- 1 Cet article fait partie d’un dossier publié en association avec la revue Brésil(s). Sciences humain (...)
- 2 O artigo é fruto de uma pesquisa efetuada com o auxílio da bolsa de produtividade em pesquisa do CN (...)
1Este artigo1 analisa a formação do censo de favelas de 1950, produzido pelo Serviço Nacional de Recenseamento, e os regimes de visibilidade identificáveis na representação das estatísticas. A divulgação dos censos, que influiu nos debates públicos sobre habitação social e sobre a estruturação do espaço urbano do Rio de Janeiro, traduziu-se em visualidades que receberam pouca atenção na bibliografia especializada sobre o tema2.
2As análises sócio-históricas enfatizam, sobretudo, que a produção da categoria censitária “favela”, por Alberto Passos Guimarães no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi um marco para o estudo da informalidade urbana brasileira, uma vez que permitiu interpretar e diferenciar os espaços de moradia e reconhecer as desigualdades sociais, territoriais e econômicas que estruturavam a pobreza e a demografia da cidade (Valladares 2005, Silva 2005). Nesse campo de discussão, também se questionam as várias implicações das categorias construídas a partir dos números e das definições demográficas. A relação entre a história das estatísticas brasileiras, a formação dos censos de favelas e a governabilidade constituída nos espaços urbanos são analisadas como em constante transformação: expressam as relações de poder travadas nas lutas pelo direito à cidade; elas podem elipsar as sociabilidades e a vida constituída numa localidade e dar ênfase aos estigmas associados aos moradores e à área representada (Motta 2019, Gonçalves 2020, Fischer 2021, Oliveira 2021).
3Essa bibliografia dialoga com a renovação da história das estatísticas, considerando-as descritivas e prescritivas, uma construção social articulada às formas de governabilidade estabelecidas pelo Estado moderno e vinculadas ao debate público de uma época. Os significados das grandezas de um recenseamento não são naturais, objetivos ou neutros, mas construções culturais inscritas em relações de poder e estratégias de controle do social (Starr 1980, Topalov 1992, 1996, Desroirères 1998, Cole 2000, Senra 2008a, Camargo 2009, Rosenthal 2009). Contudo, o lugar das imagens e a construção dos regimes de visibilidade nem sempre são analisados na trajetória dos censos de favelas, apesar de sua relevância para a circulação das estatísticas e a construção de seu significado social.
4Em “Sociology of oficial statistic” (1980), Paul Starr enfatiza que os censos modernos foram estabelecidos na formação dos Estados nacionais, no exercício de soberania sob um território, e que os sentidos atribuídos às grandezas numéricas têm interdependência com as categorias de enquadramento da realidade, com a compreensão da demanda formadora das estatísticas – a relação entre atores públicos e privados com a agência produtora do recenseamento e sua abrangência nacional ou regional –, com as legislações, normas e classificações socialmente construídas nas políticas públicas e traduzidas na pesquisa, e com os usos e efeitos do inquérito na opinião pública. Ou seja, tão importante quanto analisar o lugar das estatísticas na construção das formas governabilidade, é considerar a maneira como elas são interpretadas por leitores individuais e coletivos, rotinizando decisões, engendrando o dissenso e o consenso na opinião pública, e provocando novas formas de perceber o mundo (Starr 1980: 52-55).
5No circuito de produção e recepção das grandezas estatísticas, as imagens assumem um papel fundamental na elaboração da percepção das realidades descritas em termos demográficos e censitários. Elas promovem uma educação do olhar para a cidade e as favelas, traduzindo os censos e seus conceitos a partir de um filtro cultural e estético. Nesse sentido, usamos a noção de regimes de visibilidade para compreender o estatuto das imagens, visto que estas constroem relações estéticas e expressivas com seu público e estabelecem funções sócio-políticas que participam da convenção social do que é visualizável numa sociedade ou grupo. Em reação a uma historiografia e a um senso comum pouco atentos aos significados das imagens nas relações sociais e de poder, o conceito foi cunhado no âmbito dos estudos interdisciplinares da cultura visual e salienta os diferentes usos das representações visuais, bem como a variação dos significados daquilo que é visualizável, a depender do circuito de produção e consumo (Mirzoeff, 1999, Bezerra, 2003, Knauss, 2006, 2008, Elkins, 2011, Schivinatto & Costa, 2016).
6Além disso, a noção permite evidenciar que a opção pela fotografia, filme, mapa, desenho, gráfico ou outro registro visual na representação dos censos tem implicação para os significados que se constituem em relação às estatísticas. O corpus construído para essa pesquisa encontra-se no cruzamento de duas séries de registros históricos: os censos nacionais (que revelam a formação da favela como categoria censitária e geográfica no IBGE), e o fotojornalismo, que mostra a repercussão do tema , especialmente em O Observador Econômico e Financeiro. O artigo divide-se em duas seções e se enfatiza as diferenças estabelecidas entre o regime de visualidade das favelas construído no âmbito do discurso técnico-estatístico elaborado pelo IBGE e aquele construído na perspectiva de um veículo de imprensa alinhado com a pauta do desenvolvimentismo, e voltado aos empresários e às classes médias educadas.
7Os censos demográficos do Rio de Janeiro (Distrito Federal) na Primeira República vocalizaram o intento de transformar a cidade em um símbolo da nação e modernidade republicana e interditaram a representação da favela e pobreza urbana na cidade. Estabeleciam uma visibilidade da capital da república pouco atenta às questões sociais e marcada pela perspectiva sanitarista e eugenista que apagava os grupos “nacionais” (mestiços e pretos) por associá-los ao atraso, à escravidão e aos ideais contrários à civilização e ao progresso capitalista. Produzidos em 1890, 1906 e 1920, os dois últimos destacavam às reformas urbanas de Pereira Passos (1902-1906) e Carlos Sampaio (1920-1922), e eram fartamente ilustrados com imagens fotográficas dos melhoramentos urbanos na área central e zona sul. Representavam uma cidade construída a partir de padrões higienistas e de valores estéticos eurocêntricos e embranquecidos.
Imagem 1 – Fotografias da Praça Quinze de Novembro e da Avenida Central publicadas no Recenseamento do Rio de Janeiro de 1906
As imagens foram apresentadas juntamente com uma série de outras em que se enfatizava os edifícios e espaços da área central da cidade do Rio de Janeiro, após a reforma de Pereira Passos
In Brasil. 1907. Recenseamento do Rio de Janeiro (Distrito Federal) de 1906. Rio de Janeiro: Officina da Estatística, XLII-XLIII.
8Os censos de 1906 e 1920 foram peças importantes da retórica constituída pelo Estado na Exposição Nacional de 1908 e Exposição Universal de 1922. A primeira comemorava a efeméride do centenário da Abertura dos Portos em 1808 e a segunda o centenário da Independência de 1822, e os censos tinham centralidade no discurso sobre a modernidade, apresentando as transformações imaginadas e realizadas. Nas exposições universais, em especial, realizava-se um teatro da memória da história universal, dos avanços da ciência e dos progressos tecnológicos das nações capitalistas na segunda metade do século XIX e início do século XX. O fato do Brasil ter sido a sede do evento de 1922, a única a ser realizada fora do eixo Europa-Estados Unidos, foi bastante valorizado pelos atores sociais, levando a uma profusão de discursos e estatísticas. Juntamente com as imagens fotográficas que ilustravam o censo, a Diretoria Geral de Estatística produziu para essas efemérides uma série de gráficos, diagramas e cartogramas que conformavam um projeto de nacionalidade ancorado nos ideais civilizatórios da belle époque europeia e na demonstração das grandezas aferidas nas estatísticas (Senra, 2006, Santos, 2006a, 2006b).
9As fotografias da capital da República ilustravam as estatísticas, as narrativas corográficas da cidade, e os monumentos históricos, compondo um discurso visual que apagava a pobreza e informalidade urbana da estrutura social e econômica carioca. No censo predial e domiciliar dos recenseamentos da Primeira República, registravam-se as habitações dos bairros e distritos reconhecidos nos códigos urbanísticos, distribuídos entre a zona urbana, suburbana e rural. No entanto, desconsiderava-se a informalidade urbana das edificações (Brasil 1895, 1907, 1925). A ocupação dos morros reconhecidos como favelas da cidade aparecia nas estatísticas prediais, mas não havia um esforço estatístico para diferenciá-los do resto do espaço urbano ou como um conjunto demográfico. Se ao longo das primeiras duas décadas do século XX consolidou-se a imaginação social das favelas como símbolo da pobreza no Rio de Janeiro, os censos da belle époque carioca interditavam a representação desses espaços que eram associados à noção de “desordem” urbana (Gonçalves 2020, Fischer 2021).
10Esse silêncio estatístico em relação as favelas e às desigualdades sociais e econômicas foi rompido em função da transformação da política e das estatísticas oficiais entre os anos 1930 e 1950. A habitação social apareceu como um problema no debate público e censitário com o progressivo reconhecimento da questão social pelo Estado, rompendo com parte do consenso liberal e conservador que prevaleceu na Primeira República; a tentativa de estabelecer uma cidadania para os trabalhadores assalariados, constituindo um rol de direitos previdenciários e de expectativas de padrão de vida para os operários, motivaram a produção de estatísticas reconhecendo o problema dos desfiliados da estrutura econômica e social do capitalismo. O marco dessa mudança foi a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e o Ministério da Saúde e Educação pelo governo de Getúlio Vargas em 1930, e dos vários Institutos de Aposentadoria e Pensão, estabelecidos pelo empenho da organização sindical dos trabalhadores e pelo esforço governamental.
11O movimento civil e militar de 1930 (“Revolução de 1930”) estabeleceu um golpe de Estado para retirar o presidente eleito em 1929, interrompeu a realização do censo decenal e expressou mudanças relativas ao significado das estatísticas, colocando em foco a questão social. Num primeiro momento, o governo Vargas alocou o Departamento Geral de Estatística no recém criado ministério do trabalho e, posteriormente, fomentou a formação do IBGE. A criação e autonomia da instituição, estabelecida em colaboração com outras seções estaduais e municipais, foi central na consolidação da série estatística mais longeva dos censos decenais do século XX, acumulando metodologias e, principalmente, servindo de base para a discussão sobre as transformações do padrão de vida da população brasileira em diferentes regiões.
12A criação do IBGE ocorreu em 1938, a partir de transformações no projeto que fundou em 1934 o Instituto Nacional de Estatística (INE), idealizado por Teixeira de Freitas – intelectual vinculado à Diretoria Geral de Estatística. A necessidade de se restabelecer os censos decenais para formular políticas nacionais, a centralização política e a racionalização administrativa do governo de Getúlio Vargas foram determinantes para a criação da instituição (Diniz 1999, Gomes 2002). As estatísticas eram uma forma de governar, planejar políticas sociais e econômicas e conhecer a “realidade nacional”, sendo o IBGE um “consórcio federativo”, um órgão nacional que articulava um sistema de produtores de estatística em diferentes esferas municipais e estaduais vinculados ao Conselho Nacional de Estatística e ao Conselho Nacional de Geografia. Nesse sentido, é fundamental que se entenda o caráter colaborativo, centralizador e organizador do IBGE com outras agências que existiam na estrutura federativa brasileira, sendo o instituto um órgão nacional, mas não federal (Senra 2008b, 50-51).
13Esse caráter capilar e centralizador do IBGE favoreceu a organização de uma operação censitária extensa em 1940, cobrindo vários aspectos econômicos, políticos e sociais. As estatísticas oficiais organizadas pelo Serviço Nacional de Recenseamento foram apresentadas nos censos populacional e habitacional, agrícola, industrial, comercial, dos transportes e comunicações, dos serviços, social e inquéritos complementares sobre climatologia, epidemias, matérias primas, custo de vida e prospecção econômico-técnicas dos municípios. Eram critérios mais abrangentes que o censo populacional, predial, agrícola e industrial de 1920, com vários enquadramentos demográficos que se relacionavam com a maior complexidade da operação censitária. Essa amplitude permaneceu em 1950, juntamente com a crescente profissionalização e autonomização da atividade do estatístico, diferenciando-o em relação aos geógrafos e a aos outros cientistas sociais. Uma figura central para a continuidade da operação censitária e do processo de profissionalização do estatístico foi a figura de Giorgio Mortara – demógrafo italiano que se exilou no Brasil em 1939 e exerceu várias funções no IBGE, destacando-se a sua atuação no Conselho Nacional de Estatística e nos censos decenais de 1940 e 1950 (Santos 2007, Senra 2007, 2008b, Camargo 2009).
14Os volumes dedicados a estatística do Distrito Federal traziam todos esses dados e a complexidade da organização econômica e social da cidade. Diferente dos censos de 1906 e 1920, não havia registros fotográficos que acompanhavam os censos, nem as descrições históricas e corográficas das paisagens e da formação da cidade. A prevalência da apresentação de quadros estatísticos com a quantificação por número evidenciava um caráter mais impessoal e técnico, com uma conceituação específica sobre o significado de cada categoria e das grandezas aferidas. Na representação dos usos do espaço, principalmente na estatística habitacional e predial, série de longa continuidade e variação em sua conceituação no século XIX ao XX, havia a diferenciação dos bairros (alocados em cada região censitária definida pelo IBGE), e a subdivisão entre área urbana, suburbana e rural (Brasil 1951, Brasil 1955). As favelas não se apresentavam como categoria censitária no âmbito do Serviço de Recenseamento Nacional de 1940, mas a situação viria a mudar em 1950, a partir da iniciativa de Alberto Passos Guimarães.
15O problema das favelas já era anunciado no debate público desde a década de 1920, quando o substantivo comum “favela” já havia se consolidado no léxico urbano, mas o tema foi abordado a partir de uma outra perspectiva nos anos 1930, sendo encarado como parte da questão social e do debate sobre padrão de vida dos trabalhadores. A crise econômica de 1929, a acentuação dos movimentos migratórios nacionais na urbanização, e o investimento público e privado no desenvolvimento de áreas e distritos industriais criou uma pressão inflacionária e especulação sobre as propriedades imobiliárias nas cidades e aumentou o custo de vida e da habitação para os trabalhadores. Os protestos sindicais e de associações de moradores em diferentes escalas e localidades tornaram públicos esses problemas e o governo federal buscou equacionar a questão com a Lei do Inquilinato de 1942, regulando os contratos de aluguéis, e com a criação de subsídios e linhas de financiamento de habitação social para os trabalhadores assalariados filiados aos Institutos Aposentadoria de Previdência Social (IAPs) (Bonduki 2004, Silva 2005, Duarte 2018).
16O crescimento da autoconstrução de mordias nas áreas não reconhecidas pelo poder público municipal, sem infraestrutura e com título de posse precário, foi uma solução encontrada por diferentes trabalhadores para viver nas cidades. E esse quadro social favoreceu ao aparecimento de vários inquéritos sobre o padrão de vida, tendo em vista o problema da habitação social e da “carestia” (custo de vida) na modernidade urbana. Destacaria aqui dois trabalhos que se tornaram referências para a discussão nacional e que também foram uma inflexão na formação das Ciências Sociais brasileiras: “Padrão de vida dos Operários da Cidade de São Paulo”, escrito por Horace Davis na Escola Livre de Sociologia e Política e publicado na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo em 1935 (Davis 1935 [2008]); e “As condições de vida das Classes Operárias no Nordeste” de Josué de Castro, organizado pelo Departamento de Saúde Pública de Recife, e publicado no Boletim do Ministério do Trabalho e Indústria em 1935 (Castro 1935 [1957]). Esses inquéritos tentavam fugir das qualificações morais e raciais da pobreza urbana brasileira e compreendê-la como resultado do padrão de vida e salário dos trabalhadores. Eles evidenciavam as condições insalubres das habitações operárias e colocavam no debate público os problemas sociais dos “cortiços”, “porões”, “mocambos” e todo rol de situações informais de “habitações insalubres” ou fora do “padrão” de vida identificado com o bem-estar dos trabalhadores.
17Na capital da república, essa configuração motivou a realização da “Estatística Predial”, feita no âmbito do ministério do trabalho em 1933, mas ganhou destaque na discussão das favelas, na aproximação com a situação dos mocambos como “problema social” de Recife. A Liga Social contra os Mocambos, campanha iniciada em 1939 sob o governo do interventor pernambucano Agamenon Magalhães (1937-1945), buscou destruir barracos, construir casas populares de madeira para os operários e dinamizar o mercado imobiliário do centro urbano da cidade; em 1942, o prefeito do Rio de Janeiro Henrique Dodsworth (1937-1945) promoveu a campanha extinção das favelas e construção de parques proletários, seguindo paramentos semelhantes ao do governo pernambucano (Fischer 2021). Em ambos os casos, tem-se intervenções urbanas feitas em nome do bem-estar do trabalhador, mas que favoreciam a especulação imobiliária com o solo e as edificações de áreas centrais e que buscavam disciplinar os grupos vistos como marginais sociais a aderirem a um padrão de civilidade imaginada em perspectiva autoritária pelo Estado nacional. Essa retórica civilizatória em relação as favelas cariocas repetiram-se ao longo da década de 1940 e 1950.
18As campanhas de remoção de mocambos de Recife e de favelas no Rio de Janeiro suscitaram a construção de estatísticas que investigavam as habitações, as condições de moradia e tinham em conta a representação do morador como trabalhador. Todavia, elas não abandonavam o estigma das classes perigosas e dos estereótipos da malandragem, ociosidade e vadiagem, racializados como negros no senso comum e reconhecidos como tipos puníveis no Código Penal de 1890 e 1940. E diferente do Recife, em que se privilegiou a análise estatística e descrição das unidades de moradia, o Rio de Janeiro qualificou a favela como moradia e, principalmente, área e região irregular (Fischer 2021, 100-111). Essa opção por recensear uma região e não a habitação individual foi o tom do recenseamento realizado por Victor Tavares de Moura, médico pernambucano que ocupou cargos no Instituto de Aposentadoria e Pensa dos Bancários (1936) e na Secretaria Geral de Saúde e Assistência da Prefeitura do Distrito Federal, entre 1935 e 1945, sendo um dos responsáveis pela política dos Parques Proletários Provisórios (Medeiros 2009, 259-264).
19A estratégia de definir uma área informal nos inquéritos estatísticos coadunava-se com o estabelecimento do status jurídico e urbanístico da favela como espaço irregular, tipificado no Código de Obras de 1937 com proibições de melhoramento dos barracões e indicação de remoção do tecido urbano (Fischer 2008, Gonçalves 2013, Medeiros 2009). Essa diferenciação iria se aprofundar nos anos posteriores, quando as estatísticas priorizariam a definição da favela enquanto um território urbano e demográfico distinto. Para tanto, contribuiu as polêmicas em torno do “Censo de Favelas”, organizado pela Diretoria Geral de Estatística do Distrito Federal, coordenada pelo Major Durval Magalhães Coelho (Prefeitura do Distrito Federal 1949). Ele estava vinculado ao sistema estatístico do IBGE, ao Conselho Nacional de Estatística, e também era responsável pela publicação dos Anuários Estatísticos do Distrito Federal.
20O censo de favelas coordenado por Marjor Durval Magalhães Coelho foi publicado como parte de uma campanha da prefeitura para erradicar as favelas, quando o governo municipal do prefeito-militar Mendes Morais (1947-1951) prometia uma “batalha” contra as várias localidades e buscava controlar os moradores tidos como marginais sociais a partir de uma estratégia que combinava operação militar e assistência social (Gonçalves 2020, Oliveira 2021). A operação censitária ocorreu distendida por semanas, no final de 1947 e início de 1948, e foi bastante controversa para contabilizar a população: no primeiro resultado contabilizou 119 favelas e 284 mil habitantes, e num segundo retificado 105 favelas e 138.837 habitantes (Gonçalves 2020, 4). A incerteza quanto aos números e as discordâncias conceituais e políticas levou a mobilização do Serviço Nacional de Recenseamento, na figura de Alberto Passos Guimarães.
21Sendo parte de uma geração de intelectuais do IBGE influenciada por Giorgio Mortara, Guimarães estava vinculado ao Serviço Nacional de Recenseamento e à operação do censo decenal de 1950 no Distrito Federal. O intelectual do IBGE teve a preocupação de definir estatisticamente o que seria uma favela na realização do censo, coletou as informações durante o período de apuração do censo decenal de 1950, e buscou evitar e controlar o que ele classificou como o caráter “subjetivo” dos recenseadores e do senso comum. Para tanto, conceituou a favela enquanto realidade demográfica que deveria ter:
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Proporções mínimas – agrupamentos prediais ou residenciais formados com número geralmente superior a 50;
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Tipo de habitação – predominância no agrupamento, de casebres ou barracões rústicos típico, construídos principalmente de folhas de flandres, napas zincadas, tábuas ou materiais semelhantes;
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Condição jurídica da ocupação – construções sem licenciamento e sem fiscalização, em terrenos de terceiros ou de propriedade desconhecida;
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Melhoramentos públicos – ausências, no todo ou em parte, de rede sanitária, luz, telefone e água encanada;
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Urbanização – área não urbanizada com falta de arruamento, numeração ou emplacamento (Guimarães 1953, 18)
22Essa definição teve perenidade no IBGE, nacionalizou a categoria favela para registrar a informalidade urbana, e evidenciou a questão social na modernização brasileira dos pós Segunda Guerra Mundial. Pode-se aferir a importância dessa definição e sua repercussão ao longo de todo século XX, tendo em vista que ela foi retomada e revista nos censos decenais 1960, 1970, 1980, 1991, e anos 2000 (Gonçalves 2020). O conceito de favela era demográfico: balizou uma densidade para a identificação de uma localidade no espaço urbano e, fundamentalmente, aproximava a noção de favela a de “periferia” urbana, uma área pobre no desenvolvimento urbano-industrial brasileiro que se distinguia do “centro” e bairros regulares pela ausência de infraestruturas básicas e pela ocupação dos trabalhadores pobres e migrantes. Buscava-se evitar a classificação moral e subjetiva de “morro”, com casas e edificações não reconhecidas pelo poder público.
23E mais interessante ainda é que esse conceito tinha como pauta a visibilidade da questão social: a distribuição desigual de melhoramentos na cidade tendo em vista a diferenciação da população. Diferente do censo de favelas 1949, quando se falava abertamente na necessidade de controle sobre os “marginais” e da remoção das favelas para construir habitações populares, Guimarães discutia urbanização das áreas informais como forma de equacionar o problema social. Nesse sentido, ele se aproximava dos movimentos populares associativos que reivindicavam melhoramentos urbanos nas favelas cariocas; ao longo de sua vida, Alberto Guimarães foi parte da rede de intelectuais e militantes vinculados ao Partido Comunista que foram atuantes na representação e luta pelo direito à cidade. De maneira também distinta de Major Durval Magalhães Coelho, Guimarães alterava a forma de contar a população que era considerada “inativa” e se distanciava do discurso racista que associava o maior percentual da população “preta” e “parda” nas favelas à incapacidade de adaptação dos moradores ao trabalho e à cidade urbana-industrial (Oliveira 2021, 13-22).
24As análises de Alberto Passos Guimarães não vieram acompanhadas de imagens fotográficas; elas seguiam o mesmo padrão dos censos de 1940 e 1950, em que se priorizava os quadros estatísticos e a definição técnica e conceitual dos enquadramentos censitários e das grandezas numéricas. E, ao contrário de fotografias, Guimarães priorizou a representação cartográfica. Ao publicar o artigo “As favelas do Distrito Federal” (1952), na Revista Brasileira de Estatística, apresentou dois mapas de favelas, um do Morro do Cantagalo e outro do Morro de São Carlos. A escolha das localidades apresentadas cartograficamente recaía em uma favela da zona sul do Rio de Janeiro, no bairro de Copacabana, e outro numa favela da zona norte, no Rio Comprido – áreas de grande visibilidade na expansão das favelas na primeira metade do século XX.
Imagem 2. Mapa “Morro do Cantagalo”
In Guimarães, Alberto Passos. 1952. “As favelas do Distrito Federal”. Revista Brasileira de Estatística, Rio de Janeiro, Ano XIV, nº53: 277.
25O mapa foi construído a partir das necessidades da operação censitária por ele estabelecida. Foi anexado no final do artigo, acompanhado da ficha usada no censo e de uma tabela que identificava: o “Nome da Favela”, diferenciando aquele estabelecido pelo censo da Prefeitura do Distrito Federal e o aferido pelo Serviço Nacional de Recenseamento; a “Circuncisão” censitária do local recenseado e o “distrito” urbano a que se vinculava na divisão administrativa municipal; e os “acessos”, com os nomes dos arruamentos por onde se entrava na favela. Os mesmos critérios usados na tabela são reproduzidos no mapa relativo ao “Morro do Cantagalo”, indicando que havia registros específicos para cada localidade recenseada.
26O rigor usado na construção do cartograma indicava a construção de um conhecimento do território da cidade com intuito de aferir corretamente o espaço demográfico, indicando os limites e as vias de circulação no interior das favelas. A existência de “muro” ou acidente geográfico, e limites com outra localidade, como o “Morro do Pavãozinho”, e os caminhos no interior da comunidade informam sobre o esforço do recenseador caminhar e reconhecer o território. O arruamento demarcado de forma maior e mais visível que os caminhos no interior da favela, indicam a diferenciação entre os arruamentos oficiais, reconhecidos pelo poder público e urbanizados, e aqueles ignorados pela prefeitura – caracterizados pela informalidade. O mapa, assim como o conceito de Guimarães, expressava uma região desprovida de infra-estrutura, ignorando o esforço dos moradores em estabelecer as estratégias de acesso à água, à luz, ao lazer e as facilidades como escadas e outros melhoramentos construídos através da solidariedade no local de moradia. Nesse sentido, reproduzia uma visibilidade demográfica que reificava o discurso das favelas como local de ausências em relação à cidade (Gonçalves 2021).
27Cada ponto no mapa evidenciava um domicílio – estratégia central para instituir a grandeza demográfica estabelecida por Alberto Passos Guimarães. Eugênia Motta (2019), antropóloga do espaço urbano carioca, ponderou que a forma demográfica e estatística de reconhecer uma favela desconhece as lógicas de sociabilidade estabelecidas naquele espaço e as formas de construir a moradia. Essas lógicas podem sugerir divisões internas de certas áreas, estratégias de construção de moradia/habitação e relações de vizinhança e de parentesco que são desconhecidas pelo recenseador, e não se fazem visíveis nas estatísticas. No mapa, percebe-se que o recenseador podia perceber essa dinâmica, mas não conseguia qualificá-la, nem era a sua preocupação; e, por isso, encontrarmos na cartografia do Morro do Cantagalo, ao lado da Rua Saint Roman, pontos de interrogação “?” – uma a dúvida se seriam domicílios que fariam parte da favela.
28Os censos e inquéritos de favelas, da forma como vinham ocorrendo ao longo da década de 1940 contribuíam para individualizar e diferenciar o espaço da favela numa cidade, reconhecendo dinâmicas heterogêneas no espaço urbano e sua demografia (Silva 2005, Valladares 2005, Medeiros 2009). Nos anos 1950, o artigo de Guimarães sobre as favelas foi importante para vários sociólogos, geógrafos e intelectuais que investigaram a estrutura urbana do Rio de Janeiro. E ele foi um dos autores importantes para o campo ao situar a questão da “subjetividade” ao abordar a favela enquanto uma categoria do espaço urbano carioca e isso ficava evidente no regime de visibilidade constituído no âmbito do Serviço Nacional de Recenseamento.
29A preferência pela representação cartográfica e numérica em relação à imagem fotográfica compõe uma visualidade que se estabeleceu de forma crítica em relação a outros registros que se construíam fora do rigor analítico das estatísticas e do padrão profissional e impessoal, estabelecido no Censos de 1940 e 1950. Seguiam-se os parâmetros instituídos no Serviço Nacional de Recenseamento, na Revista Brasileira de Estatística, na profissionalização da estatística, e criava-se um filtro crítico em relação à outras formas de representação visual. A opção pela cartografia vinculada ao conceito demográfico da favela evitava a representação da cidade pelo registro fotográfico, que foi amplamente utilizado no âmbito do IBGE no reconhecimento do território e dos habitats brasileiros.
30No final da década de 1940, o Conselho Nacional de Geografia, órgão vinculado ao IBGE, contratou os primeiros fotógrafos profissionais para os trabalhos de campo no reconhecimento das paisagens e diversidade de habitats da geografia do Brasil, formando o Setor de Fotografia e Cinema. Pode-se perceber isso pelo farto material iconográfico constituído no trabalho de campo de geógrafos, publicados na Revista Brasileira de Geografia e acumulados no fundo arquivístico “Acervo dos Trabalhos Geográficos de Campo” (Abrantes 2013, 296-298). Nesse fundo, há fotografias de favelas cariocas elaboradas pelos fotógrafos Osvaldo Gilson Fonseca Costa, Tomas Somlo, José Joaquim de Sousa, que acompanhavam geógrafos ibegeanos em suas expedições e reconhecimentos do espaço geográfico urbano do Rio de Janeiro.
- 3 Essa foi a maneira como Pierre Deffontaine (1939), geógrafo francês que lecionou no Rio de Janeiro (...)
31Essas imagens fotográficas foram usadas visando o reconhecimento dos tipos espaciais e das ocupações que seriam representativos de determinadas regiões e localidades, contribuindo assim para o estabelecimento de uma geografia humana dos habitats rurais e urbanos brasileiros. No panorama dos etno-tipos construídos para representar a diversidade regional da comunidade nacional imaginada, os habitantes das favelas e mocambos, geralmente racializados como negros, representavam o “atraso” e a ruralidade em contraste com o avanço do desenvolvimento urbano-industrial de outras partes da cidade3. O conceito demográfico de favela, elaborado por Alberto Passos Guimarães no IBGE, e os censos dialogavam com esse projeto de uma geografia humana que buscava reconhecer os habitats e tipos sociais brasileiros.
32Todavia, opção de Alberto Passos Guimarães e do Serviço Nacional de Recenseamento em publicar na Revista Brasileira de Estatística sem incluir imagens fotográficas no seu estudo sugere a tentativa de rigor e controle da “subjetividade” que poderia estar implícita nos registros visuais da fotografia. Além disso, havia um claro contraponto aos censos publicados na Primeira República, período em que se verificou ao mesmo tempo um uso intensivo da fotografia na esfera pública, e uma desconsideração da questão social e das favelas na demografia carioca: as imagens fotográficas de “cartão-postal” contidas nesses censos mostravam uma urbe transformada pelas reformas para se aparentar com as cidades mais desenvolvidas do capitalismo no Atlântico Norte.
- 4 Para a Ana Mauad (2013), durante os séculos XIX e XX, o dispositivo fotográfico participou da artic (...)
33Nos anos 1940, 1950 e 1960, o Rio de Janeiro e as favelas foram foco de várias representações visuais em que a dualidade entre “morro” e “asfalto” seria reiterada em trabalhos de diferentes fotógrafos. Estas imagens não tinham as mesmas preocupações estabelecidas pelo regime de visibilidade constituído pelo IBGE, mas compunham o quadro mais amplo de uma fotografia pública4 que narrava o processo de modernização urbano-industrial brasileiro, as políticas urbanas e o contraste entre o atraso e o progresso em retóricas da marginalidade social. As favelas tornaram-se pauta de um debate público intenso e as imagens do foto-jornalismo eram correntes nas várias lutas pela representação da cidade (Muntreal & Grandi 2005, Amoroso 2011). Por esse motivo, o censo de favelas repercutiu na imprensa e ganhou uma recepção e visibilidade distintas daquela estabelecida no âmbito do IBGE e do Serviço Nacional de Recenseamento.
34Em 1951, a revista O Observador Econômico e Financeiro publicou uma reportagem intitulada “O Estranho Mundo dos Morros – O censo retrata as favelas”, divulgando a estatística como um furo jornalístico. Como se pode observar no título e enquadramento da reportagem, o censo do IBGE remetia ao “estranho” e exótico, suscitando no leitor aquilo que seria a alteridade da cidade, em um discurso que identificava a favela como locus da ausência de urbanidade, com os estigmas de classe e raça que reforçavam uma estereotipia dos atores sociais. E se Alberto Guimarães esforçou-se para compreender as favelas como algo implícito no desenvolvimento desigual do capitalismo nacional e como parte do espaço urbano carioca, o mesmo cuidado não existiu na fotorreportagem estabelecida pelo O Observador, que elaborou uma representação da favela como algo transitório no desenvolvimento da cidade e exterior à noção de urbanidade – um espaço heterotópico a ser removido ou disciplinado/ordenado.
- 5 A revista O Cruzeiro foi criada em 1928, sendo uma revista semanal ilustrada ligada aos Diários Ass (...)
35A revista O Observar Econômico e Financeiro, foi fundada em 1936 por Valentim Rebouças – intelectual e homem de negócios comprometido com o desenvolvimento industrial do Brasil. Divulgava informações estatísticas e leituras sociológicas da realidade brasileira para os empresários e as classes médias, sendo um dos aportes do debate do desenvolvimentismo. Tratava-se de uma publicação mensal voltada para as elites, e anunciava como colaboradores intelectuais de destaque Arthur Ramos, Pedro Calmon, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. Nos anos 1940, acompanhando a tendência do mercado editorial e o sucesso de O Cruzeiro5, abriu espaço para foto-reportagem. A revista O Observador anunciava que era “imprensa na empresa gráfica ‘O CRUZEIRO’ S.A”, e as séries de fotografias ganhavam destaque na paginação e ilustração das reportagens.
36As legendas, a seleção de imagens fotográficas e a composição de uma narrativa visual através de uma série de “flagrantes” da vida social eram elaboradas a partir do perfil editorial da revista, alinhada ao desenvolvimentismo, e pelo trabalho do fotógrafo profissional responsável por esse expediente. Em 1942, foi contratado o foto-repórter Mozart Alves da Silva, que permaneceu no quadro permanente da revista como Chefe da Seção de Fotografia até 1953, quando uma mudança editorial transformou o periódico, dando menos espaço às fotografias e dando destaque aos gráficos econômicos. Morador do bairro de Santa Tereza, casado, e presidente por dois mandatos da Associação de Repórteres Fotográficos do Rio de Janeiro na década de 1950, Mozart Alves era comprometido com o perfil editorial de O Observador Econômico e Financeiro e responsável por compor um quadro de imagens para ilustrar as reportagens que tinham como público os grupos sociais em ascensão na construção dos projetos de desenvolvimento urbano-industrial brasileiro (Oliveira 2020).
37Acompanhar a visualidade do fotojornalismo que cobriu os censos é uma maneira de compreender uma recepção das estatísticas em um circuito comunicação e sociabilidade distinto daquele estabelecido pelo IBGE, num regime de visibilidade endereçado às elites empresariais e classes médias urbanas. A fotografia de abertura no O Observador era publicada de forma horizontal e cobria metade da página da revista (Imagem 2). Num plano aberto que dava destaque às palafitas, estrutura de moradia construída por moradores em regiões alagadiças, a imagem tinha conexão direta com duas fotografias publicadas na mesma reportagem.
38As legendas desta série fotográfica não identificavam a localidade, e ainda menos os indivíduos retratados, apenas indicavam as situações que seriam típicas e que reforçavam a mensagem de que as favelas não eram restritas apenas aos “morros”. A sequência de imagens sugeria o atraso e a falta de condições dignas de moradia. Duas fotografias publicadas na mesma página, uma na horizontal e outra na vertical, também apresentam um plano aberto e sugerem a interação entre a moradora com a lata d’água na cabeça e o espaço retratado. Segundo a legenda :
“O leitor desavisado, deparando a fotografia debaixo, pensará certamente, que se trata de uma paisagem comum do rio Amazonas. A verdade, porém, é que se trata de um novo tipo de favela, onde os habitantes vivem do mesmo jeito que nos morros, com pequena diferença de que a foto superior nos dá ideia” (O Estranho... 1951, 69)
Imagem 3. Fotografia de uma favela em “Ramos”
In “O Estranho Mundo dos Morros – O censo retrata as favelas”, O Observador Econômico e Financeiro 191 (dezembro 1951): 68;73.
39Ao contrário do esforço analítico dos censos de favelas que procuravam situá-las como parte da estrutura econômica do Rio de Janeiro e indicar que eram comunidades heterogêneas (diferentes entre si em termos demográficos e espaciais), a composição das fotografias e legendas fazia crer que as moradias localizavam em outras regiões do país. Na abertura da reportagem, comparava-se a população contabilizada das favelas com outras cidades brasileiras, dizendo que a “população nesses barracos, em 1º de julho de 1950, segundo revela o Serviço Nacional de Recenseamento, montava a 169.305 pessoas”, e que em Niterói, “foram recenseadas, na mesma data, menos de 175 mil pessoas” (O Estranho... 1951, 69). As grandezas estatísticas comparadas reforçavam a ideia de uma alteridade, uma paisagem do atraso e algo que era contrário à “cidade maravilhosa”.
40As estatísticas do IBGE eram lidas como se os “aglomerados marginais” constituíssem uma cidade à parte, sem reconhecer as injunções sócio-econômicas que articulavam os territórios de moradia, trabalho e lazer. No caso das imagens acima, tem-se como referência o processo de formação das favelas da Maré, que nos anos 1940 ganhou evidência na abertura Avenida Brasil. A construção dessa via, que ligava o centro aos subúrbios e o Rio de Janeiro à baixada fluminense, tinha em vista a expansão de um anel de indústrias da cidade, e contribuiu para a formação de comunidades de trabalhadores migrantes na localidade. A palafita, moradia de madeira que surge do esforço coletivo de aterrar uma parte da Baia de Guanabara, marcou a construção das comunidades de pescadores da região e da localidade que surgiu nesse período de expansão demográfica, a Baixa do Sapateiro. Nos anos 1950, a região se tornaria um dos locus da mobilização política popular e dos protestos urbanos para reivindicar o direito à cidade dos trabalhadores favelados. Mozart Alves e o editor da revista parecem ter sido atraídos por essa expansão urbana do subúrbio construído pela Avenida Brasil, mas não deram visibilidade aos moradores, suas agências no espaço urbano e os topônimos por eles inventados para identificar as localidades de moradia – as comunidades da Maré eram retratadas como uma “favela de Ramos”.
41Essa série de imagens indicava que a informalidade urbana tinha um caminho de crescimento e expansão para o subúrbio, onde o contraste entre bairro e favela era novamente reiterado. A visibilidade desse espaço da cidade na abertura da reportagem em detrimento das áreas centrais também decorria de uma interpretação da definição do censo. O Observador Econômico e Financeiro exaltava o esforço do Serviço Nacional de Recenseamento em dividir a cidade em setores censitários, para realizar a “contagem e a verificação das características individuais dos favelados”, e também para reconhecer “as divergências provocadas por critérios subjetivos” na definição do que é uma favela: estabelecida como um “aglomerado marginal”, ela era entendida como não situada “apenas nos morros”, ou seja, a definição não dependia da “configuração do terreno”, mas da “associação de outros aspectos típicos, entre os quais o tipo de habitação, a condição de ocupação da área, a ausência de melhoramentos públicos” (O Estranho... 1951,73).
42Essa definição censitária de 1950 possibilitava compreender as favelas como um fenômeno social mais amplo, como parte do processo de industrialização do Rio de Janeiro e da marginalização dos migrantes e trabalhadores pobres (Tabela 1). A reportagem mostrava a expansão das favelas nos subúrbios como uma novidade revelada nas estatísticas. A reportagem comparava o censos de favelas de 1949, realizado no âmbito do Departamento de Geografia e Estatística da Prefeitura do Distrito Federal, e o censo de 1950, do Serviço Nacional de Estatística, sem observar as diferenças conceituais da coleta de informação; distribuindo as favelas pelos bairros regulares, enfatizava a abrangência do fenômeno no contraste entre bairros/distritos oficiais da cidade e as favelas.
Tabela 1 – Localização das favelas por regiões
Localização das favelas por regiões
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Censo de favelas de 1949
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Censo de Favelas de 1950
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Região
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Nº de favelas
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Região
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Nº de favelas
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Centro
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4
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Centro
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2
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Estácio de Sá
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7
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Estácio de Sá
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5
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Laranjeiras
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4
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Laranjeiras
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8
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Botafogo
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14
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Botafogo
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12
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Copacabana
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7
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Copacabana
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8
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São Cristóvão
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9
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São Cristóvão
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5
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Tijuca
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7
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Tijuca
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3
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Vila Isabel
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5
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Vila Isabel
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6
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Méier
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17
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Madureira
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3
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Madureira
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9
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Penha
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3
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Penha
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11
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Realengo
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1
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Realengo
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4
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Campo Grande
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2
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Santa Cruz
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2
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Ilhas
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3
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Quadro elaborado a partir de duas tabelas que constam na reportagem
In “O Estranho Mundo dos Morros – O censo retrata as favelas”, O Observador Econômico e Financeiro 191 (dezembro 1951): 73-76
43A identificação das favelas em expansão no subúrbio não abandonava o contraste entre morro e asfalto, característico dos bairros do centro, zona norte e sul. Como se pode observar pela tabela, nessas regiões localizavam-se várias favelas, e os censos mostravam que elas eram densamente povoadas. Nessas regiões, o morro era o espaço para a expansão urbana informal, e a foto-reportagem procurou também identificar o que seria essa paisagem da cidade com três imagens de morros, exibidas em sequência. Novamente, em nenhuma das fotografias tem-se a identificação da localidade, construindo a ideia de que era um tipo padrão, que seria repetido, comum, e consensual na topografia e paisagem urbana.
44Nas legendas das imagens dos morros, publicadas em sequência, leem-se as seguintes mensagens: “Enquanto a cidade cresce verticalmente, as favelas seguem-lhes as pegadas, em qualquer bairro, em quaisquer condições”; “Não raro defronta o passante com o vivo choque de belas residências construídas ao nível do mar e o espetáculo das favelas subindo os morros de pedra, bem aos fundos”; “Numa tentativa de limitação, a Prefeitura constrói muros e faz exigências. Mas a favela é irreprimível, e cedo os muros se transformam no campo predileto de pixadores”.
Imagem 4 – Fotografia contrastando “morro” e “asfalto”
In “O Estranho Mundo dos Morros – O censo retrata as favelas”, O Observador Econômico e Financeiro, 191 (dezembro 1951): 70-72.
45São fotografias de plano aberto, para representar o espaço urbano e enfatizar o contraste entre um logradouro urbanizado no primeiro plano, com ou sem um edifício/casa, e o morro no segundo, ocupado por “casebres” e em “desordem”. Tem-se novamente a ênfase num tema de outras reportagens publicadas no Observador Econômico e Financeiro: a verticalização das moradias na cidade e melhoria e conforto da modernidade e o contraste com os “barracos” desprovidos de infraestrutura. Assim, evidenciava-se como as estatísticas problematizavam a questão do padrão de vida e do bem-estar, mostrando as favelas como espaço de atraso em relação às comodidades da vida moderna, apesar da população almejar melhorias.
46Nestas demonstrações do baixo padrão de vida do favelado e de sua condição de marginalidade social, a presença de mulheres e crianças com “latas d´agua na cabeça”, enfatizam a falta de condição sanitária e de dignidade. Esses elementos, vistos como traços pitorescos, foram a tônica do fotojornalismo da revista O Observador . Uma das legendas das fotografias informava que “os dois aspectos fixados nesta página são característicos das favelas. O casario desordenado, a promiscuidade e as extenuantes caminhadas, morro acima e lata d’água à cabeça...” (O Estranho... 1951, 70).
47Essa imagem de “promiscuidade” e o contraste com as habitações modernas correspondiam à visão da comunidade de leitores, receptiva aos discursos que associavam as favelas à desordem moral e social. A temática tinha conotações racistas, associando à imagem dos grupos taxados como marginais aos estigmas de classe e raça atribuídos à pobreza urbana no Rio de Janeiro. As mulheres eram especialmente visadas pelo discurso da “promiscuidade”, com conotações morais e sexistas em relação à sua responsabilidade por cuidar da família e do lar. Na imagem dos vários tipos sociais enfocados na segunda parte da fotorreportagem (composta por 11 fotografias de personagens e tipos sociais das favelas), tem-se uma reprodução de estereótipos sociais que ora aproximava os moradores do discurso da marginalidade social, e que os racializava como negros, ora os retratava como indivíduos em transformação, adaptando-se ao ethos do trabalho disciplinador na vida urbano-industrial.
48No final da primeira parte da foto-reportagem (e antes da série de imagens sobre os “tipos” humanos), tem-se a imagem do morro da Favela, mostrando o Cais do Porto e sua zona industrial. Aqui, tem-se uma visão das favelas reiterada como um motivo iconográfico na perspectiva anunciada pela estatística: a de que esse era um problema ligado à industrialização do Rio de Janeiro:
“Eis a Favela, o morro de pedra defrontando o Cais do Porto. Aqui começou o problema, daqui saíram os primeiros motivos das canções populares, aqui até se pensou existir uma certa poesia do barraco... Hoje, tendo proliferado e visto seus problemas agravados ao extremo, a favela é um triste símbolo. Grandes esforços tem sido feitos para minorar a gravidade da situação, mas os resultados são parcos. (O Estranho... 1951, 76)
49Nas imagens publicadas junto à vista panorâmica da região portuária, há uma representação dos tipos humanos: enfatiza-se a figura racializada do “menor abandonado” com um grupo de crianças brincando, e outro carregando latas d’água na cabeça no espaço do largo da igreja, localizado na parte superior do Morro da Providência. Na imagem ao lado desta, aparece uma “família” do conjunto habitacional localizado no entorno da favela, com uma mulher e crianças mais bem vestidas (quando comparadas com as anteriores), e enquadradas pelos prédios. O contraste entre o plano aberto das duas fotografias, colocadas lado a lado, salientava o tema do meio e da desorganização social das famílias classificadas como marginais sociais. Sugeria-se na contraposição das duas imagens uma transformação que vinha ocorrendo, com “resultados parcos”, mas que seria desejável e já visivel. Dos anos 1940 aos anos 1970, atribuía-se à política de remoção das favelas e de construção de conjuntos habitacionais ou “parques proletários”, a capacidade de alterar os hábitos e de promover uma pedagogia civilizatória para os moradores, disciplinando-os para a vida social e o capitalismo.
Imagem 5 – Fotografia do Morro da Favela Na direita, e de tipos sociais no Morro da Babilônia, na esquerda
In “O Estranho Mundo dos Morros – O censo retrata as favelas”, O Observador Econômico e Financeiro 191 (dezembro 1951): 76-77.
50No fotojornalismo do O Observador, tem-se um conjunto imagens inscritas no universo mental das elites desenvolvimentistas: os moradores de favelas estão excluídos como público de recepção das representações visuais, e elas foram elaboradas por um fotógrafo profissional que morava e se posicionava fora das localidades retratadas. Tem-se a produção de um regime de visibilidade externo e distante das experiências dos moradores das diferentes comunidades, numa prática voyeuse em que se estimula o prazer de ver e julgar a realidade observada, sem ser visto, favorecendo a objetificação da paisagem e das pessoas fotografadas. Esse olhar externo e voyeur é percebido nas imagens em que os moradores se mostram evidentemente constrangidos com a presença do fotógrafo, ou em encenações que não sugerem espontaneidade.
51Essa representação exótica das favelas cariocas era corrente nos regimes de visualidade da imprensa carioca, se estabelecendo como uma fórmula para provocar sensações e reiterar uma retórica sobre os problemas urbanos e a marginalidade social, com seus preconceitos de classe e raça articulados na imaginação da cidade. A construção desse olhar que busca sensibilizar a partir do contraste entre o “asfalto” e a “favela” pode ser identificada nas primeiras fotografias de favelas e em diferentes outros registros que ganharam força e vigor na cultura erudita e popular dos anos 1920 – época da “redescoberta” do Brasil pelas vanguardas modernistas - como desenhos humorísticos ou gravuras e pinturas representando favelas e seus moradores racializados (Cardoso 2022). A fotografia de Mozart Alves em O Observador participou da construção desse discurso contrastivo, entre pathos e idealização, que serviu para justificar a necessidade de intervenção do poder público nos espaços vistos como o locus da desordem social e da marginalidade urbana do Rio de Janeiro.
52O regime de visibilidade escolhido para traduzir as estatísticas teve consequências para a percepção e interpretação do censo de favelas. Longe de ser técnico e neutro, ele estava envolvido em escolhas e debates políticos sobre a questão da habitação social no processo de urbanização e de desenvolvimento industrial brasileiro. As imagens participavam da construção da percepção e tradução da opinião pública na construção da representação coletiva das favelas cariocas.
53A construção dos censos de favelas foram um dos marcos para a história das estatísticas. Diferente da produção censitária da Primeira República, em que a informalidade urbana era evitada e silenciada em favor da representação de um espaço urbano higienizado e “branqueado” pelas reformas urbanísticas da Prefeitura do Distrito Federal, a partir dos anos 1930 nota-se um maior enfoque sobre os inquéritos de padrão de vida dos trabalhadores. O conceito demográfico de favela surgiu a partir desse debate sobre habitação social no Rio de Janeiro nos anos 1940, graças ao trabalho realizado pelo Serviço Nacional de Recenseamento do IBGE em 1950, um dos marcos para a história das estatísticas do século XX.
54A produção do conceito demográfico e estatístico da favela acompanhou-se também de uma mobilização de regimes de visibilidade distintos na construção da percepção do censo. O Serviço Nacional de Recenseamento, interessado em aferir a população e afastar a “subjetividade” que comprometia a operação censitária, evitou a representação visual fotográfica. Optou pela construção de mapas, nos quais o conceito demográfico e estatístico estabelecido por Alberto Passos Guimarães ganhou uma visualidade na construção do censo de favelas. No IBGE, esse não foi o padrão seguido por outros profissionais, vinculados à geografia, que usavam fartamente a fotografia em expedições de campo para a compreensão dos vários tipos de habitats, da relação entre o homem e o meio nas cidades e no campo.
55Fora do circuito do IBGE, o censo de favelas foi mote para realização de uma fotorreportagem no O Observador Econômico e Financeiro. A revista mensal, especializada na divulgação de análises e dados econômicos, realizou uma representação visual das favelas a partir da leitura dos censos que diferia bastante do regime de visualidade construído pelo IBGE. No universo social das elites desenvolvimentistas, as considerações críticas de Alberto Passos Guimarães sobre as favelas como parte do tecido urbano eram ignoradas, e produzia-se uma visualidade em que elas eram imaginadas a partir do signo de anomia social – representação da desordem e do atraso, sendo uma alteridade negativa em relação à “cidade maravilhosa” e sua industrialização. As fotografias representavam as favelas tomando conta de todos os espaços urbanos (centro, subúrbios, zona sul e zona norte), e configurando-se como a antítese do padrão e estilo de vida idealizados pelas classes médias instaladas em bairros cada vez mais repletos de prédios e de arranha-céus.
56A história dos censos evidencia que a sua realização e difusão influenciava a percepção de diversos atores sobre a realidade social, engendrando diferentes representações e interpretações das estatísticas. Os censos são uma construção cultural e isso reflete-se também nos regimes de visualidade estabelecidos em diferentes contextos e por grupos sociais distintos.