Conectando cidade e campo: o papel dos mercados digitais na construção de sistemas alimentares sustentáveis no Rio de Janeiro
Résumés
L'article étudie le rôle que le commerce numérique peut jouer dans la construction de circuits de commercialisation alimentaire plus durables qui favorisent, entre autres, les (re)connexions, à la fois entre les espaces et entre les agents impliqués dans le système alimentaire. Compte tenu de la forte concentration commerciale exercée par les supermarchés et des difficultés d'accès au marché pour les produits et les agents qui favorisent les systèmes alimentaires alternatifs, nous cherchons à comprendre comment le commerce numérique peut être mobilisé pour construire des réseaux d'approvisionnement plus durables et dans quelle mesure ces réseaux peuvent mettre en œuvre des principes environnementaux et sociaux plus responsables. Nous avons recensé les circuits de commercialisation numérique indépendants des grands réseaux de distribution à Rio de Janeiro en 2021 et 2022, sélectionnant ceux qui mobilisent les principes de durabilité dans leur communication. Après avoir caractérisé leur organisation et les aspects de durabilité que ces circuits invoquent, nous avons mené des entretiens semi-directifs avec des initiatives qui joue un rôle d'intermédiaires commerciaux. Les données obtenues contribuent à distinguer différents profils de circuits dans la ville et ouvrent une discussion sur le potentiel et les limites des outils numériques pour favoriser des systèmes alimentaires durables.
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- 1 Essa pesquisa beneficiou-se do auxílio para iniciação científica do CNPq e da UFRJ. As autoras agra (...)
1As duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas pelo debate crescente em torno do modelo agroalimentar vigente, questionando as suas consequências sociais e ambientais e, logo, as possíveis alternativas. Algumas das questões associadas são, pelo ponto de vista ambiental, a destruição da vegetação nativa, a erosão da biodiversidade, a poluição de corpos hídricos e a degradação dos solos, enquanto do ponto de vista social estão a falta de acesso a alimentos saudáveis, a permanência e o agravamento da fome, a insegurança alimentar e nutricional, a obesidade e o sobrepeso1. Junto à crítica ao modelo produtivo convencional, estão questionamentos sobre a própria estrutura do abastecimento, e os tipos de alimentos produzidos e consumidos, a partir de abordagens integradas ou sistêmicas da alimentação (FAO, 2018; Rastoin, Ghersi, 2010; Renting, Marsden, Banks, 2017; Elias, Belik, Oderich, 2019). Conforme Rastoin e Ghersi (2010, p. 556), um sistema alimentar pode ser definido
como uma rede interdependente de atores (empresas, instituições financeiras, organizações públicas e privadas), localizada em um determinado espaço geográfico (região, estado, espaço plurinacional), que participa diretamente ou indiretamente na criação de fluxos de bens e serviços orientados para a satisfação das necessidades alimentares de um ou de vários grupos de consumidores locais ou de fora da zona considerada (Rastoin, Ghersi, 2010, p. 556).
2Essas abordagens passaram a incorporar leituras transversais do campo ao garfo, incluindo o limitado acesso de pequenos produtores a mercados, a prevalência de longas cadeias de distribuição marcadas pelo desperdício e a contaminação ou, ainda, a crise de confiança (HLPE, 2014; FAO, 2018). Tal cenário representa o que Gazolla e Aquino (2021) chamam de um contexto de (des)governança dos sistemas alimentares.
3O compartilhamento das críticas entre instituições internacionais, científicas e organizações da sociedade civil levou, junto à busca por alternativas analíticas e empíricas, à difusão do conceito de sistemas alimentares sustentáveis – SAS (HLPE, 2014). Numa perspectiva mais objetiva, a FAO e o HLPE definem os SAS como sendo aqueles que, levando em conta as dimensões tanto ambiental, social, como individual, promovem a segurança alimentar e nutricional para todos, sem comprometer essa segurança para as gerações futuras. Assim, eles têm como base uma concepção sistêmica que considera as interações entre distintos atores, setores e escalas, preza pela conservação dos ecossistemas, pela saúde coletiva e individual (FAO, 2018) e busca construir e ampliar relações espaciais e sociais mais sustentáveis (Marsden, Morley, 2014). Para fomentar a sustentabilidade, as necessidades de ajustes vão muito além dos modos de produção e das práticas das grandes corporações. A governança alimentar no seu conjunto está sendo questionada, desde o papel do Estado e da regulação dos mercados (Sabourin et al., 2022), até mudanças de escala e de intermediação no seu seio. Nesse sentido, certos autores defendem uma reterritorialização dos sistemas alimentares como forma de promover uma transição para uma alimentação baseada em alimentos saudáveis, relações sociais de proximidade, co-construídas, e em práticas respeitosas com o meio ambiente (Corade et al., 2022; Favarão, Favareto, 2021, Sabourin et al, 2022; Lamine, 2012). A partir dessa concepção, tem se observado a multiplicação de iniciativas que buscam a construção de um modelo agroalimentar alternativo próximo a esses ideais, mais sustentável e equitativo (Belik, Cunha, 2015), no qual a confiança entre os atores seja restabelecida.
4Nessa discussão, o acesso aos mercados torna-se um obstáculo e um ponto-chave para conectar sistemas de produção e consumidores, espaços de produção e espaços de consumo, assim como para estabelecer relações mais justas entre os agentes do sistema alimentar. O peso das grandes corporações agroindustriais e supermercadistas sobre o volume das vendas faz com que elas definem cada vez mais o tipo e a qualidade dos produtos, assim como os termos das relações comerciais que se estabelecem no sistema (Reardon e Berdegué, 2002; Fouilleux, 2010). Na mesma ocasião, dificultam o acesso dos atores alternativos ao mercado, além de mantê-los extremamente marginais. Face à dominação das redes de supermercados, as ferramentas digitais oferecem novas oportunidades de inserção comercial e de relacionamento entre os agentes do abastecimento alimentar (Niederle et al., 2021; Gazolla, Aquino, 2021; Conceição, Schneider, 2019).
5Apresentamos a seguir uma pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19 (2021 e 2022) que interroga o papel dos mercados digitais na construção de circuitos de abastecimento alimentar sustentáveis a partir de um recenseamento de mercados alimentares digitais alternativos às redes supermercadistas e que se posicionam como sustentáveis. Esse levantamento é complementado por entrevistas semi-estruturadas com iniciativas que ocupam um papel de intermediários comerciais na amostra construída, já que a intermediação é considerada um dos gargalos à implementação de SAS de maior alcance social e espacial.
6Abordamos, em uma primeira parte, a evolução do sistema alimentar convencional e seus efeitos sobre as relações campo-cidade, a (re)conexão e a virtual reconnection, na qual discutimos o potencial dos mercados digitais na difusão dos SAS. Esses elementos contribuem para delinear dimensões da sustentabilidade que irão guiar a coleta de dados empíricos. Após uma breve apresentação da metodologia, a segunda parte traz uma análise de iniciativas de comercialização digital do ponto de vista da sua organização, comunicação e das suas práticas reais. Os resultados abrem um debate sobre a mobilização dos princípios de sustentabilidade nas iniciativas estudadas, em particular do ponto de vista das relações campo-cidade, e sobre as ferramentas digitais como alternativa aos modelos comerciais convencionais.
Os mercados digitais, uma oportunidade para sistemas alimentares mais sustentáveis?
7Dentre as linhas de reflexão sobre os SAS estão trabalhos que defendem uma alteração nas relações campo-cidade, no sentido de um reescalonamento para o local a fim de promover uma reconexão funcional, política e cognitiva entre esses espaços que fomentaria, sob vários aspectos, uma maior sustentabilidade através da reapropriação do sistema alimentar pelos seus agentes (McClintock, 2010). No mesmo espírito, o conceito de ruptura metabólica, ligado à economia política, mostra os processos pelos quais o metabolismo dos sistemas produtivos desconecta o homem do meio natural, rompe o circuito dos recursos naturais e dos fatores de produção e, por consequente, acirra as rupturas entre cidade e campo. Originalmente, destacou-se a dimensão ecológica desse fenômeno, apontando as consequências ambientais trazidas por essa cisão, como os ciclos de degradação ambiental, a quebra dos fluxos naturais (nitrogênio, resíduos humanos) que levaram, por exemplo, à perda de fertilidade dos solos (Foster, Magdoff, 2000). Mais recentemente, autores como McClintock (2010) têm enfatizado as dimensões sociais e individuais da ruptura metabólica, apontando um caminho que outros autores (Bos, Owen, 2016) chamam de (re)conexão.
8Na literatura sobre os SAS, a (re)conexão implica em desenvolver relações mais próximas e recíprocas entre campo e cidade, e reunir diferentes elementos do sistema alimentar, abrangendo processos socialmente mais justos, éticos e transparentes, que se adequem melhor aos ambientes onde estão imersos (Bos, Owen, 2016). Além disso, a ideia da (re)conexão aplicada aos sistemas alimentares tem servido como sinônimo de iniciativas alimentares alternativas baseadas na escala local, tanto no contexto de Redes Alimentares Alternativas, da agricultura cívica ou de sistemas alimentares locais, gravitando em torno de diferentes noções e argumentos sobre sustentabilidade (Renting, Marsden, Banks, 2017). Na compreensão de McClintock (2010) e Dicks (2015) desde a ruptura metabólica, esse processo envolve a reconexão dos consumidores com seus alimentos, com os ciclos e processos naturais, e a (re)incorporação de alimentos marginalizados no campo e na dieta.
9Portanto, muitas iniciativas ligadas a SAS prezam pela relocalização das cadeias e por circuitos curtos, marcados tanto por menores distâncias físicas entre produtor e consumidor (proximidade espacial), quanto por um número reduzido de intermediários ou “elos” na cadeia (proximidade social). As relações sociais e o zelo pelo comércio justo são, nessa perspectiva, elementos-chave na cadeia de agentes envolvidos nos SAS.
10No entanto, a defesa de ações em âmbito local/territorial não se reduz a um localismo como solução geral. Trata-se de repensar o sistema alimentar a partir de seu contexto social, cultural, histórico e produtivo específico, tratar das suas particularidades e recuperar o controle das questões alimentares pelos atores territoriais engajados com a agenda da sustentabilidade (McClintock, 2010). Muitos autores defendem que os SAS podem criar novas formas de conectar os espaços do campo e da cidade, “bringing the concept of sustainability into new and more profound significance as an integrative policy tool that links human and environmental health” (Marsden, Morley, 2014, p. 14). Todavia, essa dimensão territorial, nem sempre é definida apenas pela relação de proximidade (Maluf, Luz, 2016). Conforme Bricas (2017), a quilometragem percorrida pelos alimentos tem uma contribuição relativamente marginal na sua pegada ecológica, já que os modelos de produção e transformação são os principais responsáveis por contaminações e consumo de recursos naturais, além de que nem todas as regiões conseguem produzir os alimentos necessários à sua população, por motivos agronômicos (clima, tipo de solo, disponibilidade de terras) ou demográficos (ambientes muito populosos).
11Mais recentemente, com a pandemia de Covid-19, observamos um aceleramento do processo de incorporação da digitalização aos sistemas alimentares que já vinha ocorrendo desde antes, pela intensificação do uso das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), acarretando no desenvolvimento dos chamados mercados digitais (Niederle et al, 2021). Diversas iniciativas de SAS já vinham se expandindo para espaços virtuais ou se organizando a partir deles, porém alguns fatores da crise sanitária catalisaram esse processo, como a supressão de fluxos, a suspensão das feiras livres, e até barreiras físicas nas estradas (Gazolla, Aquino, 2021). Para Bos e Owen (2016), a ideia de reconexão se estende para além do domínio material e envolve para espaços virtuais emergentes de interação social, participação e troca, processo que chamam de virtual reconnection. Apesar do seu potencial, Gazolla e Aquino (2021) constatam a falta de publicações sobre mercados digitais voltados para SAS nos estudos rurais brasileiros. Destacam, também, que as iniciativas de SAS ancoradas em ferramentas digitais podem
construir novas formas de interação entre produção e consumo, mediante o resgate da procedência e da identidade dos produtos, assentada não apenas em critérios de preço, mas também em valores sociais, princípios e significados simbólicos, culturais, éticos e ambientais (Gazolla, Aquino, 2021, p. 431).
12O potencial dessa modalidade de comercialização depende, no entendimento dos autores, da capacidade de “construção social de mercados e canais de comercialização dos agricultores familiares com os diferentes atores sociais atuantes no sistema alimentar, desde intermediários, indústrias, varejistas, consumidores, entre outros” (Ibid., p. 430).
13Nesse sentido, a estrutura do comércio varejista influencia no peso dos circuitos de comercialização e nas oportunidades comerciais dos agentes de menor porte, que sofrem dificuldades para acessar as grandes redes de varejo e de atacado. A oligopolização da distribuição alimentar tem se aprofundado a tal ponto que, em 2020, as dez maiores empresas varejistas concentravam 38% das vendas no país (Abras, 2021). Essa tendência tem contribuído para ligar os sistemas de abastecimento urbano aos circuitos próprios das grandes redes de distribuição varejista e atacadistas. Sob o efeito da ampliação socioespacial e da concentração econômica dos mercados, os atores e os circuitos de abastecimento de produtos frescos de pequeno porte foram profundamente desestruturados e perderam a sua influência (Belik, Cunha, 2015). Paralelamente, atores públicos do atacado como os CEASA, que tinham um papel importante na comercialização de produtos da agricultura familiar, viram sua influência sobre a produção local se esvair à medida em que foram atribuindo mais espaço às grandes empresas. No CEASA do Rio de Janeiro, em particular, apenas uma pedra é reservada para os produtores locais de hortifrutigranjeiras.
14Para os pequenos agricultores, as oportunidades de comercialização são reduzidas à medida que os mercados de rua ou as pequenas mercearias perdem espaço e que os mercados institucionais, como o PAA e o PNAE, são esvaziados. Diante da reestruturação da distribuição pelo setor privado que favorece os provedores de grande porte, e frente ao esvaziamento das políticas públicas voltadas para a comercialização dos produtos da agricultura familiar e para a alimentação nos últimos anos, o acesso aos mercados para produtores e transformadores de pequeno porte parece mais ligado à existência de nichos que valorizam atributos particulares (Wilkinson, 2008; Belik, Cunha, 2015), dentre os quais, a saúde, a conservação ambiental e a justiça social. Os produtos agroecológicos são uma dessas alternativas (Sencébé et al., 2020) e seu crescimento tem sido constante desde a década de 1990, tanto na distribuição em massa quanto nas suas margens. De um lado, grandes grupos conquistaram desde cedo esse mercado crescente e, de outro, cooperativas e outros atores intermediários têm trabalhado para estruturar áreas especializadas de produção como, por exemplo, a região metropolitana de São Paulo. Para além dos movimentos militantes, os supermercados têm desempenhado um papel central na “conversão” dos consumidores para produtos orgânicos (Guivant, 2009) sem, no entanto, permitir a entrada de produtos mais locais ou oriundos de pequenas estruturas de produção, nem abastecer com esses produtos os bairros com menor poder aquisitivos. Nas áreas de baixa renda, os produtos orgânicos ou agroecológicos permanecem ausentes das gôndolas dos supermercados.
15Parte da alternativa pode estar em ações pragmáticas que aproximem consumidores e produtores e desenvolvam soluções organizacionais e logísticas que possam contribuir para um melhor acesso ao mercado. Assim, em última análise, os produtos orgânicos reforçaram a sua difusão nas casas por meio do comércio eletrônico e das entregas de cestas (David, Guivant, 2020). Essas formas de comercialização, se é que existem desde o início dos anos 2000, ganharam maior audiência e os modelos econômicos se diversificaram, com um novo salto em função da pandemia de Covid-19. Frente ao enfraquecimento dos mercados institucionais no Brasil, as vendas online têm oferecido novas linhas de reflexão às pesquisas voltadas para a comercialização dos produtos da agricultura familiar e para os mercados de produtos orgânicos.
Comercialização por plataformas digitais independentes no Rio de Janeiro: quais sustentabilidades?
16Diante da especificidade do sistema de abastecimento e do modus operandi das vendas online realizadas por grandes redes varejistas, esse tipo de agente foi excluído da pesquisa, pois seria necessário um dispositivo de coleta e de análise de dados próprio, além de ser pouco propício à inclusão socioeconômica do pequeno e médio produtor. A partir desse recorte, uma primeira fase da pesquisa voltou-se para a identificação e o levantamento de iniciativas privadas de comercialização digital de alimentos na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 2021 e 2022, que sejam alternativas às grandes redes de varejo, e que tivessem um posicionamento explícito em direção à sustentabilidade.
Recenseamento e caracterização das iniciativas de comercialização digital sustentável no Rio de Janeiro
17Para a construção da amostra, partiu-se de iniciativas mais conhecidas no campo dos mercados digitais de alimentos sustentáveis. De forma similar à utilizada por Gazolla e Aquino (2021) ao tratarem de experiências da agricultura familiar no comércio digital na escala nacional, pesquisou-se em ferramentas de busca com associação de expressões como “rio de janeiro”, “entrega de comida”, “entrega alimentos”, “entrega cestas”, “venda alimentos”, “sustentável”, “agroecológica”. Além disso, uma das autoras participava de grupos com organizadores de redes alimentares alternativas, vendas de cestas e afins que indicaram outras iniciativas. Utilizou-se o método de indicação sucessiva, até alcançar-se uma amostra o mais completa possível e até não conseguirmos indicações de novas referências. Apenas aquelas que se afirmavam sustentáveis em suas plataformas de divulgação foram selecionadas. Alguns exemplos de discurso observados nos sites e redes sociais foram: “Integra a chamada economia solidária”, “promove a agroecologia”, “favorecendo a colaboração e a amizade”, “Comida boa, local e justa” “Do campo para a sua mesa”, dentre outros.
18Não é possível avaliar o grau de exaustividade dessa amostra, mas acreditamos, a partir das conversas e trocas de informações com contatos, assim como com consumidores e ativistas engajados em circuitos de comercialização alternativos, que alcançamos uma parte substancial das iniciativas existentes na cidade. Em sequência, a partir dos sites, perfis e redes sociais das iniciativas levantadas, classificamos cada caso conforme os agentes que lideram a sua organização. O Quadro 1 apresenta o conjunto das iniciativas identificadas.
Quadro 1: Iniciativas de mercados digitais sustentáveis na cidade do Rio de Janeiro, por principal tipo de agente organizador
Iniciativas de comércio digital sustentáveis |
||
Principal agente organizador |
||
Produtor ou associação de produtores |
Intermediário |
Consumidores |
Ni Orgânicos |
Armazém Vegetal |
Organicamente CSA |
Demedeiros Orgânicos |
Cesta Circuito Local |
Rede Ecológica |
Dr. Cogumelo |
Reserva Botânica e Amigos |
|
Escolha Orgânica |
Clube Orgânico |
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Magé Agro Familiar |
Comida da Gente |
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MicroVerdes da Igreja |
É Coisa Bio |
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Raízes do Brasil |
Escolha Orgânica |
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Roça Urbana Orgânicos |
Faz a Feira |
|
Sítio da Vaquinha |
HortaMix Orgânicos |
|
Sítio do Moinho |
Junta Local |
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Terra Crioula |
Meu Amigo Tem Um Sítio |
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Cestas FOAGUA |
Orgânicos da Fátima |
|
|
Orgânicos do Rio |
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Orgânicos In Box |
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Orgânicos Veio da Roça |
|
|
Pamaru |
|
|
Armazém do Campo |
|
|
Rede I-Tal |
|
Fonte: Autoras, a partir de levantamentos em campo, 2022
19Para cada uma, procuramos informações complementares a respeito do seu funcionamento (papel do agente organizador, modalidades de encomenda e entrega, objetivo principal, fixação do preço, interface de comunicação) através dos seus veículos de comunicação e de contato direto com os seus integrantes. Os circuitos podem estar mais ou menos inseridos em redes militantes, pilotadas a montante ou a jusante. Existem desde iniciativas de venda direta de produtores familiares, outras elaboradas por comerciantes independentes que se abastecem junto aos produtores, a grupos de consumidores organizados para efetuar compras coletivas ou em Comunidades que Sustentam a Agricultura – CSAs. Podem vender via plataformas de marketplace, sites próprios, e/ou por redes sociais, como o WhatsApp e o Facebook. O conjunto de informações para cada um dos 32 circuitos embasou a elaboração de uma síntese das configurações encontradas (Quadro 2).
Quadro 2: Síntese dos perfis de mercados digitais de alimentos no RJ
Ator |
Funcionamento |
Lucratividade como objetivo central |
Interface e comunicação |
Exemplo |
Grupo de consumidores |
Compra coletiva com teor militante. Entrega regular de produtos secos e/ou frescos. Todos os membros assumem compromissos junto ao coletivo (tarefas, engajamento etc.). |
Não |
Redes sociais; formulário online |
Rede Ecológica |
Intermediário |
Agrupa pedidos para negociar preços vantajosos e acessar fornecedores às vezes distantes. Sem ponto de venda físico. Cobra uma comissão por cada entrega. |
Sim ou não |
Redes sociais; formulário online ou site |
Comida da Gente |
Intermediário |
Morador do campo entrega produtos de sua vizinhança, desde que atinja um limite mínimo de pedidos. Não se restringe apenas aos orgânicos. |
Sim |
Redes sociais; formulário online |
Cesta camponesa Serramar |
Intermediário |
Plataforma especializada na entrega de produtos orgânicos. |
Sim |
Redes sociais; formulário online ou site |
Meu Amigo Tem Um Sítio |
Organização de produtor(es) |
Loja de produtor; oferece um serviço de entrega online. |
Sim |
Redes sociais; formulário online |
Raízes do Brasil |
Produtor ou associação de produtores |
Produtores se apoiam em sua rede de clientes das feiras para lançar um sistema de entrega de cestas. |
Sim |
Redes sociais; formulário online |
Cesta Orgânica Pedras Altas |
Fonte: Autoras, a partir de levantamentos em campo, 2022.
20Uma primeira constatação é a grande diversidade de práticas e de organização, que levou à construção de seis perfis distintos. Uma segunda observação, que contrasta com outros estudos feitos no país (Gazolla e Aquino, 2021; Niederle et a., 2021), é a ausência de cooperativas de produtores ou da intermediação do Estado, reflexo da baixa adesão ao cooperativismo e do baixo enquadramento público na agricultura do estado do Rio de Janeiro. Vale ressaltar, ainda, que quando os circuitos são organizados por agricultores e suas associações, estes costumam recorrer à complementação da sua oferta com produtos comprados de terceiros, geralmente vizinhos ou conhecidos, mais raramente atravessadores. Dessa forma, por mais que eles comercializem prioritariamente sua própria produção, assumem também um papel de intermediário. No Quadro 2, constam como produtores ou organizações de produtores. Além disso, quase todos os circuitos pesquisados registraram uma alta significativa das suas atividades de entrega durante a pandemia de Covid-19. Parte deles foi, inclusive, criada nesse período, em particular aqueles liderados por produtores prejudicados pelas medidas de distanciamento social. As dificuldades econômicas os levaram a voltar-se para vendas online, incentivados pela facilidade de organização de pequenos circuitos graças a grupos de WhatsApp, Facebook e de questionários online.
21Por serem mais numerosas na amostra, conforme o Quadro 2, e por constituírem um ponto cego das pesquisas sobre SAS (Faliès, Hulot, 2022), selecionamos as iniciativas cujo principal agente organizador fosse um intermediário para realizar entrevistas semiestruturadas. Destas, dez aceitaram responder.
22Os temas abordados na seção 1 nortearam a formulação do roteiro de entrevista e a sua análise. Todas foram gravadas e transcritas. Procurou-se entender como as iniciativas mobilizam as relações entre campo-cidade, em especial do ponto de vista da proximidade espacial, da proximidade social e da justiça social. As perguntas visavam, ainda, a colocar em perspectiva, de um lado, os princípios ressaltados como sustentáveis nos seus materiais de divulgação (sites ou perfis) com, de outro lado, as suas práticas reais. Através das perguntas, procurava-se compreender a origem das iniciativas; de que forma põem em prática o seu discurso sustentável, tanto no sentido ambiental (tratamento de resíduos, desperdício, pegada ecológica de suas entregas), como no sentido social (de que forma praticam a (re)conexão, número de intermediários, como fixam os preços). Avaliou-se o tipo de produtos alimentares comercializados, bem como elementos práticos da organização (a escala em que operam, sua espacialização, de onde vêm os produtos e onde os vendem, canais e formas de venda). As informações obtidas são restituídas e discutidas na seção seguinte.
Posicionamento e atuação de circuitos liderados por intermediários comerciais
23A partir das transcrições, os principais dados foram organizados em tabelas (Quadros 3 e 4). Informações sobre o tempo de funcionamento, as modalidades de comercialização e a comunicação de cada iniciativa a respeito dos seus produtos são apresentadas no Quadro 3. Um primeiro elemento é que todas essas iniciativas surgiram nas últimas duas décadas, tendo sido a mais antiga originada em 2009, o que converge com o que a literatura afirma, de que esses mercados digitais de alimentos representam um fenômeno recente. Além disso, todas, à exceção do caso 10, já existiam antes da pandemia, padrão que também ocorreu no levantamento de Gazolla e Aquino (2021) que ressaltam que, nesse período, o uso dessas plataformas foi intensificado para o escoamento da produção.
24A grande maioria utiliza as redes sociais e plataformas ou aplicativos para distribuir a lista de produtos disponíveis e receber encomendas. Os sites, quando existem, são utilizados principalmente para fornecer informações práticas sobre o funcionamento do circuito e direcionar os potenciais clientes para as redes sociais, onde terão acesso aos formulários ou aplicativos de encomenda. Apenas alguns intermediários comerciais especializados possuem sites que permitem compras online e fornecem uma visão geral atualizada dos produtos em estoque. Elas dividem-se quanto à forma de comercialização de seus produtos, sendo as principais formas as feiras virtuais, as cestas periódicas e as compras coletivas.
Quadro 3: Princípios da sustentabilidade e modalidades de organização em 10 iniciativas de venda online de alimentos no RJ
Nº |
Ano de origem |
Principal agente organizador |
Canal / Interface |
Forma de venda |
Termos associados aos produtos |
1 |
2014 |
Intermediário |
Site, Feira física |
Feira virtual |
Orgânicos, agroecológicos, certificados, processados, veganos |
2 |
2019 |
Intermediário |
WhatsApp, Plataforma Faz a Feira |
Cesta periódica |
Orgânicos, agroecológicos, frescos, certificados, PANCs, processados |
3 |
2020 |
Intermediário |
Plataforma marketplace gratuita |
Feira virtual |
Orgânicos, agroecológicos, artesanais, processados |
4 |
2015 |
Intermediário |
WhatsApp, Site, Formulário online |
Compra coletiva |
Dietéticos, sem glúten, saudáveis, processados, orgânicos |
5 |
2009 |
Intermediário |
WhatsApp, Site; Formulário online |
Cesta periódica |
Orgânicos, agroecológicos |
6 |
2013 |
Intermediário |
|
Compra coletiva |
Orgânicos, naturais, agroecológicos, processados |
7 |
2015 |
Intermediário |
Site, WhatsApp |
Cesta periódica |
Orgânicos, frescos, sazonais |
8 |
2013 |
Intermediário |
Site, WhatsApp |
Feira virtual, Cesta periódica |
Orgânicos, frescos, certificados, processados |
9 |
2016 |
Intermediário |
Site |
Feira virtual |
Orgânicos, agroecológicos, frescos, certificados |
10 |
2020 |
Intermediário |
Site, WhatsApp |
Feira virtual, Cesta periódica |
Veganos, naturais, processados |
Fonte: entrevistas e meios de comunicação das iniciativas, 2023.
25Observando os tipos de produtos comercializados, nota-se uma variabilidade de iniciativa para iniciativa. Assim como observado por Gazolla e Aquino (2021) a nível nacional, na escala da cidade do Rio de Janeiro, algumas iniciativas restringem a sua comercialização a produtos frescos locais, ecológicos, agroecológicos, orgânicos e valorizam questões ligadas à saúde, ao meio ambiente e à reconexão com os produtores e a natureza (produtos sazonais). Outros circuitos abrangem também produtos processados especializando-se em alimentos sem glúten, dietéticos e veganos, comunicando sobre aspectos colaborativos ou justos do comércio que promovem, além da saúde. Os certificados e selos são presentes em todos os circuitos entrevistados, uma vez que garantem certa confiança e permitem que os consumidores averiguem a origem dos produtos na cadeia produtiva e chequem os processos de produção, levando informação da produção até o consumo. Para reforçar esse aspecto, muitos circuitos divulgam informações sobre os produtores, os locais de produção, os princípios e valores defendidos pelas indústrias de transformação, tentando criar laços e afetos apesar da ausência de encontros reais com os consumidores. As redes sociais são utilizadas para divulgar essas informações, pela disponibilização de imagens e depoimentos dos produtores nos sites, ao lado de cada produto ou na aba relativa a um produtor. Em alguns casos, mensagens são enviadas diretamente para os consumidores, mostrando o processo de produção e contando suas histórias, de forma a adensar essa atmosfera de confiabilidade. O meio digital oferece, nesse sentido, um modo complementar de fomentar a rastreabilidade e o sentimento de confiança.
26A seguir, o Quadro 4 traz informações sobre as escalas e os espaços de atuação das iniciativas entrevistadas, que remetem ao princípio de sustentabilidade ligado à proximidade espacial entre agentes do circuito e à acessibilidade desses mercados para o consumidor e o produtor. Em relação à escala de atuação das iniciativas, a maioria é organizada em canais curtos de comercialização, tanto pelo número de agentes envolvidos entre a produção e o consumo, como pela distância percorrida para o alimento chegar ao seu destino final. A fração maior das experiências analisadas é composta por produtores da cidade do Rio de Janeiro, da região serrana próxima à região metropolitana ou, no máximo, por alguns poucos produtores de São Paulo e Minas Gerais, restringindo-se às escalas local e regional, principalmente se tratando de produtos frescos. Sempre que possível, os agentes organizadores adquirem os alimentos diretamente do produtor ou da agroindústria, recorrendo a intermediários, atravessadores ou a fornecedores mais afastados para complementar a oferta local.
Quadro 4: Escalas e áreas de atuação de 10 iniciativas de venda online de alimentos na cidade do Rio de Janeiro
Nº |
Espacialização (proveniência dos produtos) |
Sede |
Locais de entrega |
Responsável pela entrega |
1 |
Regional |
Rio de Janeiro, Botafogo, Zona Sul |
Rio de Janeiro, Niterói |
Iniciativa |
2 |
Local |
Rio de Janeiro, Vargem Grande, Zona Oeste |
Rio de Janeiro, Niterói |
Iniciativa |
3 |
Nacional |
Não possui |
Marketplace - depende do produtor |
Produtores |
4 |
Nacional |
Niterói, RJ |
Nacionalmente, foco no Rio de Janeiro |
Iniciativa |
5 |
Local |
Silva Jardim, RJ |
Rio de Janeiro (Zona Sul, Tijuca, Santa Teresa e arredores) |
Iniciativa |
6 |
Nacional |
Não possui |
Nacionalmente |
Produtores |
7 |
Regional |
Rio de Janeiro, Botafogo, Zona Sul |
Rio de Janeiro (Zona Sul, Zona Norte e Barra da Tijuca) |
Iniciativa |
8 |
Local |
Rio de Janeiro, Itanhangá, Zona Oeste |
Rio de Janeiro (Zona Sul, Barra da Tijuca, parte da Zona Oeste, Centro) |
Terceirizado |
9 |
Regional |
Rio de Janeiro, Benfica, Zona Norte |
Rio de Janeiro (Zona Sul, Centro, áreas da Zona Oeste e Zona Norte) |
Terceirizado |
10 |
Regional |
Rio de Janeiro, Anil, Zona Oeste |
Rio de Janeiro, Niterói |
Iniciativa |
Fonte: entrevistas e meios de comunicação das iniciativas, 2023.
27Já quanto ao raio de entrega para consumidores finais, a maioria destes se concentra no próprio município carioca, em especial na Zona Sul da cidade, ou na cidade vizinha, Niterói. Mesmo que a maioria das vendas fosse em bairros de alta renda, registrou-se uma extensão gradual da área de atuação delas em periferias mais populares, com um fluxo grande nas áreas de maior concentração de renda da Zona Oeste e Zona Norte cariocas, principalmente Barra da Tijuca, Jacarepaguá e Tijuca, mas também no município de São Gonçalo, na região metropolitana. As iniciativas são compostas, portanto, de mercados de proximidade social e espacial, respectivamente caracterizados por cadeias curtas alimentares, nested markets, e por mercados regionais (Gazolla, Aquino, 2021), quando eventualmente alguns produtos específicos são trazidos de outro estado ou região, como o queijo canastra. As exceções são as iniciativas 3 (marketplace que atua em todo o país), 4 e 6 (intermediários que organizam compras colaborativas), que envolvem produtores e consumidores de todas as regiões do Brasil, alcançando a escala nacional.
28No que tange à modalidade da entrega, a maior parte das iniciativas se responsabiliza por essa etapa. Em algumas exceções, a entrega é terceirizada para um entregador ou deixada sob responsabilidade dos próprios produtores e/ou consumidores. Por motivos logísticos, as entregas costumam ter dia marcado, o que permite ao intermediário reunir os produtos em um só lugar que raramente tem essa finalidade exclusiva (local emprestado, feira de rua, galpão), para que então fossem feitas as entregas, algumas em formato de cestas. É nesses pontos físicos que, em muitos dos casos, a (re)conexão se faz mais perceptível, já que neles os consumidores podem encontrar presencialmente os intermediários e, eventualmente, os produtores, caso optem por dispensar a entrega domiciliar, e trocarem informações sobre os processos produtivos.
29Um aspecto pouco abordado da sustentabilidade é a capacidade dos circuitos de comercialização alternativos terem uma durabilidade econômica para oferecer relações e mercados estáveis, tanto para o produtor quanto para o consumidor. O acompanhamento da amostra converge com o que outros autores apontam quanto às vulnerabilidades e riscos do processo de digitalização já que, em 2023, pelo menos oito das iniciativas identificadas dois anos antes encerraram suas atividades ou estão suspensas (sem atividade há meses). Dentre a mesma amostra, uma outra foi incorporada a uma plataforma de comercialização de orgânicos de grande porte, que também compõe a lista do Quadro 1.
Sustentabilidade, re-conexões e seus limites na prática: elementos para a discussão
30De maneira geral, os 32 circuitos identificados procuram comercializar produtos alimentares com fortes distinções, sejam elas ambientais, éticas e/ou sociais, que evocam sustentabilidade ou saúde e que mobilizam engajamento com causas sociais. As características dos produtos oferecidos servem, junto com certas práticas próprias a cada circuito, para diferenciar-se dos sistemas agroalimentares convencionais (Bos, Owen, 2016). Mobilizam argumentos que mesclam, em diversos graus, posicionamentos inscritos no que Niederle e Wesz Jr. (2018) designam como as ordens doméstica (proximidade com o produtor familiar e o campo, produtos artesanais), cívica (comércio justo, preocupação conjunta com meio ambiente, bem-estar animal e saúde, acessibilidade) e estética (pequeno produtor idealizado através de fotografias e mensagens bucólicas, particularismos nutricionais e regimes seletivos). Todas se destacam por apresentarem críticas ao sistema alimentar e por carregarem alternativas que são, em vários aspectos, mais sustentáveis, eventualmente com propostas radicais.
31O foco dado aos intermediários permite desvendar o papel específico desses agentes na implementação de circuitos de comercialização alternativos, acessíveis e que estabelecem relações diferentes entre os seus agentes. Representamos graficamente uma síntese das características de sustentabilidade de 10 iniciativas entrevistadas lideradas por intermediários. As informações transcritas foram organizadas em torno de 4 variáveis que traduzem princípios de sustentabilidade que se adequam mais especificamente à atuação dos agentes intermediários: proximidade espacial entre produção e consumo; proximidade social produtor-consumidor; proximidade social produtor-intermediário; implementação, na prática, dos princípios de sustentabilidade a respeito dos quais comunicam nas plataformas de venda. As informações qualitativas obtidas foram traduzidas em uma pontuação em uma escala de 1 (não atende) a 5 (atende perfeitamente) para cada variável, representadas em gráficos radar (Figura 1).
32Os gráficos obtidos evidenciam dois perfis distintos. O primeiro, que reúne 4 iniciativas, é mais distante de práticas sustentáveis. Instaura distâncias geográficas e sociais maiores, com mais intermediários e práticas menos fiéis aos princípios de sustentabilidade originalmente estabelecidos. O produtor não tem um lugar muito diferenciado nem nas suas relações com o intermediário (negociação do preço, negociações sobre os produtos, …) nem com o consumidor, que não tem acesso a ele. Nesse perfil, motivações econômicas ou de praticidade operacional podem, por exemplo, se tornar proeminentes no processo organizacional e decisório, e se impor em detrimento de aspectos de sustentabilidade reivindicados. O Perfil 2, por sua vez, assegura uma interface que permite maior interação e envolvimento dos consumidores e dos produtores na cadeia. Ele promove uma gestão mais direta da informação, como a divulgação da origem dos produtos, além de adotar práticas de sustentabilidade mais afirmativas, a exemplo de uma preocupação com a fixação de um preço justo e com o que ocorre com os resíduos gerados. A proximidade espacial contribui, nesses circuitos, ao estabelecimento das demais proximidades e condiz com uma forte adesão aos quatro princípios de sustentabilidade.
33Por mais que existam estratégias de abastecimento que ultrapassam o entorno do Rio de Janeiro, a ancoragem dos circuitos liderados por intermediários em escalas local ou regional parecem ser favoráveis à uma atuação sustentável. Esse resultado vai ao encontro das abordagens que relacionam a sustentabilidade à uma necessária reterritorialização dos sistemas alimentares. Longe de instaurar o anonimato e a desmaterialização, as ferramentas digitais têm, pelo contrário, contribuído para uma (re)conexão entre agentes que dependiam, anteriormente, de espaços comerciais convencionais para se relacionar. Além de tornar os produtores mais palatáveis aos consumidores, contribuem ainda para divulgar informações sobre a origem social e espacial dos alimentos, sobre os processos de produção e princípios extra econômicos que embasam as relações entre agentes do circuito. Os conhecimentos sobre imperativos, necessidades e esperanças dos demais agentes contribui para uma melhor compreensão do funcionamento do circuito, auxiliando ao estabelecimento de uma confiança para além dos selos e certificações dos produtos. Autores como Conceição e Schneider (2019) apontam as potencialidades nos mercados digitais para fomentar a transparência e a governança informacional ou, ainda, uma melhor eficiência logística. A facilidade de acesso às ferramentas digitais mais simples aponta nessa direção e facilita, nas iniciativas estudadas, o acesso ao mercado.
34Outros (Niederle et al., 2021), por sua vez, destacam as vulnerabilidades dos mercados digitais de alimentos, e apontam que reproduzem as desigualdades e as dificuldades já existentes nos sistemas alimentares. Parte dos resultados apresentados evidenciam tal risco. As iniciativas que usam as ferramentas digitais mais acessíveis (WhatsApp, questionário simples, facebook) alcançam um tamanho crítico acima do qual não conseguem ampliar o volume das vendas, nem o número de agentes que abrangem. Acima de um certo limite de clientes e de fornecedores, a gestão de dados se torna inviável sem um mínimo de automação, de formalização da interface, e de apoio logístico. Talvez, portanto, as dificuldades de acesso aos mercados digitais não sejam tanto barreiras para se inserir neles, mas para ultrapassar barreiras técnicas e de custos operacionais que permitam ganhar um porte maior e conseguir alguma representatividade na oferta local de alimentos. Esses resultados condizem com outras pesquisas sobre mercados digitais que apontam que os custos relativos à construção e manutenção de sites (Gazolla, Aquino, 2021) tornam necessário algum nível de organização coletiva (Belik, 2020), como as cooperativas ou as colaborações com ONGs. No Rio de Janeiro, essas limitações podem se tornar mais excludentes ainda devido à marginalidade do cooperativismo. A ausência de políticas públicas voltadas para mercados digitais de produtos da agricultura familiar ou para pequenos intermediários reforça essa vulnerabilidade e pode explicar, em alguma medida, o desaparecimento de diversas iniciativas em poucos anos.
Conclusão
35Após uma reflexão sobre aspectos que favorecem a sustentabilidade do sistema alimentar, em particular do ponto de vista da distribuição, e sobre a potencial contribuição de instrumentos digitais de comercialização, apresentamos dados empíricos para a cidade do Rio de Janeiro. O comércio digital se mostra favorável à inclusão de produtores e consumidores, assim como permite interações entre os atores que antes, nos mercados físicos, ocorriam apenas pela co-presença em espaços físicos. As ferramentas digitais potencializam um estreitamentos das relações entre campo-cidade por meio de uma maior transparência sobre os produtores e as condições de produção, sobre as dificuldades enfrentadas pelos agentes intermediários e abrem, ainda, mais margem para construir circuitos que correspondam a princípios cívicos, ecológicos e econômicos compartilhados. Dessa forma, esse conjunto traça um possível caminho para uma reconexão cidade-campo e uma reapropriação do sistema alimentar pelos seus integrantes, produzindo uma reconciliação de aspectos desfeitos pela ruptura metabólica.
36A inclusão digital é explorada por produtores que, anteriormente, dependiam exclusivamente de terceiros para a sua comercialização. Os agentes intermediários, que representam um nó da difusão e ampliação de circuitos alternativos, conseguem implementar e manter práticas condizentes com os princípios de sustentabilidade, mesmo que de forma variada e, por vezes, flexível, graças ao uso das ferramentas digitais.
37Sob a escala da cidade do Rio de Janeiro, no entanto, tais iniciativas parecem ainda pouco numerosas e pouco significativas em relação ao tamanho do mercado urbano. Seu desenvolvimento parece estar freado por dificuldades técnicas e logísticas de manter circuitos de maior porte junto com a infraestrutura digital correspondente. Mesmo que a falta de um acompanhamento institucional possa explicar parte da situação no contexto carioca, as iniciativas permanecem na sua maioria de pequeno porte, com dificuldade para ampliar a sua capilaridade na cidade, inclusive para agentes intermediários especializados. Se esse modelo de pequenos circuitos paralelos, com raio de atuação local a regional, é apontado na literatura como favorável à sustentabilidade alimentar, podemos interrogar a sua capacidade de se multiplicar a ponto de constituir um real contrapeso aos circuitos convencionais. Os resultados obtidos nos parecem reforçar a necessidade de voltar uma maior atenção para os agentes intermediários, sem os quais sempre faltará um elo de conexão entre políticas alimentares e políticas agrícolas voltadas para a sustentabilidade.
38Abras Brasil, Superhiper, 47/537, jun 2021, URL: https://superhiper.abras.com.br/pdf/270.pdf.
39Belik, W. Editorial: sustainability and food security after Covid-19: relocalizing food systems? Agricultural and Food Economics. [s.l.], 2020.
40Belik, W., Cunha, A., Abastecimento no Brasil: o desafio de alimentar as cidades e promover o desenvolvimento rural. In Grisa, C., Schneider, S. (org.), Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2015.
41Bricas, N., Relocaliser: une fausse bonne idée? Urbanisme, 405: 33-35, 2017. URL: https://www.urbanisme.fr/debat/relocaliser-une-fausse-bonne-idee/.
42Bos, E.; Owen, L., Virtual reconnection: the online spaces of alternative food networks in England. Journal of Rural Studies, v. 45, p. 1-14, 2016.
43Conceicao, A. F.; Schneider, S. Internet e agricultura familiar: algumas percepções sobre as mudanças no meio rural. Margens, v. 13, p. 59, 2019.
44Corade N., Lemarié-Boutry M., Maréchal K., Noel J., Les systèmes alimentaires et agricoles territorialisés : des leviers vers la transition ?, Économie rurale, 382, out.-dez. 2022URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/economierurale/10548
45David M. L., Guivant J. S., Além dos supermercados: novas estratégias no mundo dos alimentos orgânicos no Brasil. Florianópolis: Política & Sociedade, 19 (44) Jan./Abr. p. 87-116, 2020.
46Dicks, H., Les injustices écologiques et sociales liées à la rupture métabolique entre la ville et la campagne: l’exemple des eaux usées. In Bertrand, A. (org.), Justice Écologique, Justice Sociale. Paris: Editions Victoires, 2015.
47Elias, L. de P., Belik, W., Oderich, E. H., A construção de um sistema alimentar sustentável e a agricultura familiar. Santa Cruz do Sul: Desenvolvimento Regional: Processos, Políticas e Transformações Territoriais, 2019.
48Faliès, C., Hulot, M., Pour une approche intégrée des systèmes alimentaires. EchoGéo, 60, 2022. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/echogeo/23579
49FAO, Sustainable Food Systems – Concept and Framework. Roma: FAO, 2018.
50Favarão C.B., Favareto A., Abordagem sistêmica, coalizões e territórios: contribuições teóricas para a análise das transições sustentáveis em sistemas agroalimentares. Raízes: Revista De Ciências Sociais E Econômicas, 41(2), 2021, 164–185. https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.37370/raizes.2021.v41.737
51Foster, J. B., Magdoff, F., Liebig, Marx and the depletion of soil fertility: Relevance for today's agriculture. In Foster, J. B., Magdoff, F. (org.), Hungry for Profit. Nova York: Monthly Review Preview, 2000.
52Fouilleux, E., Standards volontaires : entre internationalisation et privatisation des politiques agricoles. In : Hervieu Bertrand (ed.), Mayer Nonna (ed.), Muller Pierre (ed.), Purseigle François (ed.), Rémy Jacques (ed.). Les mondes agricoles en politique : de la fin des paysans au retour de la question agricole. Paris : Presses de Sciences Po, 2010.
53Gazolla, M., Aquino, J. R., Reinvenção dos mercados da agricultura familiar no Brasil: a novidade dos sites e plataformas digitais de comercialização em tempos de Covid-19. Rio de Janeiro: Estudos Sociedade e Agricultura, 427, 29(2), 2021.
54Guivant J. S., O controle de mercado através da eco-eficiência e do eco-consumo: uma análise a partir dos supermercados. Florianópolis: Política e Sociedade, 8 (15), p. 173-198, 2009.
55HLPE, Food losses and waste in the context of sustainable food systems. A report by the High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition of the Committee on World Food Security. Roma: FAO, 2014.
56Lamine C., “Changer de système”: une analyse des transitions vers l’agriculture biologique à l’échelle des systèmes agri-alimentaires territoriaux. Terrains et Travaux, n. 20, p. 139-156, 2012.
57Maluf, R. S., Luz, L. F. da, Sistemas alimentares descentralizados: um enfoque de abastecimento na perspectiva da soberania e segurança alimentar e nutricional. Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura - OPPA, 2016.
58Marsden, T., Morley, A., Current food questions and their scholarly challenges. In Marsden, T., Morley, A. (org.), Sustainable Food Systems - Building a New Paradigm. New York: Routledge, 2014.
59McClintock, N., Why farm the city? Theorizing urban agriculture through a lens of metabolic rift. Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, 2010.
60Niederle, P., Schneider, S., Tonin, J., Denardi S., Salapata J., Gazolla M., Preiss P., Conterato M., Schubert M., Grisa C., Inclusão produtiva por meio de mercados alimentares digitais: desafios para a construção de estratégias cooperativas solidárias, In Niederle P., Schneider S., Cassol A. (org.), Mercados alimentares digitais. Inclusão produtiva, cooperativas e políticas públicas. Porto Alegre: Ed. da UFRGS. p. 25-66, 2021.
61Niederle, P., Wesz, V. Jr., As novas ordens alimentares. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2018.
62Rastoin, J. L., Ghersi, G., Le système alimentaire mondial. Concepts et méthodes, analyses et dynamiques. Paris: Editions Quæ, Synthèses, 2010.
63Reardon T., Berdegué J., La rápida expansión de los supermercados en América Latina: desafíos y oportunidades para el desarrollo. Revista del Departamento de Economía. Pontificia Universidad Católica del Perú, vol. XXV, n° 49, 2002, p. 85-119. URL : https://revistas.pucp.edu.pe/index.php/economia/article/view/943
64Renting, H., Marsden, T., Banks, J., Compreendendo as redes alimentares alternativas: o papel de cadeias curtas de abastecimento de alimentos no desenvolvimento rural. In Gazolla, M., Schneider, S. (org.), Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017.
65Sabourin, E., Grisa, C., Maluf, R. S., Eloy, L., Abordagens em termos de sistemas alimentares e território no Brasil. In Grisa, C., Sabourin, E., Ludivine, E. Maluf, R. S. (org.), Sistemas alimentares e territórios no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS,, 2022.
66Sencébé, Y., Pinton F., Cazella, A. A., On the unequal coexistence of agrifood systems in Brazil. Review of Agricultural, Food and Environmental Studies. 101, p. 191–212, 2020.
67Wilkinson J., Mercados, redes e valores. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 213 p., 2008.
Notes
1 Essa pesquisa beneficiou-se do auxílio para iniciação científica do CNPq e da UFRJ. As autoras agradecem a Thainá dos Santos Ribeiro pela sua contribuição no levantamento de informações para o recenseamento inicial
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Titre | Figura 1: Dois perfis de atuação dos intermediários em relação à sustentabilidade no RJ |
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Crédits | Fonte: Autoras, a partir de entrevistas, 2022. |
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Pour citer cet article
Référence électronique
Júlia Izecksohn et Ève Anne Bühler, « Conectando cidade e campo: o papel dos mercados digitais na construção de sistemas alimentares sustentáveis no Rio de Janeiro », Confins [En ligne], 59 | 2023, mis en ligne le 30 juin 2023, consulté le 08 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/52436 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/confins.52436
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