1A sociobiodiversidade diz respeito aos elementos resultantes da interação entre populações humanas locais e o meio ambiente, como a produção de alimentos, medicamentos, fibras, artesanatos, corantes, tinturas, paisagens culturais, ecoturismo, entre outros. Assim, a sociobiodiversidade corresponde a vinculação entre os meios humano e ambiental, que revelam uma diversidade de culturas em consonância com a natureza (Araujo, 2013). Definem-se através dos modos de vida sustentável dos diferentes povos e comunidades tradicionais, refletindo na identidade, território, saúde, educação, dentre outros, em conformidade com as peculiaridades culturais. Assim, se faz necessário o re/conhecimento no âmbito político da diversidade socioambiental enquanto principal característica do Estado brasileiro, demandando a proteção das diferentes culturas e suas tradições juntamente com os seus territórios e meio ambiente (Cavalheiro e Oliveira-Junior, 2020).
2O objetivo deste artigo é trazer subsídios para a discussão sobre a necessidade da criação de políticas públicas que priorizem a conservação do meio ambiente e o respeito aos direitos dos povos e comunidades tradicionais, na busca de alternativas que conciliem o desenvolvimento humano no Sudeste do Pará, com a geração de renda e conservação do meio ambiente a partir da sociobiodiversidade local. São organizadas informações sobre a história, conhecimento e situação de povos e comunidades tradicionais que habitam a região, bem como sobre o meio ambiente, unidades de conservação, produtos da sociobiodiversidade e conflitos e ameaças existentes. Os dados apresentados foram obtidos através de acesso a bases oficiais (IBGE, FUNAI, ICMBIO e INPE), revisão de literatura e coleta de informações em campo junto a povos e comunidades tradicionais do Sudeste do Pará. Por fim, são listadas políticas públicas existentes e outras sugestões relacionadas ao tema.
3O trabalho é parte do projeto “Mapeamento dos produtos da Sociobiodiversidade na região de Carajás e suas potencialidades para a conservação do meio ambiente, geração de renda e ecoturismo”, desenvolvido entre 2021 e 2023, realizado no âmbito do convênio Fapespa/Unifesspa “Produção de subsídios à formulação de políticas públicas para a região de Carajás” (Convênio FAPESPA No 010/2020 e Convênio UNIFESSPA TERMO DE Convênio No 26/2020).
- 1 Municípios e divisões da macrorregião do Sudeste Paraense: microrregião de Tucuruí (Breu Branco, It (...)
4A mesorregião do Sudeste do Pará engloba 39 municípios1 numa área de 297,3 mil km2 com população estimada em 2 milhões de pessoas (IBGE, 2021). Longe de ser um território uniforme, a mesorregião possui uma unidade ambiental complexa com diferentes formações geológicas, relevos, vegetações e climas. O sudeste do Pará se insere no interflúvio das bacias hidrográficas dos rios Xingu e Araguaia-Tocantins, com municípios drenados também pelos rios Pacajá, Moju-Acará, Capim-Guamá e Gurupi mais a leste.
5A formação geológica do sudeste do Pará é resultado de um longo processo de derramamento de rochas vulcânicas do embasamento cristalino (basaltos e granitos-gnássicas) intercalada com formações sedimentares (arenitos, siltitos e depósitos ferríferos), em diferentes etapas de intemperização, com idades entre três bilhões (Arqueano) e dois milhões de anos (Cenozóico) (Ab´Saber, 2004; Teixeira e Beisegel, 2006; Maurity e Zappi, 2017). A riqueza mineral existente faz da região uma das principais províncias minerais do mundo determinando sua aptidão para exploração mineral industrial e garimpo com relevantes depósitos de minério de ferro, cobre, manganês, alumínio, calcário, cassiterita, ouro e gemas minerais (diamante, quartzo e ametista) (ANM, 2021).
6O Sudeste do Pará está inserido em uma área de transição entre a Amazônia (oeste) e Cerrado (leste e sul), com diferentes tipos de vegetação. Originalmente, a vegetação predominante correspondia a floresta ombrófila densa e floresta ombrófila aberta. Dentro destas áreas há formações relevantes de castanhais, florestas submontanas, babaçuais, cipozais, vegetação associada a ilhas e corredeiras fluviais, além de savanas com cerrado stricto sensu, campos abertos, e campos rupestres ao sul e na região da Serra dos Martírios e de savanas metalófila (canga) na Serra dos Carajás, onde há grande quantidade de espécies endêmicas e raras (Radam, 1974; Zappi et al., 2019).
7Com o avanço do desmatamento nos municípios da região, os maiores remanescentes de vegetação conservada estão dentro de Unidades de Conservação e Terras Indígenas demarcadas (PRODES, 2021). O estado do Pará possui 22% do território desmatado, enquanto a mesorregião do Sudeste do Pará possui 48% desmatado, demonstrando que o processo de degradação ambiental na região é mais intenso. Ao se comparar a conservação dos territórios protegidos e sem proteção ambiental, as Terras Indígenas e as Unidades de Conservação localizadas no estado possuem apenas 1,4% e 4%, respectivamente, de suas áreas desmatadas, enquanto áreas sem proteção possuem 52% do território desmatado, mostrando como as Unidades de Conservação e os Territórios Tradicionais são estratégias efetivas para proteger o meio ambiente e barrar o desmatamento (Tabela 1).
Tabela 1 - Áreas protegidas e desmatamento do Estado do Pará - Acumulado 2020 (INPE-Prodes, 2020)
|
Área
|
Quantidade de unidades
|
Área total (km2)
|
% do estado
|
Desmatamento acumulado 2020 (km2)
|
% desmatado
|
Pará
|
144 municípios
|
1.248.000,0
|
100%
|
276.487,2
|
22%
|
Sudeste do Pará
|
39 municípios
|
298.013,0
|
24%
|
142.435,3
|
48%
|
Unidades de Conservação no Pará (Federal + Estadual)
|
70 Unidades
|
412.182,1
|
33%
|
17.725,6
|
4,3%
|
Terras Indígenas no Pará
|
54 Territórios demarcados
|
342.811,5
|
27%
|
4.810,7
|
1,4%
|
área sem proteção no Pará
|
—
|
493.006,4
|
40%
|
253.951,0
|
52%
|
área protegida no Pará (UC + TI)
|
124 total
|
754.993,6
|
60%
|
22.536,2
|
3%
|
Fonte: Autores a partir de dados do IBGE (2021) e Prodes (2020).
8Apesar de sua dimensão, a floresta amazônica possui um equilíbrio sensível, dependendo da própria vegetação para a formação de chuvas e regulação do clima e para a manutenção da fertilidade do solo. A supressão da floresta desencadeia uma série de eventos catastróficos com mudanças no clima, redução de chuvas, emissão de gases do efeito estufa, desertificação, assoreamento dos rios, retração da floresta tropical, avanço das savanas, perda da biodiversidade, redução das funções ecossistêmicas e homogeneização da biota.
9A intensificação do desmatamento associado às frequentes queimadas e mudanças climáticas está transformando a floresta tropical da Amazônia em savana em um processo de desertificação que tende a se tornar irreversível (Lovejoy e Nobre, 2018). No arco do desmatamento, uma longa faixa que abrange desde o Norte do Mato Grosso até o Nordeste do Pará, incluindo toda a região Sudeste do Pará, a emissão de gases do efeito estufa já é maior do que a absorção pela floresta (Gatti et al., 2021). Se as previsões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (2021) se concretizarem com o aumento da temperatura em até 6 graus na Amazônia até 2100, a região se tornará inabitável. Este panorama catastrófico alerta para a necessidade de que a sociedade e os governos busquem alternativas para o desenvolvimento que reconheçam a importância de se conservar os ecossistemas para a sobrevivência da humanidade e das outras espécies.
10Há ainda uma relação entre desenvolvimento humano com o avanço do desmatamento nos municípios amazônicos. Municípios com mais baixo Índice de Progresso Social - IPS são os que mais desmatam (Santos et al, 2021). Portanto, é interessante monitorar indicadores sociais para compreender o processo de desmatamento e degradação ambiental.
11O Brasil é o país detentor da maior biodiversidade do mundo, com muitas espécies endêmicas e raras que só ocorrem no país. Entre os diferentes biomas do país, a Amazônia se destaca, ocupando mais de 50% do território nacional e com 15% da fauna e flora de todo o mundo (WWF, 2017).
12Em números absolutos, a Amazônia abriga ao menos 1.800 espécies de borboletas e mariposas, 400 espécies de formigas, 300 de abelhas, 2.200 espécies de peixes de água doce, 160 de anfíbios, 600 de répteis (quelônios e lagartos), 1.300 espécies de pássaros e 300 de mamíferos, muitos dos quais endêmicos ou ameaçados de extinção (Capobianco, 2001). A respeito da flora, estudos recentes para todo o território amazônico, incluindo Brasil e países vizinhos, listam entre 11 e 14 mil espécies de plantas arbóreas conhecidas pela ciência (Ter Steege et al., 2013; Cardoso, 2017), número próximo às 12 mil plantas descritas na Amazônia brasileira (Flora do Brasil, 2021). Hopkins (2007) calcula que atualmente conhecemos apenas 70% das 16 mil espécies que vêm a existir no bioma. Seguindo o atual ritmo de novas descobertas, ainda seriam necessários mais 300 anos para se conhecer toda a flora amazônica (Ter Steege et al., 2016).
13A Fauna de Carajás, no Sudeste do Pará, também se mostra biodiversa, com o registro de pelo menos 69 espécies de anfíbios (anuros e cecílias), 131 espécies de répteis (quelônios, jacarés, ofídios e lagartos), 594 espécies de aves, 31 espécies de pequenos mamíferos (marsupiais e roedores), 83 espécies de morcegos e 44 espécies de mamíferos de médio e grande porte, incluindo 14 carnívoros, seis primatas, algumas das quais ameaçadas e em listas oficiais (Nascimento e Campos, 2011; Martins et al., 2012; Costa et al., 2017). Estudos sobre a fauna piscícola (peixes) são menos abrangentes na região, mas apontam mais de 300 espécies no baixo rio Tocantins e no rio Araguaia (Santos et al., 1984; Soares et al., 2009). Mesmo com os impactos das hidrelétricas na bacia do Araguaia-Tocantins, os rios da região abrigam ao menos 48 das 73 espécies de peixes ameaçadas na região amazônica e 24 espécies endêmicas (Akama, 2017). Outra espécie aquática endêmica e relevante da bacia é o boto-do-araguaia (Inia araguaiaensis) (Hbrk et al., 2014).
14A degradação dos ecossistemas do Sudeste do Pará pode significar a perda definitiva destas espécies e mudanças permanentes no clima regional, com impacto direto na população da região. O avanço das atividades humanas, como ocupação desordenada, urbanização, desmatamento, incêndios florestais, atividade madeireira, carvoaria, expansão da agropecuária, caça e sobrepesca, perda da biodiversidade, introdução de espécies exóticas, garimpo, mineração, obras de infraestrutura, barragens, hidrelétricas, estradas, ferrovias, hidrovias e emissão de poluentes são algumas destas ameaças.
- 2 UCs com incidência sobre os municípios do SE Pará: Área de Proteção Ambiental - APA Lago de Tucuruí (...)
15A criação de unidades de conservação é uma estratégia importante para garantir a preservação das espécies ou de áreas de interesse para as diferentes atividades humanas, de acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC (Brasil, 2000 lei 9985/2000). No território do Sudeste Paraense, existem 22 Unidades de Conservação - UCs classificadas em diferentes categorias de uso sustentável ou de proteção integral que ocupam 30.195 km2, ou 10% da superfície do sudeste Paraense2 (Tabela 2). Estas áreas têm se mostrado efetivas para proteção do meio ambiente, com taxas de desmatamento inferiores do que áreas ao seu redor (PRODES, 2021). Apesar desta proteção, as UCs sofrem diferentes ameaças e apenas a sua criação em si não é suficiente para garantir a efetiva preservação sem medidas complementares como o monitoramento, reflorestamento e proteção efetiva pelo estado.
Tabela 2 - Distribuição de Unidades de Conservação - UCs nos Municípios do Sudeste do Pará
Gestor das UCs
|
Quantidade de UC no Sudeste do Pará
|
Área total (hectares)
|
União
|
8
|
4.557.148
|
Estado
|
8
|
2.398.443
|
Municípios
|
4
|
1.122,8
|
Privado
|
2
|
800
|
Total
|
22
|
3.019.536,17
|
Fonte: PRODES, 2021.
16A compreensão sobre determinado território deve incluir também a dimensão humana, que não necessariamente é homogênea, ainda mais se tratando da Amazônia, lar de diversos povos e comunidades tradicionais, cada qual com sua cultura própria e estratégias de uso e ocupação do território.
17O Sudeste do Pará possui alguns dos registros arqueológicos de presença humana mais antigos de toda a Amazônia, com datação de 11,6 mil anos (Magalhães, 2018). Estes primeiros povos, caçadores e coletores, foram substituídos por ceramistas e horticultores que se expandiram a partir de 5 mil anos, dominando toda a região há 2 mil anos (Silveira et al., 2008; Galúcio, 2010; Magalhães, 2019).
18O processo de ocupação mais recente do Sudeste paraense por povos indígenas pode ser resgatado a partir de trabalhos arqueológicos, etnográficos, antropológicos e registros históricos. As cerâmicas mais antigas encontradas nos sítios arqueológicos da região de Carajás possuem traços associados aos povos Tupi (Figueiredo, 1965), sugerindo que povos indígenas do tronco Jê tiveram uma expansão mais recente nos vales do Tocantins-Xingu.
19Possivelmente, os herdeiros desta ocupação original tupi são os atuais povos Asurini do Tocantins, Parakanã-Awaeté e Suruí-Aikewara, aparentados entre si e que ocupam a margem esquerda do Tocantins-Araguaia, desde Tucuruí no rio Trocará (Asurini), entre os rios Tocantins e Bacajá (Parakanã-Awaeté), e entre a Serra das Andorinhas e Carajás (Suruí-Aikewara) (Laraia e Mata, 1967; Arnaud, 1971; Silva, 2009; Fausto, 2014).
20Entre os estados do Mato Grosso, Tocantins e sul do Pará ao longo do rio Araguaia, o povo Karajá Iny (tronco Jê), ocupava as margens desse rio, até a ilha do Bananal. Ao leste, desde o Maranhão e Tocantins, até o estado do Pará, ocupavam diversos povos Timbira (Jê) (Nimuendaju, 1946). Deste grupo, os Apinajé estavam na confluência dos rios Araguaia-Tocantins, no atual estado do Tocantins (Nimuendaju, 1983). Na margem direita do rio Tocantins, povos Jê Timbira chamados de Gavião se expandiram desde o Maranhão (Kykatejê), Jacundá e Nova Ipixuna (Parkatejê), até Tucuruí (Akrãtikatejê) (Laraia e Matta, 1967; Arnaud, 1971).
21Ao sul, povos Jê Mebêngêkre passaram por um processo recente de grande expansão entre o Cerrado do Planalto Central, no estado de Goiás, até o sul do Pará pelo rio Araguaia, ocupando uma extensa área entre o médio rio Xingu (rios Fresco, Iriri e Bacajá), Tapajós e Araguaia. Entre os Mebêngêkre, existem diferentes povos aparentados entre si que compartilham a mesma língua, incluindo os Xikrin, Kayapó Gorotire, Kôkraimôrô, Kuben Kran Kren, Kararaô, Mekrâgnoti e Metyktire.
22Neste mosaico, o povo Arara Ukaragma (Karib), que atualmente se encontra próximo a Volta Grande do rio Xingu, foi deslocado do rio Bacajá por conflitos frequentes com seringueiros e com os Awaeté e os Mebêngokrê ainda no século XIX (Nimuendaju 1982; Arnaud, 1971).
23É possível mencionar outros povos que historicamente habitam os municípios do Sudeste Paraense e do vale do Tocantins e do Xingu, como os Amanayé (rio Capim em Paragominas e Ipixuna do Pará), Anambé (rio Moju), Awa Guajá, Ka´apor e Tembé Tenethehara (rio Gurupi entre Paragominas e Maranhão) e Araweté Bide (região do Xingu).
24São citados em diversos relatos, desde o início do século XVII, a presença de outros povos na margem esquerda do Araguaia-Tocantins que foram exterminados ou que não podem ser mais identificados, incluindo os Caatinga, Pacajá, Tacayuna, Tapiraua, Kupê-Rob, Takunyapé, Pauxi, Aracaju, Apiaka, Yaruma, Jacundá e Guajara (Nimuendaju, 1948; Arnaud, 1971; Moura, 1989; Galucio, 2010).
25Em um processo migratório mais recente, é registrada a chegada de povos indígenas de outras regiões por motivos diversos como os Guarani M´Bya que migraram do Chaco paraguaio numa caminhada que se inicia na década de 1930 e se consolida na década de 1990 (Ladeira e Paris, 2021). Os Atikun migram de Pernambuco e os Guajajara Tenetehara migram do Maranhão nos anos 2000, ocupando áreas dentro de assentamentos da reforma agrária. Recentemente, em um contexto de refugiados, indígenas Warao da Venezuela tem chegado nos municípios do sudeste do Pará, desde 2010 (Alencar, 2023).
Tabela 3 - Povos indígenas habitantes dos municípios do Sudeste do Pará
Povos Indígenas do Sul e Sudeste Do Pará
|
Povo
|
Território
|
População
|
Município
|
Aikewara Suruí (Tupi)
|
TI Sororó &
|
700
|
Brejo Grande do Araguaia, Marabá, São Domingos do Araguaia e São Geraldo do Araguaia
|
TI Tuwa Apekuokawera
|
Amanayé (Tupi)
|
TI Barreirinha
|
86
|
Paragominas
|
TI Sarauá
|
184
|
Ipixuna do Pará
|
Anambé (Tupi)
|
TI Anambé
|
161
|
Moju
|
Araweté Bïde (Tupi)
|
TI Araweté Igarapé Ipixuna
|
467
|
Senador José Porfírio, São Félix do Xingu e Altamira
|
Assurini do Tocantins (Tupi)
|
TI Trocará
|
708
|
Baião e Tucuruí
|
Atikun
|
Kanaí
|
36
|
Canaã dos Carajás
|
Ororobá
|
72
|
Itupiranga
|
Omã
|
70
|
Redenção
|
Gavião Akrãtikatêjê, Kykatêjê e Parkatêjê (Jê)
|
TI Mãe Maria & Faz. Mabel
|
1000
|
Bom Jesus do Tocantins
|
Guajajara Tenetehara (Tupi)
|
Guajanaíra
|
40
|
Itupiranga
|
Guarani-M´bya (Tupi)
|
Nova Jacundá
|
72
|
Rondon do Pará
|
Iny Karajá (Jê)
|
TI Maranduba
|
80
|
Santa Maria das Barreiras (PA), Araguacema (TO)
|
TI Karajá Satana do Araguaia
|
69
|
Santa Maria das Barreiras
|
Kayapó Mebêngôkre (Gorotire, Kôkraimôrô, Kuben Kran Krên, Kôkraimôrô, Kararaô, Mekrãgnoti, Metyktire) (Jê)
|
TI Menkragnoti
|
1264
|
Altamira, São Felix do Xingu, Matupá (MT) e Peixoto de Azevedo (MT)
|
TI Kayapo
|
4548
|
Bannach, Cumaru do Norte, Ourilândia do Norte e São Félix do Xingu
|
TI Las Casas
|
409
|
Pau d´Arco, Floresta do Araguaia e Redenção
|
TI Badjonkore
|
230
|
São Félix do Xingu e Cumaru do Norte
|
Parakanã Awaeté (Tupi)
|
TI Apyterewa
|
729
|
São Félix do Xingu
|
TI Parakanã
|
1787
|
Itupiranga e Novo Repartimento
|
Tembé, Awa Guajá e Ka´apor (Tupi)
|
TI Alto rio Guamá
|
1800
|
Nova Esperança do Piriá, Paragominas e Santa Luzia do Pará
|
Xikrin Mebengôkre (Jê)
|
TI Trincheira-Bacajá
|
750
|
Senador José Porfírio, São Félix do Xingu, Altamira e Anapu
|
TI Catete
|
1700
|
Parauapebas, Água Azul do Norte e Marabá
|
Warao
|
Área urbana
|
50
|
Marabá e Parauapebas
|
Total: 18 etnias
|
24 territórios
|
17.012
|
20 municípios do Sudeste do Pará
|
Fonte: Autores.
26O casamento interétnico ou o deslocamento na busca de trabalho, oportunidades, estudo ou acesso a serviços também é promotor da vinda de indivíduos de outras etnias para a região, contribuindo cada qual com a diversidade sociocultural existente na região. Entre estes há representantes das etnias Xerente, Kraho, Kanela e Kaingang, para citar alguns. Em contexto urbano, muitas famílias e indivíduos indígenas migraram para as cidades da região sem perder a sua identidade, conexão com parentes e cultura, mantendo seus direitos de acordo com a legislação existente. Apenas no município de Marabá, calcula-se que existam mais de 300 indígenas de diversas etnias morando, assim como em outros municípios da região como Redenção, Parauapebas e Tucuruí (Malheiro, 2021). Segundo dados do Censo indígena de 2010, existem indígenas habitando todos os 39 municípios do Sudeste do Pará em contexto urbano ou rural.
27Atualmente, há o registro de territórios indígenas reconhecidos em 20 dos 39 municípios que compõem o Sudeste do Pará, onde habitam ao menos 18 povos diferentes (Tabela 3). Destes territórios, 16 estão com o processo de demarcação concluído, cinco estão em área dominial indígena ou assentamento da reforma agrária, dois estão em processo de demarcação e nove estão a identificar sem nenhum processo de reconhecimento (CIMI, 2021). A demarcação dos territórios indígenas é garantida por lei (Brasil, 1988, art 232), e é a principal estratégia para que estas populações sobrevivam, preservem a sua cultura e mantenham tradições, como alimentação saudável, medicamentos naturais, acesso a sítios sagrados, entre outros. Esta importância fica clara ao se relacionar que o aumento da população destes povos que foi drasticamente reduzida ao longo dos primeiros anos de contato por causa de doenças e conflitos, só ocorreu com a demarcação e proteção destes territórios contra invasores.
28Somando as áreas dos territórios indígenas já demarcados incidentes nos municípios do Sudeste do Pará, é totalizada uma área de 54.700 km2 ou 18,3% do território em questão. Como abordado previamente, os territórios indígenas estão entre os mais conservados em todo o estado, com as menores taxas de desmatamento, mas também se faz necessário uma análise mais particular de cada território para entender como diferentes fatores podem estar relacionados à exposição ou proteção de cada um.
29Com a expansão da sociedade nacional no Sudeste do Pará que se intensifica a partir da primeira metade do século XX, estimulada pelo aumento da demanda por produtos da floresta e difusão da pecuária, novas populações tradicionais surgem na região através da interação entre os saberes dos povos indígenas com os conhecimentos acumulados por estes novos grupos. Neste contexto, no sudeste do Pará convivem comunidades quilombolas, povos e comunidades de terreiro, ciganos, pescadores artesanais, ribeirinhos, extrativistas, castanheiros, coletores de açaí, copaíba, folheiros de jaborandi, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros, andirobeiros e pequenos agricultores, cada qual com suas culturas, práticas e tradições.
30Estes grupos são reconhecidos pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Brasil, 2007 - Decreto no 6040/2007), que compreende que povos e Comunidades Tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
31Há uma extensa legislação em vigor que trata sobre os direitos específicos dos povos e comunidades tradicionais (Tomchinsky, 2020) que raramente é respeitada, seja por desconhecimento do estado, incapacidade de gestão ou falta de interesse. O simples atendimento a esta legislação já consolidada traria dignidade e as condições mínimas para a sobrevivência destas populações.
32Atualmente, há a compreensão de que muitas das paisagens amazônicas consideradas naturais têm origem antropogênica. Elas podem ser encontradas em diferentes localidades da Amazônia como nas terras pretas de índio, açaizais, buritizais, babaçuais, castanhais, matas de taquara, cipozais, ilhas de cerrado, ilhas artificiais e lagos artificiais (Baleé, 2013). Há um processo co-evolutivo entre humanidade e floresta amazônica, onde o meio ambiente é indissociável dos povos e comunidades e suas culturas. A ameaça a um deles representa a ameaça direta ao outro: não há floresta sem os povos da floresta e dos rios e não há povos e comunidades tradicionais sem floresta. Os produtos da sociobiodiversidade são resultado deste longo processo histórico e cultural da interação e adaptação entre as populações amazônicas e o meio ambiente, sendo necessário reproduzir estas estratégias para garantir sua exploração sustentável.
33No Sudeste do Pará, local de grande biodiversidade e lar de diferentes povos e comunidades tradicionais, são diversos os produtos da sociobiodiversidade existentes, como a castanha-do-pará, derivados do babaçu, farinha de mandioca, açaí, cacau, cumaru, bacaba, polpa de frutas nativas, andiroba, jaborandi, copaíba, pescado, artesanato e construção de barcos (Figuras 1, 2, 3, 4 e 5). A informalidade destes mercados dificulta conhecer a sua real dimensão e potencial, apesar de estarem bem difundidos na região.
Figura 1 - Coco-babaçu, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco-Babaçu, São Domingos do Araguaia, Pará
Fonte: Bernardo Tomchinsky
Figura 2 - cestaria Kayapó. Associação Floresta Protegida, Tucumã, Pará
Fonte: Bernardo Tomchinsky
34Existe um delicado ponto de equilíbrio entre a comercialização da sociobiodiversidade e o acesso a estes produtos pela população local, considerando que eles fazem parte da cultura e da história desta população, contribuindo para a sua segurança e soberania alimentar e saúde. Quando feito de forma sustentável, com plano de manejo e proteção dos territórios, a exploração dos produtos da sociobiodiversidade poderá gerar renda para a população, regularizar o uso do território e reduzir conflitos por acesso à terra, valorizar a cultura local e contribuir com a conservação do meio ambiente, representando uma interessante alternativa frente à expansão de um modelo de desenvolvimento baseado no extrativismo predatório e monocultivo que predominam na região com a agropecuária e mineração (Monteiro e Silva, 2021).
Figura 3 - Barcos, Vila Tauari, Itupiranga, Pará
Fonte: Bernardo Tomchinsky
35É possível que, com uma maior organização, estes produtos tenham o mercado ampliado, partindo de ações coordenadas com a execução de políticas públicas adequadas e participativas, elaboração de planos de manejo de cada espécie/produto, proteção dos ambientes onde ocorrem e garantia do acesso pelas populações tradicionais.
36A valorização dos produtos da sociobiodiversidade produzidos na região do Sudeste do Pará se mostra como interessante estratégia para a geração de renda para os povos e comunidades tradicionais, acesso a direitos humanos, valorização da cultura local, conservação ambiental e redução de conflitos socioambientais. A partir destas constatações, são sugeridas uma série de atividades para alcançar estes objetivos, levando em consideração a legislação vigente e projetos e políticas existentes que podem ser implementadas na região.
37Partindo do conhecimento sobre a biodiversidade, é necessário organizar as informações existentes para mapear locais mais ou menos estudados e que devem ser priorizados em novos trabalhos, bem como identificar espécies ameaçadas que devem ser protegidas ou potenciais para comercialização como produto da sociobiodiversidade. Com a identificação de áreas prioritárias para conservação é importante demarcar áreas para proteção e criação de unidades de conservação de acordo com as diferentes categorias de uso (Brasil, lei 9.985/2000).
38Ao mesmo tempo, reconhecendo a degradação ambiental existente, sobretudo fora das áreas protegidas, e a necessidade de reflorestamento inclusive nas matas ciliares, de acordo com a legislação ambiental (Brasil, lei 12.651/2012), municípios e estado podem realizar atividades para promover o plantio de espécies nativas com o microcrédito, parcerias com instituições de referência para o reflorestamento, implementação de viveiros públicos municipais e comunitários, articulação de redes de coleta de sementes e criação de leis municipais para escolha de espécies símbolo de cada município, espécies protegidas, entre outras.
39Ao mesmo tempo, é necessário aumentar a proteção dos territórios, com monitoramento, fiscalização e punição de atividades ilegais, reflorestamento de áreas degradadas e redução de riscos de atividades que ameaçam estas áreas. O estado pode apoiar ainda a elaboração de planos de manejo de Unidades de Conservação (Brasil, lei 9.985/2000) e de Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas- PNGATI (Brasil, Decreto 7.747/2012), já que são poucos os territórios que possuem estes documentos de referência. Como estímulo à preservação e recuperação de áreas degradadas, é possível registrar áreas para obtenção de crédito de carbono ou crédito de sustentabilidade ambiental.
40A região de Carajás é uma das regiões do Brasil onde há maior número de conflitos e assassinatos relacionados às questões ambientais e territoriais. Todos os territórios da região, protegidos ou não, seguem ameaçados por atividades ilegais ou legais, como garimpo, atividade madeireira, carvoaria, desmatamento ilegal, grilagem e invasão de terras, crescimento desordenado das áreas urbanas, caça, sobrepesca e pesca ilegal, incêndios florestais, poluição atmosférica, dos solos e dos rios, ausência de saneamento básico, mineração industrial, agropecuária, indústrias ou por obras de infraestrutura como rodovias, ferrovias, hidrovias, barragens e hidrelétricas (Serra e Sabino, 2021).
41A principal forma de reduzir essas ameaças e conflitos é ter um estado presente que desempenhe suas atividades constitucionais e legais, junto com o monitoramento participativo e envolvimento das populações afetadas. Outras ações que busquem alternativas de desenvolvimento fundamentadas em práticas sustentáveis que valorizem a biodiversidade e os saberes dos povos e comunidades tradicionais também fortalecem a proteção do meio ambiente e os direitos humanos. Existe uma dificuldade em avançar com esta discussão na região, já que justamente as atividades que representam as maiores ameaças e impactos socioambientais são também as maiores fontes de renda para os municípios como a agropecuária, mineração (Compensação Financeira pela Exploração Mineral - CFEM) e geração de energia (Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos para Geração de Energia Elétrica - CFURH) e sustentam a elite local. A inclusão da sociobiodiversidade como prioridade nas políticas públicas pode representar uma mudança de paradigma em que direitos humanos e ambientais fazem parte do projeto de desenvolvimento regional.
42Em relação aos povos e comunidades tradicionais, é necessário ampliar o diálogo com estes grupos e garantir a maior participação deles em políticas que afetam o seu cotidiano. Para alcançar estes objetivos, é interessante a criação de setores voltados para atender este público na máquina de administração pública, com a contratação de representantes das comunidades para facilitar o diálogo, lembrando que estas populações possuem direitos e fazem uso do estado em questões relacionadas à saúde, educação, assistência social, defensoria, emissão de documentos, entre outros (Tomchinsky, 2021). A inclusão de representantes destes povos nos conselhos municipais e estaduais existentes (exemplo: educação, alimentação escolar, assistência social, saúde, meio ambiente) também é importante. Para povos indígenas, é necessário a elaboração do Projeto Política Pedagógica e da Matriz Curricular própria em cada escola para atender as especificidades que têm direito (Brasil, lei 9.394/1996). Como parte das políticas voltadas para estas populações é fundamental identificar e reconhecer os territórios tradicionais que ocupam e usam para suas práticas culturais, como titulação de territórios quilombolas (Brasil, 1988, artigo 68/ADCT), demarcação de terras indígenas (Brasil, artigos 231 e 232/CF1988), ou a lei do babaçu livre em vigor em alguns municípios e estados vizinhos que proíbe o corte da palmeira e permite a entrada de quebradeiras de coco em propriedades particulares para a coleta do fruto. Os protocolos de consulta prévia comunitária têm se mostrado uma ferramenta importante para mediar o diálogo entre o estado, empreendimento e comunidades afetadas, dentro do escopo da Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho - OIT (1989). Algumas políticas públicas existentes podem ser ampliadas para atender os povos e comunidades tradicionais, como o seguro defeso (Brasil, lei 10.779/2003) e bolsa verde (Brasil, lei 12.512/2011).
43Sobre os produtos ou bens da sociobiodiversidade, é importante identificar quais tem maior potencial para ampliar a comercialização e manejo partindo do que existe e é utilizado na região, com o cuidado de não promover a sociobiodiversidade dentro da lógica de capitalismo verde, apoiando monocultivos e agravando conflitos socioambientais já existentes. Há a possibilidade de ampliar iniciativas já existentes como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - Pronaf (Brasil, lei 13.729/2018) o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA (Brasil, lei 10.696/2003) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE (Brasil, lei 11.947/2009), que garante que pelo menos 30% das compras públicas venham da agricultura familiar, beneficiando as comunidades locais. Há a política de Garantia de Preços Mínimos para produtos da Sociobiodiversidade - PGPM-Bio (CONAB, 2022), que deve ser implementada na região. Para melhor compreensão sobre o uso dos recursos naturais pelas comunidades locais, os protocolos bioculturais identificam como é feito o uso dos recursos e por quem, como estratégia para proteger o conhecimento tradicional e reconhecer as práticas e territórios tradicionais utilizados. O reconhecimento dos sistemas agrícolas tradicionais como patrimônio imaterial do país ou da ONU (FAO/GHIAS) é uma estratégia interessante para garantir que o estado reconheça e se responsabilize para proteger estes sistemas agroextrativistas (Brasil, lei 3.551/2000). Os acordos de pesca reduzem conflitos relacionados à pesca entre comunidades locais e outros sujeitos de fora que fazem uso dos mesmos recursos. Para ampliar o uso seguro das plantas medicinais, a Política Nacional de Plantas Medicinais permite a incorporação de espécies terapêuticas no Sistema Único de Saúde - SUS para uso da população (Brasil, lei 5.813/2006). Associado à implementação dos viveiros municipais e comunitários, poderiam ser produzidas e distribuídas mudas de espécies medicinais e frutíferas para contribuir com a saúde e segurança alimentar da população.
44O reconhecimento de produtos de indicação de origem geográfica ajuda a valorizar a cultura local e agregar ao valor dos produtos (Brasil lei 9.279/1996), assim como outras certificações existentes como produtos de origem indígena, quilombola, orgânico, biodinâmica, fairtraid (comércio justo), Forest Stewardership Council (produtos de origem florestal), certificação comunitária, entre outros.
45A abertura de linhas de microcrédito, editais direcionados e prêmios para estes projetos é uma estratégia interessante, conforme ocorreu na execução da lei Aldir Blanc (Brasil lei 13.017/2020) no estado do Pará. Outra atividade associada a conservação do meio ambiente e valorização da cultura local, o ecoturismo pode ser ampliado e profissionalizado na região que possui muitos atributos naturais interessantes para estas práticas, com o apoio para realização de turismo de base comunitária e a criação de rotas turísticas agregando diversas localidades em atividades comuns.
46Por fim, para garantir a participação das comunidades e que elas sejam ouvidas em todo o processo de construção e execução de políticas públicas que afetem a sua vida, é interessante a criação de um observatório socioambiental para a região de Carajás, onde as ameaças ao meio ambiente, povos e comunidades tradicionais possam ser monitoradas de forma transparente e participativa.
Este artigo é produto do Projeto "Produção de Subsídios à Formulação de Políticas Públicas para a Região de Carajás", que conta com o financiamento e apoio da FAPESPA - Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas.