- 1 Autoras da introdução Tania Di Giacomo do Lago e Sandra Garcia. Cet article fait partie d’un dossie (...)
1Uma das características de Elza Berquó é sua convicção de que a produção de conhecimento e a intervenção intelectual, seja qual for sua natureza, têm só uma finalidade: sua apropriação pela sociedade em busca de um melhor viver coletivo. Isto é perceptível em sua participação nas conferências sociais da ONU na década de 1990, em suas pesquisas, na formação de recursos humanos e em suas publicações1.
2Sua atuação durante a Conferência de População no Cairo para colocar a regulação da fecundidade no plano dos direitos individuais, em sintonia com a agenda de lideranças feministas em todo o mundo, foi fundamental em momentos de negociação para a consagração dos direitos reprodutivos.
3Com sensibilidade nem sempre presente na demografia, ela tem procurado traduzir indicadores demográficos em expressões da vida das pessoas, especialmente das mulheres, como no texto ora apresentado.
4Um clássico da Demografia brasileira. Essa é frequentemente a referência feita ao texto “Pirâmide da Solidão?”, apresentado no Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Populacionais em 1986. Inspiração para estudos em diversos campos disciplinares, ainda encontra eco em debates acadêmicos sobre transição demográfica e mudanças nas relações de gênero. É consenso entre os estudiosos do tema que a probabilidade de casamento diminui com a idade, principalmente para as mulheres.
5Mas, a combinação das preferências de homens mais velhos por mulheres mais jovens, reflete, de um lado, a dinâmica de gênero específica em relação à idade, e de outro, as taxas de sobrevivência mais altas para as mulheres em idades mais avançadas. Berquó pioneiramente aponta para a situação de um mercado matrimonial muito desequilibrado para mulheres mais velhas.
6Em trabalho posterior, Elza introduziu os diferenciais de cor nesta análise, mostrando que as mulheres pretas se tornam sozinhas mais jovens do que as brancas e aos 60 anos apresentam a maior proporção de pessoas vivendo sós. Incidem aqui a sobre mortalidade por idade e por cor dos homens pretos e a maior proporção de casamentos entre homens negros e mulheres brancas do que o inverso, apesar da predominância de casamentos endogâmicos em todos os grupos (Berquó 1988).
7Embora estes trabalhos tenham impulsionado outros estudos denominados como “Pirâmide da Solidão” (Costa 2002 ; Alves 2014), Elza passou a intitular a representação gráfica da distribuição de pessoas vivendo sós por sexo e idade de Pirâmide dos não-casados, reconsiderando o fato de que estar só pode ser uma opção e não um fardo. (Berquó 1998).
8Sem dúvida, o reconhecimento e a relevância das experiências distintas das mulheres em suas trajetórias de vida, trazidas por estudos de cunho mais qualitativo das ciências sociais, possibilitaram problematizar, aprofundar e avançar na compreensão das singularidades e dos sentidos dos projetos femininos. Desse modo, viver só como escolha e não como ausência de par, é uma conquista social e simbólica das mulheres, uma ampliação da capacidade de decidir por múltiplos modos de viver em diferentes contextos.
- 2 Trabalho apresentado no V Encontre Nacional de Estudos Populacionais da Associação Brasileira de Es (...)
9A motivação para as considerações que aqui serão feitas2 é fruto de uma preocupação em trazer à baila questões que derivam de um exame mais minucioso do desequilíbrio numérico entre os sexos, pelas repercussões que dele podem advir, ou que já estão em marcha, na esfera do comportamento das pessoas. O excedente de mulheres prevalente em nosso meio certamente tem tido influência sobre suas possibilidades no encontre de parceiros, do sexo oposto, para uma vida a dois. Estas dificuldades, como se verá, crescem a medida em que as mulheres têm mais idade.
10Neste sentido, nosso interesse maior reside em procurar captar e compreender os mecanismos de que vêm lançando mão as mulheres, em nossa sociedade, para enfrentar esta situação.
11Nestas breves notas, entretanto, nos ocuparemos apenas do mapeamento da situação demográfica, ficando para um segundo momento a análise de entrevistas em profundidade feitas com mulheres pertencentes a vários extratos sociais e econômicos, cujo conteúdo permitirá iniciar o desenho das teias deste emaranhado que constitui as relações humanas
12Esta vontade de repensar a situação da mulher hoje em nossa sociedade quanto à suas chances e vontades de encontrar um parceiro, de viver em união, de formar uma família, de querer ser ou viver só, foi muito reforçada; medida em que crescia diante de meus olhos a Figura 1. Tratava-se de ver que proporção de mulheres encontravam-se sós, isto é, sem cônjuge (podendo ser solteiras, viúvas, desquitadas, divorciadas ou separadas) nas diferentes faixas etárias. A figura no começo era constituída apenas pelo lado direito. Este mostra que é grande esta proporção nas primeiras idades, vai diminuindo até os 35 anos, fica num platô até os 44, e a partir daí dispara a crescer, até atingir no grupo etário de 65 a 69 anos a cifra alarmante de 57%. 0 movimento de retração a partir dos 24 anos reflete evidentemente a entrada das mulheres em uniões. O platô a partir dos 30 anos revela certa saturação no mercado matrimonial pela entrada de novas coortes de mulheres mais jovens e disponíveis, além de se abrigarem nestas faixas etárias mulheres já separadas. O aumento na proporção de mulheres após os 45 anos está refletindo as que ficaram solteiras, as que se separam e as que enviuvaram.
13Aí me decidi a desenhar o lado esquerdo da Figura 1. Claro que deveria ter características distintas. Mas confesso que estava ainda assim me surpreendeu o que se passava a partir dos 30 anos de idade. É extraordinariamente menor, em todas as idades após os 30 anos, a proporção de homens que se encontravam sós. O platô que praticamente se inicia aos 35 anos e vai até os 59 está indicando. alta proporção de casados ou de recasados, e o ligeiro aumento a partir dos 60 anos é, principalmente, fruto da viuvez.
14Sob o primeiro impacto, denominei a pirâmide de “Pirâmide da Solidão”, em seguida de “Pirâmide da Solidão?”. A pesquisa que pretendo realizar, levada por esta motivação, nos dirá se estamos diante de uma poliginia disfarçada, de um celibato forçado ou decididamente, sós.
15No momento, registraremos alguns elementos demográficos que nos ajudarão a delinear o pano de fundo para o segundo ato.
Figura 1 Proporção de mulheres e de homens que se encontravam sem cônjuge ou companheiro, por faixa etária
16. A análise da composição por sexo, da população brasileira de 15 anos e mais, nas duas últimas décadas, mostra um excedente de mulheres, que cresceu com o tempo, tanto em termos absolutos quanto relativos.
|
Excedente
|
Excedente
|
|
absoluto
|
relativo
|
1960
|
359.227
|
1,018
|
1970
|
755.760
|
1,028
|
1980
|
1.118.254
|
1,032
|
- 3 YAZAKI, L.M. & ORTIZ, L.P. - Estudo da mortalidade por causas nas regiões brasileiras com base no r (...)
- 4 ORTIZ, L.P. & YAZAKI, L.M. - Evolução recente da mortalidade no Estado de São Paulo, São, Informe D (...)
17Esta situação resulta, de um lado, do fato bem conhecido de uma sobre mortalidade masculina adulta. Em 1980, as mulheres tiveram esperanças de vida ao nascer, nas cinco grandes regiões brasileiras, de 6 a 7 anos superiores às dos homens3. De outro lado, deve-se também ao aumento que este diferencial vem tendo mais recentemente no país. Por exemplo, estes mesmos autores mostraram que em São Paulo a diferença nas esperanças de vida ao nascer entre mulheres e homens, que era de 2,4 anos, em 1940, passou a 6,7 anos, em 19804. As mortes violentas, mais frequentes entre os homens, são o principal determinante desta defasagem nas taxas de mortalidade, específicas por sexo. Outra das razoes evocadas para este aumento é a queda da mortalidade feminina ligada aos aspectos da gravidez, parto e pós-parto.
18Este fenômeno, que de certa forma pode passar desapercebido porque este excedente de mulheres não está todo concentrado em uma única região ou Estado, encontra-se diluído maiormente pelas áreas urbanas do país, cuja soma chegou a atingir, em 1980, a um superavit de 2.108.470 mulheres.
19Quando se observa a situação da população brasileira de maiores de 15 anos de idade, por situação conjugal, através de dois cortes transversais. 1960 e 1980 (Tabela 1), verifica-se desde logo que nos últimos vinte anos esta composição esteve sujeita a uma impressionante regularidade no que se refere à categoria de casados e casadas. 1 De fato, esta variou de apenas 0,4%, tanto para as mulheres quanto para os homens, sendo que a proporção de casados que em 1960 era superior em 2% à de casadas. passa a 3% em 1980, ou seja, os homens continuam sendo mais favorecidos quanto ao casamento.
TABELA 1 - Estado conjugal, por sexo, em 1960 e 1980 - Brasil
|
Mulheres
|
Homens
|
|
Estado conjugal
|
1960
|
1980
|
1960
|
1980
|
Solteiras (os)
|
30,7
|
31,5
|
37,4
|
37,9
|
Separadas + Divorciadas
+ Desquitadas (os)
|
3,2
|
2,5
|
1,7
|
1,5
|
Viuvas (os)
|
8,8
|
8,1
|
2,5
|
1,8
|
Casadas (os)
|
57,3
|
56,9
|
58,4
|
58,8
|
FONTE: Censos Demográficos de 1960 e 1980, FIBGE.
20Para ambos os sexos a proporção de solteiros esteve praticamente constante entre 1960 e 1980, sendo, entretanto, esta proporção, em média, 23% mais elevada para os homens. Mais do dobro de mulheres encontrava-se, em 1980, separada, divorcia da ou desquitada, fazendo pensar ou em uma menor chance das mulheres, uma vez separadas, de voltarem a se casar, ou em uma opção voluntaria de permanecerem descasadas. Quanta à viuvez, esta proporção que era, em 1960, de 3,5 vezes maior para as mulheres, passa, em 1980, a ser de 4,5 vezes maior. A proporção de viúvos caiu de 28% no período considerado, enquanto que , foi de apenas 8% o declínio na proporção de viúvas. Estes dados refletem a mortalidade diferencial como já assinalado anteriormente. A Tabela 2 nos fornece informações sobre o “tempo” e o “quantum” da nupcialidade.
TABELA 2 - Calendário e intensidade da nupcialidade, por sexo, em 1960 e 1980, Brasil
|
Mulheres
|
Homens
|
|
1960
|
1980
|
1960
|
1980
|
Idade média ao casar
(em anos)
|
22,2
|
22,6
|
25,8
|
25,3
|
Celibato
|
8,7
|
8,1
|
6,2
|
6,1
|
21Olhando-se a questão da nupcialidade mais diretamente, do ângulo do ‘tempo’ ou do calendário, nota- se novamente uma certa regularidade na idade média ao casar, nos últimos vinte anos. As mulheres se casavam com 22,2 anos, em 1960, e, em duas décadas, esta idade média passou a 22,6 anos. Quanto aos homens, no mesmo período, a idade ao casar passou de 25,8 a 25,3. As pequenas variações na idade das mulheres e dos homens, elevando em apenas 0,4 anos a idade ao das mulheres e diminuindo de apenas 0,5 anos a dos homens, acabou por reduzir em quase um ano a superioridade da idade do homem em relação à da mulher; esta passou de 3,6 a 2,7 anos.
22Quanto a intensidade ou “quantum” da nupcialidade, observou-se também a manutenção dos níveis de celibato para os homens, que atingiu os valores de 6,2% e 6,1%, respectivamente, em 1960 e em 1980. Ou seja, por volta de 6% dos homens continuavam solteiros após os 50 anos de idade, nas duas últimas décadas. Para as mulheres, o celibato em 1960, era 29% mais elevado do que para os homens, isto 8,7% das mulheres ainda continuavam sem se casar após os 50 anos de idade. Em 1980, o celibato feminino caiu muito ligeiramente, sando a 8,1%.
23Não cabe nenhuma dúvida de que o excedente de mulheres é o maior responsável pelo menor celibato masculino. Ao contar com maiores possibilidades de escolha, os homens se casam um pouco mais tarde do que as mulheres e em maior quantidade.
24No Brasil 30% dos casais têm suas idades dentro da mesma faixa etária de 5 anos. É o que revelam as tubulações especiais do censo demográfico de 1980, quando se consideram as idades de 20.770.464 casais. Destes, em 61% a idade do homem encontrava-se em faixas etárias superiores às de suas mulheres. Corno se vê, a pauta tradicional predominante no Brasil, do homem escolher mulher mais jovem para se casar, continua presente nos dias de hoje, onde em apenas 9% dos casos as mulheres eram mais velhas do que seus esposos.
25É interessante observar como varia esta taxa geral de endogamia de 30%, quando se analisa a idade dos esposos, fixada a idade da mulher. Na Figura 2 observa-se que as taxas marginais de endogamia variam pouco e praticamente se estabilizam em torno dos mesmos 30%, . para mulheres a partir dos 35 anos. Muito embora o padrão geral do homem mais velho do que. a mulher seja sempre a situação majoritária, independente da idade da mulher, o peso relativo desta combinação e mais vigoroso para as mulheres mais jovens. Ou seja, a proporção de mulheres casadas com homens mais jovens cresce com a idade da mulher, passando de 1% a 14%. Tendo presente a dificuldade de competição da mulher mais velha com as mais jovens no mercado matrimonial, chama bastante a atenção o fato dela conseguir, proporcionalmente mais homens mais jovens quando estão mais velhas. Questões que remetem a tipos de alianças matrimoniais, posição da mulher na família, status da mulher na sociedade etc., devem fazer parte do rol de possíveis explicações para este fato, as quais, conforme nos referimos no início destas notas, deverão ser consideradas em um segundo momento deste estudo.
Figura 2 Proporção de mulheres, por faixa etária, que em 1980 se encontravam casadas com homens
260 mesmo tipo de análise, fixando-se agora a idade do esposo, revela uma situação bastante diversa da anterior. Em primeiro lugar, as taxas marginais de endogamia variam muito entre si e do valor da taxa geral de 30%. De fato, ela cresce de 20% a 67%, a- medida em que o homem se torna mais jovem. Em segundo lugar, quanto mais velho o homem, menor a proporção dos casados com mulheres mais velhas do que eles (Figura 3).
Figura 3 Proporção de homens, por faixa etária, que em 1980 se encontravam casados com mulheres
- 5 A simulação aqui feita levaria a resultados ainda mais desfavoráveis para as mulheres se fosse aind (...)
27O exercício que se segue consiste em comparar as chances que mulheres e homens de uma mesma faixa etária têm de encontrar parceiros ou parceiras para o casamento, mantidas certas condições sociodemográficas. Suponha-se uma pirâmide etária do tipo triangular de base ampla, característica de países em desenvolvimento, corne é o caso do~ Brasil. Suponha-se ainda que a composição etária seja a mesma para ambos os sexos, isto é, que sejam iguais entre si os totais de homens e de mulheres, em cada faixa etária5. Suponha-se finalmente que a escolha esteja sujeita a uma norma social que leve os homens a preferirem mulheres não mais velhas do que eles, e que conduza as mulheres a elegerem homens não mais jovens do que elas, situação presente na sociedade brasileira, conforme foi visto na sessão 4.
28Com estas características demográficas e normas sociais, estimou-se, para cada grupo etário, as chances que um indivíduo de determinado sexo teria de encontrar um parceiro do sexo oposto. Para tanto, a simulação baseou-se na real composição por idade da população masculina do Brasil, em 1980; supôs-se então a mesma distribuição etária para a população feminina. Os cálculos foram feitos supondo-se, ainda, uma situação hipotética no sentido de que no momento da escolha tudo se passasse como se todas as pessoas estivessem igualmente disponíveis.
Figura 4 Representação esquemática da disponibilidade hipotética de cada um dos sexos em relação ao outro
29A Figura 4 ilustra o que se passaria, por exemple, no grupo etário 30 a 35 anos. Na Figura 4a os 3,1 milhões de homens nesta faixa poderiam escolher mulheres em todas as faixas de 15 até 35 anos (marcadas na figura), o que corresponderia, hipoteticamente, a 23,8 milhões de mulheres. Por outro lado, os 3,1 milhões de mulheres (Figura 4b) sé teriam 13,7 milhões de homens para escolher. Obviamente, à medida em que a idade do homem se desloca para cima, na Figura 4a, isto é, ele fica mais velho, aumentam as parcelas na somatória hipotética de possibilidades. Ao contrário, quanto mais velhas as mulheres, menor o número de parcelas a acrescentar na somatória
30Assim procedendo, obteve-se os resultados que se seguem para um indicador de disponibilidade calculado dividindo-se o número de mulheres (homens) em cada faixa etária pela soma do número de homens (mulheres) na mesma faixa etária e nas superiores (inferiores). Como se vê, até os 29 anos, as mulheres levariam vantagem por contarem com um grande contingente de homens disponíveis; mas, dos 30 anos em diante, a situação as desfavorece quanto ao encontro de parceiros.
Idade
|
População masculina e feminina
|
Indicador de disponibilidade
|
|
(em milhões)
|
de mulheres
para cada homem
|
de homens
para cada mulher
|
15 a 19
|
6,7
|
1
|
5,1
|
20 a 24
|
5,6
|
2,2
|
4,9
|
25 a 29
|
4,6
|
3,7
|
4,8
|
30 a 34
|
3,8
|
5,4
|
4,6
|
35 a 39
|
3,1
|
7,7
|
4,4
|
40 a 44
|
2,8
|
9,5
|
3,8
|
45 a 49
|
2,3
|
12,6
|
3,4
|
50 a 54
|
2
|
15,4
|
2,7
|
55 a 59
|
1,5
|
21,6
|
2,3
|
60 a 64
|
1,1
|
30,4
|
1,8
|
65 a 69
|
0,9
|
38,2
|
1
|
31Este exercício mostra como a combinação de uma estrutura por sexo e idade associada a uma norma social de escolha para casar, acabam por gerar um verdadeiro “determinismo sociodemográfico”, refletido na regularidade marcante dos parâmetros da nupcialidade analisados nas sessões 1, 2 e 3. Estes por sua vez encontram-se retratados na “pirâmide dos solitários”, que motivou estas notas.