocratie alimentaire pour les populations en situation de vulnérabilité sociale: le cas des cuisines solidaires à Manaus, Amazonas
Food democracy for socially vulnerable populations: the case of solidarity kitchens in Manaus, Amazonas
Camila Lago Braga et Cristiane Cavalcante Lima

Résumés

À la suite de la pandémie de COVID-19, la collaboration entre diverses organisations publiques, privées et civiles s'est considérablement accrue. Parmi ces initiatives figurent les cuisines solidaires, qui reposent sur le principe du Droit Humain à une Alimentation Adéquate. Ainsi, l'objectif de cet article est d'analyser comment les Cuisines Solidaires (CS) contribuent à la construction d'une démocratie alimentaire, qui considère l'alimentation sous l'angle de l'accès égalitaire, libre, durable et avec la participation de la société dans les décisions démocratiques. Pour cette étude, deux CS situées dans la municipalité de Manaus, dans l'État de l'Amazonas, ont été sélectionnées. La recherche a adopté une approche qualitative, en utilisant des entretiens semi-structurés comme méthode de collecte de données. Les résultats ont révélé les potentialités des CS de Manaus à promouvoir une démocratie alimentaire. On souligne notamment la diversité des publics desservis et le fait que le service est assuré par des personnes impliquées dans l'activisme et familiarisées avec la réalité des communautés impliquées.

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Texte intégral

1O “Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil” apontou que, em 2022, a fome atingiu cerca de 33,1 milhões de pessoas (Penssan, 2022). Como resposta ao aumento da Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN) no país, principalmente durante a referida pandemia, presenciou-se uma expansão de iniciativas lideradas pela sociedade civil, com foco no atendimento às populações mais vulneráveis. Observou-se, a partir desse cenário, um aumento na colaboração entre organizações privadas, Organizações Não Governamentais (ONGs), entidades que atuam com pessoas em vulnerabilidade social, coletivos, movimentos sociais e governos locais em prol do combate à IAN, por meio da construção de projetos de assistência alimentar (Meirelles, Burgos, Telles, 2021; Soldi, 2023).

2Embora o período pandêmico tenha suscitado o surgimento de diversas iniciativas de “solidariedade comunitária”, Castaño et alli (2021) levantam indagações acerca da maneira como tais projetos foram concebidos. Na avaliação dos autores, essas ações devem considerar a emergência de um sujeito empoderado, capaz de influenciar sua própria realidade, participar ativamente das questões que o afetam e, sobretudo, assumir responsabilidade por sua situação. Além disso, é necessário que sejam concebidas entre a sociedade civil e suas organizações, mas também em consonância e diálogo com o poder público e outras esferas sociais (como empresas privadas).

3Nesse sentido, essas experiências precisam informar o que Tim Lang (1999) denomina “democracia alimentar”. Não existe um consenso quanto à definição precisa desta categoria, no entanto um aspecto parece ser comum a todos os conceitos desenvolvidos: considerar a alimentação sob a ótica do acesso igualitário, livre, sustentável e com o envolvimento da sociedade nas decisões democráticas (Lang, 1999; Paturel, 2021).

4Entre as iniciativas que vêm-se expandindo no Brasil, mobilizadas pela sociedade civil e por suas organizações, estão as experiências das cozinhas solidárias (CS), que se respaldam no princípio do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), presente no artigo 6º da Constituição Federal (Brasil, 1988). Estas experiências foram recentemente institucionalizadas pelo Decreto nº 11.937/2024, o qual instituiu o Programa Cozinha Solidária e definiu CS como

“uma tecnologia social de combate à insegurança alimentar e nutricional, de base popular, não estatal, estruturada pela comunidade local, por meio de seus coletivos, seus movimentos sociais e suas organizações da sociedade civil, com a finalidade de produção e oferta de refeições adequadas e saudáveis, preferencialmente para pessoas em vulnerabilidade e risco social, incluída a população em situação de rua, com o apoio à comunidade por meio de outras atividades de interesse coletivo.” (Brasil, 2024, art. 3°, II, não paginado)

5Apesar de considerar a relevância de instrumentos que facilitem o acesso aos alimentos, a definição acima instiga um importante questionamento: até que ponto as iniciativas de assistência alimentar têm contribuído para promover a autonomia e o empoderamento dos indivíduos que delas dependem? É nesse contexto que o tema da democracia se torna fundamental para abordar o acesso universal a alimentos por pessoas em situação de vulnerabilidade social, mas, principalmente, que seja garantido o acesso a alimentos saudáveis, em consonância com o princípio do DHAA, e que levem em consideração a transformação dos sistemas alimentares por meio de uma alimentação sustentável (Paturel, Ramel, 2017).

  • 1 Este trabalho é fruto da Chamada nº 40/2022, do CNPq, intitulado “Ativismos alimentares e politizaç (...)

6Ante o exposto, a presente pesquisa analisa os casos das cozinhas solidárias na cidade de Manaus, estado do Amazonas, com recorte naquelas gerenciadas pela ONG Gastromotiva, que, desde 2021, tem atuado no território por meio de iniciativas de assistência alimentar. O objetivo deste artigo é analisar como as CS contribuem para a construção de uma democracia alimentar.1

  • 2 Os entrevistados são representados por letras do alfabeto, a fim de resguardar suas identidades. As (...)

7Como procedimentos metodológicos, realizaram-se visitas aos locais de preparo das refeições2 e 5 entrevistas semi-estruturadas com os responsáveis diretos pelos equipamentos e com cozinheiras sociais. Vale ressaltar que uma das entrevistas se fez por meio de técnica de grupo focal, com coleta de dados mediante interações grupais, a fim de obter informações mais detalhadas sobre a operacionalização do projeto. Os dados coletados foram analisados mediante seis categorias, construídas com base na literatura sobre democracia alimentar (Dutilleul, 2013; Chiffoleau, Paturel, 2016; Paturel, 2018; Baldy, Kruse, 2019) e explicitadas na próxima seção.

8Além desta Introdução, o artigo possui mais 5 seções: a primeira aborda o tema da democracia alimentar e assistência alimentar e suas categorias analíticas; a segunda apresenta a origem e o funcionamento das cozinhas solidárias em Manaus; a terceira descreve os perfis das duas cozinhas investigadas: “Boca da Mata” e “Arte na Cozinha”; a quarta avalia se estas têm promovido a democracia alimentar; e a quinta destina-se às considerações finais.

Democracia alimentar e assistência alimentar: conceitos e categorias analíticas

9As primeiras noções sobre o tema da democracia alimentar foram discutidas por Tim Lang (1999), que argumenta que ela existe quando há uma demanda da sociedade para garantir meios de acesso a uma alimentação adequada, acessível, segura, respeitosa aos princípios humanos e culturalmente apropriada. O autor evoca questões de justiça social – a qual é representada por acesso, participação e poder de agir – e de cidadania dos atores sociais envolvidos nos sistemas alimentares (produtores, processadores, distribuidores, consumidores).

10Segundo Paturel e Ramel (2017), há também a “justiça alimentar”, que remete à ideia do acesso a uma alimentação de qualidade pelos habitantes das cidades. No entanto, para as autoras, o conceito de democracia alimentar é mais amplo, uma vez que engloba tanto a noção de justiça alimentar quanto permite elaborar uma reflexão mais profunda a respeito do direito a uma alimentação sustentável. Dessa forma, dietas sustentáveis são entendidas como práticas e escolhas alimentares que respeitam critérios ambientais (economia de energia, preservação da biodiversidade), éticos (acesso a uma alimentação de qualidade para todos, remuneração justa aos produtores), sanitários ou nutricionais (alimentação saudável e equilibrada) e culturais (valorização dos mais diversos hábitos alimentares) (Paturel, Ramel, 2017).

11Dutilleul (2013) avança neste debate ao abordar o conceito de democracia alimentar através do prisma de uma “exceção alimentar”, termo entendido de forma semelhante ao usado para defender a “exceção cultural” (Baer, 2003). Nessa ótica, a “exceção alimentar” está representada por meio de sua natureza particular, não podendo ser classificada apenas pelos aspectos comerciais, pois veiculam conteúdos, valores e modos de vida, os quais são parte integrante da identidade de um povo. Para Paturel (2018, p. 2), tratar do tema da democracia alimentar implica “ouvir a demanda dos cidadãos para recuperar o controle sobre como acessar os alimentos na sua reconexão com a agricultura”. A autora complementa afirmando que este é um terreno fértil para construir uma nova cidadania, à medida que os indivíduos passam a influenciar a transformação dos sistemas alimentares.

12Um dos objetivos de promover uma democracia alimentar é responder às necessidades alimentares da população, a fim de garantir alimentos em quantidade suficiente e com qualidade, tanto do ponto de vista nutricional quanto ambiental, ou seja, sob o prisma da sustentabilidade (Paturel, Ramel, 2017; Paturel, 2021).

13Diante da amplitude desse conceito, ao colocar em debate a alimentação sob a perspectiva da democracia alimentar, este artigo direciona a atenção para dois aspectos fundamentais: i) a estreita relação com os sistemas alimentares e o modo como uma alimentação saudável e sustentável pode redirecionar esse sistema para alcançar benefícios socioculturais, econômicos e ambientais; e ii) o acesso a alimentos saudáveis e sustentáveis por pessoas em situação de vulnerabilidade social.

14Em relação ao primeiro aspecto, Paturel (2018) explica que um dos grandes desafios para alcançar uma democracia alimentar reside na ausência de compreensão ampla sobre o que é um sistema alimentar, qual a função da alimentação e qual o modelo alimentar vigente no país. Essas três questões são apontadas como alicerces fundamentais para estabelecer uma democracia alimentar e possibilitar que cada indivíduo tenha capacidade de exercer sua cidadania alimentar. A cidadania, portanto, é compreendida como o direito de acesso ao alimento, mas, sobretudo, defende-se que o cidadão participe ativamente das tomadas de decisões que afetam todo o sistema alimentar.

15No que diz respeito ao segundo aspecto, relativo ao acesso a alimentos sustentáveis por pessoas em situação de vulnerabilidade social, para Paturel e Ndiaye (2020), em geral, as pesquisas têm demonstrado que os ativismos e movimentos de emancipação concernentes à alimentação enfrentam dificuldades para articular-se ao debate de justiça social e, consequentemente, alcançar este público. Como resultado, as populações economicamente mais vulneráveis continuam marginalizadas.

16No âmbito da democracia alimentar, Paturel (2018) destaca uma controvérsia crucial: o acesso aos alimentos versus a assistência alimentar. Enquanto o primeiro se refere ao sistema alimentar e engloba todas as etapas necessárias para que os alimentos cheguem aos indivíduos, o segundo é compreendido como uma forma de conectar a agricultura e a alimentação. Com isso, a assistência alimentar insere-se no conjunto dos elementos dos sistemas alimentares (Paturel, 2018). Assim, segundo a autora, a democracia, do ponto de vista da assistência alimentar, apresenta-se quando conectada à noção de justiça, preocupando-se com os seguintes questionamentos:

  • Qual é a forma de acesso (distribuição, preço, escolha, etc.)?

  • Que modo de produção é apoiado pelas iniciativas?

  • Como os profissionais e voluntários integram as questões contemporâneas de justiça social?

  • Onde e como são organizados os debates democráticos sobre a evolução e a transformação do modelo alimentar?

17Para uma compreensão mais pragmática dessas questões, aplicada ao contexto da assistência alimentar empreendida pelas CS, destacam-se seis categorias relevantes a serem consideradas em uma análise de democracia alimentar:

181) Capacidade dos indivíduos de participar ativamente na busca por soluções para situações de dependência alimentar

19Isso implica a construção da autonomia por parte dos atores envolvidos nos projetos de assistência alimentar. Paturel (2018) explica que, geralmente, nessas iniciativas, prevalece uma abordagem de gestão empresarial associada ao âmbito beneficente, seja conduzida pelo Estado, seja por organizações sociais, negligenciando sua função na transformação dos sistemas alimentares e na construção de uma cidadania alimentar, na qual o indivíduo tem agência nas decisões tomadas e pode encontrar formas de sair da dependência alimentar.

202) Participação e inclusão social dos beneficiários

21Esses movimentos tornam-se relevantes em uma democracia alimentar, porque os indivíduos não são passivos, mas sim participantes ativos nas decisões relacionadas à alimentação. Dutilleul (2013) advoga que a assistência alimentar, além de facilitar o acesso aos alimentos, deve atuar na ampliação dos direitos dos consumidores, transformando-os em “consumidores-cidadãos”.

223) Dependência de apoio financeiro para cada iniciativa

23Embora as ações de assistência alimentar dependam de apoios e parcerias, é essencial, segundo Dutilleul (2013), garantir um espaço para que os países exerçam sua soberania alimentar diante da globalização do comércio, assegurem as necessidades básicas das pessoas em um mercado regulado e respeitem os direitos humanos em um mundo dominado pelas liberdades econômicas. Portanto, a insegurança quanto ao financiamento dessas iniciativas gera dependência e se mostra como um dos grandes limitadores para alcançar uma alimentação mais saudável e sustentável.

244) Diálogo efetivo com o poder público

25A necessidade de estabelecer esse diálogo ressalta a importância de processos participativos liderados pelo Estado para ampliar a democracia alimentar (Baldy, Kruse, 2019). Em um contexto de crescente insegurança alimentar e nutricional global, a parceria entre Estado e sociedade civil tornou-se fundamental para combater a fome e a pobreza.

265) Inserção de produtos da agricultura familiar

27Chiffoleau e Paturel (2016) argumentam que, para a reconquista do acesso à alimentação, é crucial enfatizar a conexão entre alimentação e produção. Nesse sentido, a venda direta da agricultura familiar apresenta-se como um meio de alcançar a democracia alimentar.

286) Valor dos alimentos

29Conforme observado por Vivero-Pol (2018), geralmente os alimentos são reconhecidos por seu valor econômico; no entanto, na perspectiva da democracia alimentar, consideram-se outros aspectos. Os alimentos passam a ser vistos como uma necessidade humana básica, com implicações sociais e culturais, além de constituírem fonte de prazer, comensalidade e sustentabilidade. Essa visão resgata a ideia de que os alimentos carregam consigo a identidade de um povo (Dutilleul, 2013).

30Diante do exposto, a análise dessas categorias pode proporcionar uma compreensão mais ampla das referidas iniciativas e do modo como as experiências de assistência alimentar contribuem para alcançar uma democracia alimentar. Estas questões serão abordadas nas seções seguintes.

Origem e funcionamento das cozinhas solidárias em Manaus

31Ao final de 2019, identificaram-se os primeiros sinais da COVID-19 na China, o que viria a desencadear uma pandemia global. Como consequência, além da crise na saúde pública, houve um agravamento da crise econômica e um aumento da insegurança alimentar e nutricional no mundo (Fao, 2021). No Brasil, um fato que ganhou a atenção da mídia e da sociedade neste período foi a crise de oxigênio nos hospitais da cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas, acarretando inúmeras mortes, além de problemas socioeconômicos graves e complicações de saúde pública para a população local. Outro contexto que gerou sensibilização nacional foram os casos de enchentes registrados no ano de 2021, responsáveis por elevar o número de pessoas em situação de vulnerabilidade social no estado.

32Diante dessas problemáticas, em 2021, a ONG Gastromotiva Social, que havia iniciado um projeto de criação de “cozinhas gastronômicas sociais” em outros municípios brasileiros, decidiu buscar parcerias para implementar cozinhas solidárias em Manaus. Fundada em 2006 e sediada na cidade do Rio de Janeiro, a Gastromotiva Social apresenta-se com a missão de combater a fome e a insegurança alimentar, além de promover a geração de renda por meio da educação, a fim de impulsionar o desenvolvimento territorial.

33Durante a pandemia, a Gastromotiva estabeleceu uma parceria com uma empresa multinacional para angariar recursos destinados a projetos sociais que apoiam pessoas em situação de vulnerabilidade social, principalmente aquelas em situação de rua. Foi nesse cenário que teve início o projeto das CS. A organização buscou estabelecer parcerias com microempreendedores, cozinheiros, lideranças locais, organizações sociais e coletivos, visando à colaboração e à execução do projeto. Em contrapartida, eram fornecidos insumos, suporte logístico e treinamento para a produção de refeições destinadas ao público-alvo. Além disso, a ONG disponibiliza apoio financeiro (uma bolsa mensal) para os cozinheiros responsáveis, com o intuito de cobrir custos residuais. Também promove formação em cozinha social, de modo a auxiliar na geração de renda dos cozinheiros.

34No caso de Manaus, a Gastromotiva tem como principal parceiro local o Instituto Acariquara. O Instituto foi fundado em 2004, inicialmente vinculado à Universidade Federal de Manaus (UFAM). Mas, a partir de 2013, passou a trabalhar de forma mais autônoma, com parcerias e captação de recursos para projetos que tinham como foco a conservação da biodiversidade. Quando a Acariquara tomou conhecimento da proposta da Gastromotiva, viu uma oportunidade de abrir novos espaços de ações filantrópicas, ações essas que já haviam sido iniciadas pela organização durante o período pandêmico em Manaus.

35Portanto, em 2021, a Acariquara apresentou uma proposta detalhada para a implementação da CS na realidade manauara, simultaneamente iniciando um processo de mapeamento para identificar as comunidades mais vulneráveis. Esse mapeamento foi realizado em parceria com o Núcleo de Socioeconomia (NUSEC) da UFAM, com o apoio dos movimentos sociais locais e de organizações humanitárias ligadas à Igreja Católica. Nessa etapa, a Gastromotiva havia compilado uma lista de organizações e indivíduos com perfil ativista interessados em participar como potenciais cozinheiros (as) sociais do projeto. O papel da Acariquara foi identificar essas pessoas, avaliar se os perfis delas estavam alinhados com os objetivos do projeto e identificar novos colaboradores engajados em iniciativas de distribuição de alimentos dentro das comunidades previamente mapeadas como mais vulneráveis.

36A seleção dos cozinheiros (as) sociais ocorreu após esse processo de mapeamento, seguido pelo lançamento de um edital de concorrência para as pessoas identificadas. Vale destacar que, entre os critérios utilizados na seleção, um dos mais relevantes foi o histórico das pessoas ou organizações em relação às questões sociais e alimentares. Como descrito pelo Entrevistado A, referente ao processo de seleção dos voluntários,

“A primeira coisa que a gente fez foi acessar as nossas redes locais para perguntar dessas redes e dizer assim ‘Olha, dentro desses territórios, quais são os mais vulneráveis? Dentro desses territórios mais vulneráveis, existe algum cozinheiro, alguma iniciativa que trabalha com distribuição de alimentos e que queira se tornar esse empreendimento social?’. Então, essa é a nossa pergunta. E a devolutiva dessa rede de contatos é ‘Existe, tem interesse’. Então, por exemplo, aqui mesmo em Manaus, a dona Maria, que é uma liderança do movimento das mulheres negras da floresta... Então, ela é uma pessoa que já trabalhava com alimentos, ela fazia refeições caseiras para venda e, à medida que ela vendia, digamos... a cada dez marmitas que ela vendia, ela doava duas. Então, isso é a gênese do ser, desse ator, de ser um empreendedor social, de ter essa preocupação.”

  • 3 Algumas cozinhas foram desativadas e outras inseridas no projeto.

37Sendo assim, em 2021, foram cadastradas 14 cozinhas, que forneceram cerca de 50 mil refeições no período de 2 meses, marcando a primeira fase do projeto. Decorrida a parte inicial de implantação, a Gastromotiva passou a implementar um programa de formação em cozinha social, a fim de destacar o potencial dos territórios, iniciando com 10 cozinheiros (as).3 Entre 2021 e 2022, saiu de um auxílio emergencial para a construção de uma rede voltada a estruturar os equipamentos dentro de uma lógica territorial e, desta vez, financiou a entrega de refeições pelo período de 10 meses. Com isso, há 10 CS ativas e novas parcerias que confluíram na criação de 5 cozinhas em municípios do interior do Amazonas. A terceira fase também durou 10 meses, e a quarta, atual, previu 12 meses, porém com redução para 4 CS operadas até o momento da pesquisa: Arte na Cozinha; Boca da Mata; Cozinha da Associação Filho Amado; e Cozinha do São José.

38Há duas principais razões citadas pelos entrevistados para a permanência de apenas 4 cozinhas. A primeira e mais significativa foi a limitação financeira. As cozinhas que conseguiram estruturar-se melhor e mobilizar recursos adicionais puderam se manter ou complementar suas operações. A segunda razão foi o critério de maior vulnerabilidade social e importância desses equipamentos nas áreas em que atuam.

  • 4 Principalmente de redes de supermercados, dioceses de Manaus, empresas ou particulares.

39Portanto, enquanto a Gastromotiva concentra seus esforços principalmente na mobilização de recursos e na formação, o Instituto Acariquara, agindo como parceiro local, desempenha um papel na operacionalização de todo o processo, o que inclui busca por novas parcerias, aquisição de alimentos, distribuição dos insumos e acompanhamento dos beneficiários. A Acariquara coordena a compra dos alimentos e/ou recebe doações,4 garantindo assim o abastecimento regular das CS. Os alimentos não perecíveis são entregues a cada 15 dias diretamente nos locais designados, e os perecíveis semanalmente. É crucial ressaltar que todos os materiais necessários para operar as cozinhas e toda a infraestrutura foram adquiridos por meio de doações ou comprados utilizando recursos captados de diversas fontes.

40Conforme citado, atualmente existem quatro cozinhas em operação. Porém, devido a limitações no acesso aos entrevistados, o presente artigo se dedica à discussão de duas dessas cozinhas, a Boca da Mata e a Arte na Cozinha, descritas na próxima seção.

Perfis das cozinhas solidárias “Boca da Mata” e “Arte na Cozinha”

41A Boca da Mata (Figura 1) é gerenciada por uma indígena da etnia Mura, que já possuía um envolvimento direto em ações relacionadas a alimentação e agroecologia. Durante a pandemia, juntamente com outros parceiros ativistas, a indígena mobilizou-se para atender o bairro Tarumã-Açu, conhecido como Parque das Tribos, localizado em Manaus. Esse bairro abriga 36 etnias indígenas, cerca de 2 mil pessoas, dentre as quais grande parte enfrenta uma grave situação de vulnerabilidade social. Em 2021, por meio de doações e mobilizações, a equipe começou a disponibilizar cestas de alimentos orgânicos, compostas por produtos regionais, para os indígenas da região.

Figura 1: Boca da Mata

Figura 1: Boca da Mata

Fonte: Instagram da cozinha.

42Ainda em 2021, em maio, após a Gastromotiva tomar conhecimento do trabalho social desenvolvido e considerando a peculiaridade da comunidade atendida, foi feita uma proposta para implementar uma CS no local. Esta entrou em operação no mesmo mês, com as refeições sendo preparadas na residência da cozinheira social indígena e posteriormente distribuídas na comunidade. Além disso, a indígena mencionada no parágrafo anterior participou de um programa de formação à distância em cozinha social, com duração de 1 ano, oferecido pela Gastromotiva. Alguns meses depois, optou por residir no Parque das Tribos, onde passou a desempenhar um papel mais ativo junto à comunidade. Nesse momento, foi escolhido um nome para a cozinha, que passou a ser chamada de “Boca da Mata”, em homenagem a uma entidade indígena da matriz religiosa afro-brasileira.

43Atualmente um parceiro assume o pagamento do aluguel de um espaço para o preparo das refeições, onde são oferecidos 350 jantares, de 1 a 3 vezes por semana. A frequência e os dias de entrega dependem da disponibilidade dos voluntários, que, em média, são de 5 a 10 participantes, a maioria mulheres da própria comunidade.

  • 5 O Centro de Arte é um espaço dedicado a projetos sociais em arte e educação para a comunidade. Aten (...)

44Por sua vez, a Arte na Cozinha (Figura 2) está no bairro Compensa II, localizado na periferia de Manaus e também prejudicado por uma situação de grande vulnerabilidade social. A cozinheira social responsável é professora licenciada e voluntária no Centro de Arte,5 local de funcionamento da cozinha. O Centro faz parte de um projeto da paróquia local que atende prioritariamente as crianças moradoras do bairro e doa cestas básicas para as famílias que se encontram em situação de fome. Segundo a Entrevistada C, a adesão do Centro de Arte ao projeto da Gastromotiva surgiu como uma oportunidade de manter o vínculo com a comunidade, que havia sido interrompido durante a pandemia por conta da paralização das atividades.

Figura 2: Arte na Cozinha

Figura 2: Arte na Cozinha

Fonte: Acervo das pesquisadoras.

45Em 2021, após aprovada na seleção do edital lançado pela Acariquara e montada a estrutura local para a preparação das refeições, a Arte na Cozinha iniciou um cadastro das famílias dos alunos do projeto que se encontravam em maior situação de insegurança alimentar. Firmou parceria com o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), que, de maneira semelhante, começou a indicar pessoas para acessar a cozinha. A Entrevistada C relata que o segundo ano de funcionamento foi marcado pela chegada de indígenas venezuelanos da etnia Warao no bairro, os quais foram encaminhados pelo CRAS para acessar a cozinha, tornando-se este o principal público atendido. No início, eram servidas 800 refeições por semana, e atualmente são fornecidas entre 185 e 195, normalmente às 15 horas.

46Com isso, fica demonstrado que cada CS implementada carrega consigo características peculiares, trajetórias e um público-alvo diferente. Diante dessas características, a próxima seção visa entender até que ponto as cozinhas em Manaus têm promovido uma democracia alimentar.

As cozinhas solidárias em Manaus promovem uma democracia alimentar?

47Para identificar critérios que sustentem uma democracia alimentar nas CS em Manaus, busca-se avaliar cada uma das seis categorias apresentadas pela segunda seção:

481) Capacidade dos indivíduos de participar ativamente na busca por soluções para situações de dependência alimentar

49Identificaram-se dois aspectos fundamentais que informam uma ideia de autonomia na concepção e na execução do projeto. O primeiro refere-se ao “nível de escolha” dos voluntários em relação à operacionalização do empreendimento. As escolhas são percebidas em três variáveis: os dias em que as refeições serão oferecidas; a seleção do público-alvo; e a busca por outras parcerias. Sobre o segundo aspecto, a ONG propõe, entre suas ações, desenvolver projetos de empreendedorismo social e desenvolvimento territorial. Isso significa que, de acordo com os entrevistados, algumas ações são implementadas para proporcionar aos beneficiários uma fonte de renda e uma maneira de sair da dependência alimentar.

50Foram identificados três tipos de estratégias para sair de uma lógica assistencialista. O primeiro, já institucionalizado no projeto, trata-se da formação em cozinha social, formação essa que é oferecida pela Gastromotiva, além de promover um aprendizado sobre gastronomia, inclui temas de sustentabilidade, como o desperdício de alimentos.

51O segundo tipo trata-se de uma parceria entre as ONGs e uma empresa local, em um projeto com duração de três anos, cujo foco é desenvolver os territórios por meio das cozinhas, e construir um modelo de negócios a fim de expandir a experiência a outras localidades. Neste caso, o Entrevistado A explica que

“É um projeto que é diferente, é parecido, mas é diferente, que é um projeto que vai trabalhar com o território na parte de desenvolvimento, de empreender, fazer com que essas pessoas entrem para o mercado de trabalho, porque o que o projeto visa não é somente entregar a refeição, você tem que capacitar essas pessoas para saírem dele, porque esse é um momento que você precisa naquele momento, mas você não pode permanecer a vida toda esperando que alguém ajude e viva de doação.”

52O discurso que remete à necessidade de geração de renda se confirma em outra entrevista de uma das cozinheiras sociais (Entrevistada C), a qual explica que “a gente aqui nos desdobramos juntos [...] não só na questão da doação, mas na questão também do ensinar, dar a vara para eles pescarem e está sendo grande parte do nosso trabalho aqui” (Informação verbal).

53O terceiro tipo de estratégia refere-se ao protagonismo dos voluntários das cozinhas na ajuda aos beneficiários, por meio de ações pontuais dentro dos seus espaços de trabalho. A Entrevistada D mencionou que o apoio ao público-alvo parte de várias frentes, e vai além das questões alimentares. Foram relatadas experiências pontuais em outras cozinhas que não estão mais em funcionamento, quando uma das cozinheiras sociais iniciou cursos para preparação de salgados e, posteriormente, alguns beneficiários começaram a realizar vendas na porta de suas casas tornando-se esta uma fonte de renda. Existe também o caso da Cozinha Boca da Mata que, de forma diferente, iniciou parcerias para criação de um Buffet social, em que as mulheres indígenas voluntárias do projeto começaram a trabalhar preparando e servindo refeições em eventos, a fim de complementar sua renda e, assim, manter sua participação no projeto.

542) Participação e inclusão social dos beneficiários

55Construir uma cidadania alimentar, no sentido dado por Paturel (2018) e Dutilleul (2013), requer tanto o conhecimento dos cidadãos a respeito dos sistemas alimentares quanto a participação ativa destes sujeitos nas decisões relacionadas à alimentação. No primeiro caso, nota-se que a preocupação das organizações estava voltada à oferta de refeições em quantidade e qualidade adequadas, sem preocupações precisas com a forma como os alimentos eram produzidos ou comercializados e com a sustentabilidade.

56No tocante à participação dos cidadãos, um fenômeno percebido em ambas as cozinhas corresponde à transição de beneficiários para voluntários. Algumas pessoas que antes faziam parte do público-alvo engajaram-se no voluntariado como gesto de agradecimento pela ação desenvolvida, conforme relatado pela Entrevistada C:

“Geralmente os voluntários são as pessoas que precisam. Como muitas cozinheiras, acontece de ‘Olha, queria muito ajudar. Como vocês me dão comida, eu posso ajudar com o projeto como voluntária?’. Então, elas entram assim como voluntária. Elas querem agradecer pelo fato de ter as refeições e se colocam como voluntárias. E são essas voluntárias que fazem também o curso de formação.”

57Nesse contexto, a experiência das cozinhas solidárias dialoga com a premissa de que, em uma democracia alimentar, os beneficiários são encorajados a se tornar voluntários, escapando de um padrão desigual em que um dá e o outro recebe. Assim, eles passam a se integrar na vida associativa e ter voz nas decisões concernentes ao processo (Vrac, 2021). Além do mais, uma das características bastante enfatizada pelos interlocutores é o fato de que as cozinhas solidárias em Manaus não seguem o modelo de equipamentos públicos operados pelo Estado, descritos como “engessados” (Entrevistado A). Em vez disso, são concebidas como “cozinhas familiares”, operadas por pessoas que residem nas próprias comunidades ou que já desenvolviam trabalhos lá e têm um conhecimento profundo da realidade local.

58Por sua vez, a inclusão social dos beneficiários é percebida no atendimento a um público de pessoas historicamente excluídas, caso dos indígenas que vivem em um contexto urbano, pessoas periféricas e imigrantes. Esses grupos passam a ter acesso a alimentação (embora com baixa frequência semanal), bem como a oportunidades de cursar as formações em cozinha social ofertadas pela Gastromotiva, entre outros projetos encabeçados pelos voluntários ou pelas ONGs.

593) Dependência de apoio financeiro para cada iniciativa

60Esse é claramente o maior desafio enfrentado pelo projeto. De acordo com as entrevistas, das 14 cozinhas implementadas no início, em apenas 2 houve desistência dos cozinheiros (as) sociais; as demais cozinhas foram descontinuadas por outros motivos, sendo o principal deles a redução de recursos financeiros. Diante dessa realidade, a Gastromotiva, a Acariquara e as cozinhas têm realizado diversos movimentos para captar verbas, dentre eles concorrer a editais de projetos financiados por empresas privadas; receber de supermercados doação de alimentos não vendidos; tentar recuperar alimentos das feiras da cidade (xepa); buscar doações e estabelecer parcerias para cobrir custos, como aluguel e compra de insumos básicos; e tentar criar acordos de colaboração com o poder público. Na fala do Entrevistado A sobre os maiores desafios, ele explica que,

“Com relação às operações [...] Imagina que a gente tem uma cozinha e que ela recebe... Ora ela tem uma fase que está muito bem definida, ela é longa, mas, se numa próxima fase... não se sabe se a gente vai ter, porque a gente não tem uma coisa mesmo institucionalizada. A gente não tem uma coisa fixa que a gente vai dizer se a gente vai ter um projeto de três anos, de cinco anos.”

61Esta fala reflete a situação atual das cozinhas e destaca a urgência de estabelecer um diálogo eficaz com o poder público. Algumas das estratégias mencionadas anteriormente ainda estão em fase de negociação, o que gera certa insegurança em relação à continuidade das ações, especialmente devido à falta de apoio do Estado a essas iniciativas.

62Em relação à busca por essa parceria, os entrevistados revelaram que houve algumas tentativas de diálogo com os governos municipais em busca de apoio. Uma delas visava à entrega de alimentos ou à integração das cozinhas em programas de segurança alimentar e nutricional da prefeitura de Manaus. No entanto, não houve avanço nas negociações. Entre as entidades públicas que se mostraram parceiras das Cozinhas estão a Universidade Federal do Amazonas e o CRAS. A universidade contribuiu no apoio à implementação do projeto em conjunto com a Acariquara, principalmente no mapeamento dos bairros vulneráveis e organização de cursos de formação, enquanto o CRAS auxiliou a Cozinha da Compensa no atendimento aos indígenas venezuelanos. No entanto, é importante mencionar, que a parceria com essas instituições só foi possível em decorrência das relações sociais já estabelecidas entre os funcionários dessas entidades e os responsáveis pelos projetos das cozinhas sociais, o que favoreceu a aproximação e engajamento.

634) Diálogo efetivo com o poder público

64De acordo com o Entrevistado A, a nova etapa do projeto envolve estabelecer conexões com o poder público para construir parcerias e acessar políticas públicas. Isso reforça o entendimento de que, para ampliar a democracia alimentar, é fundamental que os processos participativos recebam apoio do Estado em sua implementação (Baldy, Kruse, 2019). Nesse contexto, surge como uma oportunidade o Decreto nº 11.937, de 5 de março de 2024, que regulamenta o Programa Cozinhas Solidárias, reconhecendo-as como estratégias eficazes no combate à fome.

655) Inserção de produtos da agricultura familiar

66Essa é outra importante estratégia para alcançar um sistema alimentar mais democrático. No entanto, nas cozinhas solidárias de Manaus, ela não reflete uma democracia alimentar, pois não há controle sobre a origem dos alimentos consumidos, uma vez que eles vêm de doações ou são comprados em grandes redes de supermercados. Quanto à justificativa para não incorporar produtos da agricultura familiar, o Entrevistado A explicou que o principal obstáculo reside na burocracia relacionada à prestação de contas à Gastromotiva e no fato de que esses agricultores não emitem notas fiscais por falta de organização social.

67Outros aspectos mencionados são o volume de produtos necessários e os preços dos alimentos fornecidos pela agricultura local, que, muitas vezes, ultrapassam o orçamento disponível. Essa situação afeta diretamente um dos principais pilares da construção de uma democracia alimentar, que é reconhecer sua influência sobre o sistema alimentar. Nesse sentido, o vínculo entre produção e consumo é essencial.

686) Valor dos alimentos

69Existe um processo importante que se desenvolve dentro das cozinhas solidárias. Elas funcionam como pontos de sociabilidade, fortalecimento da cultura local e de lutas por direitos sociais. De acordo com a Entrevistada B,

“Hoje a cozinha é um espaço principalmente para que a gente se encontre... e para que a gente se fortaleça aqui na comunidade, para que a gente fortaleça a nossa identidade indígena por meio da gastronomia, para que a gente compreenda a complexidade dessa luta também por direito à moradia. [...] Mas também pela prática das línguas. Aqui, por exemplo, tem uma parte que são principalmente mulheres do Rio Negro. Então se fala muito tukano aqui na cozinha. Embora eu não fale, mas elas praticam bastante a língua [...] Então sempre se fala, pelo menos, duas ou três línguas aqui na cozinha. Então, além do trabalho propriamente da cozinha, do resgate da cultura via alimentação, tem essa questão do fortalecimento social.”

70A assistência alimentar que informa uma democracia alimentar deve funcionar como um vetor de ligações sociais, estabelecendo laços tanto com a comunidade quanto entre os voluntários do projeto. Além disso, constrói a possibilidade de fortalecimento cultural e identitário.

71Considerando esses aspectos, surge igualmente o debate sobre o papel dos alimentos regionais ou culturalmente aceitos no preparo das refeições. Este se tornou um desafio segundo as cozinheiras sociais. Para a Entrevistada D, existe uma limitação no que tange à inserção de alimentos regionais pelo fato de que grande parte dos gêneros alimentícios advém de doações, havendo pouca margem de manobra para inserção de outros produtos. No caso dos indígenas venezuelanos, realiza-se um trabalho de adequação das refeições ao gosto dos beneficiários, não necessariamente à cultura alimentar destes. Conforme explica a Entrevistada C, “embora exista uma nutricionista que auxilia o projeto, as cozinheiras têm autonomia para adaptar as receitas segundo sua criatividade”. Entretanto, o acesso a alimentos doados apresenta alguns entraves para manter a oferta de refeições adequadas e saudáveis. Segundo esclarece a Entrevistada C,

“No início do projeto e início da pandemia, existiam muitas empresas que queriam muito participar do projeto e mandavam as doações. No início, a gente recebia doações em dinheiro e também em insumos, e muitas delas mandava salsicha, calabresa. [...] logo no início sim, alguns produtos processados... e foi uma bênção porque não somente isso, mas eles mandavam peças e mais peças de carne.”

72No entanto, segundo os informantes, após essa fase, começou-se a trabalhar com uma nutricionista para garantir refeições sem ultraprocessados e aumentar a inserção de alimentos condizentes com a cultura alimentar local. No caso dos indígenas, cujos hábitos alimentares são ainda mais específicos e diferenciados, as cozinheiras ocasionalmente utilizam o auxílio financeiro que recebem mensalmente para comprar alimentos regionais destinados ao preparo das refeições. Ao mesmo tempo, ocorre, consoante os entrevistados, um esforço de “educação alimentar” para introduzir novos hábitos, como o consumo de saladas durante as refeições. Este fato levanta questões sobre a autonomia dos beneficiários quanto às suas escolhas alimentares:

“Dessa forma, pra gente, é também uma forma de educar as pessoas, né? Porque, muitas vezes, a gente ouve tipo ‘Ah, pode fazer o meu sem salada’. A gente fala ‘Não, aqui todas as marmitas só saem daqui sem salada se a salada acabar’, porque a gente vai colocar salada, né? Porque, quando a pessoa abrir, ela tem que ver aquela salada lá dentro. Então, acho que é muito importante nesse sentido também, né? A gente oferecer essa educação alimentar, ainda que não seja a que a gente gostaria, né?” (Entrevistada B)

73Diante do exposto, embora não seja possível mensurar o nível de comprometimento das cozinhas solidárias com os princípios da democracia alimentar, foi possível sinalizar alguns elementos de diálogo com este tema e potencialidades para trabalhar a assistência alimentar de forma articulada à democracia alimentar.

Considerações finais

74Esta pesquisa revelou as potencialidades que as cozinhas solidárias de Manaus apresentam de promover uma democracia alimentar, especialmente devido à diversidade do público atendido e ao fato de que o serviço é prestado por pessoas com histórico de ativismo e familiarizadas com a realidade das comunidades atendidas. Contudo alguns aspectos ganharam maior destaque na análise da democracia alimentar, enquanto outros se apresentaram como desafios a serem superados pelas entidades.

75A busca pela autonomia e pela superação da dependência alimentar é uma das principais estratégias dos voluntários, por meio de formações e outras iniciativas empreendidas. Além disso, enfatiza-se a importância dos laços de solidariedade, consolidando os espaços como ambientes propícios para o desenvolvimento da sociabilidade, a valorização da cultura local e o engajamento na luta por direitos.

76No entanto, cabe ressaltar que se trata de um público amplo e frequentemente negligenciado pelas políticas públicas, o que demanda abordagens mais abrangentes para assegurar que os princípios democráticos de acesso à alimentação sejam alcançados. Este aspecto traz à tona um desafio significativo a ser enfrentado, a origem dos alimentos, que advêm principalmente de doações ou compras em grandes supermercados, representando um obstáculo para a oferta de refeições que promovam a sustentabilidade do sistema alimentar.

77Esses fatos apontam para outra dificuldade, inserir produtos locais nas iniciativas de assistência alimentar, o que, segundo os interlocutores, esbarra na estrutura das organizações da agricultura familiar e nas limitações orçamentárias. Para enfrentar esse e outros desafios, reforça-se a importância de um Estado que atue na integração das políticas públicas, fortalecendo a agricultura familiar e as organizações em geral para a aquisição desses alimentos e a construção da democracia alimentar.

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Bibliographie

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Notes

1 Este trabalho é fruto da Chamada nº 40/2022, do CNPq, intitulado “Ativismos alimentares e politização da alimentação: uma análise comparada das interações entre movimentos sociais, mercados e políticas públicas nas regiões metropolitanas brasileiras”.

2 Os entrevistados são representados por letras do alfabeto, a fim de resguardar suas identidades. As entrevistas foram realizadas remotamente em alguns casos e presencialmente em outros.

3 Algumas cozinhas foram desativadas e outras inseridas no projeto.

4 Principalmente de redes de supermercados, dioceses de Manaus, empresas ou particulares.

5 O Centro de Arte é um espaço dedicado a projetos sociais em arte e educação para a comunidade. Atende entre 160 e 180 alunos por ano, com aulas de flauta, violão, capoeira, reforço escolar, rodas de leitura, balé, dança e inglês.

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Table des illustrations

Titre Figura 1: Boca da Mata
Crédits Fonte: Instagram da cozinha.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/58018/img-1.png
Fichier image/png, 454k
Titre Figura 2: Arte na Cozinha
Crédits Fonte: Acervo das pesquisadoras.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/58018/img-2.jpg
Fichier image/jpeg, 27k
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Pour citer cet article

Référence électronique

Camila Lago Braga et Cristiane Cavalcante Lima, « Democracia alimentar para populações em vulnerabilidade social: o caso de cozinhas solidárias em Manaus, Amazonas »Confins [En ligne], 63 | 2024, mis en ligne le 28 juin 2024, consulté le 07 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/58018 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/11wvo

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Auteurs

Camila Lago Braga

Universidade Federal de Sergipe (UFS), camila.lago@academico.ufs.br

Cristiane Cavalcante Lima

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM), cristiane.lima@ifam.edu.br

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Droits d’auteur

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