1Neste artigo apresentamos o desenvolvimento de um modelo espacial de faixas ou zonas concêntricas gerado a partir da aplicação de critérios paisagísticos (visualidade, fruição do bem e delimitação métrica) e de mobilidade urbana (micro e macroacessibilidade), que visa funcionar como área estratégica de proteção do valor cultural de bens culturais urbanos.
2Os argumentos que sustentam esse esforço parte da necessidade do poder público em estabelecer áreas envoltórias que funcionem como instrumentos estratégicos de gestão do patrimônio urbano e de monitoramento das dinâmicas espaciais que as fustigam.
3Será abordado o problema sob uma perspectiva espacial aonde os imóveis tombados ou em processos de tombamento são vistos como áreas nucleares de tombamento, seu entorno como área de influência direta e o espaço urbano ao redor como um conjunto de áreas de influência indireta. O conjunto dos chamados “Galpões da Moóca” é a área alvo do estudo.
4A descrição dessa área acompanha a explicitação dos problemas, dos critérios orientadores, das análises espaciais e da abrangência física resultante.
5Por fim, é exposta a percepção de que o mapeamento do entorno de bens culturais dessa maneira pode contribuir ao debate acerca da proteção do patrimônio cultural urbano e pode oferecer ao poder pública uma ferramenta estratégica de monitoramento das dinâmicas espaciais metropolitanas que tendem a se apropriar e a descaracterizar o valor cultural da paisagem na cidade de São Paulo.
- 1 “[...] os vazios urbanos são terras urbanas ociosas, normalmente mantidas desocupadas como reserva (...)
6Os vazios urbanos1 que detém o valor cultural da memória paulistana, atualmente, são espaços de disputa entre o poder público e o poder imobiliário. Em alguns casos, intervenções realizadas em complexos tais resultaram na descaracterização de edifícios, galpões e fábricas que, tornados isoladamente pelas transformações, perderam parte de seu valor imaterial e paisagístico (Rufinoni, 2005).
7Outro relevante enfoque é concernente ao papel que a presença dos bens tombados ou conjuntos paisagísticos exerce no entorno que lhes envolve. Esse espaço de entorno possui propriedades peculiares: é o meio pelo qual se dá a transmissão, ao ambiente construído, das características paisagísticas e arquitetônicas dos bens materiais; é o ambiente por onde as dinâmicas espaciais metropolitanas alcançam e impactam nos vazios urbanos; é o acesso da população ao espaço do bem tombado ou alvo de tombamento; é por onde ocorre o acesso efetivo, via sistema de transporte público e coletivo, dessa população com os atributos paisagísticos do bem tombado; é, sobretudo, por meio desse entorno que ocorre a transcendência da paisagem histórica, fluindo da localização do bem tombado para a metrópole; é por onde os grupos e indivíduos estabelecem, em primeiro plano, suas interações subjetivas e autorias com a paisagem histórica; mas, é também o espaço pelo qual o mercado imobiliário se move para nutrir seus empreendimentos com o valor imaterial dos bens tombados, convertidos assim em meras amenidades paisagísticas e; por fim, é o espaço onde as deseconomias de aglomeração mais se fazem presentes para o bloqueio ou ocultamento do caráter paisagístico e arquitetônico dos bens tombados ou alvos de tombamento e que, por consequência, mais se impõem para o desencaixe das relações materiais, coletivas e anímicas da população com tais objetos.
8O planejamento urbano tem interesse em delimitar a extensão física dessas influências prevendo o instrumento chamado Área Envoltória (Dph, 2007; Iphan, 2011). Embora critérios arquitetônicos, tais como visualidade ou fruição do bem, harmonia do conjunto e ambiência, sejam utilizados para estabelecer tais áreas, não há, por exemplo, um consenso acerca do tamanho, da extensão e mesmo do formato resultante (se circular, anguloso, poligonal) que teriam no espaço (Meneses, 2006).
9A visão geográfica pode contribuir para o debate ao incorporar os princípios de localização e de mobilidade urbana. Tal contribuição percebe que parte dos vazios urbanos, potenciais alvos de tombamento, por se localizarem nas grandes metrópoles, sofrem os efeitos negativos das deseconomias de aglomeração, tais como a especulação imobiliária e o congestionamento estrutural. Estas agiriam duplamente: em primeiro lugar, verticalizando o entorno dos conjuntos paisagísticos e, em um segundo momento, isolando-os no ambiente construído, tornando seu acesso limitado e exclusivo ao transporte privado e individual.
10Por esse motivo, pareceu lógico agregar aos conceitos clássicos do pensamento arquitetônico certas variáveis de mobilidade urbana, tais como a micro e a macroacessibilidade. Nesta perspectiva, a população metropolitana que viaja pelos motivos lazer e educação (conjuntos paisagísticos podem ser seus destinos), terá, inescapavelmente, de se deslocar até o espaço de entorno dessas localidades para acessá-las diretamente. Neste contexto, a área envoltória pode ser concebida via atributos de mobilidade urbana em adição aos critérios paisagísticos e arquitetônicos que emanam dos bens culturais.
- 2 “porções do território destinadas à preservação, valorização e salvaguarda dos bens de valor histór (...)
11A área de estudo foi escolhida pelo fato de concentrar vazios urbanos com potencial de serem convertidas em bens culturais. Espacializados pelos distritos da Moóca, Cambuci, Ipiranga e Belém, espaços de tradição da imigração italiana, os chamados Galpões da Moóca, na Zona Leste de São Paulo, são assim conhecidos em virtude da presença de espaços edificados vazios que nos últimos tempos tornaram-se foco de grande polêmica (Meneguello, et al, 2007; Ministério das Cidades, 2008). A partir da segunda metade do século XX, essa função industrial passou a desaparecer. Com isso, houve uma conversão desses espaços em áreas subutilizadas, abandonadas e mesmo degradadas. Como alternativa, o poder municipal buscou alternativas de revitalização da área (RUFINONI, 2009:02). O espaço local é marcado por grandes plantas, quadras extensas e proximidade com o eixo Rio-Ferrovia, vetor espacial de estruturação da metrópole (Langenbuch, 1971; s/d). Tais conjuntos paisagísticos foram sugeridos para a constituição de uma ZEPEC (Zona Especial de Proteção Cultural)2.
12Observa-se no Mapa 01 as 26 ZEPECs dos Galpões da Moóca. Desse conjunto destacamos os galpões mais conhecidos: a Tecelagem Labor [1], a Companhia Antártica Paulista [3] e os fragmentos paisagísticos do Conjunto Industrial Cotonifício Crespi [12], [13], [14], o primeiro dos bens industriais a ter a harmonia de conjunto descaracterizada em função de reconversão para comércio (Siqueira & Kühl 2011). Além dos galpões podem ser encontradas antigos equipamentos que compunham a paisagem industrial que, entre a segunda metade do século XIX e a década de 1960, configurou o espaço urbano com esses conjuntos histórico-industriais: edifícios fabris, pátios de manobras, vilas operárias e espaços produtivos (RUFINONI, 2009:02).
13Por tais razões, os objetos geográficos dos Galpões da Moóca podem ser indutores de circulação metropolitana. Suas consequentes áreas envoltórias podem se converter em zonas estratégicas de contato entre o planejamento urbano, preservação do valor cultural e a população metropolitana.
Mapa 1. Área de Estudo
Autor Carlos Rizzi, 2016
- 3 “Seu desenho é muito mais complexo que a figura conceitual síntese das Reservas da Biosfera, inicia (...)
14Em 1925, Ernest Burgess publicou no artigo The Growth of the City, um modelo espacial que usou o centro de Chicago como eixo para estabelecer cinco faixas ou zonas concêntricas que envolveriam o espaço da cidade. Aplicou critérios da mobilidade urbana e teve como foco a análise da criminalidade urbana (Madeira, 2003). Outro caso de aplicação de faixas ou zonas concêntricas encontramos no planejamento ambiental e diz respeito ao processo de tombamento do domínio morfo-climático da Floresta Atlântica. Conforme se vê no Diagrama 1, o modelo projeta uma área core central (unidade de conversação), uma área de entorno antropizado (área de amortecimento ou área-tampão) e uma terceira zona para monitor processos sociais (Zona de Transição).3
Diagrama 1. Faixas ou Zonas Concêntricas no Planejamento Ambiental
Adaptado de Lino (orgs), 2003:14 por Carlos Rizzi, Abril de 2014 e atualizado Out. de 2021
- 4 A cidade oferece a “estrutura de circulação” ou “a parte do ambiente construído que permite a circu (...)
15Com base nos dois exemplos mencionados, foi proposta então a ideia de relacionar faixas ou zonas concêntricas em lugar de uma única faixa ou área envoltória na qual estivessem incorporados tanto os critérios arquitetônicos quanto os de mobilidade urbana. Buscando adaptar o modelo à realidade urbana, se esclarece a analogia: como as matas são áreas nucleares de proteção integral, do mesmo modo, os conjuntos paisagísticos significativos funcionam como áreas nucleares de tombamento; do mesmo modo como a dinâmica ecológica dessas áreas-core naturais recaem sobre seu entorno, igualmente os efeitos urbanístico-arquitetônicos dos conjuntos paisagísticos emanam ao espaço adjacente. Do mesmo modo que há uma zona de transição “sem limites rígidos, onde o processo de ocupação e o manejo dos recursos naturais são planejados e conduzidos de modo participativo e em bases sustentáveis” (Snuc, 2008), o próprio ambiente de circulação4 se comporta como uma zona de influência indireta ou de transição.
16Neste âmbito está inserida a noção de análise espacial. Esta se concentra na compreensão dos padrões de distribuição e dispersão de fenômenos geográficos. Envolve a exploração e interpretação de dados geográficos para descobrir relações espaciais, tendências e padrões que possam estar presentes em um determinado local ou região. Busca responder a perguntas como “onde”m o sítio e o “por quê”, a situação. Em especial, para este artigo, foi utilizada análise de proximidade e distância: a medição da proximidade ou distância entre objetos geográficos, como análise de acessibilidade ou isolamento espacial A este respeito, Ferreira 2006:104 nos afirma que o “coração de um SIG é a análise espacial”. Através da visualização espacial, isto é, do uso de mapas e gráficos para representar dados geográficos e identificar padrões visuais foi possível estabelecer a proposta a seguir.
17Como resultado, no Quadro 01 vemos a classificação relacionada com o delineamento conceitual de suas faixas, com os critérios orientadores e por fim, com a proposição das possíveis abrangências físicas de cada faixa no espaço geográfico:
Quadro 1. Classificação do entorno dos bens culturais à luz de uma perspectiva espacial
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Classificação Proposta
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Temos recorrentes
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Critérios orientadores
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Abrangência Física
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A - Área Nuclear de Tombamento
(Poligonais de Tombamento)
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Bem cultural tombado, Bem industrial tombado, Bem tombado, Conjuntos Paisagísticos
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Imaginabilidade, Conforto Físico
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Lote(s), Quadra(s), Vias, Limites, Pontos nodais, Marcos, Cruzamentos
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B - Área de Influência Direta (Zona de Amortecimento)
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Entorno, Vizinhança, Bairro, Setor Geográfico, Área, Poligonal, Lugar
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Visualidade, Microacessibilidade
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Área média de captação das paradas de ônibus mais próximas e que interceptam as Áreas Nucleares de Tombamento
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C - Área de Influência Indireta
(Zona de Transição)
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Espaço Intra-urbano, Região
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Macroacessibilidade
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Zonas OD e Áreas de Ponderação onde se localizam as áreas de bens culturais
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Fonte: Adaptado de Rizzi, 2017, atualizado em 2021
18Como visto, foi realizado um esforço por classificar e agrupar os termos que designam os objetos geográficos que compõem o espaço de entorno dos bens culturais e que seriam os balizadores espaciais para a existência das faixas ou zonas concêntricas.
19Análise dos Resultados: mapeamento por faixas concêntricas
20A Análise Espacial é um conjunto de técnicas que busca identificar padrões espaciais em dados e organizá-los em sistemas de informação geográfica (SIG). A aplicação do modelo conceitual acima teve o expediente fundamental de ser concretizado por meio das técnicas cartográficas descritas a seguir.
21Pelo Diagrama 2, podemos observar a aplicação do esforço de síntese configurado no esquema de um padrão de mapeamento por áreas, faixas ou poligonais concêntricas. Os nós do modelo são as paradas de ônibus, haja vista que o pedestre (e não o morador) é aquele que chega ao local via transporte público.
Diagrama 2. Mapeamento por Áreas ou Faixas Concêntricas
Autor: Carlos Rizzi, Abril de 2014, atualizado em Outubro de 2021.
22Neste modelo geográfico, a Área Envoltória do bem tombado ou mesmo de qualquer entorno que seja receptor de potencial valor cultural de algum vazio urbano ainda não catalogado, passa a ser visto, não mais como área rígida e sim, como uma sucessão espacial de níveis diferenciados de abrangência física.
23A seguir, apresentamos uma análise exploratória da potencialidade geográfica e cartográfica que esse modelo proporciona, tendo os Galpões da Moóca como estudo de caso.
24A) Área Nuclear de Tombamento. Esta é a primeira poligonal. Algumas fontes a chamam de poligonais de proteção (Iphan, 2011:14) ou de Bem Industrial Tombado, Bem Cultural Tombado ou simplesmente Conjuntos Paisagísticos Significativos (Rufinoni, 2004; 2009). É dessa área core de onde emanam os atributos culturais, históricos e arquitetônicos que justificam os processos de tombamento, verdadeiros núcleos geradores da imagem viva de uma cidade, gestada a partir de suas qualidades físicas independentes (Meneses, 2006). O princípio ativo no interior do valor imaterial da paisagem que lhe é tributária é entendido como a Imaginabilidade:
“àquela qualidade de um objeto físico que lhe dá uma grande probabilidade de evocar uma imagem forte num dado observador. É essa forma, cor, disposição, que facilita a produção de imagens mentais vivamente identificadas, poderosamente estruturadas” (Lynch, 1997:19-20).
25A Imaginabilidade aflora das áreas nucleares e verte para o entorno imediato que passa a ser o mirante do valor cultural. É composto pelos elementos que dão vida à imagem da cidade, isto é, as vias, limites, pontos nodais, marcos e cruzamentos (Lych, 1997). Sua extensão é a calçada homóloga, podendo sua influência ser estendida para a calçada seguinte além da via de circulação. É, por excelência, o espaço de circulação dos pedestres que, por acaso ou intencionalmente, estão em contato com a área nuclear.
26Deste contexto advém o segundo critério: o desenho das ruas modernas, “que são demasiadamente curtas, como já consignado na Carta de Atenas” (Marques, 2010:113) e o sentido de totalidade que essa recomposição exige do observador (alcançar a imaginabilidade do objeto), necessitam de uma área física para se realizarem. Esta abrangência física traz a análise do Conforto Físico:
“avalia o conforto proporcionado ao pedestre para trafegar na calçada, assim medido: campo de visão amplo no caso de uma via retilínea e existência de rebaixamento das guias nas esquinas, evitando os degraus.” (Yuassa, 2008:21)
27Sempre lembrando que estamos tratando de contexto metropolizado, a densidade do fluxo de carros na via paralela à calçada será outro critério, tendo “o alto volume de veículos” como a “impedância no momento da travessia do pedestre” (Yuassa, 2008:22).
28Essa poligonal funciona como uma zona nuclear porque nela deveriam ser proibidos usos que tendem a descaracterizar a coisa tombada ou alvo de tombamento, tais como publicidade, obstruções nas calçadas, ausência ou precariedade na sinalização de trânsito, de acessos etc. Tais externalidades negativas são tomadas como poluição visual, aqui entendida “como a ultrapassagem do limite da visão para reconhecer as características naturais do meio, a partir da inserção de novas imagens ou deterioração da paisagem já existente” (Marques, 2010:156). Sua função, portanto, é preservar o conforto físico, ponte para a realização da circulação não motorizada, a pé, e interações dos sujeitos com o espaço consumido (Yuassa, 2008:10-11).
29No transporte coletivo, essa área core gera padrões de viagens, induz deslocamentos na cidade pelos motivos “Educação” e “Lazer” (Metrô, 2008). É a zona de circulação dos pedestres que chegam via transporte público. O limite físico de sua extensão são as calçadas. Alguns estudos de impacto de vizinhança (EIV) abordam a acessibilidade do transporte privado e individual (automóveis) (Escher, 2011). Nesta primeira faixa, a noção de Conforto Físico é consoante com a noção de Imaginabilidade. Para garantir a área de conforto, deve-se considerar o número de pessoas esperado para visitação na área nuclear de tombamento, resultando em uma relação de metros quadrados externos por visitante. A densidade do fluxo de carros na via paralela à calçada será outro critério, tendo “o alto volume de veículos” como a “impedância no momento da travessia do pedestre” (Yuassa, 2008:22).
30Na Imagem 1 podemos observar a fachada principal do Cotonifício Crespi. Apesar da aparência industrial seu interior perdeu o referencial histórico e arquitetônico original ao ser incorporado pelo hipermercado Grupo Pão de Açúcar, a contragosto da comunidade local. (RUFINONI, 2005:75).
Imagem 1. Fachada Principal do Cotonifício Crespi
Fonte: Open Street View, 2014.
31Atualmente está ocupado por outro hipermercado, o Assaí Atacadista. Como se vê no Mapa 1, este conjunto está espacialmente fragmentado em três unidades. Não obstante, por sua arquitetura ainda mesclar paisagem industrial e cidade, é considerado o mais simbólico exemplo dos popularmente conhecidos Galpões da Moóca.
32B) Área de Influência Direta. É a poligonal seguinte e envolve a Área Nuclear de Tombamento. Na determinação desta reside o sentido deste artigo. Recebe uma enorme gama de nomes: entorno, vizinhança, bairro, setor geográfico, área poligonal e lugar, etc. Dois critérios podem definir a função desta poligonal: a visualidade ou fruição do bem e a microacessibilidade. No primeiro, temos que o acesso visual ao valor cultural “significa, antes de mais nada, ponte perceptiva [...] o beneficiário da observação/fruição visual [...] não poder ser circunscrito ao morador local, mas deve ampliar-se para todo cidadão [...] prioritariamente o passante, o pedestre.” (Meneses, 2006:42). Se este não é somente morador local, então temos que percebê-lo como um indivíduo que viaja no espaço: ele é pedestre mas também é usuário do transporte público e coletivo. Se esse pedestre chega de ônibus para visitar o local, então, o segundo critério deve corresponder à extensão física média que vai da localização das paradas de ônibus mais próximas até a área de primeiro contato visual com a área nuclear de tombamento. A noção de microacessibilidade define-a como a distância (dada em metros quadrados) entre área média de captação das paradas do transporte público local e a localização da área almejada (bem tombado):
“No caso do transporte público, a microacessibilidade pode ser representada pelo tempo de acesso ao ponto de ônibus/trem/metrô, ou pelo tempo de acesso ao destino final, após deixar o último veículo de transporte público.” (Vasconcellos, 2001:142).
33Buscou-se, portanto, a relação entre a distância percorrida, desde um ponto de parada mais próximo até os destinos (ZEPECs). Em estudos de acessibilidade locacional, considera-se que a “acessibilidade está associada à distância percorrida para iniciar e finalizar a viagem por transporte público e à comodidade apresentada nestes percursos” (VALIN, 2009:25). Do ponto de vista espacial, o cálculo dessa distância “é de difícil determinação, visto que a extensão ideal de caminhada varia de acordo com o espaço e com o indivíduo”. Além disso, “Em geral, 400 ou 5 min. de caminhada são considerados limites máximos de distância entre a origem e ponto de parada” (VALIN, 2009:29).
34De todo modo, como se vê no Quadro 2, os estudos apontam que uma distância percorrida será excelente se ocorrer em até 100m desde a origem do deslocamento a pé até o seu destino. Será ótima se percorrer até 200m, boa até 400m, regular até 600m, ruim até 1.000m e péssima se o deslocamento a pé tiver de exceder a 1km de distância.
Quadro 2. Indicadores de Acessibilidade Locacional no Transporte Público
35A partir do uso da Análise Espacial “Polígonos de Voronoi”, essas faixas de distâncias médias foram irradiadas no espaço dos Galpões da Moóca a partir dos centróides dos seus conjuntos paisagísticos. No QGIS o “Buffer” foi a ferramenta utilizada. Sua configuração foi calibrada para gerar faixas envolventes dos conjuntos a fim de reproduzir, no espaço, os critérios “Excelente”, “Ótimo” e “Bom” em seus respectivos raios “<100m”, “100 a 200m” e “200 a 400m”. O Mapa 02 mostra o resultado: uma área envoltória contendo proporcionalmente as ZEPECs dos Galpões da Moóca consistindo em uma forma global mais compacta e cujos círculos concêntricos expressam as áreas de influência direta e indireta.
Mapa 2. Áreas de Influência Direta - Faixas de Acessibilidade (em metros)
Autor: Rizzi, 2016. Fonte: VASCONCELLOS, 2001. RUFINONI, 2009. VALIN 2009.
36Este resultado pode ser entendido como a composição de um perímetro composto por faixas de acessibilidade para ZEPECs. Sua forma compacta pode ser considerada como uma área envoltória. No caso dos Galpões da Moóca, receber um contorno espacial auxilia na salvaguarda dos conjuntos e oferece ao poder público uma área espacialmente delimitada.
37Nota-se, como as ZEPECs, antes com uma aparência de dispersas e fragmentadas (Mapa 1), agora se apresentam enquanto um todo espacial contínuo (Mapa 2).
38Levantou-se o universo de paradas de ônibus localizados nos entornos dos Galpões da Moóca para integrar esta área envoltória à mobilidade urbana. A medição foi realizada a partir dos centróides das paradas de ônibus e tendo como destinos os conjuntos. Das 59 paradas de ônibus detectadas no entorno imediato, 46 delas encontram-se dentro da faixa de acessibilidade “excelente”, 12 em uma distância acima de 200 metros de qualquer conjunto paisagístico e apenas 1 encontra-se distante na faixa boa de deslocamento. Esta informação pode ser relevante no que tange ao processo de integração dos conjuntos à circulação metropolitana.
39O foco aqui é o deslocamento que o pedestre realiza desde o momento em que desce em parada de ônibus (origem) até o momento em que alcança o bem cultural (destino). Esse tempo pode ser medido “em função da área média de captação dos pontos de transporte público e da velocidade média de caminhada (Vasconcellos, 2001:141) o que nos oferece, portanto, a sua abrangência física: é a área média de captação das paradas de ônibus que interceptam as Áreas Nucleares de Tombamento.
40Esta poligonal é a área que o planejamento urbano comumente toma como Área Envoltória e lembra a Zona de Amortecimento do planejamento ambiental: área estratégica de monitoramento de usos conflitantes (como a verticalização) são regulados para que não comprometam a qualidade da visualidade ou fruição do bem na paisagem e da microacessibilidade. Sua função, assim, é monitorar a presença e ação da valorização espacial excessiva (manutenção da vacância imobiliária), mas, também com o diferencial da valorização da oferta de transporte público e sua qualidade por meio da interpolação de dados de tempo andando no destino e determinação do raio da acessibilidade locacional. Como espaço de ação pública, estimula a difusão de serviços culturais e de lazer que podem se tornar concentrações (clusters), contribuindo para maior integração entre cidade e bem cultural.
41Entende-se que a visualidade se dá com a desobstrução da paisagem em benefício da percepção do usuário do bem tombado, sobretudo, pelo acesso à visão do conjunto. Almejando associar sua eficácia à outra variante do espaço, pelo tempo médio de acesso, tomamos que o acesso à visão do conjunto se constitui como complemento físico, uma função com o tempo médio de caminhada. Busca a concomitância entre deslocamento e visualidade mediada pelo critério de Conforto, mas, com o diferencial de que tal visualidade será antecedida em relação ao deslocamento espacial do pedestre.
42A qualidade deste critério é dada pelo tempo médio gasto pelo pedestre para realizar a trajetória, desde o ponto de origem “área média de captação dos pontos do transporte público” até seu destino (bem cultural). Nesta poligonal, tanto quanto for possível identificar na paisagem por meio das mencionadas ferramentas, serão identificados alguns itens derivados de Estudos de Impacto de Vizinhança (EIV): i) mudança na sinalização e de tráfego, na orientação de vias; ii) difusão de resíduos (solos contaminados), ruídos (poluição sonora); iii) Gabarito dos prédios do entorno, etc (Escher, 2011), bem como a mobilidade dos pedestres: i) “amenidades ao longo da via”, “manutenção”, “infra-estrutura disponível ao pedestre”, “conflitos”/obstrução (no deslocamento a pé), “tipo de material utilizado” nas calçadas e “percepção de seguridade” (Yuassa, 2008:20-21).
43Um adendo importante: a partir da integração entre bens culturais e proximidade com paradas de ônibus, poderia o planejamento de transporte ofertar linhas locais de conexão entre as paradas para o deslocamento local via ônibus entre locais de valor cultural, caso se trate de aglomerados urbanos deste caráter, como bairros industriais e zonas de concentração de espaços culturais.
44C) Área de Influência Relativa. Terceira poligonal e envolve a Área de Influência Direta. Sua função é distinta da anterior: é somente poligonal de análise macrolocal das dinâmicas espaciais urbanas. O critério adotado é a macroacessibilidade: “No caso do transporte público, o índice simples [...] é a cobertura espacial, ou o comprimento de linhas por quilômetro quadrado”. Para nosso fim, o índice pode ser medido por setores da cidade associado ao ato de “identificar o número de destinos que podem ser alcançados pelo transporte público a partir de um ponto qualquer, em certos períodos de tempo” (Vasconcellos, 2001:140-142). A sua abrangência física decorre da análise por setores da cidade. Pode ser mapeada por uma agregação de unidades de ponderação socioeconômica de setores censitários agrupados por zonas de Origem-Destino (Metrô, 2013). Essa área pode ser determinada pela distância-relativa (função distância-tempo) que a população realiza em um meio de circulação (RMSP), desde origem qualquer até o destino.
45Como se vê no Mapa 3, nesta última zona, a macroacessibilidade pode ser verificada por meio de dados globais de viagens derivados dos elementos geográficos que lhe dão base concreta: fluxo de passageiros que sobem ou descem nas paradas de ônibus; carregamento de veículos e número de passageiros que trafegam nos correspondes de ônibus municipais; frota de veículos privados que circulam pelos logradouros da área envoltória; número de passageiros que circulam pela rede integrada metrô-ferrovia.
46Como vimos, foi tomado que o tempo gasto para alcançar os destinos almejados é o atributo central das faixas. Durações de viagens dentro dos padrões positivos de qualidade do serviço de transporte oferecido caracterizam-na como uma externalidade positiva. Em escala intra-urbana, dá forma concreta à acessibilidade geográfica dos lugares alvos dos deslocamentos. Em oposição, durações de viagens excessivamente acima dos limites ótimos de acessibilidade configuram-na como uma externalidade negativa. Em grande escala, conformam uma deseconomia de isolamento relativo imputado, não aos deslocamentos, mas aos lugares de destino.
Mapa 3. Área de Influência Indireta - Ambiente de Circulação e Macroacessibilidade
Autor: Rizzi, 2016. Fonte: VASCONCELLOS, 2001.
47A proposição de uma extensão indireta leva em consideração os eixos estruturantes da mobilidade urbana que perpassam o perímetro proposto por faixas de acessibilidade. Dito de outro modo, o ambiente de circulação será contextualizado pelo número de viagens por renda familiar mensal, por modo de transporte (automóvel, ônibus ou outros), por motivo (trabalho, lazer ou outro), e pelo número de viagens por tempo de deslocamento. Estes são alguns dos conjuntos de dados que podem ser analisados para a verificação do potencial isolamento geográfico das Áreas Nucleares de Tombamento. Dois grandes conjuntos de pesquisa oferecem um amplo corolário de dados que podem ser analisados: a primeira é a Pesquisa Origem e Destino (OD) “realizadas de dez em dez anos”. Este “intervalo longo” se dá em função das “mudanças cada vez mais rápidas nos padrões de deslocamento da metrópole”. Por isso, em segundo lugar, há a realização da “Pesquisa de aferição no intervalo do período de 10 anos”, tendo duas edições, a primeira chamada “Pesquisa de Aferição 2002” e a segunda chamada de “Pesquisa de Mobilidade 2012” (Metrô, 2013:04).
48Tais pesquisas são realizadas seguindo uma organização espacial, na verdade, uma divisão da metrópole em unidades ou zonas de pesquisa chamadas Zonas Origem e Destino ou, simplesmente, Zonas OD. A Zona de Pesquisa OD é uma “Unidade territorial básica para levantamento da origem e destino das viagens. É a menor unidade para a qual está garantida a validade estatística das informações” (Metrô, 2013:05). A RMSP é dividida em um zoneamento mais agregado de 460 zonas para a pesquisa OD para o ano de 2007 e 31 zonas de pesquisa para a Pesquisa de Mobilidade para o ano de 2012 (Metrô, 2013:08).
49O presente artigo teve como objetivo oferecer ao leitor uma breve apresentação dos procedimentos teóricos, metodológicos e analíticos utilizados para a junção entre os critérios urbanísticos ligados à da paisagem do patrimônio urbano com alguns atributos de mobilidade urbana. O instrumento pelo qual foi realizado tal esforço é a área envoltória de bens tombados ou de vazios urbanos com potencial valor cultural.
50Em especial, interpretou-se o conceito de área envoltória não como uma área simples e sim, composta por entornos e arredores tendo a área central, o objeto tombado, como eixo central de projeção de áreas, faixas ou poligonais concêntricas que lhe correspondam.
51Após a breve análise da identificação das áreas, de seus termos mais recorrentes, dos atributos que lhes definem e da possível abrangência física que poderiam ter, foi explicitado como resultado o modelo espacial proposto poderá ser concretizado geograficamente.
52Espera-se do leitor que entenda que certos objetos da cidade alvos de processos de tombamento tais como edifícios, prédios, galpões, vilas operárias e outras formas herdadas do período fordista do século passado, por serem eleitos como importantes remanescentes da herança da cultura industrial, passam igualmente a sofrer os efeitos negativos das deseconomias de aglomeração. Todavia, outras deseconomias, mais ligadas ao ambiente de circulação metropolitana, tais como o congestionamento estrutural e a motorização da população metropolitana, são igualmente preocupantes, uma vez que são responsáveis pelo aumento das durações das viagens em toda a cidade. Ambas caminham pari passu com o aumento generalizado na duração das viagens, seja por qualquer motivo, seja por qualquer modo de viagem. Essa nova condição do ambiente de circulação imputa sobre o ambiente construído um relativo isolamento geográfico, onde estão localizados os bens industriais tombados e outros bens culturais urbanos.
53Nesse contexto, torna-se de suma importância integrar a problemática das deseconomias de aglomeração no raio de proteção dos bens culturais: as áreas envoltórias. Definir as poligonais de amortecimento e a inclusão de uma perspectiva geográfica para casos de processos de tombamento urbanos, como uma poligonal de transição, pode contribuir para o debate.