1Por muito tempo bloqueado pela recusa de levar em consideração os processos mentais, o desenvolvimento da Geografia Cultural se acelerou com a virada assumida pelo conjunto da disciplina a partir dos anos 1970. Hoje, a área é muito produtiva.
2As dinâmicas que colocam em evidência a abordagem cultural resultam, ao mesmo tempo, dos processos que afetam a cultura do exterior e daqueles que a estruturam internamente. Essas dinâmicas se combinam com outras, ou são dominantes.
3Algumas pessoas censuram essa abordagem por ignorar as determinações sociais e exaltar para além do razoável o poder de criação e inovação do indivíduo. Isso não é merecido: é do seu entorno, e para além dele, da sociedade, que mulheres e homens recebem o que não lhes é inato (TYLOR, 1871); é através dos signos e da língua que eles aprenderam que se comunicam; é buscando no repertório dos imaginários veiculados pela sociedade onde vivem que cada um povoa seus sonhos com esquemas os quais costura, embeleza e modifica; é ao redor dos problemas de identidade e visibilidade que nascem muitas das lutas sociais. Os mundos aos quais as pessoas se referem se revelam assim como criações ao mesmo tempo individuais e coletivas: eles nascem da imaginação de um indivíduo, mas se enriquecem e ganham seu poder de sedução passando de um ao outro.
4A Geografia Cultural inicialmente se dedica aos processos que garantem a transmissão das atitudes, das práticas, dos saberes, dos conhecimentos e das crenças de um indivíduo ao outro, de uma geração à outra: eles influenciam aquilo que circula e é interiorizado um por todos.
5(i) A transmissão da cultura não acontece da mesma maneira quando se dá oralmente, por escrito ou graças às mídias modernas (WESTLY e MC LEAN, 1957). As situações face a face até recentemente envolvidas na oralidade se prestavam perfeitamente à transmissão local dos gestos, das experiências e das crenças, mas se revelavam menos eficazes quando se tratava de ensinar conhecimentos abstratos cuja aquisição demanda múltiplas repetições e exercícios. A falta de memória material tornava difícil a acumulação dos saberes e da experiência.
6A escrita tem a vantagem de ser transportável no espaço e transmissível no tempo sem perda de informação, o que favorece a difusão de saberes e crenças, a formação de sociedades extensas e a acumulação de suas competências e de sua experiência a grandes distâncias. Criando uma forma de memória objetiva à qual é possível se referir constantemente, ela facilita a interiorização dos conteúdos abstratos, mas não é muito adequada à transmissão de gestos e expressões.
7A mídia confere à oralidade memórias objetivas e a torna transmissível a distância. Pelas facilidades de transmissão no espaço e no tempo que introduz, ela garante a todos o acesso a uma grande variedade de informações, mas questiona as hierarquias que anteriormente garantiam sua seleção. As sociedades que ela modela são abaladas por efeitos até então desconhecidos de transmissão e contágio. Essas evoluções suscitam reações que se traduzem pela rejeição ao elitismo intelectual e pela proliferação de comunitarismos.
8(ii) As Ciências Sociais em geral e a Geografia em particular frequentemente privilegiaram a análise dos processos baseados no jogo de intelecto e na dimensão racional dos comportamentos. A abordagem cultural salienta o papel desempenhado na comunicação não verbal pela transmissão das emoções, pelos efeitos resultantes de empatia ou rejeição e pela formação dos movimentos coletivos que se seguem. A implementação de símbolos cuja forma é visual ou escrita amplia consideravelmente as áreas onde esses efeitos se desenvolvem. Eles estão presentes nas sociedades de cultura escrita e atingem uma nova intensidade nas sociedades estruturadas pela mídia moderna.
9Os processos de contágio que dizem respeito às emoções introduzem uma dimensão irracional na Geografia Cultural, que, sem isso, teria tendência a privilegiar o que é verbalizado – as representações – e os jogos do intelecto.
10(iii) As representações tomam duas formas: aquela de uma conceitualização que conduz à definição de categorias que introduzem e recortam o real e facilitam sua apreensão intelectual; e aquela de reconfigurações do real pela imaginação a partir de uma combinação inédita de elementos reais ou de imagens de aléns radicalmente diferentes do nosso mundo.
11Esses processos levam à criação de imaginários, que não param de se expandir e de se transformar ao circularem (DEBARBIEUX, 1998; 2010). Eles introduzem na formação do mundo uma sensibilidade e uma dimensão poética ignoradas pelas apreensões puramente conceituais. Conduzem à elaboração da imagem de mundos além, de outras esferas, de lugares aqui e ali que são percebidos como mais verdadeiros do que o mundo real, dão direções normativas à vida social e levam à institucionalização do cosmos, da natureza, do espaço, da sociedade e do indivíduo (CLAVAL, 1980; 2008). As geografias de muitos povos assim estão enraizadas no universo do mito (BONNEMAISON, 1992; 2001).
12As condições nas quais acontece a transmissão das culturas influenciam seu conteúdo e contribuem para as diferenciar a partir do exterior, por assim dizer. Por outro lado, uma dinâmica interna nasce dos debates ou da busca (ou da rejeição) da excelência.
13Os debates da opinião pública introduzem um processo interno de evolução, de convergência ou de diversificação. Quando eles se encontram, as pessoas discutem problemas que as afetam e aqueles que concernem ao conjunto de suas sociedades ou de seus países. Acontecem choques e confrontos: as posições de ambos os lados evoluem, cristalizam-se ou aproximam-se.
14O confronto das opiniões no âmbito de um fórum foi por muito tempo o privilégio das sociedades de cultura oral. A escrita ampliou as esferas de circulação dos conhecimentos e das crenças, mas através de estruturas hierárquicas que favoreciam seu controle. A imprensa e a democratização da escrita gerada por ela ampliaram esse quadro no nível das nações e do mundo, mas privilegiando um establishment que garantia a seleção e a formatação das opiniões. A revolução contemporânea das telecomunicações abre os fóruns a todas as classes da sociedade e põe em questão as estruturas sociais e políticas que se tinham implementado nos últimos dois séculos e meio ou três.
15No decorrer dos debates públicos, as pessoas frequentemente tomam consciência dos interesses que compartilham com aqueles que têm as mesmas tarefas e compromissos, e que os opõem a outras categorias. Os debates conduzem então ao desenvolvimento das lutas sociais. A abordagem socioeconômica insistia naquelas que opunham proprietários e inquilinos, capitalistas e assalariados. Outras tensões se juntam (ou se combinam com) àquelas alimentadas pelo choque de interesses econômicos, como destaca a abordagem cultural (COSGROVE, 1984; 1993; MITCHELL, 2000). Nas relações familiares, políticas, religiosas ou de lazer, aqueles que desempenham os mesmos papéis compartilham preocupações que divergem das de seus parceiros; isso gera oposições e conflitos que têm mais espaço no mundo atual do que naquele que o precedeu.
16A recusa dos objetivos sociais que a cultura dominante veicula se faz pela formação de subculturas da marginalidade (as pessoas procuram fugir das ordens impostas se inserindo em lugares onde as interações sociais são mais fracas) e de contraculturas (nesse caso, tentam substituir as instituições existentes por redes cuja lógica é diferente).
17Os processos de transmissão e os debates provocam uma certa diferenciação da bagagem que os indivíduos recebem. Essa diferenciação os ajuda a tomar consciência da especificidade de sua situação. O fato de estar em um lugar e não em outro confronta cada um a problemas que são ao mesmo tempo gerais (todo indivíduo necessita se inserir no espaço e na sociedade) e específicos (fazer isso a partir de um lugar e de uma experiência específicas): ele deve habitar a Terra, isto é, resolver, em sua própria escala, em um lugar preciso e equipado com lentes culturais que informam seu olhar, um problema universal, mas que tem somente solução específica.
18A Geografia Cultural é assim levada a se perguntar o que significa habitar – ou visitar – a cidade, o campo, a montanha, um litoral, sobre o que é trazido pela proximidade ou pelo distanciamento, pela solidão ou multidão. Ela analisa os rituais que circundam a institucionalização dos lugares e das cerimônias e festas que renovam seus efeitos benéficos. Também se interroga sobre as ligações que os habitantes criam com o seu ambiente, sobre sua importância, fragilidade ou permanência.
19Muitos indivíduos procuram se misturar em um grupo apagando tudo que os diferencia dele, enquanto outros procuram se distinguir indo mais longe na busca da excelência que os valores dominantes da cultura privilegiam, ou escolhendo outros valores.
20As estratégias de imitação-mimese, ou de distinção, têm um lugar especial nas dinâmicas sociais, como destacam René Girard (1972) e Pierre Bourdieu (1979). Elas têm consequências consideráveis na configuração das sociedades — em primeiro lugar, a formação de uma competição especificamente cultural na vida coletiva: as sociedades que preconizam o valor guerreiro desenvolvem ideologias de coragem e de performance militar que são exaltadas pelas artes marciais; as sociedades baseadas em valores religiosos desenvolvem formas de ascese que libertam aqueles que os escolhem de outras obrigações da existência e lhes permitem se dedicar à prece, à meditação, ou escolher o caminho da caridade e do amor ao próximo; as sociedades que destacam os desempenhos da mente desenvolvem as letras, as artes e as ciências — um setor onde a cultura está sob a égide do Ministério da Cultura. Para além da formação desses setores especializados, toda coletividade é afetada por essa busca da perfeição: devemos a Norbert Elias uma análise fascinante do processo de civilização que acontece nas sociedades de corte, a exemplo daquela de Luís XIV.
21O desejo de se distinguir, opondo-se, em vez de misturar-se na grande massa é uma das características da modernidade: no campo artístico, o que se procura não é mais a perfeição e a harmonia, mas o que a evolução de um mundo em eterna efervescência está trazendo à tona. O artista é aquele que identifica na atualidade os contornos do futuro e então se coloca à sua frente (HEINICH, 2005).
22O questionamento da ideia de progresso que o mundo atual conhece conduz a um processo profundo de inflexão das estratégias de distinção: não é mais antecipando os outros na busca das formas ideais que nossas sociedades devem assumir que se chama a atenção; é cultivando sua visibilidade, como nos mostra Nathalie Heinich (2012).
23As mulheres e os homens agem sobre o real, a matéria, a natureza, os corpos e a vida. Nesses campos, eles precisam lidar com elementos que têm uma dinâmica que controlam apenas de forma imperfeita, como demonstra Jean-Marc Besse sobre a paisagem:
Agir com a paisagem consiste então em integrar nas ações, e em particular nas ações de ordenamento dos espaços, os diferentes elementos d(a) substancialidade (destes): os solos e mais geralmente os complexos abióticos, os seres vivos, os outros humanos, as estruturas espaciais e as práticas territoriais, a espessura temporal dos lugares, sua história e sua memória (BESSE, 2019, p. 55-56).
24Ao se adaptar a áreas onde ela deve compor com restrições e se adaptar a elas, a cultura se inflecte e se diversifica. Há tempos, a Geografia Cultural leva em conta essas situações e lhes deve alguns dos seus avanços recentes mais importantes. Para os compreender, dá muita importância às escalas até então negligenciadas do local e do doméstico pela disciplina (COLLIGNON e STASZAK, 2004).
25A Geografia Cultural interessou-se desde o início, assim como a Etnologia, pelo ambiente material modelado pelos homens e para o qual eles tinham aprendido a fabricar objetos em madeira, a trabalhar a argila e a pedra, a utilizar as fibras de certas plantas ou os pelos e a pelagem de animais, a fundir minerais para reduzi-los e obter metais. A pesquisa geográfica interessava-se por isso de bom grado se os artefatos analisados serviam para produzir comida para as pessoas ou para protegê-las do frio, do vento ou do calor — fossem roupas ou abrigos. Ela frequentemente excluía os objetos destinados à vida doméstica, porque considerava variáveis demais formas que não eram apenas funcionais, mas refletiam a fantasia de seus criadores, como destacava Albert Demangeon sobre a residência rural: “a personalidade fundiária da habitação rural não é composta por esses elementos que mudam e que passam” (DEMANGEON, 1920/1942, p. 266).
26Nos anos 1960, muitos pesquisadores consideravam que o progresso técnico iria fazer com que todo o interesse nesta área fosse perdido: não iria ele conduzir a uma padronização total da forma dos objetos, que não contribuiriam mais em nada para a diversidade do mundo habitado?
27As atitudes hoje em dia são diferentes. A diversidade dos artefatos não reflete mais tanto quanto no passado a dificuldade de fabricar e de moldar a matéria; ela depende mais da criatividade daqueles que desenvolvem as ferramentas, os móveis e as mil pequenas coisas de que nos cercamos no dia a dia; ela leva a marca do gosto das pessoas e da maneira como concebem o ambiente de sua existência. Não há nenhuma razão para negligenciá-la.
28Não existe área em que homens tenham adotado atitudes tão mutáveis quanto aquelas em relação à natureza. Por muito tempo eles a compreenderam como um grande todo do qual faziam parte, um conjunto assustador em muitos de seus aspectos, mas sem o qual não teriam existido; os gregos não podiam dessa forma considerar a physis como algo estranho a eles – faziam parte dela e lhe tinham um respeito todo religioso.
29A partir de Galileu e Descartes, a natureza se torna o que se opõe ao pensamento. Ela é exterior ao homem, que tem o direito de utilizá-la sem limite em seu benefício. Laicizada, ela é percebida como um campo a ser conquistado. É essa a concepção dominante na modernidade.
30Hoje descobrimos os limites do meio ambiente, sua fragilidade e os perigos que sua superexploração cria, o que resulta em uma tomada de consciência ecológica, que nos reintegra à natureza e nos torna responsáveis por seu futuro. Um capítulo essencial da Geografia Cultural é consagrado a essa virada, como atesta, entre outros, o desenvolvimento da mesologia de Augustin Berque (2000; 2018).
31Porém, a natureza nunca foi somente esse exterior que podemos utilizar e povoar sem preocupações. Ela é feita de ambientes variados e mutáveis, alguns dos quais são ameaçadores e aterrorizantes enquanto outros convidam à caminhada, à corrida, à escalada ou ao nado, propiciam o descanso ou a alegria de sentir o vento batendo na pele e o sol aquecendo o corpo. Hoje, toda uma parte da disciplina é dedicada então a esses usos da natureza, à maneira como a experimentamos em um jardim, em um parque público, nas montanhas, na praia, ao fazer um piquenique (BARTHE, 2008), fazendo trekking ou praticando esportes na neve…
32A Geografia Humana pouco estava interessada no corpo dos seres humanos. Ela o considerava um sistema homeostático cuja manutenção e funcionamento exigiam o consumo de uma certa quantidade de ar (um metro cúbico por hora), de água (quantidade bastante variável de acordo com as condições meteorológicas e as atividades), e de nutrientes (em torno de 2.000 calorias por dia só para a manutenção do organismo, 6.000 ou mais quando a atividade é intensa). A Geografia Humana se interessava essencialmente pelas atividades produtivas, isto é, pelas atividades adultas e sobretudo dos homens. Ela se dirigia a um público intelectual, e em sua forma educacional, às crianças e aos adolescentes.
33A Geografia Cultural dá um grande espaço à corporeidade, pois as crianças, os adultos e os idosos são mais ou menos vulneráveis às doenças e não têm as mesmas necessidades, os mesmos problemas e as mesmas aspirações. Nem todos os indivíduos têm o mesmo interesse por sua saúde, peso, aparência e performances físicas. O campo da cultura corporal é extremamente amplo.
34O corpo cresce, perdura, declina e morre. Ele é afetado por doenças de várias origens. A Geografia da Saúde tem novas dimensões: não é mais simplesmente como nos anos 1920 ou 1930, aquela das diferentes enfermidades, de sua propagação e de suas formas endêmicas ou epidêmicas; não é mais como nos anos 1960 ou 1970, dos serviços médicos e de sua organização. A de hoje se ocupa da maneira como a doença é vivenciada pelos doentes e pelas pessoas que os rodeiam; ela analisa as atitudes relativas a esta ou aquela doença, tuberculose, câncer ou AIDS, e leva em conta a nova preocupação de prevenir as enfermidades futuras levando uma vida mais saudável.
35Os geógrafos buscaram nos etnólogos – em particular, em Marcel Mauss (1947) – seu interesse pelas técnicas do corpo: higiene pessoal, limpeza, abluções, cuidados com a pele, com os cabelos, com as unhas, exercícios físicos e todas as formas de ginástica. Interessam-se também por amputações ritualísticas, como remoção ou excisão do prepúcio, praticadas em várias culturas – e por transformações menos profundas, como as tatuagens, especialmente.
36O corpo permanece nu somente em um pequeno número de sociedades – e a nudez raramente é total, como evidenciam os estojos penianos que exibem os homens de alguns povos originários, como na Nova Guiné, por exemplo. Porém, um corpo nu não fica desnudo: ele é untado com óleo ou com gordura animal, coberto de terra ou de pó, tingido, pintado ou tatuado. Os cabelos são curtos ou longos, penteados ou trançados; às vezes, são ornados de plumas.
Figura 3 Um membro das tribos Huli das Terras Altas, sul da Papua Nova Guiné
Fonte: https://fr.wikipedia.org/wiki/Papous#/media/Fichier:Huli_wigman.jpg
37Nas culturas que praticam a nudez, o corpo é enfeitado. Nas outras, roupas o cobrem. Sua primeira finalidade é proteger os corpos do frio, da neve, do vento, da chuva, do sol ou do calor. A segunda é expressar quem o indivíduo é através do que ele veste: o uso de uniforme, quando faz parte de um grupo; o estilo burguês, que significa classe e fortuna; as vestimentas usadas na celebração de rituais; as fantasias escolhidas para uma festa ou para diferenciar e destacar sua originalidade; o jeans e a jaqueta que permitem desaparecer na multidão…
38Durante muito tempo, os corpos adornados dos povos que viviam nus eram comparados com as roupas dos considerados civilizados. Essa oposição não existe mais no mundo contemporâneo, onde a tatuagem é usada em todos os meios e onde o nudismo é uma das formas da aparência para muitos indivíduos – com o aprendizado dos códigos aos quais são ligados, como destaca Francine Barthe (2003): o olhar horizontal do nudista que se opõe ao olhar indecente do "tecido", que analisa as pessoas de cima a baixo!
39A corporeidade é também o sexo e sua codificação cultural, o gênero. A Geografia clássica se limitava a dizer que a humanidade era feita de homens e mulheres, que nasciam em quantidades praticamente iguais — um pouco mais de homens, mas como eram crianças mais frágeis, o equilíbrio era restabelecido na idade adulta.
40Ao longo dos últimos trinta anos, poucas áreas atraíram tantos pesquisadores quanto a do gênero. Isso se explica pelo lugar que essas questões tiveram nos debates públicos ao longo do último quarto de século — legalização das relações homossexuais, movimento LGBT, etc. Isso se deve sobretudo ao fato de ser um campo no qual tem sido questionada a ideia de que as categorias sociais em geral, e o gênero em particular, tinham um fundamento biológico que as tornava inalteráveis. Trabalhando sobre as transformações contemporâneas das categorias de gênero, a Geografia queer participava assim do movimento de redefinição dos campos sociais que afeta o conjunto das sociedades contemporâneas.
41A corporeidade é também a apreensão da vida em sua dimensão material — nascer, crescer, amadurecer, envelhecer, morrer — e sua tradução cultural – batismo ou circuncisão, ritos de passagem da adolescência à idade adulta, cerimônias e ritos mortuários, enterro, cremação, etc. Não se falava jamais das maternidades; nem se tratava das funerárias e dos cemitérios (PITTE, 2004). Agora um grande espaço lhes é dado.
42Os sentidos também são o corpo, mas naquilo que o liga ao mundo exterior e recebe estímulos e informações dele. A área suscitou uma infinidade de trabalhos desde os anos 1980, particularmente ligados à visão. A popularidade desse estudo se deve em parte à influência de Michel Foucault e seu Vigiar e punir, publicado pela primeira vez na França em 1975.
43Capturando o mundo exterior em todas as escalas, localizando os acidentes dos terrenos uns em relação aos outros, os compartimentos da paisagem, os lugares habitados, as cidades e vilarejos, o olhar apresenta de fato ao observador quadros cuja escala ele pode variar. Esses espetáculos são animados. Os movimentos atraem o olhar. A rica coleta de informações que o olhar traz permite monitorar as pessoas — ela se torna, nesse caso, um instrumento de dominação: é isso que destaca Foucault, é o que se tem repetido desde então nos trabalhos que ele inspira. Não é o olhar o cúmplice de todos os controles, o instrumento sem o qual os poderes não poderiam se estabelecer e se manter? Sob a forma sofisticada que assume quando usado para fazer mapas, ele conduz a varrer o espaço além do horizonte. Capta regiões ou países inteiros. O mapa inspira os príncipes que sonham com conquistas. Ensina aos militares a conceber as estratégias que os conduzirão à vitória, à ocupação de novos territórios e a seu controle.
44Para alguns geógrafos, a visão acaba se mostrando como o instrumento de todas as formas de opressão: é um sentido a serviço de aspirações fundamentalmente masculinas. Não seria conveniente desenvolver uma forma de disciplina que lhe evitaria se comprometer com os poderes existentes e favorecer o espírito da conquista, o imperialismo e o colonialismo? É isso que busca promover uma abordagem háptica, que se basearia no cuidado, na preocupação com os outros, e seria a da feminilidade (VOLVEY et al., 2012). Realmente? As políticas de Golda Meir em Israel ou as de Margaret Thatcher no Reino Unido eram modelos de doçura?
45Os trabalhos sobre a audição não levaram a desenvolvimentos tão críticos. Eles chamaram atenção sobretudo para os sons que afetam a vida das pessoas, para os ambientes sonoros: os cantos dos pássaros na floresta ou nos prados; a ladainha infinitamente repetida pelas cigarras no verão no mundo mediterrâneo, assim que o termômetro passa dos 25 graus; o som abafado do tráfego dos automóveis; os picos sonoros das decolagens de avião perto dos aeroportos… A modernidade multiplicou as emissões que tornam os ambientes urbanos estressantes, mas os sons da cidade tradicional eram muitas vezes tão fortes quanto. Na tumba dos merínidas, que domina Fez, tenho uma lembrança de setenta anos do imenso barulho vindo da cidade abaixo: reflexos de uma vida intensa, as vozes e os gritos das crianças, das mulheres e dos homens se misturam aos zurros dos burros, aos relinchos dos cavalos e aos latidos dos cães.
46O ambiente sonoro é também o da música: os sinos das igrejas, os sininhos das vacas, o órgão que preenche as mais vastas naves, as orquestras de música clássica e suas plateias estáticas, as dos bailes populares e dos casais que rodopiam, o tango, o jazz, o rock…
47O tato? Os geógrafos têm menos a dizer nesta área, embora se interessem muito pelo ambiente, ao mesmo tempo sonoro e tátil, que é o dos cegos.
48O paladar e o olfato? A disciplina aqui se sente mais à vontade (CARMIGNANI, P. et al, 1998). Os marcadores olfativos pesam mais na memória que temos dos ambientes: quem não se lembra do forte perfume que emana do solo quando cai uma tempestade? Quem não encontra emocionado um campo cheio de flores perfumadas? Quem não fica maravilhado, na Provença, com as lavandas cujo azul intenso o sol faz vibrar e cujo cheiro invade tudo? Quem não tem memórias olfativas de sua infância?
Figura 5 Campos de lavanda no Planalto de Valensole
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Plateau_de_Valensole.jpg, licenciado por Creative Commons Attribution-Share Alike2.0
49Por que associar o paladar e o olfato? Porque eles fazem parte do consumo de bebidas e de alimentos. Para apreciar um vinho e antes de bebê-lo, o mexemos por bastante tempo no fundo de uma taça suficientemente grande para captar o perfume que dele emana. Quem não se lembra do aroma de um cozido, do cheiro de certas especiarias, ou do vapor que se desprende de uma fritada?
50A dimensão gastronômica, que é a dos prazeres da mesa, renovou completamente o estudo da Geografia da Alimentação nos últimos quarenta anos (PITTE, 1991; FUMEY, 2008; FUMEY E RAFFARD, 2018).
51Não há área em que a cultura como arte e prática de “lidar com” tenha tido um papel tão decisivo quanto na do estudo da paisagem. Não é esta a película onde se manifestam ao mesmo tempo as forças profundas que afetam a crosta terrestre e a vida que cobre os solos de vegetação e povoa de animais as florestas, savanas e pradarias? Não é a paisagem o lugar onde as iniciativas e as atividades humanas acontecem?
52As maneiras de estudar geograficamente a paisagem não param de evoluir. No começo concebida como uma área em que a vida dos homens se desenvolve e em que os grandes eventos históricos acontecem, ela torna-se, ao longo do século XIX, um palimpsesto no qual o olhar do geógrafo aprende a desvendar o jogo de forças naturais e das formações clímax aos quais elas dariam origem se os homens não interviessem. Esse palimpsesto revela ao mesmo tempo as combinações de atividades agrícolas e pastorais que os homens imaginaram para tirar do meio ambiente o que necessitam para se alimentar, se equipar e se alojar; o geógrafo destaca assim a lógica que preside à formação das paisagens agrárias. Ele toma consciência da presença, no que se oferece ao olhar, de elementos fósseis que são também testemunhos das geografias implementadas pelos nossos antepassados.
53A virada cultural que se inicia nos anos 1970 leva a uma outra leitura: o foco agora está em como as pessoas, e não apenas os geógrafos, veem o mundo ao seu redor. Gilles Sautter (1979) observa a conivência frequente entre as pessoas e as paisagens em que elas vivem ou visitam. Alguns as apreciam pela beleza harmoniosa das formas que elas revestem ou pelo arrebatamento dos eventos naturais que ali se manifestam. A paisagem deixa de ser unicamente concebida como suporte (e fator) da atividade produtiva dos seres humanos. Ela se transforma em jardim ou parque. As pessoas se deslocam para contemplá-la onde ela permanece natural e selvagem. A paisagem torna-se objeto de consumo.
54A tomada de consciência das ameaças ecológicas que o mundo sofre leva a adotar um outro ponto de vista: a maneira como olhamos o meio ambiente é agora a dos médicos da natureza que estamos começando a nos tornar. O que emerge desses diagnósticos é a existência de pontos fracos, de zonas frágeis e o perigo de tudo o que divide os espaços naturais e impede então muitas formas de vida.
55Esta leitura cultural da paisagem finalmente leva a uma nova forma de conceber sua gestão e seu ordenamento: como demonstra Jean-Marc Besse (2019), o problema agora é levar em conta a totalidade do conjunto de forças que ali estão em ação para ordená-la de maneira duradoura em uma perspectiva produtiva, estética ou lúdica.
56O que fascina o geógrafo na sua análise da cultura não é somente a maneira como o espaço a modela, o modo como os processos internos de identificação e de distinção a dinamizam ou as mil combinações que ela gera quando utiliza, transforma e se encarrega de coisas e seres. É sua capacidade de criar atmosferas e a organizar ambientes carregados de sentido.
57Às vezes, basta um raio de sol e uma melodia para criar uma atmosfera de prazer e felicidade em um bairro sombrio. Se houver guirlandas, desfiles e danças, se o chão for coberto com flores e galhos, é festa! Se as pessoas vestirem preto, fecharem as persianas, e um sino tocar lamuriosamente, é luto! Se as pessoas vestem roupas leves, exibem seu bronzeado, visitam os bairros históricos fotografando tudo, demoram-se nos cafés ou nos restaurantes e correm de monumento em monumento, de festival em festival, de museu em museu, são férias!
58Em todos esses exemplos, o que assistimos é a mudança das atitudes, dos ritmos de vida e das sensibilidades de grupos inteiros. No caso da festa, a mudança obedece a rituais reproduzidos de estação em estação, de ano em ano. A mudança alimenta os sonhos dos dias comuns. Ela necessita de uma longa preparação por parte de alguns. Quando a manifestação é religiosa, volta-se à fonte, à purificação e ao renascimento. Ela é feita então para ressacralizar um espaço que o cotidiano tem como profano. Quando é política, volta-se para os momentos fundadores da cidadania, para o pacto do qual ela nasceu, para a revolução de onde ela saiu; ela é simultaneamente exaltação de seu futuro.
59A festa é uma das formas de representar a vida coletiva que os grupos sociais praticam – uma forma efêmera, mas que todos lembram e esperam porque lhes lembra sua razão de viver.
60Não há personagem mais emblemático desse aspecto da cultura do que o arquiteto, tal como vemos surgir no Renascimento. Ele está ligado ao Príncipe que o chama e a quem serve. Com efeito, ele tem diversos talentos e que são igualmente preciosos para o poder do Estado, para sua glória e para a distração de seus senhores. Ele é um engenheiro capaz de construir uma ponte e fortificações e de erguer edifícios maravilhosos; é um geômetra que domina as leis da perspectiva e sabe como extrair delas todos os efeitos possíveis; é um paisagista que é solicitado a criar jardins, desenhar perspectivas e construir palácios que atraem todos os olhares; é um decorador que cria os arcos de triunfo e as tribunas e estrutura as aleias dos lugares onde acontecem as diversões da vida na corte; é ele quem cria as máscaras e as fantasias dos que farão o espetáculo. Em suma, é um realizador tal como exigido pelos sonhos de beleza e de poder da sociedade maneirista e, depois, barroca.
61Foi quase a única época em que todas essas tarefas foram reunidas nas mãos de uma só pessoa. Em outros tempos e outros contextos, elas envolvem uma pluralidade de participantes, príncipes preocupados com a glória e que sonham afirmar sua legitimidade atraindo a atenção de todos; administradores ou autoridades religiosas que velam pela regularidade das festas; jardineiros, arquitetos, decoradores, escultores, pintores que criam as cenas com que se sonha; músicos, cantores, atores, palhaços que as animam; multidões que participam do júbilo e assim se tornam elementos principais da representação.
62Seria a civilização ocidental a única a representar os fundamentos de sua vida coletiva e o sentido de que é carregada? Não: James Duncan (1990) destacou uma dinâmica semelhante por parte dos soberanos de Kandy, no Sri Lanka, no século XIX. Paul Wheatley (1971) foi mais longe ao mostrar que as cidades chinesas antigas eram uma representação dos quatro pilares, esse eixo do mundo onde deve se situar o poder para estar próximo tanto dos poderes superiores quanto das forças ctônicas – uma representação análoga à do monte Meru como eixo cósmico que se encontra nas criações urbanas das sociedades indianizadas do sudeste asiático e da Indonésia.
63Não poderíamos compreender essas representações sem analisar os imaginários em que se inspiram – sem ver, por detrás das imagens que Gauguin dá do Taiti e do arquipélago das Marquesas, a sua recusa da modernidade, o seu interesse pelas civilizações que então são descobertas, do Japão à Indonésia de Borobudur, e a imagem que ele constrói de uma sociedade oceânica que escapando às limitações que sufocavam o Ocidente (STASZAK, 2003).
64O que os projetistas da cidade no século XIX e na primeira metade do século XX representavam eram as funções que a tornavam essencial e que precisavam ser exaltadas. A cidade era, portanto, repleta de monumentos, igrejas românicas, góticas e barrocas e seus exemplares do século XIX, frontões e colunatas de templos gregos para os tribunais, para as assembleias onde se reuniam os representantes eleitos do povo, para as bibliotecas e universidades, que encarnavam o saber e o progresso, para os teatros, as óperas, os auditórios e os museus, que glorificavam sua cultura artística. Os industriais davam de bom grado às fachadas de suas fábricas a forma de castelo. O plano geral era articulado por perspectivas que se abriam sobre seus edifícios mais prestigiosos e mais emblemáticos e recebiam as passeatas e as multidões das grandes manifestações coletivas. A cidade mostrava assim suas funções e as bases ideológicas sobre as quais baseava sua vida.
65Os projetistas da cidade de hoje já não procuram engrandecer seus alicerces e dar dignidade ao que a faz viver. Eles tentam fazer com que as pessoas esqueçam sua vida cotidiana e tentam dar à cidade um clima de festa permanente (GRAVARI, 2000). A gramática clássica das ordens é há muito tempo rejeitada porque está associada à seriedade e à pompa. Cores vivas tentam animar o ambiente. Jardins e corredores verdes visam fazer esquecer que a cidade é um mundo de pedra, de tijolo, de concreto e betume, um mundo de trabalho; por que não dar a ela a aparência de um enorme parque de diversões? O monumental agora serve para glorificar os esportes. Aos museus, que rompem com suas formas clássicas e dão origem aos programas de arquitetura mais audaciosos, ele dá a imagem de lugares mais voltados para o sonho do que para a exaltação do passado.
66A abordagem cultural desenvolve assim um campo extremamente rico. Foi partindo dos processos espaciais em que a cultura está envolvida que a apresentamos. Outras formas de proceder são concebíveis: a questão da habitação é, por exemplo, um bom ponto de partida.
67A área que acabamos de esboçar é complexa. É isso que leva Pauline Guignard (2019) e um certo número de colegas a falar de “geografias culturais”, no plural, no lugar de uma “geografia cultural”. A abordagem cultural é uma metodologia coerente, mas os processos através dos quais a cultura se insere no espaço são diversos. Desse ponto de vista, a subdivisão dessa área pode ser justificada.
68O que nos parece essencial é a ideia de que a Geografia Cultural completa o campo da Geografia Social, que até pouco tempo não era suficientemente explorada: para as abordagens socioeconômicas e sociopolíticas logo empregadas para lançar luz sobre as sociedades de ordens e de classes, ela acrescenta o que a abordagem sociocultural traz: o papel dos meios de comunicação na difusão dos saberes, dos conhecimentos, das crenças e das emoções, a significação dos imaginários, as dinâmicas de identidade/mimese e de distinção como os processos de civilização ou de declínio. A cultura se enriquece e se difrata nos enfrentamentos com s quais ela constantemente se depara, quer se trate da natureza, da paisagem ou do corpo. Ela é, em sua forma mais pura, representação da vida coletiva.