1De acordo com dados coletados pela Rede Trans Brasil, Mato Grosso foi o segundo Estado do país com maior ocorrência de homicídios de pessoas trans entre 2017 e 2022, proporcionalmente a sua população. Ao nos atentarmos aos municípios mato-grossenses com casos de homicídios de pessoas trans entre 2018 e 2022, podemos avançar a hipótese que a violência transfóbica no Estado materializa-se consubstancialmente nas áreas de influência dos eixos de integração e crescimento econômico do estado, como as BRs 163, 174, 158 e 364.
- 1 Adquirida na disciplina “Disparidades e identidades brasileiras: cartografia temática e modelização (...)
2Para apoiar essa hipótese, propomos usar o método de modelização gráfica1, primeiro desenvolvendo modelos elementares, depois montando-os em um modelo composto e retornando ao mapa clássico.
3A mesorregião Norte de Mato Grosso - que é uma área concentrada de produção agropecuária no Estado - conta com cinco municípios que juntos registram seis casos de homicídios de pessoas trans (Colniza, Juína, Sapezal, Sinop e Lucas do Rio Verde). Destarte, a mesorregião Centro-Sul, que abarca a região metropolitana do Vale do Rio Cuiabá, por ter o maior contingente populacional, registra o maior conjunto de homicídios, totalizando sete casos, distribuídos entre a capital Cuiabá, Várzea Grande e Santo Antônio de Leverger. Ademais, observa-se que as mesorregiões Sudeste e Sudoeste Mato-Grossense juntas contabilizam poucos casos de homicídios deste grupo social (quatro casos). Vazios estes que nos devem instigar, pois mais importante que investigar as áreas mais violentas/letais, devemos nos ater as que não possuem números expressivos de homicídios, já que sabe-se que a violência acontece em todo o país, o que nesse caso difere é que, boa parte desses casos não são reportados e denunciados, e quando são, muitas vezes são negligenciados pelas forças policiais, ocorrendo mais um tipo de violência.
4Ajustamos nossas lentes de análise e investigação para a mesorregião Nordeste Mato-Grossense (região do Vale do Araguaia), que conta com cinco homicídios de pessoas trans e, nos últimos anos, experiencia o avanço do eixo de expansão do agronegócio (especialmente de grãos à oeste da BR-158). Como forma de exemplificar a possível ligação existente entre a violência transfóbica em Mato Grosso e as novas relações campo-cidade impostas pelo agronegócio globalizado, podemos citar o município de Querência que vivencia os impactos do avanço da fronteira de expansão do capital com um crescimento econômico e populacional impulsionado pelo agronegócio de grãos.
Imagem 1. Modelos elementares
5Segundo o Censo Demográfico de 2022, em 12 anos o município foi o que mais cresceu no Nordeste Mato-Grossense, duplicando sua população em relação a 2010, totalizando 26.769 habitantes (IBGE, Censo demográfico 2022). Atrelado a isso, destacamos que de acordo com dados coletados pela Rede Trans Brasil, entre 2018 e 2022, Querência, em números absolutos, registrou quatro casos de assassinatos de pessoas trans, quantitade que nos chama atenção por nos referirmos a um pequeno município que acaba contabilizando mais casos que as cidades médias do Estado. Contudo, não nos surpreendemos, já que de acordo com Elias e Pequeno (2007), as cidades do agronegócio passam a reproduzir os mesmos problemas urbanos de cidades maiores. Logo, a compreensão de que os homicídios de pessoas trans vem a ser um problema eminentemente urbano vivenciado na diversidade das cidades brasileiras, nos leva a encarar, neste recorte da pesquisa, que tal ato violento é reflexo das desigualdades socioespaciais vivenciadas nas cidades do agronegócio por esses corpos transgressores. É neste contexto que Querência pode estar inserida em um cenário de agronecrotransfobia que se entende pelo conjunto de técnicas e políticas de extermínio efetuadas pelo Estado que serve de forma submissa aos agentes hegemônicos do agronegócio, e com eles estabelece uma relação orgânica que parte de atributos higienistas, espacialmente seletivos e socialmente excludentes. Esses mecanismos qualificam e distribuem os corpos com identidades que transgridem a cisheteronormatividade espacial a partir de uma hierarquia urbana pautada em desigualdades, segregação socioespacial e interdições espaciais que lhes relegam a espaços pouco assistidos pelo poder público local, isto é, aos cenários de desumanização e precariedade em guetos e periferias, os quais, portanto, contribuem para que esses corpos sejam mais facilmente eliminados. Deve-se observar que dos quatro casos de homicídios de pessoas trans em Querência, três foram no Setor F, espaço underground, periférico, da violência, prostituição e de venda de drogas. Relação que nos leva a encarar - a partir desse estudo de caso - que tais homicídios possam vir a ter ligação com as cidades onde há predominância do agronegócio globalizado, já que entende-se que este é espacialmente seletivo e socialmente excludente, gerador de desigualdades e de segregação socioespacial e que nesse cenário, as pessoas trans (mas não somente elas) vem a ser um potencial grupo social marcado, suscetível a essas violações, especialmente se contemplarmos a atmosfera ultraconservadora e tradicional que paira sobre Mato Grosso, que acaba engendrando e consubstanciando ambientes propícios para ações violentas contra corpos dissidentes.
Imagem 2 Composição dos modelos e volta ao mapa