1O território brasileiro atualmente passa por diversos processos ligados à capilarização da informação por meio do smartphone, que resulta em diversas implicações espaciais, sob a regulação de agentes públicos e privados para a implementação e o uso dessas infraestruturas no espaço urbano (Bertollo, 2019). Esta é uma realidade há pelo menos 10 anos no Brasil, quando a partir de 2014 os smartphones se tornaram os aparelhos preferenciais, ultrapassando os computadores, para conexão à internet (CETIC, 2022).
2A convergência das técnicas de telefonia e internet, cuja rede é formada por diversos equipamentos e serviços, teve um alcance importante para atender à demanda crescente de conexão, se manifestando na banalização do acesso à internet num contexto em que os brasileiros de várias classes de renda passaram a realizar atividades cotidianas ligadas ao trabalho, relacionamento pessoal, estudos e lazer por meio do smartphone. Soma-se a esse processo o uso massificado destas técnicas também pelas diversas instituições, corporações e Estados.
3A partir da expansão destas redes que perpassam as cidades e chegam ao campo, ainda que pese a qualidade de conexão e densidade de infraestruturas, há uma possibilidade cada vez mais potente da utilização da internet no âmbito do ordenamento, produção, comercialização, financeirização e políticas na agropecuária, principalmente em grandes e médias propriedades, se estendendo ainda com certa lentidão para os pequenos produtores e na produção familiar.
- 1 A IoT presume o fluxo de produtos e informações sem a interferência direta do ser humano nos proces (...)
4A pesquisa em andamento desdobra esta questão no campo brasileiro e traz debates sobre as disparidades entre o agronegócio e os pequenos e médios produtores na recente implementação e uso da internet das coisas (IoT)1 no fomento à produção agropecuária e que enseja importantes impactos territoriais.
5Uma série de exposições, discussões e produções de textos sobre a pesquisa, desde o seu início no segundo semestre de 2021 até o presente momento, trouxeram aportes para o seu desenvolvimento.
- 2 Agtechs são empresas, geralmente startups, cuja finalidade é produzir inovações digitais para as at (...)
6Primeiramente, foi observada a crescente presença de Agtechs2 globais e nacionais, o que estabelece um novo paradigma de competitividade para alguns agentes hegemônicos, resultando na incapacidade de certas regiões para acompanhar esse desenvolvimento tecnológico custoso e veloz e, consequentemente, na sua desvalorização. Isto ocorre pela falta de condições para a capilarização da internet e IoT no campo dada a disparidade de renda dos produtores nas diversas porções do território e pela desigualdade na distribuição das infraestruturas, que é o fundamental componente da acessibilidade.
7E para a possibilidade de implantação dessa estrutura técnico-organizacional, sobretudo em regiões mais distantes dos grandes centros urbanos, em periferias das cidades e/ou de segmentos sociais de menor poder aquisitivo, um outro agente reconhecido neste processo são os Provedores Regionais de conexão à internet (PRs) (Bertollo, 2021).
8Eles são também chamados de Prestadores de Telecomunicações de Pequeno Porte (PPPs) que realizam um importante movimento de capilarização das redes de infraestrutura pelo território para que sejam fornecidos o sinal e a conexão no campo, com um crescimento relevante onde não há um oferecimento eficiente, em quantidade e qualidade, de serviços de grandes empresas provedoras em regiões com menor densidade de redes e menor densidade populacional e/ou onde os habitantes têm menor poder aquisitivo.
9Os PRs estão presentes principalmente em cidades de 5 mil até 50 mil habitantes, como pode ser visto no Mapa 1, e nota-se, portanto, possibilidades para os “pequenos” dentro de uma rede hegemonizada, ainda que o acesso à informação viabilizado pelos provedores regionais às populações de menor renda não torna, de modo geral, o nexo informacional exatamente mais emancipador.
Mapa 1: Porte das empresas provedoras de internet, por número de pessoas ocupadas e por Unidade da Federação, Brasil, 2018
Fonte: Bertollo, 2019.
10Dando prosseguimento à pesquisa, a análise da capilarização da informação no campo levou ao conhecimento sobre as ações das Agtechs e institutos de pesquisa públicos no território brasileiro, o que permitiu vislumbrar a coexistência de um trabalho global, um trabalho nacional e um trabalho local, resultando em combinações distintas (Bertollo, 2021a).
11Ao mesmo tempo em que há obstáculos para a capilarização da internet no campo, há perspectivas de suporte tecnológico, de informações e financeiro; de infraestrutura física (energia, telecomunicações e armazenamento); de aporte de ciência e tecnologia (como as Agtechs, institutos de pesquisa e universidades) e serviços de educação básica, que podem ser oferecidos por diferentes instituições e organizações, e são capazes de gerar condições positivas para adoção de tecnologia.
- 3 Diante do grande volume, variedade e velocidade de dados gerados pela IoT, há contínua criação de B (...)
12Tais técnicas podem motivar a mobilidade geográfica do produtor, isto é, a capacidade do agente de movimentar bens, mercadorias, informação banal, fluxos materiais e fluxos informacionais (CASTILLO, 2017), principalmente aos pequenos que praticam agricultura familiar. Há possibilidades de um tipo de uso das tecnologias para o aumento da produtividade e da competitividade na nova divisão territorial do trabalho, na comercialização dos produtos suprimindo intermediários, no uso racional de recursos naturais, na preservação do meio ambiente, na prática da agroecologia, na cooperação e troca de informações em rede e, principalmente, como viabilidade de diminuir as desigualdades entre os pequenos e grandes produtores rurais3.
13A exploração de dados e informações sobre o tema derivou em trabalhos cartográficos para espacializar as dinâmicas ligadas ao processo de implantação da IoT no campo (Bertollo, 2022), como pode ser analisado no Mapa 2 em relação à concentração das Agtechs No Brasil, num movimento que é capaz de articular todas as etapas da produção agropecuária, com base no que existe de mais sofisticado nas áreas da automação e das tecnologias da informação, envolvendo sensores, equipamentos autônomos e armazenamento de dados em nuvem.
Mapa 2: Principais áreas de concentração de Agetchs no território brasileiro
FONTE: Bertollo, 2022
14Foram identificados e analisados os principais agentes envolvidos no desenvolvimento, difusão e conexão digital de objetos informacionais no campo brasileiro, avaliando algumas de suas consequências para o uso do território e para as diversas categorias de produtores agropecuários, ao explorar os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Radar AgTech Brasil e o Mapeamento das Startups do Setor Agro Brasileiro realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
15Além disso, foram discutidas as diversidades dos segmentos sociais do campo brasileiro e as escalas geográficas da distribuição, comercialização e consumo de seus produtos; o papel de agentes públicos e privados que desenvolvem tecnologias e prestam serviços de IoT no campo (como as Agtechs); e quais os desafios e possibilidades de disseminação socioespacial das tecnologias da informação no campo brasileiro.
16Ao tratar da disseminação da internet e equipamentos que promovem a IoT no campo, também foi observado o papel das cidades do agronegócio neste contexto (Bertollo, 2022). A tendência de homogeneização da produção agropecuária com o uso das tecnologias da informação se intensificou e impactou de forma importante nestas cidades, com novas formas de produção e distribuição de bens agrícolas, por meio da aplicação de novos sistemas técnicos. Há uma nova forma de monopolizar os serviços e produtos de grandes plataformas e Bigtechs que se envolvem na produção agrícola e exploram as redes para vender seus serviços em parceria com as corporações transnacionais do agronegócio. Portanto, há uma lógica em que a circulação de insumos, mercadorias, equipamentos e manutenção dos sistemas que poderiam vir, em princípio, das cidades próximas à produção, as cidades do agronegócio.
17Contudo, atualmente existe a possibilidade desses elementos virem de outros lugares, inclusive distante de onde se realiza a produção, impactando a médio e longo prazo nessas cidades que sempre tiveram como função atender a produção agrícola do seu entorno e que mais recentemente se submetem à cada nova transformação tecnológica para obedecer aos comandos de lugares distantes.
18Outro ponto muito importante tratado sobre a digitalização no campo e a efetiva utilização da internet, dispositivos e aplicativos no Brasil foi o problema da universalização do acesso à internet principalmente no campo, o que possibilita a mobilidade geográfica aos cidadãos (Bertollo, 2022).
19O controle da produção, comercialização e distribuição da produção no campo atualmente depende cada vez mais do acesso à internet e às variadas redes sociais, questão importante especialmente para os pequenos produtores rurais no Brasil, em grande parte excluídos dessa modernização e distantes de exercer sua mobilidade geográfica. Um dos pontos principais desta discussão é o papel das Estações Rádio Base (ERB) (ou as chamadas antenas), que são infraestruturas indispensáveis para a conexão à internet por meio dos smartphones e para a inclusão dos agentes do circuito inferior das economias agrárias (Elias, 2013). O Mapa 3 apresenta a distribuição das ERBs, concentradas nas áreas urbanas e em pontos e manchas de maior densidade populacional, e essa estrutura é basilar para o funcionamento das redes 2G, 3G, 4G e 5G, operando numa ampla área como uma rede integrada, permitindo a transmissão e estendendo a conexão à internet a vários quilômetros de distância de cada estação (torre). Para tornar essa rede mais densa, ressalta-se a função primordial de políticas públicas inclusivas, pois as operadoras privadas de telefonia móvel e internet não têm interesse em porções do território e segmentos sociais que não têm viabilidade econômica.
Mapa 3 - Distribuição das ERB (Estação Rádio Base) no território brasileiro, 2018
Fonte: Bertollo, 2019.
20O desenvolvimento da pesquisa abriu também a possibilidade de discutir sobre a produção de alimentos tradicionais e mais acessíveis no Brasil, como o feijão, o arroz e a mandioca, e um crescimento expressivo da área de produção de commodities no território, o que contribui sobremaneira sobre a crise da fome no país (Bertollo, 2022).
21Outro ponto importante é o entendimento da digitalização do campo como um potencial elemento da dependência da agricultura às agroindústrias, num momento em que ocorria o contingenciamento das políticas públicas ligadas à segurança alimentar com uma diminuição sensível da produção de alimentos no Brasil no ano de 2022 (Bertollo, 2022a).
22A discussão enfatizou as novas técnicas no campo que mobilizam uma crescente substituição de intermediários nos processos de produção e comercialização, com a coleta permanente de dados da terra, da produção e dos agricultores, bem como o papel fundamental da agricultura familiar na produção alimentar, visto que é responsável por uma parte significativa dos alimentos que chegam às famílias brasileiras, concomitantemente com a formação de redes de grandes produtores de insumos, agrotóxicos e equipamentos envolvendo as Bigtechs e a financeirização do campo por meio de Fintechs.
23Para compreender com mais profundidade e de forma interescalar esse movimento global do uso massivo dessas tecnologias no campo, foram analisados documentos da Comissão Europeia, Banco Mundial e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que indicam a aplicação de uma estratégia do agronegócio global denominada “da fazenda ao garfo” (ou farm to fork), definindo que os sistemas alimentares - desde a produção, logística e comercialização - sejam abertos aos novos operadores da cadeia de valor dos alimentos, com as Bigtechs e Fintechs no controle global dessas dinâmicas, acompanhado do desenvolvimento científico. O objetivo dessa estratégia é o maior controle de todas as etapas produtivas sob a justificativa de redução de emissões líquidas de gases de efeito estufa, trazendo à tona a discussão sobre a soberania nacional na produção de alimentos (Bertollo, 2024).
24A interlocução, discussão e difusão dos resultados da pesquisa derivaram na produção de um trabalho de análise específica sobre as disparidades no campo brasileiro no âmbito dos principais processos espaciais ligados à políticas neoliberais recentes no Brasil (Bertollo, 2023) e aos discursos ligados às soluções de problemas sociais nas cidades e no campo por meio do uso das tecnologias da informação e demais equipamentos (Bertollo, 2024a).
25No prosseguimento da pesquisa houve uma série de trabalhos de campo no ano de 2022 que resultaram num avanço importante da pesquisa ao conhecer melhor as instituições brasileiras como o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e Embrapa Digital. Também foram realizados trabalhos de campo em instituições francesas, com visitas técnicas à ACTA (Les Institutes Techniques Agricoles), ligada ao Ministério da Agricultura e da Alimentação, às Fazendas Experimentais e Conectadas Digifermes, Confédération Paysanne e Institut Convergence DigitAg, ligado ao CIRAD (Centre de Cooperation Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement). Por meio das informações obtidas foi visto que características e problemas dos pequenos e médios agricultores na França têm algumas similaridades com os produtores desta escala no Brasil, envolvendo instituições importantes para o fomento da produção e desenvolvimento científico e tecnológico e a análise além do agronegócio abarcando o potencial uso da IoT para os pequenos e médios produtores em escala nacional.
- 4 Os trabalhos de campo resultaram na produção de um artigo intitulado “As redes informacionais no ca (...)
26Esses contatos foram fundamentais para conhecer e sistematizar as informações sobre a participação de agentes globais e nacionais em parceria com esses institutos, bem como a participação do Estado no que tange à implementação, subsídios e fundos financeiros governamentais, e sobre como a conformação de redes atendem o setor do agronegócio e pequenos produtores com o intuito de capilarizar as informações4.
27Como resultado das parcerias internacionais, do desenvolvimento empírico e teórico da pesquisa e dos trabalhos de campo, o atual estágio de pós-doutorado tem a finalidade de construir uma análise espacial sobre o relevante dinamismo do setor agropecuário e a intensificação do uso das redes informacionais no território no período da globalização, considerando a diversidade de agentes, modelos produtivos e situações que coexistem, de modo complementar e conflituoso no Brasil e na França.
28Conhecer o funcionamento dessas estruturas é importante para pensar em soluções adaptadas à conjuntura brasileira, que tem condições para ser vanguarda na agroecologia e agricultura familiar, ao utilizar a tecnologia no campo para resultados positivos socialmente e ambientalmente. Consideramos as instituições públicas de pesquisa e fomento à produção agrícola francesas e brasileiras como organizações sociais que produzem cooperação no agronegócio e no mundo agrário em questões políticas, comerciais e sociais, perfazendo círculos de cooperação dos variados circuitos espaciais produtivos (Moraes, 1985) no âmbito da agropecuária, o que permite um desenvolvimento econômico, produtivo, logístico, ambiental, social e tecnológico importante aos agentes de menor escala.